Mostrando postagens com marcador Venezuela. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Venezuela. Mostrar todas as postagens

sexta-feira, 11 de maio de 2012

Simón Bolívar, o grande mito latino americano - Gustavo Henrique Lopes Machado

Publicado originalmente em: http://www.diarioliberdade.org/opiniom/opiniom-propia/26591-sim%C3%B3n-bol%C3%ADvar,-o-grande-mito-latino-americano.html

"A força criadora de mitos, característica da fantasia popular, em todas as épocas tem provado sua eficácia inventando 'grandes homens'. O exemplo mais notável deste tipo é sem dúvida Simón Bolívar". Karl Marx


Em fins de 1960, referenciando as críticas de Marx a Simón Bolívar, Che Guevara escreveu: “Podem-se apontar em Marx, pensador e investigador das doutrinas sociais e do sistema capitalista que lhe coube viver, certas incorreções. Nós, os latinos americanos, podemos, por exemplo, não concordar com sua interpretação de Bolívar... Mas os grandes homens, descobridores de verdades luminosas, vivem, apesar de suas pequenas faltas, e estas servem apenas para demonstrar-nos que são humanos". Em todo período que se seguiu, as palavras do revolucionário argentino foram largamente repetidas, sobretudo, entre nós, latino americanos. A duras palavras de Marx ao “Libertador”, encerradas em um artigo denominado Bolívar y Ponte e em algumas outras rápidas menções no curso de sua obra, apareciam, para muitos, como um de seus grandes equívocos. Neste sentido, muitas foram as críticas ou tentativas de justificar as palavras de Marx direcionadas a Bolívar. Para uns produto de sua incompreensão da especificidade da realidade latino-americana, ou ainda, de um certo eurocentrismo presente em seu pensamento, outros justificaram que tal artigo foi elaborado com extrema rapidez e com finalidades unicamente financeiras. A própria edição russa de 1959 das obras completas de Marx e Engels inclui uma nota crítica concernente ao artigo sobre Bolívar, sustentando que os erros existentes eram provenientes das fontes insuficientes e parciais que teve acesso. Como se vê, a caracterização de Guevara foi um lugar comum entre os marxistas. Muitos não se limitaram a rechaçar a análise “unilateral” de Marx sobre o mais afamado nome da independência latino americana e o transfiguraram em um herói e simbolo do socialismo. Especialmente agora, com o chamado “socialismo do século XXI”, a figura de Bolívar parece ter alcançado destaque especial. Suas imagens inundam as salas do Palácio de Miraflores, a sede do governo venezuelano, que diz impulsionar uma revolução bolivariana na Venezuela, através de missões e círculos bolivarianos, visando à integração do continente. Até o nome do país foi alterado para República Bolivariana da Venezuela.
O referido artigo foi escrito por Marx em um contexto em que Bolívar era cultuado na própria “esquerda” europeia como libertador e herói da América Hispânica e um símbolo na luta contra o imperialismo. Desde então Bolívar é considerado por muitos o homem que indicou o caminho da liberdade através da destruição dos grilhões que uniam a América à metrópole espanhola. Esta fama valeu-lhe na literatura que se seguiu vários epítetos, como: “o libertador”, “gênio perfeito”, “caudilho incomparável”, “único de sua raça”, “São Simón Bolívar”, “Herói”, “Deus” etc... Todavia, Marx descreverá um Bolívar nada heroico. No curso do pequeno esboço biográfico que escreveu sobre o “Libertador”, este será acusado de oportunista, covarde, traidor, canalha, ditador, ambicioso etc... Teria Marx se equivocado? Apesar do seu rigor e inúmero conjunto de fontes que sempre consultou antes de emitir qualquer posição, teria neste caso se apressado? No período que se seguiu a publicação deste artigo Marx recebera cartas contestando sua interpretação e questionando suas fontes e respondera, ao seu modo, de maneira irônica. Analisemos melhor alguns aspectos do papel histórico desempenhado por Bolívar no curso e no contexto das independências latino americanas.

Como se sabe, as colônias espanholas na América eram marcadas por uma aguda exploração do trabalho, sobretudo indígena, realizada através de diversos tipos de trabalho compulsório e escravo, tanto nas minas como na agricultura. São bastante conhecidas, desde o inicio da colonização, as situações desumanas em que a população indígena e negra foi submetida no Novo Mundo, em particular na exploração das minas de prata em Potosí e de mercúrio em Huancavelica. Entretanto, este não era o único antagonismo que balizava a América espanhola. Os crioulos, isto é, pessoas de origem espanhola, ou de outros países da Europa, nascidas no continente americano, não tinham igualdade de direitos frente aos espanhóis. Ocupavam poucos cargos na hierarquia estatal e religiosa, e estavam juridicamente impossibilitados de atingir os níveis mais altos da burocracia administrativa. Em contrapartida, tornavam-se cada vez mais numerosos, colocando um problema político peculiar. E é neste clima de tensão permanente entre os dois setores dominantes nas colônias, espanhóis e crioulos, e a profunda crise da metrópole após a invasão napoleônica, que Simón Bolívar entra em cena.

Conforme menciona Marx em seu artigo, como filho da rica nobreza crioula na Venezuela, Bolívar foi enviado a europa para estudar ainda com 14 anos. Vivendo no velho mundo no período que se segue ao turbilhão da revolução francesa teve contato com ampla literatura iluminista e presenciou a coroação de Napoleão como imperador. Neste sentido, não é estranho que os princípios os quais animavam a grande revolução na França marcassem presença nos textos e discursos de Bolívar desde aquela época. Em sua vasta obra, entre discursos e cartas, estão recheadas de menções a libertação da América do domínio espanhol e referências aos princípios liberais, como neste trecho da Carta ao Governador de Curaçao: “Por três séculos gemeu a América sob esta tirania, a mais dura que afligiu a espécie humana; por três séculos chorou as funestas riquezas que tanto atrativo tinham para seus opressores”. Vários de seus escritos consistem em verdadeiras odes à liberdade remetendo a um futuro grandioso para o Novo Mundo. Entretanto, até que ponto esta retórica ilustrada coincidiu com existência prática do próprio Bolívar? Voltemo-nos então para o seu papel nas independências latino americanas, isto é, o cruzamento entre a teoria por ele difundida e sua existência efetiva.

Antes de querer conduzir as classes exploradas à participação política, o movimento de independência iniciado por Bolívar na Venezuela foi pautado, pelo contrário, no temor das mobilizações destas mesmas classes. Este temor da elite crioula se intensificou desde a conquista da Espanha em 1808 pelo exército de Napoleão Bonaparte quando perderam o respaldo militar da metrópole. Não por acaso o próprio Bolívar teria dito que uma revolta negra seria “mil vezes pior do que uma invasão espanhola”(1). Não se pode esquecer que os crioulos que estavam a frente do movimento de independência eram aristocratas rurais e escravocratas.

Neste sentido é importante notar que após a independência, a Espanha conseguiu restaurar seu domínio sobre a Venezuela, no curto período de 1814-16, graças ao apoio dos escravos. Talvez, por influência deste episódio, assim como dos compromissos firmados com o presidente do Haiti, que ofereceu ajuda militar no momento da reconquista espanhola, Bolívar obteve a libertação dos filhos dos escravos em 1921(2). Ainda assim, em carta direcionada a seu principal general, o “Libertador” explicita o aspecto tático da libertação dos escravos: utilizá-los nas batalhas pouparia os homens livres (crioulos) e possibilitaria a redução do seu “perigoso número”. (3)

Apesar dos aspectos acima ressaltados com relação a escravidão, não teria Bolívar cumprido um papel “progressista” ao propiciar a libertação nacional de tantos países da América Espanhola? Como podemos ver, naquele mesmo artigo de Marx, Bolívar “ recusou-se a aderir à revolução que estourou em Caracas em 19 de abril de 1810”, mas em seguida “aceitou a missão de ir à Londres para comprar armas e negociar a proteção do governo britânico”. No que diz respeito a vitória, diz Marx: “De deserção em deserção, tudo parecia caminhar para um desastre total (...) Nesse ínterim, chegou da Inglaterra uma forte ajuda em homens, navios e munições, e oficiais ingleses, franceses, alemães e poloneses afluíram de todas as partes para Angostura... Rapidamente pôs-se de pé um exército de 14 mil homens, com os quais Bolívar pôde passar novamente à ofensiva... as tropas estrangeiras, compostas fundamentalmente por ingleses, decidiram o destino de Nova Granada, graças às sucessivas vitórias... No dia 12 de agosto [de 1819] Bolívar entrou triunfalmente em Bogotá...”. Como se vê, para Marx,  o caráter anti-imperialista aparece como mais um mito do “Libertador” Bolívar, uma vez que teria livrado a América Latina do jugo espanhol, em troca do britânico.(4)

Bolívar também aparece em múltiplos textos de propaganda como expressão da democracia e da participação popular. Esta visão, como os aspectos anteriormente mencionados, não está em consonância com os acontecimentos. Apesar da retórica liberal e as constantes referências a opressão espanhola que perpassam seus escritos, para Bolívar a democracia era ideal, apenas para os outros, não para à América. Pouco após a independência da Venezuela em 1813 relata em carta ao Governador de Barinas: “Jamais a divisão do poder estabeleceu e perpetuou governos; somente a sua concentração conseguiu infundir respeito numa nação e eu não libertei a Venezuela senão para implementar exatamente este sistema”. Nesta mesma direção em sua famosa carta de Jamaica de 1815, anuncia ser a Venezuela o exemplo mais transparente “da ineficácia do modelo democrático e federal”. Em 1819 em discurso realizado em San Tomé de Angostura conclui que um sistema de governo como o dos Estados Unidos não é apropriado para “nossos países”, deixando claro que esta postura estava longe de expressar um contexto conjuntural. Em 1825, durante a constituinte da Bolívia propõe a ele próprio como presidente vitalício e o poder para escolher o vice-presidente o qual deveria sucedê-lo e justifica-se: “com esta providência se evita as eleições, que produzem grandes revezes nas repúblicas, a anarquia que é o luxo da tirania e o perigo mais imediato e terrível dos governos populares”.(5) Para Bolívar, a América Latina não estava preparada para a democracia, sendo ele o único capaz de manter a “República”. Quando esteve a frente do governo peruano escreveu: “no dia em que eu deixar o Peru ele volta a se perder: porque não há homens capazes de sustentar o Estado”, curiosamente, este mesmo Bolívar teria dito anos antes que “se apenas um homem fosse necessário para sustentar o Estado, esse Estado não deveria existir; e ao fim não existiria”. Logo, como se vê, Marx parece ter razão ao anunciar que a “intenção real de Bolívar era unificar toda a América do Sul em uma república federal, cujo ditador seria ele mesmo”. Entra em crise, aqui, o “herói da unidade latino americana”. Se para Bolívar esta unidade era um pretexto para uma ditadura mais ampla, ao que nos parece, tal unidade, tantas vezes invocada em nossos dias pelos governantes ditos de esquerda, visa apenas arrefecer as lutas efetivas entre as classes, procura-se esvaziar a sociedade de seu conteúdo real apagando as contradições em nome de um critério de natureza cultural e abstrata.

Por fim, provavelmente, a única convicção que permaneceu inabalável em Bolívar desde os primeiros anos dos processos de independência até a sua morte foi a da incapacidade do povo latino-americano de levar a cabo a sua própria libertação. Num primeiro momento, Bolívar acredita ser ele o único capaz de levar adiante tal empreitada, já nos últimos momentos de sua vida, quando seu fracasso já estava consumado, escrevera ao antigo aliado, o general Juan Flores, dizendo que “aquele que serve a revolução ara no mar”, que a América era ingovernável e que certamente nem os espanhóis desejariam mais reconquistá-la.

Posto todos estes elementos, como poderia Bolívar, no curso de nossa história, ter se transmutado em libertador, anti-imperialista, republicano, liberal e no bastião da democracia? Esta resposta se encontra nas múltiplas imagens dele construídas desde alguns anos após sua morte. Esta construção foi inicialmente desenvolvida pelas classes dominantes na Venezuela e depois reverberada sobre diversas correntes políticas do continente e em múltiplos sentidos. Passemos rapidamente por este itinerário.

Derrotado nas disputas pelo poder que se seguiram as independências, Bolívar morreu desprezado e caluniado pelos seus antigos aliados, considerado um traidor nacional. O governo de Paez, um inimigo de Bolívar, sucumbiu frente as inúmeras disputas e turbulências locais que perduraram. Neste quadro de total instabilidade e caos social, a figura de Bolívar renasce sob o governo de Fermin Toro, em que Bolívar é apresentado como unificador e harmonizador de conflitos sociais. Transformou-se em um símbolo que representava a Nação venezuelana em conformação. Desde então, sua imagem foi apropriada pela classe dominante venezuelana, através de sucessivos governos, os quais acentuaram apenas alguns aspectos dos escritos de Bolívar. Neste momento desenvolveu-se de forma cada vez mais ampliada, um verdadeiro culto à sua pessoa, que transcendeu as fronteiras venezuelanas, colocando-o no altar de toda a América Latina. Foi comparado aos heróis da mitologia greco-romana e do cristianismo. Bolívar era Zeus ou Júpiter no “Olimpo crioulo”, era como Jesus Cristo. No centenário de seu nascimento, Gusmán Blanco o caracterizara como o “predestinado”, “a serviço dos desígnios da Providência”, “Libertador do continente, criador das repúblicas americanas, o pai dos cidadãos livres” e ainda “Deus oferecera a ele todos os talentos (…) incomparáveis em toda a superfície da terra, tanto no passado, no presente e no futuro”. (6) (7) Como se vê, os heróis nacionais latino americanos, como Bolívar, não germinaram espontaneamente no curso da própria luta de libertação, mas foram escolhidos posteriormente segundo os critérios e conveniências dos governos instituídos. O que resultava na construção meramente simbólica e a posteriori, tanto de heróis como de anti-heróis.

Neste caminho, a figura mítica de Bolívar foi usada não apenas nos sucessivos governos autoritários da Venezuela mas reverberou por todo continente e para além dele. Existem registros de que tanto o regime de Mussolini como o nazismo procuraram interpretar Bolívar em seu favor, em um livro escrito pelo nazista Wolfram Dietrich, este anuncia que a principal lição extraída de Bolívar é “ que ‘um povo só pode prosperar sob o comando enérgico de um FUEHRER” (8) Em diversos outros momentos o nosso “Libertador” foi utilizado para justificação de governos autoritários e sobretudo nacionalistas.

O uso do Bolívar mitológico no interior dos movimentos de esquerda se desenvolveu, com particular intensidade, após a “teoria da dependência” que, em suas múltiplas matizes, assenta-se sobre a tese de que a pobreza latino-americana decorre dos quase cinco séculos de saques que o continente passou, ora pelos espanhóis e portugueses, ora pelos norte-americanos. Assim, a luta dos crioulos teriam um caráter progressivo frente à burguesia estrangeira, isto é, ao imperialismo. Tal tese, que aparece como um misto obscuro entre nacionalismo e marxismo, nunca conseguiu explicar de maneira consistente como uma revolução meramente nacional se converte,  compõe, ou auxilia uma revolução socialista. Questão normalmente defendida com a mera evocação dos termos dialética ou mediação esvaziados de qualquer conteúdo. Para muitos dos seguidores da crença na “teoria da dependência” a libertação nacional e revolução socialista fazem parte de um mesmo processo dialético ou constitui uma mediação de um para o outro. Em que consiste esta mediação ou esta dialética continua uma grande incógnita. Tampouco explicita as vantagens para classe trabalhadora de possuir exploradores predominantemente da mesma nacionalidade. Neste cenário, não é mera coincidência que o governo bolivariano de Hugo Chávez propagandeie aos quatro ventos o livro: “Veias abertas da América Latina” de Eduardo Galeado, assentado sobre a débil tese da teoria da dependência. Seja como for, a figura de Bolívar caiu como uma luva para esta teoria, dois mitos que se auto complementam.

Atualmente, podemos constatar que a fabrica construtora de mitos continua ativa na América Latina, sobretudo, nos governos de viés nacionalista. Recentemente, o governo da presidente Cristina Kirchner na Argentina determinou por decreto uma revisão oficial da História de sua nação. Para tal, foi criado o Instituto Nacional do Revisionismo Histórico Argentino e Ibero-Americano Manuel Dorrego ligado a Secretaria Federal de Cultura. Este instituto tem por objetivo rever a história do país de maneira a contemplar o mito dos caudilhos e seus laços populares, assim como, denunciar os liberais pelo projeto de incorporar a Argentina no capitalismo global como um sócio inferior no mercado agroexportador. Por exemplo, o ditador Juan Manuel de Rosas (1835-52), que promoveu verdadeiros genocídios contra os indígenas do sul da Província de Buenos Aires, será transformado em herói, enquanto democratas, como Domingo Faustino Sarmiento, são transformados em agentes do imperialismo. Ao que parece, Cristina necessita de novos Bolívares.

É evidente que o Bolívar histórico não é aquele pintado por seus apologetas, tanto conservadores como “socialistas”. Nosso objetivo, neste modesto texto, não é atingir ou sequer apontar para a figura histórica de Simón Bolívar. Para tal é necessário desnudá-lo de todo o vestuário criado por aqueles que fizeram e fazem uso de seu nome, tendo em vista, apenas corroborar necessidades imperativas de grupos que estão no poder. Independente disto, fato é que Bolívar era integrante da classe dominante crioula, cujos interesses representava. Podemos perceber que, no interior de uma economia de mercado em permanente expansão, a liberação do jugo espanhol apenas resultou em uma nova escravidão. Neste sentido, seguindo as reflexões de Marx, imperialismo seria, tão somente, um fenômeno, uma manifestação inerente ao capital em suas idas e vindas em busca de valorização. Para além das manifestações aparentes e abstratas do dinheiro, do direito e da nação encontra-se a exploração de classes, e em particular, a exploração da classe trabalhadora, que produz toda riqueza, mas que só possui sua força de trabalho para vender. Neste sentido, independente de imprecisões históricas que possam existir no breve esboço biográfico de Marx sobre Bolívar, esse se apresenta como coerente, tendo em vista o pensamento e a elaboração teórica do autor de O Capital. Em contra partida, do ponto de vista histórico, parece incontestável a menção que Marx faria alguns anos mais tarde no seu escrito contra Herr Vogt: “A força criadora de mitos, característica da fantasia popular, em todas as épocas tem provado sua eficácia inventando ‘grandes homens’. O exemplo mais notável deste tipo é sem dúvida Simón Bolívar”.

Todavia não podemos desconsiderar ainda a possibilidade de Marx estar equivocado, não apenas com relação a Bolívar, mas sim, ao conjunto de sua obra, em que a nação, embora real, é sempre abstrata e as classes sociais e seu caráter internacional, concreto. Talvez a nação seja, de alguma forma ainda não demonstrada, uma determinação substancial do capital. Talvez as relações econômicas entre os países tenham o mesmo estatuto da relação entre as classes. Talvez o imperialismo seja o substituto da burguesia na sociedade contemporânea, o que colocaria as nações dominadas como o sujeito de uma transformação social profunda. Talvez este aspecto justifique o desejo não realizado de Lukacs de escrever “O Capital” de nossos dias. Se for este o caso, resta-nos constatar que as nações sempre necessitaram da criação de mitos e heróis. Assim, para nós, brasileiros, antes de exportarmos o herói venezuelano, devemos criar nossos próprios mitos, nossos próprios heróis e colocar em seu devido lugar o nosso Zeus, nosso Jesus Cristo, o “único de sua raça”, o “predestinado”, “a serviço dos desígnios da Providência”, o “Libertador” do Brasil, Dom Pedro I.


(1) Lynch, The Spanish-American revolutions, p.224
(2) Masur, Bolívar, pp 206-207
(3) Jair Antunes, Marx e a América para além da história do capitalismo, pp  147-148
(4) Jair Antunes, Marx e a América para além da história do capitalismo, pp  149
(5) Maria Lígia Coelho Prado, “Bolívar, Bolívares”, Folhetim, Folha de São Paulo, 24 jul. 83
(6) Maria Lígia Coelho Prado, “Bolívar, Bolívares”, Folhetim, Folha de São Paulo, 24 jul. 83
(7) German Carrera Damas, "El culto a Bolívar"
(8) Moacir Werneck de Castro, “O Libertador – A Vida de Simón Bolívar”

segunda-feira, 31 de maio de 2010

Hugo Chávez, Marx e o 'Bolivarismo' do século XXI - Jair Antunes

Retirado do sítio: http://www.wsws.org/pt/2007/feb2007/po5-f17.shtml

O começo do século XXI testemunhou um ressurgimento do nacionalismo populista burguês em grande parte da América Latina. De certa forma, este desenvolvimento do nacionalismo compartilha de características comuns com o que foi visto no século anterior em figuras como Juan Domingo Perón na Argentina, Getúlio Vargas no Brasil ou de Lazaro Cardenas no México.

As eleições do presidente Hugo Chávez na Venezuela—o qual está caminhando para um mandato vitalício—e Evo Morales na Bolívia, o retorno do ex-líder sandinista Daniel Ortega para a presidência da Nicarágua, bem como a eleição de Rafael Correa no Equador, foram todas acompanhadas da retórica nacionalista para reverter o brutal e sangrento período de desagregação das economias latino-americanas das últimas décadas. Alguns dizem que a América Latina está realmente se movendo para a esquerda, para um novo tipo de socialismo, no entanto, em cada um destes países o domínio do capital permanece intacto.

Hugo Chávez, em particular, apresentou este movimento como uma continuação da velha cruzada de Simon Bolívar, El Libertador, quem há dois séculos dizia tentar libertar a América Latina das garras da dominação imperialista, mas que na realidade lançou as bases para a dominação imperialista durante séculos. Chávez chegou a ponto de entregar réplicas da espada de Bolívar para Morales, Correa e Ortega durante suas respectivas posses.

Certos setores da esquerda latino-americana que se especializaram em semear ilusões a partir de tais lideranças, acompanham a Chávez, envolvendo-se também no manto de Bolívar e na perspectiva do presidente venezuelano de um retorno continental da "revolução Bolivariana".

Mas, quem foi Bolívar, e qual foi realmente sua herança?


Marx e a biografia pouco heróica de Simon Bolívar

Em artigo escrito em 1858, intitulado Bolívar y Ponte, Marx relata as falsas façanhas de El Libertador durante as guerras antiespanholas. Marx apresenta Bolívar como um falsário, desertor, conspirador, mentiroso, covarde, saqueador, etc.

Marx tinha clareza do papel de classe desempenhado por Bolívar nestas lutas, mostrando-o como um típico representante de setores da tradicional burguesia criolla local: "Bolívar y Ponte, Simon, o ‘Libertador' da Colômbia nasceu... em Caracas (...) Descendia de uma das famílias mantuanas, que, na época da dominação espanhola, constituíam a nobreza criolla na Venezuela".

Para Marx, Bolívar, ao final dos conflitos anticastelhanos, com a vitória dos exércitos nacionalistas, foi transformado em um falso símbolo de toda a luta antiimperialista latino-americana, fundando, o assim chamado "bolivarismo", o qual consiste basicamente em proclamar a libertação nacional dos povos oprimidos contra o imperialismo sem, no entanto, alterar fundamentalmente as relações entre as classes sociais, quer dizer, sem alterar a estrutura sócio-econômica.

Do ponto de vista de Marx a "revolução" hispano-americana conduzida por Bolívar teria sido, no melhor dos casos, uma imitação pálida das revoluções burguesas européias, nunca indo além de um esforço para uma maior liberdade de comércio e de melhores condições para explorar os trabalhadores latino-americanos. Marx nunca glorificou Bolívar simplesmente porque nunca percebeu em sua trajetória político-militar uma só ação que pudesse indicar, para a classe trabalhadora latino-americana e mundial, qualquer progresso na luta pela liberdade humana. Ao contrário, Marx mostrava claramente a natureza e os limites de classe da assim chamada "revolução bolivariana".

A emancipação dos negros escravos realizada por Bolívar, por exemplo, não estava relacionada a uma suposta consciência humanista do "herói", mas ao medo instalado na burguesia criolla de uma possível revolução popular, após a independência, contra a própria classe dominante local. Para evitar tal suposta revolta popular, Bolívar inventou uma solução bastante original e que, por obra do destino, ficou registrada pelo punho do próprio "Libertador" numa carta endereçada a seu principal general, Santander, em 20 de abril de 1820.

Nesta carta, Bolívar esclarece que a liberdade concedida aos negros que se alistassem no exército nacional não estaria ligada à necessidade de aumento do efetivo do exército, mas estaria sim diretamente ligada à necessidade de diminuição de seu perigoso número, ou, em outras palavras, do perigo de uma possível "Haitiização" revolucionária de todo o continente. O recrutamento dos negros às fileiras do seu exército servia assim para eliminá-los em combate.

Como proclamou Bolívar: "De acordo com o artigo 3o da Constituição: ‘todos os escravos úteis para os serviços das armas serão destinados ao exército.'"

"Salvo engano - continua ele - isto não é declarar a liberdade dos escravos e sim usar a faculdade que me dá a lei (...) Não será útil que estes adquiram seus diretos no campo de batalha e que diminua seu perigoso número por um meio poderoso e legítimo?" (In: Bolívar. Bellotto & Correa. SP: Ática, 1983, p.50).

Uma das partes mais interessantes do artigo de Marx sobre o "Libertador" é quando destaca o quanto o exército rebelde estava dependente do apoio externo, em especial do imperialismo industrial britânico e das milícias mercenárias oriundas da Europa, as quais, segundo Marx, foram decisivas nas lutas vitoriosas de libertação de Nova Granada (atuais Venezuela, Colômbia e Equador). Como escreve Marx: "[Em 1818] chegou da Inglaterra uma forte ajuda sob a forma de homens, navios e munições, e oficiais ingleses, franceses, alemães e poloneses afluíram de toda parte para Angostura... as tropas estrangeiras, compostas fundamentalmente por ingleses, decidiram o destino de Nova Granada... em 12 de agosto Bolívar entrou triunfalmente em Bogotá".

Como podemos perceber, Bolívar livrou a América Latina do já retrógrado império castelhano apenas para pô-la, então, sob o jugo do imperialismo industrial britânico e posteriormente sob aquele do imperialismo do norte-americano.

Enfim, Marx tinha tão pouca admiração por Bolívar que o acusa de ser uma paródia de Napoleão Bonaparte, um novo Bonaparte na América. Talvez até, a paródia da paródia da paródia: o compara ao ditador golpista do Haiti, Soulouque, que já era a caricatura de Luis Napoleão III da França, o Bonaparte paródia do Bonaparte I. Como escreveu, em Herr Vogt: "A força criadora de mitos, característica da fantasia popular, em todas as épocas tem provado sua eficácia inventando grandes homens. O exemplo mais notável deste tipo é sem dúvida Simon Bolívar". E Marx, em carta de 14/02/1858, comenta com Engels: "Teria sido passar dos limites querer apresentar Napoleão I como o canalha dos mais covardes, brutal e miserável. Bolívar é o verdadeiro Soulouque".


Hugo Chávez: o Bolívar do século XXI


No entanto, mesmo o caráter covarde, traidor e mentiroso, etc, com que Marx pintou a figura de Bolívar, parece não ter sido suficiente para que, no século XX, a dita esquerda "marxista" latino-americana abandonasse de vez por todas a idolatria a este pseudo-herói. Ao contrário, essa esquerda o transformou em uma referência para a classe trabalhadora latino-americana, passando a inventar o "Bolivarismo" como um símbolo de toda uma suposta luta antiimperialista latino-americana.

Como dissemos acima, neste início do século XXI, o exemplo mais claro de sobrevivência e ressurgimento do Bolivarismo Bonapartista latino-americano está representado na figura do Coronel Hugo Chávez, presidente da Venezuela. Chávez, militar de carreira, protagonizou um golpe militar fracassado na Venezuela em 1992, sendo preso e libertado dois anos depois. Em 1998 foi eleito, pelo voto direto, presidente da República. Em 1999 criou uma nova Constituição mudando o nome do país para "República Bolivariana da Venezuela"

Desde então, ano após ano, Chávez vem aumentando seu poder. Em 2005, graças ao boicote às eleições promovido pelos partidos de oposição, ganhou a maioria total na Assembléia Nacional. Agora, reeleito presidente em 2006, com 63 % dos votos, apesar de seu controle de 100% do Parlamento, aprovou no último dia 31 de janeiro a chamada "Lei Habilitante" que lhe concede poderes extraordinários, incluindo o direito de governar por decretos durante 18 meses. Várias vezes, já ameaçou a oposição com uma reforma constitucional que lhe permitiria infinitas reeleições, se perpetuando no poder de forma vitalícia.

Ao ser eleito pela primeira vez em 1998, Chávez prometeu acabar com a miséria que assola a maioria absoluta do povo venezuelano. Não obstante, de lá para cá, os pauperizados diminuíram somente de forma relativa no país: a pobreza, em geral, diminuiu de 49,9% da população em 1999 para 37,1% em 2005, e a chamada miséria absoluta passou de 21,7% para 15,9%. No entanto, esta mudança se deve à implementação de programas assistencialistas promovidos por Chavez nestes últimos anos e não a um aumento significativo da renda dos trabalhadores. De fato, os níveis de desemprego em 2005 são maiores do que quando assumiu o governo em fevereiro de 1999 (11,3% em 1999 contra 12,4% em 2005). De qualquer forma, pelo menos 53% da população total do país continua vivendo ou na pobreza ou na miséria absoluta (os dados são da CEPAL—Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe).

Além disso, o relativo sucesso dos programas assistencialistas de Chávez deve-se em grande parte às riquezas naturais do subsolo venezuelano, sobretudo, do petróleo. Por isso, o seu governo vem realizando processos de renegociação dos contratos com as corporações estrangeiras de energia, apresentando estas negociações como "nacionalizações". Desta forma, a empresa petroleira PDVSA—Petróleos de Venezuela SA— passou a ter 51% das ações da empresa sob controle do estado, ficando os outros 49% sob controle do capital privado (predominantemente estrangeiro). De acordo com presidente bolivarista, o maior inimigo do povo da Venezuela seria o imperialismo norte-americano, porém, este inimigo, ao mesmo tempo, se constitui no maior parceiro comercial do governo de Chávez, sendo o principal comprador do petróleo venezuelano.


Chávez e sua dependência do petróleo


Segundo dados da CEPAL para 2005-2006, mais da metade das exportações da Venezuela, em especial de petróleo cru, tem como destino o mercado norte-americano. O mesmo percentual é válido para a importação de produtos manufaturados: pelo menos metade do que a Venezuela importa de produtos acabados vem do inimigo/parceiro Estados Unidos.

Na verdade, o atual crescimento econômico da Venezuela está baseado na enorme demanda mundial por petróleo (o país é o quinto maior produtor mundial), do qual os EUA, como dissemos, é seu maior consumidor. Em 1999, primeiro ano do governo Chávez, o país produzia menos de 2,8 milhões de barris/dia. Já em 2005, segundo dados da própria PDVSA, a produção diária atingiu a casa dos 3 milhões e trezentos mil barris/dia.

O que fica claro é que o bonapartismo chavista repousa totalmente na altíssima demanda mundial por petróleo. O aumento em torno de 20% da produção entre 1999 e 2005 ocorreu sob as circunstâncias de um aumento substancial do preço do barril no mercado mundial. Em 1999 o barril custava 25 dólares, em 2005 atingiu a casa dos 55 dólares. Em 2006, com a especulação em torno da invasão americana do Irã (quarto maior produtor), o barril de petróleo ultrapassou a casa dos 70 dólares, preço bem próximo daquele recorde de 1979 quando da revolução iraniana. Mesmo agora, no início de 2007, passados os boatos de possíveis novas guerras americanas, o preço do barril de petróleo continua acima dos 50 dólares (CEPAL).

Chávez e sua "revolução bolivariana" estão inteiramente amparados na altíssima demanda mundial por combustíveis fósseis, impulsionada em especial pelas guerras estadunidenses no Oriente Médio. Neste sentido, George W. Bush não é na realidade o maior inimigo de Chávez, como afirma este, mas, exatamente o contrário: é graças a esta política militarista de Bush que Chávez consegue arrecadar dividendos fantásticos para a economia do país. Bush é, na verdade, se não o melhor amigo do seu governo, pelo menos seu maior parceiro nos negócios, pois, sem esta contraditória parceria, Chávez certamente não teria como implantar o enorme programa assistencialista de redução da pobreza e da miséria absoluta no país levado a cabo nos últimos anos. Este programa, no entanto, não significa nenhum desenvolvimento real da economia venezuelana como um todo, mas sim, um dos pilares fundamentais do bonapartismo de Chávez.

Para mostrarmos ainda mais claramente a dependência de Chávez do petróleo e da política belicista de Bush, basta comparar os dados da economia venezuelana desde a primeira posse de Hugo Chávez como presidente do país até os dias atuais. Nos anos de 1999, 2002 e 2003 o PIB da Venezuela teve uma queda monstruosa de cerca de 24%. Nos anos de 2004 e 2005, contudo, anos de alta produção petrolífera e de preços internacionais favoráveis, o PIB venezuelano cresceu em índices extraordinários que chegaram a 27,2%. Neste mesmo período, como já indicamos, os preços do petróleo saltaram de 25 dólares/barril para mais de 50 dólares. Porém, na média dos 7 anos de "revolução bolivariana" (1999-2005), descontando-se as altas e baixas do ciclo econômico, o PIB venezuelano cresceu a uma taxa média de medíocres 1,5% anuais. Em 1999, os rendimentos do governo com o petróleo alcançaram a cifra de 3.947.429 milhões de bolívares. Em 2005 estes rendimentos pularam para 40.703.315 milhões de bolívares, um aumento real de cerca de 1.000% (CEPAL, Estudio Económico 2005-2006).

Chávez não tem a intenção de romper com o imperialismo e com o domínio dos bancos sobre a economia do país. Para percebermos isto, basta observar a conta dos juros da dívida pública que o país paga anualmente aos banqueiros. Em 1999 Chávez pagou aos credores do país a cifra de 1.647.017 milhões de bolívares; já nos anos de 2003, 2004 e 2005 pagou a monstruosa cifra de 23.017.422 milhões de bolívares (um aumento de cerca de 1.400%).

Para termos uma idéia mais clara do compromisso de Chávez tanto com a burguesia imperialista quanto com parte de uma nova burguesia criolla nacional, basta darmos uma olhada nas cifras pagas aos credores financeiros pelos governos que o precederam e as posteriores. Entre 1990 e 1998, por exemplo, o Estado venezuelano pagou 4.863.869 milhões de bolívares em juros da dívida pública. Esta cifra paga ao longo de 9 anos é igual à cifra paga por Chávez em apenas em um único ano (CEPAL).

O "socialismo Bolivarista do século XXI" de Chávez é um socialismo que está totalmente adaptado às necessidades do capitalismo mundial. As corporações multinacionais, apesar das tão alardeadas "nacionalizações", continuam a operar livremente no país e a ter seus lucros garantidos pelo próprio governo venezuelano, como dito no próprio site da estatal petroleira PDVSA: "O Executivo Nacional deixou claro que em caso algum se questiona a presença das empresas em nosso país e que as mesmas obtenham seus respectivos lucros, produto de seus investimentos, mas o que exigimos de maneira irredutível é que esta participação se faça no marco do respeito à nossa lei e à nossa soberania".

Simon Bolívar, amparado na força do exército e numa suposta libertação das classes oprimidas, foi uma das grandes caricaturas latino-americanas do Bonaparte III do século XIX. Hoje, Chávez—que baseia seu poder econômico e político sobre a classe trabalhadora não em um programa socialista para a transformação da sociedade, mas em uma sustentação assegurada pelo exército e em uma política assistencialista tornada possível graças aos altos preços do petróleo—aparece como o simulacro moderno de Bolívar, ou melhor ainda, como o simulacro do simulacro, o Bonaparte Latino-Americano do século XXI.