Este texto é parte de uma longa entrevista de Moreno, publicada em livro com o título "Conversando com Moreno". Esse trabalho é considerado seu testamento político. O fato de que tenha dedicado todo um capítulo à explicação da necessidade da Internacional mostra a importância que ele dava à construção de uma organização revolucionaria mundial.
Ao longo de sua vida política você dedicou esforços enormes à construção de uma organização revolucionaria mundial...
Eu diria que a maior parte da minha militância política esteve e continua estando voltada ao partido mundial, à construção da Quarta Internacional.
O partido mundial é a prioridade número um do movimento operário, porque existem uma economia e uma política mundiais, as quais estão subordinadas as realidades nacionais. O imperialismo aplica uma só política, através do FMI, a todos os países, adiantados ou atrasados, que tenham dividas com os bancos internacionais. E isso que dizemos em relação à divida externa, é valido em todos os terrenos da política e da economia.
A existência de uma política mundial é característica do capitalismo e, uma vez que se trata de derrubá-lo, necessitamos de um instrumento adequado a essa realidade e a essa tarefa. O movimento de massas mundial requer ferramentas distintas para cada um dos problemas que a luta de classes coloca. Para lutar no terreno econômico, a classe operaria criou os sindicatos. Não é casual que as primeiras organizações sindicais tenham nascido na Inglaterra, o berço da revolução industrial.
Mas da necessidade de elaborar uma política mundial não decorre necessariamente a necessidade de uma organização mundial.
Quero demonstrar justamente o contrario. Continuemos com o exemplo anterior. Os operários necessitam dos sindicatos para lutar por seus salários, por estabilidade no trabalho, etc., contra seus exploradores nacionais. Necessitam de partidos políticos para defender seus interesses de classe. No terreno internacional, necessitam de um movimento sindical unido. Desgraçadamente, essas organizações se perderam, devido à divisão do movimento operário internacional em tendencias pró-ocidentais e pró-soviéticas. A economia mundial exige o desenvolvimento de grandes organizações sindicais internacionais. Sua ausência significa um grande atraso para o movimento de massas. Por que foi derrotada a grande greve do carvão na Inglaterra? Devido justamente à falta de solidariedade internacional. uma grande organização sindical mundial revolucionaria teria criado um movimento de solidariedade com os mineiros ingleses que teria sido irrefreável.
Pelo que você acaba de dizer, parece que essas organizações sindicais internacionais já existiram alguma vez.
Efetivamente, e tiveram muita força. Existiu uma internacional sindical amarela e, paralelamente, a Internacional Sindical Vermelha(1) criada pela Terceira Internacional, que foi muito forte, muito bem organizada.
Imagine uma organização desse tipo, forte e centralizada, que resolvesse, por exemplo, que não sairia um único avião ou navio para o Chile, nem se descarregaria um só cargueiro chileno em portos estrangeiros, até que Pinochet fosse derrubado. Quanto tempo duraria essa ditadura? Muito pouco, parece-me. O mesmo se pode dizer em relação à greve do carvão: se existisse uma organização capaz de impedir o envio de petróleo e carvão à Inglaterra, a greve teria triunfado rapidamente.
Eu tive a oportunidade de conversar com dirigentes do Partido Nacionalista Galego. Eles concordam com a necessidade de fazer analises internacionais e que a solidariedade é imprescindível, mas afirmam que os partidos só podem ser nacionais, devido ao peso das especificidades nacionais.
E quem organiza a solidariedade, ou elabora a análise internacional? Cada tarefa requer uma organização específica, não creio na espontaneidade nesse terreno. Que organização obrigou o movimento operário mundial a ser solidário com os mineiros ingleses? Nenhuma e por isto não houve solidariedade.
O que você diz da Espanha e das Brigadas Internacionais, que foram combater com a República contra Franco?
Justamente, nessa época existia a Terceira Internacional, que impulsionou a solidariedade com a República e a formação das Brigadas. Também os trotskistas e os anarquistas impulsionaram esse processo. Do contrario, não
teriam existido Brigadas Internacionais na Espanha.
A falta de solidariedade com a Inglaterra não se deveu mais ao baixo nível de consciência do movimento operário internacional do que à sua falta de organização?
Os dois fatores estão intimamente ligados. Se tomarmos as categorias de Hegel(2) espirito objetivo e espirito subjetivo, poderemos dizer que o espirito subjetivo, o nível de consciência, tem que se objetivar. Como? Em uma organização. São duas faces de um mesmo problema. Se o operário é consciente de que o exploram, cria uma organização para lutar contra a exploração. É a transformação do espirito subjetivo em objetivo: do pensamento em ação e depois em organização.
Voltando um pouco à posição dos nacionalistas galegos e não são os únicos que pensam assim —, eles afirmam que o peso das especificidades nacionais obriga os partidos nacionais a manter uma independência de critério politico, e a não se submeter a uma organização internacional.
Não nego a importância das especificidades nacionais, nem que os partidos devam conservar sua independência de critério. Agora, trata-se de determinar o que é decisivo. Se o mundo é uma soma de especificidades nacionais, em que a Argentina é diametralmente oposta ao Uruguai, o Uruguai ao Brasil, este ao México e assim sucessivamente, quer dizer, se não existem características comuns e os países não formam parte de uma totalidade mundial, então a internacional não pode nem deve existir.
Qual é, entretanto, a realidade? Exagerando um pouco, podemos comparar o mundo e os países com um país e seus estados. Quando analisamos a realidade argentina a consideramos como uma totalidade, não como uma soma de situações provinciais. A Argentina é dominada por um Estado nacional, não por Estados provinciais.
A situação mundial não é exatamente assim, já que os Estados nacionais existem e têm profundas diferenças. Mas a característica central da dominação capitalista é a existência do sistema mundial. Tanto é assim que se fala de ciclos econômicos e políticos mundiais. Por exemplo, quando o capitalismo teve necessidade de uma grande produção de açúcar, os países do Caribe e também o Nordeste do Brasil se voltaram à produção de açúcar; apareceram grandes engenhos açucareiros. A revolução européia de 1848 foi um processo único que abarcou todo o continente. Outro exemplo: antes do capitalismo não houve guerras mundiais.
Para os marxistas, o fato científico primeiro e decisivo é a existência do sistema econômico, politico e social capitalista mundial, ao qual estão subordinadas as especificidades nacionais. Dito de outra maneira, o nacional é uma expressão específica do sistema mundial.
O internacionalismo proletário surgiu em resposta a um problema objetivo, não é algo inventado por Marx em sua escrivaninha. O Manifesto Comunista, publicado em 1848, é um documento de operários emigrantes, as ligas operarias européias, que se encontravam imersas em um processo de ebulição revolucionaria. Eram alemães, franceses, belgas, ingleses, italianos...
Em 1863 surge a Primeira Internacional, fundada por dirigentes sindicais de distintos países, que convidaram Marx a colaborar. Na Inglaterra havia muitos operários imigrantes, entre eles os alemães, que recebiam salários muito baixos. Esse fato criava problemas para os operários ingleses, que ficavam sem trabalho devido a essa mão-de-obra barata. Na Franca existiam problemas similares. Os dirigentes operários desses países se reuniram, descobriram que tinham problemas comuns, que requeriam uma organização internacional. Ou seja, o problema na Inglaterra não se resolveria com o enfrentamento entre operários ingleses e alemães, e sim com a união de ambos e de todos os proletários do mundo contra o inimigo de classe comum.
Para nos, o maior crime, a maior traição da burocracia stalinista foi a dissolução da Terceira Internacional, exigida por seus aliados Churchill e Roosevelt. Isso é o que explica que o imperialismo não tenha sido derrotado.
A Segunda Internacional existe, mas não é uma verdadeira internacional, e sim uma federação de partidos social-democratas, defensores do sistema capitalista. A Terceira Internacional e a Internacional Sindical Vermelha foram oficialmente dissolvidas pelo stalinismo. Com isso, a necessidade da internacional se apagou da consciência das massas.
Hoje em dia, nós, os internacionalistas, somos uma ínfima minoria no movimento de massas mundial. Somos os únicos que reivindicamos a necessidade indispensável de contar com uma organização sindical e uma organização política internacionais, um partido mundial centralizado.
Há setenta ou oitenta anos todos os operários de vanguarda reivindicavam a internacional. Na Primeira, havia os anarquistas, os marxistas, os proudhonistas(3 os "trade-unionistas" ingleses. Quando a Segunda foi fundada, todas as correntes do movimento operário menos os anarquistas participaram dela. Isso não significava que os anarquistas houvessem deixado de ser internacionalistas, simplesmente continuaram na Primeira.
O stalinismo quebrou essa tradição, ao mesmo tempo em que elaborava a teoria do socialismo em um só país(4). Segundo esse ponto de vista, a URSS derrotaria o imperialismo na competição econômica; portanto, não era necessário um partido mundial para elaborar o programa e as táticas do movimento operário. Kruschev dizia que em vinte anos o poderio da URSS superaria o dos Estados Unidos. Essa ideologia provocou um salto para traz na consciência do movimento operário, que retrocedeu ao período anterior à revolução de 1848 e à aparição do Manifesto Comunista.
Em pedagogia denomina-se analfabeto funcional o individuo que aprendeu a 1er e a escrever na escola primária e em seguida perdeu esse conhecimento por não o exercitar. Podemos dizer que o movimento operário mundial sofre de analfabetismo funcional no terreno do internacionalismo proletário devido ao stalinismo. O partido mundial, a única ferramenta política que pode derrotar o imperialismo, aparece diante da vanguarda operaria como uma idéia utópica, uma expressão de desejos.
A principal base de sustentação da teoria do socialismo em um só país revelou-se falsa, pois os Estados operários não puderam alcançar o imperialismo no terreno do desenvolvimento tecnológico e da produção. Por essa via, entre outras, confirma-se uma vez mais que a ferramenta indispensável para liquidar o capitalismo não é a competição tecnológica e econômica dos Estados operários com o imperialismo, e sim o partido mundial, a internacional, que enfrente politicamente o imperialismo, mobilizando os trabalhadores de todo o mundo. Melhor dizendo, são necessárias duas internacionais intimamente ligadas: uma sindical e outra política.
Seria necessário acrescentar que esses fatos não negam as especificidades nacionais. Somos contrários a intervenções arbitrarias da direção internacional sobre os partidos nacionais. Somos contra que a internacional lhes ordene como atuar, que política devem aplicar...
Que é como atua o stalinismo, não é verdade?
O stalinismo é o oposto de uma internacional. A URSS, como grande potencia, mantém e financia partidos em todos os países do mundo que servem a seus interesses e aplicam a política que ela lhes dita. Uma internacional atua como um partido: realiza congressos em que os delegados dos partidos nacionais discutem e votam uma orientação política.
Veja o caso do PC argentino, que apoiou explicitamente o golpe de março de 76 e o governo de Videla(5) Não posso acreditar que todos os membros do PC argentino e os milhões de ativistas operários que simpatizara com a URSS em nível mundial concordaram com essa política, de apoiar a ditadura que torturou e matou milhares de militantes, inclusive do próprio PC. O partido comunista argentino fez isso porque é um partido que depende de um Estado burocrático e faz o que lhe ordenam. A URSS em todo momento manteve excelentes relações diplomáticas e comerciais com a ditadura.
No entanto, para muitos, o internacionalismo é isso: um Estado dita sua vontade aos partidos que simpatizam com ele. Por exemplo, há pouco tempo houve uma reunião de partidos comunistas latino-americanos em Havana. Isso não seria uma especie de internacional? Ou é só uma fachada? Não é nem uma coisa nem outra: é uma reunião de embaixadores, similar a que faz Reagan quando viaja para a Europa e se reúne com seus embaixadores e líderes dos partidos pró-ianques.
A reunião dos PCs não é uma internacional: se as questões se resolvem por unanimidade, não é um partido operário. Houve alguma resolução aprovada por maioria, não por unanimidade? Algum jornal publicou que houve fortes discussões? Não, foi simplesmente uma reunião de agentes do Ministério de Relações Exteriores da URSS, onde este explicou e depois ditou sua posição a todos os presentes.
A Internacional, como a concebemos, se caracteriza pela existência de profundas diferenças, justamente porque é mundial. Não poderia ser de outra maneira, em uma reunião de delegados de países distintos, que refletem distintas culturas, tradições, idiomas. A unanimidade nessas circunstancias é impossível.
O desenvolvimento da revolução é desigual de país a país, certo? Isso provoca um desenvolvimento desigual dos partidos nacionais, seções da internacional
Exato.
Suponhamos que em um país, Bolívia, por exemplo, estejamos em condições de avançar para a tomada do poder, justamente quando não existe ainda uma internacional forte...
A pergunta é se tomamos o poder ou não?
A. pergunta é se a tomada do poder em um país depende da construção de uma internacional muito forte.
Eu diria que a construção dos partidos nacionais e da internacional é um processo combinado. Em primeiro lugar, para intervir na luta de classes é indispensável partir de uma análise correta da situação nacional. A tarefa de fazer essa análise e elaborar a política e o que chamamos a "linha" do partido — isto é, a combinação de tarefas e consignas que propomos para mobilizar as massas e construir o partido — é tarefa, em primeiro lugar, do partido nacional. Mas essa análise só pode ser completa no contexto de uma apreciação correta da situação internacional: como compreender a situação argentina sem levar em conta a situação do conjunto do continente latino-americano e a política do imperialismo? Não é casual que em nossos congressos partidários a discussão da situação mundial preceda o ponto nacional na ordem do dia. Pois bem, é aqui que a organização internacional ainda que seja pequena e débil como a LIT, cumpre um papel indispensável, ao recolher as experiencias e opiniões de militantes e dirigentes de muitos países. A análise sempre vai ser mais ampla, mais rica, do que aquela que poderia elaborar um partido nacional, por mais brilhantes que sejam seus dirigentes.
Agora, o outro aspecto da combinação que mencionei no principio, é que a Internacional só pode conseguir um salto qualitativo em, seu fortalecimento e crescimento a partir da conquista do poder por alguns de seus partidos. Um triunfo do trotskismo em qualquer país acabaria com uma série de preconceitos, em primeiro lugar com o que afirma que a internacional é desnecessária. Honestamente, creio que nenhum partido trotskista — e recordemos que estamos falando do partido que aspira ao socialismo com democracia operaria — pode tomar o poder sem a ajuda política e teórica da internacional, por pequena e débil que seja. Com o triunfo de uma revolução dirigida pelo trotskismo, cairia por terra a idéia profundamente errónea, nefasta, de que a internacional é só um adorno, e não a necessidade política mais profunda do movimento operário internacional.
Por outro lado, o exemplo de um governo trotskista provocaria um impacto colossal, ao impor a democracia operaria, com liberdades de todo tipo. Esse governo outorgaria maiores liberdades democráticas que qualquer Estado, burgues ou operário burocrático. Esses dois fatos despertariam um enorme entusiasmo na classe operaria mundial, e a internacional se transformaria, por fim, em uma organização de milhões de trabalhadores.
Você diz então, que a internacional cumpre principalmente um papel de elaboração política. Pode ou deve a direção internacional intervir na vida dos partidos nacionais
Não só de elaboração política, mas também de organização de campanhas internacionais, como a solidariedade com as grandes lutas operarias — desde a guerrilha salvadorenha até a greve mineira inglesa e a luta antiburocrática do Solidariedade na Polônia — ou a política de unidade das massas dos países dependentes contra o pagamento da divida externa.
Para responder à sua pergunta, considero que nessa etapa a Internacional não deve intervir nos partidos nacionais. Talvez mais adiante seja diferente, quando existir uma grande internacional, com uma direção muito prestigiada, cujos partidos detenham o poder em vários países. No momento deve intervir, e com toda energia, nas discussões políticas, mas seria um erro muito perigoso se a direção internacional modificasse a direção de um partido ou impusesse uma política nacional. O nacional é um aspecto específico do internacional, mas conserva um grau de autonomia muito grande.
1 A Federação Sindical Internacional (chamada "amarela") agrupava os sindicatos dirigidos pelos partidos social-democratas europeus. Desaparecera durante a Segunda Guerra Mundial. A Internacional Sindical Vermelha foi criada pela Terceira Internacional — e dissolvida unto com ela - agrupar sindicatos fundados pelos comunistas em oposição à burocracia reformista.
2 George Hegel (1770-1831), filósofo e lógico alemão, exerceu profunda influencia sobre Marx no terreno da lógica.
3 Pierre-Joseph Proudhon (1809-1865) foi um dos primeiros teóricos do anarquismo. Suas idéias tiveram grande aceitação entre os operários no século XIX.
4 A teoria do socialismo em um só país, formulada por Stalin para justificar seu abandono da revolução internacional, afirma que a URSS, em função de sua extensão e de suas riquezas naturais, seria capaz por si mesma de "alcançar e ultrapassar" o desenvolvimento dos países capitalistas mais avançados e chegar ao socialismo. A teoria marxista afirma, pelo contrario, que embora o primeiro passo seja a conquista do poder e a expropriação da burguesia nos Estados nacionais, só se chegará ao socialismo mediante um grande desenvolvimento das forças produtivas, condição que requer a conquista do poder em nível mundial e a abolição das fronteiras nacionais. Dessa maneira, o grande desenvolvimento econômico, científico e tecnológico, hoje patrimônio de um punhado de países, chegaria ao planeta inteiro.
5 Quando Videla assumiu a presidência, o jornal do PC argentino comentou: "As formulações do general Videla constituem um programa libertador, que compartilhamos. O general Videla pede compreensão. Terá. Por conseqüência, é necessário que todos os setores patrióticos do nosso povo, atendendo ao chamado presidencial, participem da reorganÍ2acao democrática" (Tribuna Popular 8/4/76)
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