Já havia algum movimento no andar de cima, na casa da avó. Era preciso levantar-se, e ir para a escola… mas estava tanto frio…Já tinha tentado pôr o nariz de fora dos cobertores, e sentira-o a ficar gelado, gelado… Encolheu-se mais um pouco, colocou-se em posição fetal, juntou as mãos entre as pernas, e pensou que tinha que ser… Do lado de fora, a avó desceu as escaleiras de pedra e veio bater-lhe nos vidros da janela do seu quarto que dava para o quintal comum. Sem contemplações, a avó gritou que eram horas, que estava atrasada. Foi então o momento de deslizar para fora, deixando o irmão mais novo ainda na cama. Sentiu uma inveja profunda, por não poder ficar ali, ao pé dele, no quentinho. O frio do quarto penetrava-lhe a carne até aos ossos. Vestiu-se rapidamente, lavou as mãos, a cara, e chamou a mãe. Ela lá veio, ensonada e friorenta. Rapidamente aqueceu-lhe uma caneca de cevada com leite, e preparou-lhe um pão com manteiga…O nervosismo de Lurdes era agora cada vez maior. Ganhou finalmente consciência de que estava atrasada e de que iria enfrentar o mau génio e o castigo implacável da professora. Queixou-se à mãe e começou a choramingar… A mãe tentou acalmá-la, dizendo-lhe que ainda faltavam vinte minutos para as nove horas…Este argumento irritou ainda mais a garota.
— Pois é, mãe, mas sabe muito bem que a professora nos quer lá mais cedo, e, se lá não estivermos, ela bate-nos…
— Essa agora, não tem nada que te bater, o horário é às nove, não é às oito e meia…
— Mas ela bate-nos…ela bate-nos…
E as lágrimas caiam pelas faces de Maria de Lurdes, antevendo já o castigo que nunca deixava de vir.
A mãe, também já nervosa, acicatava a filha:
— Então anda lá, despacha-te!
E a pequena saiu, agarrando no pão que ia mordendo pelo caminho, misturado com lágrimas e angústias…
Num passo apressado, caminhou para a escola, edifício novo que ficava afastado da aldeia, a uma distância considerável que era preciso vencer…subiu a rua onde morava, passou pela igreja, pela farmácia, percorreu a praça da aldeia, atravessou a rua, com o nariz vermelho enfiado no cachecol, avançou pela rua da Amoreira, a sacola a pesar-lhe cada vez mais… entrou finalmente na Carreira. Aqui o frio era insuportável…Não havia casas …apenas o edifício do apeadeiro das carreiras que quebravam o isolamento da aldeia e a mantinham em ligação com outros mundos…filas de carvalhos perfilavam-se ao longo da avenida…De um e do outro lado da estrada, rugiam os ribeiros que da serra traziam as águas que alimentavam os campos e as casas.
O vento assobiava forte, impedindo a garota de progredir na sua caminhada…O seu corpo frágil e franzino avançava um passo, e o vento obrigava-a a recuar dois… O frio penetrava através da malha grossa do passa-montanhas tricotado pela mãe, arrepiava-lhe os cabelos, e o vento impedia-a de respirar…Os pés enfiados nuns botins de borracha, estavam gelados, apesar das meias grossas que apenas lhe chegavam aos joelhos. Esses nem os sentia... Depois de ultrapassar este obstáculo, Maria de Lurdes, protegida pelas casas, e pelas construções fabris, sentia o vento mais ameno. Começava agora outra etapa…era preciso subir os barrancos de terra batida, quase a pique…A respiração entrecortada denunciava-lhe o cansaço. Quando finalmente se encontrou em terra plana, e avistou a escola ao fundo, começou a sentir menos frio, mas a angústia aumentada. O coração batia-lhe descompassadamente…
Sabia que era tarde, pois não encontrara pelo caminho nenhuma colega da sua sala, nem da sala dos rapazes…
Entreabriu a porta, como um criminoso que volta sempre ao sítio do crime. A lengalenga da tabuada cantada ou da conjugação dos verbos, era a toada que saía pela porta entreaberta. Tentou passar despercebida e esgueirar-se para a carteira, como tantas vezes já vira fazer a algumas colegas…Mas não teve sorte... A professora ferrou-lhe os olhos em cima, e, com um gesto, chamou-a para junto de si. A régua estava já a postos na mão do carrasco. Lurdes estendeu a mão sem uma desculpa que sabia inútil, a professora pegou-lhe na ponta dos dedos, e as reguadas caíram-lhe nas mãos geladas. Quase as não sentia naquele momento. Mas já conhecia o processo…As mãos começavam a ferver, sentia um formigueiro e uma dor insuportável, como se as mão lhe estivessem a cair…O esforço para não chorar nunca resultava. Ia para o seu lugar, tentava controlar-se, mas as lágrimas quentes e salgadas desaguavam-lhe nos cantos da boca. Sem um queixume tentava tirar os cadernos da sacola com a mão que escapara do castigo, visto que a outra estava por momentos inútil. Pior que a dor física, era a dor da humilhação…Tanto que ela gostaria de enfrentar a professora enquanto a castigava, de olhos nos olhos, sem que nenhuma lágrima lhe denunciasse a fraqueza... Mas nunca o conseguira…era obrigada sempre a baixar a cabeça, numa tentativa de disfarçar…Felizmente que também nunca fizera a fita que fazia a Elsa quando era castigada…Chorava, soluçava alto e bom som, as lágrimas a deslizarem umas atrás das outras sem cessar…Como é que ela conseguia fabricar tanto líquido em tão pouco tempo, era para Lurdes uma incógnita. Depois, era preciso pôr rapidamente a funcionar a estratégia que lhe ensinaram para que a dor passasse mais depressa…quando a mão fervia, o melhor era colocar a palma virada para baixo sobre o tampo frio da carteira. Lentamente, começava a sentir-se um alívio… Mas, durante esse dia, era-lhe impossível olhar a professora nos olhos...