O meu bisavô paterno era barbeiro de profissão. Na loja térrea de sua casa recebia ele os clientes e os amigos, que muitas vezes ali vinham dar dois dedos de conversa. Então aos sábados não tinha mãos a medir, cortando cabelos e barbas, fazendo jus à expressão “tem mais freguesia que um barbeiro ao sábado”. Por vezes também arrancava dentes e fazia sangrias, quando o chamavam.
Contrariando o hábito que grassava na grande parte dos homens da sua terra, ele não partira para o Brasil…Gostava da sua profissão… não dava para ser rico, mas também não tinha essas ambições…Havia coisas mais importantes que o dinheiro…Amava a sua terra, a mulher, os filhos, e era incapaz de os trocar pelas perspectiva de riqueza. Ele bem via o que acontecia àqueles que partiam em busca de riqueza…Muitos voltavam doentes, outros nem sequer voltavam…Uns perdiam as famílias, as mulheres deitavam- se com outros…os filhos olhavam para eles como se de uns desconhecidos se tratasse…Ná… isso não era para ele… Claro que ficava contente quando algum dos seus amigos voltava do Brasil, e partilhava sucessos… mas nunca desejou estar no lugar deles…Além do mais, pensar que haveria um oceano a separá-lo da sua terra, dava-lhe voltas ao estômago. A água era importante, sim, mas para fazer a barba aos fregueses, para a comida, para fertilizar a terra, e para a ouvir cantando pelos regos da aldeia abaixo…Do que ele mais gostava era de manhã cedo, antes de abrir a barbearia, ir regar as terras, plantar umas couves, as batatas, o milho … e, à noite, depois de um dia de trabalho sem grandes sobressaltos, deitar-se de bem com a sua consciência e orgulhoso da família que Deus lhe dera…Não era homem para viver longe da mulher, dos filhos, dos amigos, das terras…Queria-os ali a todos, bem próximos…
Era uma pessoa sensata, leal e amiga do seu amigo. E exigia igual tratamento daqueles que com ele privavam, não admitindo traições ou faltas de carácter.
Houve em tempos na aldeia um indivíduo de algumas posses, que era muito miudinho e picuinhas, gostando de usar termos que a maioria dos aldeãos, com muito pouca instrução, desconhecia. Essa personagem, por vezes queria esmiuçar de tal maneira as instruções que dava àqueles que chamava para lhe fazerem determinados trabalhos, que se tornava frequentemente complicado perceber o que ele pretendia com esses termos. Exigia, por exemplo, que no jardim lhe “efectuassem um orifício com 30 centímetros de profundidade, 15 centímetros de diâmetro equidistantes 12 centímetros dos outros orifícios”… Ainda por cima o homem não despegava de cima dos trabalhadores, que ficavam sem pachorra para o ouvir, e a olhar para ele de olhos arrelampados, sem perceberem patavina do que ele queria…Daí que tivesse ganho o epíteto de dr. Lacerda.
Por dr. Lacerda passou a ser apelidado todo o gabarolas, aquele que usasse palavras imperceptíveis para a maior parte dos seus iguais, ou até que não lograsse explicar-se por excesso de palavreado. E a expressão “parece o dr. Lacerda”, passou a ser recorrente por aquelas bandas. Numa terra em que todos se conheciam, os mais novos se tuteavam e com os mais velhos se usava o “ti”, ser tratado por “Dr.” era, de facto, irónico e discriminatório. O mesmo não sucedia com o tratamento de “senhor” a que almejavam os que regressavam ricos do Brasil. Aqui não se tratava de discriminar, mas de reconhecer o mérito dos que haviam partido pobres, e regressavam ricos. Começou assim a assistir-se a um natural fenómeno de ascensão social traduzido na substituição dos “tios “ pelos “senhores, por parte da camada mais jovem da população.
Um dia, um amigo de infância com o qual o meu bisavô muito havia brincado, regressou do Brasil, depois de bastantes anos de trabalho duro, e, ao que constava, com alguns cabedais e planos para abrir um negócio de vinhos e petiscos.
Passou pela barbearia do meu bisavô, que o recebeu calorosamente, algo emocionado, feliz pelo sucesso do amigo. Depois das primeiras euforias, dos abraços e partilhas, entregou-se o brasileiro nas mãos conhecedoras do seu amigo, para o serviço completo de barba e cabelo.
O barbeiro lá foi cortando o cabelo, com calma e cuidado, enquanto cada um expunha ao outro os seus percursos de vida.
Depois do corte do cabelo, passou o meu avô à barba. Com toda a parcimónia, ensaboou o rosto do antigo companheiro de brincadeiras, e foram recordando as traquinices que a vida ao ar livre e sem vigilâncias lhes proporcionara, deleitando-se com o gosto dessa liberdade sem limites de uma infância feliz e despreocupada: o roubo da fruta ainda verde só pelo prazer da transgressão, as tardes inteiras passadas a nadar e a caçar bordalos e rãs na ribeira, o jogo aos feijões e aos botões, o despique com os piões, as explorações com os rodízios conduzidos com a gancheta pelas ruas da aldeia, as corridas com os carros feitos com as pranchas de madeira e as carretas dos desperdícios da fábrica… as armadilhas aos pássaros com os costilos, a pontaria com as fisgas que, às vezes, em vez de acertarem nos pássaros ou na fruta lhes fugia para os vidros da janelas de alguém com quem precisavam de acertar umas contas…
Ficaram um breve instante calados, mergulhados em tão saborosas recordações. Com todo o vagar, as mãos do meu bisavô continuavam levando a cabo a sua tarefa…
Foi o Arnaldo quem rompeu aquela torrente de lembranças…
— Sabes, José, agora sou rico, felizmente a vida correu-me bem…Estudei, sou uma pessoa importante… Toda a gente me trata por “senhor,” e eu mereço… por isso, não fica bem tratares-me por “tu”. Não é um bom exemplo… Não me leves a mal, mas… a partir de agora, queria que me tratasses também por “senhor”.
Por instantes a lâmina que escanhoava a barba do senhor Arnaldo ficou no ar…
O brasileiro tinha metade do rosto ensaboado. A outra metade havia já sido afagada pela lâmina.
— Tens razão!—respondeu o meu avô. — Tens carradas de razão. Mas, como sabes, a minha casa é modesta…
A acompanhar as palavras, os gestos decididos do meu bisavô: tirou a toalha à volta do pescoço do ex-companheiro de brincadeiras, sacudi-a e dobrou-a.
— Tenho muita pena. Eu aqui não faço a barba a senhores finos. Aqui, só mesmo a homens da minha condição.
E, ao mesmo tempo que empurrava o freguês dali para fora, com meio rosto ensaboado, metade da barba feita, outra meia por fazer, rematou:
— Vai fazer a barba a quem trate de senhores finos!
Arnaldo, atónito e sem reacção, deixou-se conduzir como um autómato, não acreditando no que estava a acontecer. Quando se viu na rua, expulso de casa de José, é que se deu conta de que talvez tivesse perdido um amigo para sempre. Lentamente, levou a mão ao bolso, tirou o lenço e limpou a cara.
Nunca mais se falaram. Por vezes, na barbearia vinha à baila a história daquele que, para o meu bisavô, deixou de ser o seu velho amigo Arnaldo, e passou a ser o Dr. Lacerda.