segunda-feira, 1 de junho de 2009

Posfácio da Segunda Edição de O Capital - Karl Marx

Posfácio da Segunda Edição do primeiro livro d´O Capital de Karl Marx, retirado da edição da Abril Cultural (grifo meu)

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A compreensão que O Capital rapidamente encontrou em amplos círculos da classe operária alemã é a melhor recompensa de meu trabalho. Um homem, economicamente situado numa perspectiva burguesa, o sr. Mayer, industrialista vienense, afirmou com acerto, numa brochura publicada durante a guerra franco-alemã, que o grande senso teórico, considerado patrimônio hereditário alemão, teria desaparecido completamente das assim chamadas classes cultas da Alemanha, para ressuscitar, em compensação, na sua classe trabalhadora.

Na Alemanha, a Economia Política continuou sendo, até agora, uma ciência estrangeira. Gustav von Güllich, na Representação Histórica dos Ofícios etc., já discutiu em grande parte, especialmente nos dois primeiros volumes de sua obra publicados em 1830, as circunstâncias históricas que inibiam o desenvolvimento do modo de produção capitalista entre nós e, portanto, também a construção da moderna sociedade burguesa. Faltava, por conseguinte, o terreno vivo da Economia Política. Ela foi importada da Inglaterra e da França como mercadoria pronta e acabada; seus catedráticos alemães não passaram de estudantes. Em suas mãos, a expressão teórica de uma realidade estrangeira transformou-se numa coletânea de dogmas, por eles interpretada, de acordo com o mundo pequeno-burguês que os circundava, sendo portanto distorcida. Para dissimular a sensação, não completamente reprimível, de impotência científica, bem como a má consciência de ter que lecionar numa área de fato estranha, ostentava-se erudição histórico-literária ou misturava-se material estranho, emprestado às assim chamadas ciências cameralísticas, uma miscelânea de conhecimentos, purgatório pelo qual tem de passar o esperançoso candidato à burocracia alemã.

Desde 1848, a produção capitalista tem crescido rapidamente na Alemanha, e já ostenta hoje seus frutos enganadores. Mas, para nossos especialistas, o destino continuou adverso. Enquanto podiam tratar de Economia Política de modo descomprometido, faltavam as relações econômicas modernas à realidade alemã. Assim que essas relações vieram à luz, isso ocorreu sob circunstâncias que não mais permitiam o seu estudo descompromissado na perspectiva burguesa. À medida que é burguesa, ou seja, ao invés de compreender a ordem capitalista como um estágio historicamente transitório de evolução, a encara como a configuração última e absoluta da produção social, a Economia Política só pode permanecer como ciência enquanto a luta de classes permanecer latente ou só se manifestar em episódios isolados.

Tomemos a Inglaterra. A sua Economia Política clássica cai no período em que a luta de classes não estava desenvolvida. O seu último grande representante, Ricardo, toma afinal conscientemente, como ponto de partida de suas pesquisas, a contradição dos interesses de classe, do salário e do lucro, do lucro e da renda da terra, considerando, ingenuamente, essa contradição uma lei natural da sociedade. Com isso, a ciência burguesa da economia havia, porém, chegado aos seus limites intransponíveis. Ainda durante a vida de Ricardo apareceu, contra ele, a crítica na pessoa do Sismondi.

Na Inglaterra, o período seguinte, de 1820 a 1830, destaca-se pela vivacidade científica no campo da Economia Política. Foi tanto o período de expansão e vulgarização da teoria de Ricardo, quanto de sua luta contra a velha escola. Celebraram-se brilhantes torneios. Do que então se fez, pouco chegou ao conhecimento do continente europeu, pois a polêmica encontra-se, em grande parte, esparsa em artigos de revistas, publicações ocasionais e panfletos. O caráter imparcial dessa polêmica — ainda que a teoria de Ricardo também já tivesse sido utilizada, excepcionalmente, como arma de ataque contra a economia burguesa — explica-se pelas circunstâncias da época. Por um lado, a grande indústria mesma apenas começava a sair da sua infância, o que se comprova pelo fato de que só com a crise de 1825 ela inaugura o ciclo periódico de sua vida moderna. Por outro lado, a luta de classes entre capital e trabalho ficou restrita a segundo plano; politicamente, por meio da contenda entre os governos e interesses feudais agrupados em torno da Santa Aliança e a massa popular conduzida pela burguesia; economicamente, por meio da disputa do capital industrial com a propriedade aristocrática da terra, que se escondia, na França, atrás da oposição entre minifúndio e latifúndio e que, na Inglaterra, irrompeu abertamente desde as leis do trigo. Nesse período, a literatura sobre Economia Política lembra, na Inglaterra, o período de tempestuoso avanço econômico ocorrido na França depois da morte do dr. Quesnay, mas apenas como nuvens ligeiras do verão tardio lembram a primavera. No ano de 1830 começou a crise que se tornou, de uma vez por todas, decisiva.

A burguesia tinha conquistado poder político na França e Inglaterra. A partir de então, a luta de classes assumiu, na teoria e na prática, formas cada vez mais explícitas e ameaçadoras. Ela fez soar o sino fúnebre da economia científica burguesa. Já não se tratava de saber se este ou aquele teorema era ou não verdadeiro, mas se, para o capital, ele era útil ou prejudicial, cômodo ou incômodo, subversivo ou não. No lugar da pesquisa desinteressada entrou a espadacharia mercenária, no lugar da pesquisa científica imparcial entrou a má consciência e a má intenção da apologética. No entanto, mesmo os importunos tratadozinhos que a Anti-Com-Law-League, chefiada pelos industrialistas Cobden e Bright, lançava aos quatro ventos, possuíam, se não um interesse científico, ao menos histórico por sua polêmica contra a aristocracia fundiária. Desde Sir Robert Peel, também este último esporão crítico foi extraído da economia vulgar pela legislação livre-cambista.

A revolução continental de 1848 também repercutiu na Inglaterra. Homens que ainda pretendiam ter algum significado científico e que queriam ser algo mais do que meros sofistas e sicofantas das classes dominantes procuravam sintonizar a Economia Política do capital com as revindicações não mais ignoráveis do proletariado. Daí surge um sincretismo desprovido de espírito, cujo melhor representante é Stuart Mill. É uma declaração de falência da economia “burguesa”, que o grande erudito e crítico russo N. Tchernichveski já evidenciou magistralmente em sua obra Delineamentos da Economia Política Segundo Mill.

Na Alemanha, o modo de produção capitalista atingiu a maturidade depois que o seu caráter antagônico já tinha se revelado ruidosamente na França e na Inglaterra por meio de lutas históricas, enquanto o proletariado alemão já possuía uma consciência teórica de classe muito mais decidida do que a burguesia alemã. Assim que uma ciência burguesa da Economia Política pareceu tornar-se possível aqui [na Alemanha], ela havia-se tornado, portanto, novamente impossível.

Nessas circunstâncias, seus porta-vozes dividiram-se em dois grupos. Uns, astutos, ambiciosos e pragmáticos, juntaram-se sob a bandeira de Bastiat, o mais superficial e, por isso mesmo, o mais bem-sucedido representante da economia apologética vulgar; outros, ciosos da catedrática dignidade de sua ciência, seguiram J. St. Mill na tentativa de reconciliar o irreconciliável. Assim como na época clássica da economia burguesa, também na época da sua decadência os alemães permaneceram meros discípulos, repetidores e imitadores, mascates modestos do grande atacado estrangeiro.

O desenvolvimento histórico peculiar da sociedade alemã excluía a possibilidade de qualquer desenvolvimento original da economia burguesa, mas não a sua — crítica. À medida que tal crítica representa, além disso, uma classe, ela só pode representar a classe cuja missão histórica é a derrubada do modo de produção capitalista e a abolição final das classes — o proletariado.

Os porta-vozes eruditos e não eruditos da burguesia alemã procuraram primeiro aniquilar O Capital por meio do silêncio, como tinham conseguido fazer com os meus escritos anteriores. Quando essa tática já não correspondia às circunstâncias da época, passaram a redigir, pretextando criticar meu livro, instruções “Para tranqüilizar a consciência burguesa”, mas encontraram na imprensa operária — vejam-se, por exemplo, os artigos de Joseph Dietzgen no Volksstaat — lutadores de maior porte, aos quais estão devendo resposta até hoje.

Em Petersburgo foi publicada uma excelente tradução russa de O Capital na primavera de 1872. A edição de 3 mil exemplares já se encontra agora quase esgotada. Em 1871, o sr. N. Sieber, catedrático de Economia Política na Universidade de Kiev, em seu escrito A Teoria de D. Ricardo do Valor e do Capital etc., já apontava a minha teoria do valor, do dinheiro e do capital como, em suas linhas básicas, continuação necessária da doutrina de Smith e de Ricardo. O que surpreende o europeu ocidental, ao ler seu valioso livro, é a manutenção conseqüente do ponto de vista puramente teórico.

O método aplicado em O Capital foi pouco entendido, como já o demonstram as interpretações contraditórias do mesmo.

Assim, a Revue Positiviste me acusa de que eu, por um lado, trato a Economia metafisicamente e, por outro — adivinhem! —, de que eu me limitaria à mera análise crítica do dado, em vez de prescrever receitas (comteanas?) para a cozinha do futuro. Contra a acusação de metafísica, o prof. Sieber observa:

“No que tange à teoria propriamente dita, o método de Marx é o método dedutivo de toda a escola Inglesa, cujos defeitos e virtudes são comuns aos melhores economistas teóricos”.

O sr. M. Block descobre em “Les Théoriciens du Socialisme en Allemagne. Extrait du Journal des Économistes, juillet et aout 1872", que o meu método é analítico e, entre outras coisas, afirma que:

“Par cet ouvrage M. Marx se classe parmi les esprits analytiques les plus éminentes”.

Os resenhistas alemães gritam, obviamente, contra a sofística hegeliana. O Correio Europeu, de Petersburgo, num artigo que examina exclusivamente o método de O Capital (número de maio de1872, p. 427-436), considera o meu método de pesquisa rigorosamente realista, mas o meu método de exposição desgraçadamente teuto-dialético. Ele afirma:

“À primeira vista, se julgado pela forma externa de exposição, Marx é o maior filósofo idealista, no sentido germânico, ou seja, no mau sentido da palavra. De fato ele é, porém, infinitamente mais realista do que os seus predecessores na tarefa da crítica econômica. (...) Não se pode, de modo algum, chamá-lo de idealista”.

A melhor resposta que possa dar ao autor é mediante alguns extratos de sua própria crítica, cuja transcrição poderá interessar a muitos dos meus leitores, para os quais o original russo não seja acessível. Depois de uma citação de meu prefácio da “Contribuição à Crítica da Economia Política” (Berlim, 1859, p. IV-VII), onde eu expus a fundamentação materialista do meu método, continua o senhor autor:

“Para Marx, só importa uma coisa: descobrir a lei dos fenômenos de cuja investigação ele se ocupa. E para ele é importante não só a lei que os rege, à medida que eles têm forma definida e estão numa relação que pode ser observada em determinado período de tempo. Para ele, o mais importante é a lei de sua modificação, de seu desenvolvimento, isto é, a transição de uma forma para outra, de uma ordem de relações para outra. Uma vez descoberta essa lei, ele examina detalhadamente as conseqüências por meio das quais ela se manifesta na vida social. (...) Por isso, Marx só se preocupa com uma coisa: provar, mediante escrupulosa pesquisa científica, a necessidade de determinados ordenamentos das relações sociais e, tanto quanto possível, constatar de modo irrepreensível os fatos que lhe servem de pontos de partida e de apoio. Para isso, é inteiramente suficiente que ele prove, com a necessidade da ordem atual, ao mesmo tempo a necessidade de outra ordem, na qual a primeira inevitavelmente tem que se transformar, quer os homens acreditem nisso, quer não, quer eles estejam conscientes disso, quer não. Marx considera o movimento social um processo histórico-natural, dirigido por leis que não apenas são independentes da vontade, consciência e intenção dos homens, mas, pelo contrário, muito mais lhes determinam a vontade, a consciência e as intenções. (...) Se o elemento consciente desempenha papel tão subordinado na história da cultura, é claro que a crítica que tenha a própria cultura por objeto não pode, menos ainda do que qualquer outra coisa, ter por fundamento qualquer forma ou qualquer resultado da consciência. Isso quer dizer que o que lhe pode servir de ponto de partida não é a idéia, mas apenas o fenômeno externo. A crítica vai limitar-se a comparar e confrontar um fato não com a idéia, mas com o outro fato. Para ela, o que importa é que ambos os fatos sejam examinados com o máximo de fidelidade e que constituam, uns em relação aos outros, momentos diversos de desenvolvimento; mas, acima de tudo, importa que sejam estudadas de modo não menos exato a série de ordenações, a seqüência e a conexão em que os estágios de desenvolvimento aparecem. Mas, dir-se-á, as leis gerais da vida econômica são sempre as mesmas, sejam elas aplicadas no presente ou no passado. (...) É exatamente isso o que Marx nega. Segundo ele, essas leis abstratas não existem. (...) Segundo sua opinião, pelo contrário, cada período histórico possui suas próprias leis. Assim que a vida já esgotou determinado período de desenvolvimento, tendo passado de determinado estágio a outro, começa a ser dirigida por outras leis. Numa palavra, a vida econômica oferece-nos um fenômeno análogo ao da história da evolução em outros territórios da Biologia. (...) Os antigos economistas confundiram a natureza das leis econômicas quando as compararam às leis da Física e da Química. (...) Uma análise mais profunda dos fenômenos demonstrou que organismos sociais se distinguem entre si tão fundamentalmente quanto organismos vegetais e animais. (...) Sim, um mesmo fenômeno rege-se por leis totalmente diversas em conseqüência da estrutura diversa desses organismos, da modificação em alguns de seus órgãos, das condições diversas em que funcionam etc. Marx nega, por exemplo, que a lei da população seja a mesma em todos os tempos e em todos os lugares. Ele assegura, pelo ontrário, que cada estágio de desenvolvimento tem uma lei demográfica própria. (...) Com o desenvolvimento diferenciado da força produtiva, modificam-se as circunstâncias e as leis que as regem. Marx, ao se colocar a meta de pesquisar e esclarecer, a partir desta perspectiva, a ordenação econômica do capitalismo, apenas formula, com todo rigor científico, a meta que deve ter qualquer investigação exata da vida econômica. (...) O valor científico de tal pesquisa reside no esclarecimento das leis específicas que regulam nascimento, existência, desenvolvimento e morte de dado organismo social e a sua substituição por outro, superior. E o livro de Marx tem, de fato, tal mérito”.

Ao descrever de modo tão acertado e, tanto quanto entra em consideração a minha aplicação pessoal do mesmo, de modo tão benévolo aquilo que o autor chama de “meu verdadeiro método”, o que descreveu ele senão o método dialético?

É, sem dúvida, necessário distinguir o método de exposição formalmente do método de pesquisa. A pesquisa tem de captar detalhadamente a matéria, analisar as suas várias formas de evolução e rastrear sua conexão íntima. Só depois de concluído esse trabalho é que se pode expor adequadamente o movimento real. Caso se consiga isso, e espelhada idealmente agora a vida da matéria, talvez possa parecer que se esteja tratando de uma construção a priori.

Por sua fundamentação, meu método dialético não só difere do hegeliano, mas é também a sua antítese direta. Para Hegel, o processo de pensamento, que ele, sob o nome de idéia, transforma num sujeito autônomo, é o demiurgo do real, real que constitui apenas a sua manifestação externa. Para mim, pelo contrário, o ideal não é nada mais que o material, transposto e traduzido na cabeça do homem.

Há quase trinta anos, numa época em que ela ainda estava na moda, critiquei o lado mistificador da dialética hegeliana. Quando eu elaborava o primeiro volume de O Capital, epígonos aborrecidos, arrogantes e medíocres, que agora pontificam na Alemanha culta, se permitiam tratar Hegel como o bravo Moses Mendelssohn tratou Espinosa na época de Lessing, ou seja, como um “cachorro morto”. Por isso, confessei-me abertamente discípulo daquele grande pensador e, no capítulo sobre o valor, até andei namorando aqui e acolá os seus modos peculiares de expressão. A mistificação que a dialética sofre nas mãos de Hegel não impede, de modo algum, que ele tenha sido o primeiro a expor as suas formas gerais de movimento, de maneira ampla e consciente. É necessário invertê-la, para descobrir o cerne racional dentro do invólucro místico.

Em sua forma mistificada, a dialética foi moda alemã porque ela parecia tornar sublime o existente. Em sua configuração racional, é um incômodo e um horror para a burguesia e para os seus porta-vozes doutrinários, porque, no entendimento positivo do existente, ela inclui ao mesmo tempo o entendimento da sua negação, da sua desaparição inevitável; porque apreende cada forma existente no fluxo do movimento, portanto também com seu lado transitório; porque não se deixa impressionar por nada e é, em sua essência, crítica e revolucionária.

O movimento, repleno de contradições, da sociedade capitalista faz-se sentir ao burguês prático de modo mais contundente nos vaivéns do ciclo periódico que a indústria moderna percorre e em seu ponto culminante — a crise geral. Esta se aproxima novamente, embora ainda se encontre nos estágios preliminares, e, tanto pela sua presença por toda parte quanto pela intensidade de seus efeitos, há de enfiar a dialética até mesmo na cabeça dos parasitas afortunadas do novo Sacro

Império Teuto-Prussiano.

Londres, 24 de janeiro de 1873

Karl Marx


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