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quinta-feira, 12 de maio de 2011

A Dominação Britânica na India - Karl Marx

Escrito em 10 de Junho de 1853, artigo publicado no New York Daily Tribune de 25 de Junho de 1853. Extraído do site: http://www.marxists.org/portugues/marx/1853/06/10.htm


Os despachos telegráficos de Viena anunciam que a solução pacífica dos problemas turco, sardo e suiço não comporta mais dúvidas.

Ontem à tarde, na Câmara dos Comuns, o debate sobre a Índia prosseguia com a apatia habitual. M. Blackett acusou às intervenções de sir Charles Wood e de sir J. Hogg de serem portadoras de um falso otimismo. Muitos defensores do ministério e do Conselho de diretores fizeram o seu melhor para refutar a acusação, e o inevitável M. Hume fez o resumo conclamando os ministros a retirarem seu projeto de ato. O debate foi adiado.

O Hindustão é uma Itália de dimensões asiáticas, em que o Himalaya ocupa o lugar dos Alpes, as planícies do Bengala o da Lombardia, a cadeia do Deccan o dos Apeninos, e o Ceilão o da Sicília. A mesma riqueza e a mesma variedade de produtos da terra, e o mesmo desmembramento na estrutura política. Exatamente como a Itália, em diversos períodos a clava do conquistador refundia diferentes massas nacionais, quando não era sob o jugo dos maometanos, ou dos mongóis, ou dos britânicos, era dividida em tantos estados inimigos independentes que possuiam apenas cidades ou mesmo vilarejos. Portanto, do ponto de vista social, o Hindustão não é uma Itália, mas mais uma Irlanda do Oriente. E essa combinação estranha de Itália e Irlanda, do mundo da voluptuosidade e o do cadinho, estava já antecipada nas antigas tradições da religião do Hindustão. Essa religião é ao mesmo tempo uma religião da exuberância sensual e uma religião de ascetas mortificando seus corpos; a religião do lingam e a da Jagannatha; a religião dos monges e a das bayadères (1).

Não partilho a opinião daqueles que creem numa idade do ouro do Hindustão, se bem que não me refiro, como o faz sir Carles Wood, ao exemplo de Koulikhan para confirmar meu ponto de vista. Mas tome o tempo de Aurangzeb; ou a época em que os mongóis apareceram no norte e os portugueses no sul; ou o período da invasão dos maometanos e da heptarquia na Índia meridional; ou, como queira, remonte ainda mais longe na antiguidade e tome a cronologia mitológica dos próprios brahmanes que noticiavam o começo da miséria na Índia a uma época ainda mais antiga que a criação do mundo na concepção cristã.

Qualquer dúvida não é possível, portanto: os males que os ingleses causaram ao Hindustão são de um gênero essencialmente diferente e muito mais profundo do que o Hidustão havia sofrido antes. Eu não faço alusão ao despotismo europeu que, somado pela Companhia Britânica das Índias Orientais ao despotismo asiático, forma uma combinação mais monstruosa do que os monstros sagrados que nos apavoram no templo de Salsette. Isso não constitui um traço distintivo da dominação colonial britânica e não é senão uma imitação do sistema holandês, a tal ponto que para caracterizar a atividade da Companhia Britânica das Índias Orientais é suficiente repetir literalmente o que sir Stamford Raffles, o governador inglês de Java, tinha dito a propósito da velha Companhia Neozelandesa das Índias Orientais:

"A Companhia Neozelandesa, movida unicamente pelo amor ao ganho e tendo por seus assujeitados menos interesse e consideração que um plantador das Índias ocidentais tinha pelos escravos que trabalhavam em seu domínio - dado que este pelo menos havia pago com o dinheiro seu instrumento de trabalho humano, enquanto aquela não havia gasto nada -, essa Companhia mobilizou todos os recursos existentes do despotismo para tirar do povo seus últimos suspiros por meio de contribuições e de todo o trabalho de que ele era capaz. Ela agravou assim os males causados por um governo caprichoso e semi-bárbaro e pela a avidez sem limites dos mercadores."

Todas as guerras civis, invasões, revoluções, conquistas, fomes, por mais complexa, rápida e destrutiva que pudesse parecer sua sucessiva ação sobre o Hindustão, não o haviam arranhado senão superficialmente. A Inglaterra destruiu os fundamentos do regime social da Índia, sem manifestar até o presente a menor veleidade de construir o que quer que seja. Esta perda de seu velho mundo, que não foi seguida pela obtenção de um mundo novo, confere à miséria atual dos Hindus um caráter particularmente desesperado e separa o Hidustão, governado pelos ingleses, de todas as tradições antigas, de todo o conjunto de sua história passada.

Decorridos tempos imemoriais, não existia na Ásia senão três departamentos administrativos: o das Finanças, ou pilhagem do interior; o da Guerra, ou pilhagem do exterior; e, enfim, o departamento dos Trabalhos Públicos. O clima e as condições geográficas, sobretudo a presença de vastos espaços desérticos, que se extendem do Saara, através da Arábia, da Pérsia, da Índia e da Tatária, aos platôs mais elevados da Ásia, fizeram da irrigação artificial com auxílio de canais e de outras obras hidráulicas a base da agricultura oriental. No Egito e na Índia, como na Mesopotâmia e na Pérsia, as inundações servem para fertilizar o solo; tira-se proveito do alto nível da água para alimentar os canais de irrigação. Esta necessidade primeira de utilizar a água com economia e em comum, que, no Ocidente levou as empresas privadas a se unirem em associações voluntárias , como em Flandres e na Itália, impôs no Oriente, onde o nível de civilização era muito baixo e os territórios muito vastos para que pudessem aparecer asociações desse gênero, a intervenção centralizadora do governo. Daí uma função econômica incumbe a todos os governos asiáticos: a função de assegurar os trabalhos públicos. Essa fertilização artificial do solo, que depende de um governo central e que cai em decadência desde que a irrigação ou a drenagem são negligenciadas, explica o fato, que sem tal explicação teria parecido estranho: territórios inteiros que, outrora, foram admiravelmente cultivados como a Palmyra, Petra, as ruínas do Yêmem, vastas províncias do Egito, da Pérsia e do Hindustão, estão atualmente estéreis e desertos. Isso explica também porque uma só guerra devastadora pôde depauperar o pais por séculos e privá-lo de toda sua civilização.

Ora, os Ingleses nas Índias Orientais aceitaram de seus precedentes os departamentos das Finanças e da Guerra, mas eles negligenciaram inteiramente o dos Trabalhos Públicos. Daí a deterioração de uma agricultura incapaz de se desenvolver segundo o princípio britânico da livre concorrência, do laissez faire, laissez aller. As colheiras correspondem aos governos bons ou maus, como alternam-se na Europa segundo os bons e os maus climas. Assim, a opressão e o abandono da agricultura, por mais nefastos que fossem, não poderiam ser vistos como o golpe de graça desferido contra a sociedade indiana pelos invasores ingleses, se não tivessem sido acompanhados de uma circunstância muito importante e totalmente nova nos anais do mundo asiático no seu conjunto. Qualquer que tenha sido no passado a transformação que formou o aspecto político da India, suas condições sociais permaneceram invariáveis desde a Antiguidade mais remota até a primeira década do século XIX. O ofício de tecer à mão e à roca, que produziram miríadas de tecelagens e de fiações, era o pivot da estrutura dessa sociedade. Desde tempos imemoriais, a Europa recebia os admiráveis tecidos de fabricação indiana, enviando em troca seus metais preciosos e desse modo fornecendo a matéria prima aos ouríves, membros indispensáveis da sociedade indiana cujo amor pela bijuteria é tão grande que mesmo os representantes das classes inferiores que andam quase nús, têm habitualmente um par de brincos de ouro e algum ornamento de ouro em volta do pescoço. Os anéis usados nos dedos ou nas orelhas eram também muito reluzentes. As mulheres e as crianças tinham nos braços e nas pernas maciços braceletes de ouro ou de prata, havia estatuetas de divindades em ouro e em prata nas casas. Os invasores ingleses quebraram os ofícios de tecelagem dos indianos e destruíram suas rocas. A Inglaterra começou por excluir os tecidos de algodão indianos do mercado europeu, depois ela se pôs a exportar para o Hindustão o fio e enfim inundou de tecidos de algodão a pátria dos tecidos de algodão. De 1818 a 1836 as exportações de fios da Gran-Bretanha para a Índia aumentaram na proporção de 1 para 5.200. Em 1824 as exportações de musselines ingleses para a Índia atingiam apenas 1 milhão de jardas, enquanto em 1837 elas ultrapassavam 64 milhões de jardas. Mas no mesmo período a população de Dacca passou de 150.000 habitantes a 20.000. Esta decadência das cidades indianas, célebres por seus produtos, não foi a pior consequência da dominação britânica. A ciência britânica e a utilização da máquina a vapor pelos ingleses haviam destruído, em todo o território do Hindustão, a ligação entre a agricultura e a indústria artesanal.

Estas duas circunstâncias - de uma parte o fato de que os indianos, como todos os povos orientais, deixaram ao governo central a preocupação com os grandes trabalhos públicos, condição primeira de sua agricultura e de seu comércio, e de outro, de que eles estavam dispersados sobre todo o território do país e reunidos em pequenos centros pelas comunidades semi-agrícolas, semi-artesanais de caráter familiar - estas duas circunstâncias, dizíamos, engendraram, desde os tempos mais remotos, um sistema social muito particular, o dito système de village, que dava a cada uma dessas pequenas comunidades uma organização independente e uma vida distinta. A descrição a seguir, tirada de um velho relatório oficial sobre os assuntos indianos da Câmara dos Comuns inglesa, pode dar uma idéia do caráter particular desse sistema:"Do ponto de vista geográfico uma vila é um espaço de terras aráveis e não cultivadas, compreendendo algumas centenas ou alguns milhares de acres; do ponto de vista político, ela reune uma corporação ou uma paróquia. Encontramos nela habitualmente os seguintes funcionários empregados: o potail, ou síndico, que via de regra, zela pelos negócios da vila, arbitra os litígios entre os habitantes, garante o policiamento e percebe os impostos, funções que sua influência pessoal e o conhecimento minucioso da situação e dos assuntos dos membros lhe tornam o mais qualificado para assumir. O kurnum estabelece o balanço dos trabalhos agrícolas e registra tudo o que se relaciona com a cultura do solo. Vem em seguida o tailler e o totie; o dever do primeiro consiste em reunir as informações concernentes aos crimes e delitos, a acompanhar e proteger as pessoas que viajam de uma vila a outra; a tarefa do segundo parece estar ligada mais diretamente à vila e consiste, entre outras, em zelar por sua colheita e em contribuir para sua evolução. O guarda-fronteiras é preposto da guarda dos limites da vila e faz a deposição em caso de litígio. O preposto das reservas e cursos d'água distribui a água para as necessidades da agricultura. Um brahamane celebra o culto. O mestre escola ensina às crianças da vila a ler e a escrever em pele. Distigue-se ainda o brahamane preposto do calendário ou astrólogo, etc... Estas funções e seus empregados constituem geralmente a administração da vila; mas em certas partes do país eles são menos numerosos, conquanto muitos deveres e funções descritas acima são assumidos por uma só pessoa; em outras, seu número é muito grande. Desde tempos imemoriais os habitantes da vila têm vivido sob esta simples forma de governo municipal. Não alteraram-se senão raramente os limites das vilas; e se bem que estas tenham sido por vezes dominadas e mesmo devastadas pela guerra, pela fome e doenças, os mesmos nomes, os mesmos limites, os mesmos interesses e até as mesmas famílias alí permaneceram durante séculos. Os habitantes não se deixam incomodar pelas quedas e desmembramentos de reinos; contanto que a vila permaneça inteira, pouco lhes importa para qual poder foi transferido ou de qual soberano ele depende; sua economia interior não sofre qualquer mudança. O potail é sempre síndico da vila e continua sua atividade de juiz de paz ou magistrado; o Estado lhe confia diretamente, ou lhe confere a percepção dos impostos."

Estas pequenas formas estereotipadas de organismo social foram dissolvidas na maior parte e estão em vias de desaparecer não tanto por causa da intervenção brutal dos preceptores e soldados britânicos, mas sob a influência da máquina a vapor e do livre comércio ingleses. Estas comunidades familiares baseiam-se na indústria artesanal, aliando de um modo específico a tecelagem, a fiação e a cultura do solo executados a mão, o que lhes assegurava a independência. A intervenção inglesa, estabelecida a partir a fiação em Lancashire e da tecelagem em Bengala, ou mesmo fazendo desaparecer tanto o fianção como a tecelagem indianas, destruiu essas pequenas comunidades semi-bárbaras, semi-civilizadas, destruindo seus fundamentos econômicos e produzindo assim a maior e, na verdade, a única revolução social que jamais teve lugar na Ásia.

Ora, por mais triste que seja do ponto de vista dos sentimentos humanos ver essas miríades de organizações sociais patriarcais, inofensivas e laboriosas se dissolverem, se desagregarem em seus elementos constitutivos e serem reduzidas à miséria, e seus membros perderem ao mesmo tempo sua antiga forma de civilização e seus meios de subsistência tradicionais, não devemos esquecer que essas comunidades villageoisies idílicas, malgrado seu aspecto inofensivo, foram sempre uma fundação sólida do despotismo oriental, que elas retém a razão humana num quadro extremamente estreito, fazendo dela um instrumento dócil da superstição e a escrava de regras admitidas, esvaziando-a de toda grandeza e de toda força histórica. Não devemos esquecer os bárbaros que, apegados egoisticamente ao seu miserável lote de terra, observam com calma a ruina dos impérios, as crueldades sem nome, o massacre da população das grandes cidades, não lhes dedicando mais atenção do que aos fenômenos naturais, sendo eles mesmos vítimas de todo agressor que se dignasse a notá-los. Não devemos esquecer que a vida vegetativa, estagante, indigna, que esse gênero de existência passiva desencadeia, por outra parte e como contragolpe, forças de destruição cegas e selvagens, fazendo da morte um rito religioso no Hindustão. Não devemos esquecer que essas pequenas comunidades carregavam a marca infame das castas e da escravidão, que elas submetiam o homem a circunstâncias exteriores em lugar de fazê-lo rei das circunstâncias, que elas faziam de um estado social em desenvolvimento expontâneo uma fatalidade toda poderosa, origem de um culto grosseiro da natureza cujo caráter degradante se traduzia no fato de que o homem, mestre da natureza, caia de joelhos e adorava Hanumán, o macaco, e Sabbala, a vaca.

É verdade que a Inglaterra, ao provocar uma revolução social no Hidustão, era guiada pelos interesses mais abjectos e agia de uma maneira estúpida para atingir seus objetivos. Mas a questão não é essa. Trata-se de saber se a humanidade pode cumprir seu destino sem uma revolução fundamental na situação social da Ásia. Senão, quaisquer que fossem os crimes da Inglaterra, ela foi um instrumento da História ao provocar esta revolução. Nesse caso, diante de qualquer tristeza que possamos sentir diante do espetáculo do colapso de um mundo antigo, temos o direito de exclamar como Goethe:
"Deve esta dor nos atormentar
já que ela nosso proveito aumenta,
O jugo de Timur não consumiu
miríades de vidas humanas?
(Goethe, Westostlicher Diwan. An suleika.)


Karl Marx em 10 de junho de 1853

Os Resultados Eventuais da Dominação Britânica na India - Karl Marx

Escrito em 22 de Julho de 1853, artigo publicado no New Tork Daily Tribune a 8 de Agosto de 1853. Extraído do site: http://www.marxists.org/portugues/marx/1853/07/22.htm


Nesta carta, eu me proponho a concluir minhas observações sobre a Índia. Como a supremacia inglesa chegou a se estabelecer na Índia? O poder supremo do Grande Mogol foi derrotado por seus vice-reis. O poder dos vice-reis foi derrotado pelos Mahrattes. O poder dos Maharattes foi derrotado pelos afegãos e, enquanto todos lutavam contra todos, o britânico fez-se irromper e os subjugou todos. Um país não dividido somente entre maometanos e hindus, mas entre tribo e tribo, entre casta e casta; uma sociedade baseada em uma sorte de equilíbrio resultante de uma repulsão geral e de um exclusivismo orgânico de seus membros: tal país e tal sociedade não seria uma presa jurada à conquista? Se não conhecêssemos nada do passado do Hindustão, não restaria ainda o marcante e incontestável fato de que no momento presente a Índia é mantida sob o jugo inglês por um exército indiano mantido às custas da própria Índia? A Índia não poderia portanto escapar ao destino de ser conquistada e toda sua história, se história houver, é a das conquistas sucessivas que ela sofreu. A sociedade indiana não tem qualquer história, pelo menos história conhecida. O que chamamos de história não é a história dos invasores sucessivos que fundaram seus impérios sobre a base passiva desta sociedade imóvel e sem resistência. A questão não é, portanto, a de saber se os ingleses têm direito de conquistar a Índia, mas se devemos preferir a Índia conquistada pelos turcos, pelos persas, pelos russos, à Índia conquistada pelos britânicos.

A Inglaterra tem uma dupla missão a alcançar na Índia: uma destrutiva, outra regeneradora - aniquilação da velha sociedade asiática e a instalação dos fundamentos materiais da sociedade ocidental na Ásia.
Árabes, turcos, tártaros, mongóis, que invadiram sucessivamente a Índia, foram prontamente"hiduizados", com os conquistadores bárbaros sendo, por uma lei eterna da História, conquistados eles próprios pela civilização superior de seus assujeitados. Os britânicos são os primeiros conquistadores superiores e consequentemente inacessíveis à civilização hindu. Eles a destruíram destruindo as comunidades indígenas, extripando-lhe a indústria indígena e nivelando tudo o que era grande e superior na sociedade indígena. A história de sua dominação na Índia não retrata outra coisa que seja diferente dessa destruição. A obra de regeneração surge com sofrimento em meio a um monte de ruínas. Ela, pelo menos, começou.

A unidade política da Índia, mais consolidada e estendendo-se para mais longe do que jamais feito sob os Grandes Mogols, era a primeira condição de sua regeneração. Esta unidade imposta pela lança britànica vai agora ser reafirmada e perpetuada pelo telégrafo elétrico. O exército indígena organisado e treinado pelo sargento instrutor britànico era o sine qua non da Índia que se emancipa e da Índia que não será a presa do primeiro intruso estrangeiro. A imprensa livre, introduzida pela primeira vez na sociedade asiática e gerida principalmente pela comum progenitura de hindus e de europeus, é um novo e potente agente de reconstrução. Os sistemas zemindari e ryotwari, por mais abomináveis que sejam, constituem-se de tal modo que elas próprias são duas formas de propriedade privada da terra - o grande sonho da sociedade asiática. Os nativos da Índia, educados em Cálcuta sob a tutela inglesa, ainda que com má vontade e parcimônia, estão em vias de formar uma classe nova, dotada de atitudes requeridas ao governo e imbuídas de ciência européia. O vapor colocou a Índia em comunicação regular e rápida com a Europa, ela pôs seus portos principais em relação com os dos mares do sul e do leste e a tirou do isolamento que era a causa de sua estagnação. N ão está tão longe o dia em que por uma combinação de estradas de ferro e de barcos a vapor a distância entre a Inglaterra e a Índia, medidas pelo tempo, será reduzida a oito dias, e onde esta região de há muito fabulosa, será praticamente anexada ao mundo ocidental.

As classes dirigentes da Grã-Bretanha não haviam manifestado até o presente senão um interesse acidental, transitório e excepcional com relação ao progresso da Índia. A aristocracia queria conquistá-la, a plutocracia pilhá-la e a oligarquia manufatureira subjugá-la por meio de suas mercadorias a baixo preço. Mas as posições estão mudadas no presente. A oligarquia manufatureira descobriu que a transformação da Índia em um grande país produtor tornou-se de importância vital para ela e que, para esses fins, é acima de tudo necessário dotá-la de meios de irrigação e de comunicação interiores. Ela projeta no presente cobrir a Índia com uma rede de vias férreas. E ela o fará. Os resultados deverão ser incomensuráveis.

É notório que o poder produtivo da Índia está paralizado pela falta absoluta de meios para transportar e trocar seus variados produtos. Em nenhuma parte como na Índia veremos a miséria social em meio a abundância natural em decorrência da falta dos meios de trocar. Foi provado, diante de uma comissão da Câmara dos Comuns britânica que instalou-se em 1848, que"enquanto se vendia o grão entre seis e oito shillings o quarto em Khadesh, ele era vendido entre 64 e 70 shillings em Poona, onde o povo morria de fome nas ruas sem possibilidade de fazer vir os aprovisionamentos de Khandesh pois os caminhos de terra estavam impraticáveis".

A entrada em serviço das estradas de ferro pode facilmente ser utilizado no interesse da agricultura por atravessar os reservatórios, lá onde é necessário conquistar a terra pela terraplanagem, e pela adução da água ao longo das linhas. Assim a irrigação, o sine qua non da cultura do solo no oriente, pode ganhar uma grande extensão e o retorno frequente das fomes locais, devido à falta de água, será conjurada. Considerando-se esse aspecto, a importância geral dessas estradas de ferro torna-se evidente se recordarmos que os proprietários das terras irrigadas, mesmo nos distritos vizinhos da cadeia das Ghâts, pagam o triplo de impostos, empregam dez ou doze vezes mais mão-de-obra, e que essas terras produzem doze ou quinze vezes mais que a mesma superfície não irrigada.

As estradas de ferro fornecerão os meios para reduzir as proporções e o custo de manutenção dos estabelecimentos militares. O coronel Warren, comandante in loco do forte St.William, expôs diante de uma comissão especial da Câmara dos Comuns que "a possibilidade de receber informações das partes mais distantes do país em algumas horas, onde hoje é necessário dias e semanas, e de enviar instruções com torpas e aprovisionamentos no mais breve período, são considerações que dificilmente poderão ser superestimadas. As tropas poderiam ser estacionadas em acampamentos mais distantes e mais salubres que no presente e muitas perdas de vidas por doença seriam assim poupadas. Não haveria mais necessidade de ter aprovisonamentos nos depósitos e as perdas por decomposição e destruição, efeito natural do clima, seriam também evitadas. Os efetivos poderiam ser reduzidos em razão direta de sua eficácia".

Sabemos que a organização municipal e a base econômica da sociedade rural fundada na auto-gestão têm sido destruídas, mas seus piores traços, a dissolução da sociedade em átomos estereotipados e sem conexão entre eles, sobreviveram. O isolamento da vila produziu a falta de vias na Índia e a falta de vias perpetuaram o isolamento da vila. Assim, uma comunidade existia num nível dado e inferior de bem estar, quase sem relação com as outras vilas, sem os anseios e os esforços indispensáveis ao progresso social. Os britânicos destruiram a inércia das vilas que se bastavam a si mesmas, as estradas de ferro vão satisfazer a necessidade nova de comunicação e de relações. Além disso,"um dos efeitos do sistema de estradas de ferro será o de levar a cada vila um conhecimento dos fatos e invenções de outros países e dos meios deles se dotar, que logo colocarão à prova as capacidades do artesanato hereditário e assalariado da vila indiana, para em seguida compensar sua ausência" (Chapman, O algodão e o comércio da Índia).

Eu sei que a oligarquia manufatureira inglesa não deseja dotar a Índia de estradas de ferro senão na intenção exclusiva de tirar-lhe a menores custos o algodão e outras matérias primas para suas manufaturas. Mas uma vez que tenha introduzido as máquinas como meio de locomoção em um país que possui o ferro e o carvão, torna-se incapaz de mantê-los excluídos da fabricação. Nõo se pode manter uma rede de estradas de ferro num imenso país, sem introduzir os processos industriais necessários para satisfazer as necessidades imediatas e correntes da locomoção por via férrea, e daí deverá desenvolver-se também a aplicação de máquinas nos ramos da indústria sem relação direta com as estradas de ferro. Portanto, as estradas de ferro tornar-se-ão na Índa os arautos da indústria moderna. O que é ainda mais certo é que os hindus são, como admitem as próprias autoridades britânicas, particularmente dotados para se adaptar a um trabalho inteiramente novo e adquirir o requerido conhecimento das máquinas. Ampla prova nos é dada pelas capacidades e habilidade dos mecânicos indígenas, na Moeda de Calcutá, empregados há anos fazendo funcionar a maquinaria a vapor, e pelos indígenas manuseando diversos mecanismos a vapor nos distritos carboníferos de Hardwar, além de outros exemplos. O próprio Mister Campbell, que é tão influenciado pelos preconceitos da Companhia das Índias, é obrigado a reconhecer"que a grande massa do povo indiano possui uma grande energia industrial, que ela é dotada para acumular capital e destacada por um espírito de grande clareza matemática e de disposição para o cálculo e as ciências exatas"."Seu intelecto, diz ele, é excelente".

As indústrias modernas, que serão resultado do sistema ferroviário, vão dissolver as divisões hereditárias do trabalho sobre as quais repousam as castas indianas, esses obstáculos decisivos ao progresso indiano e à potência indiana.

Tudo o que a burguesia inglesa for obrigada a fazer na Índia não emancipará a massa do povo nem melhorará substancialmente sua condição social, conquanto esta depende não somente do desenvolvimento das forças produtivas mas também de sua apropriação pelo povo. Mas o que não deixará de fazer é criar as condições materiais para realizar as duas. A burguesia jamais fez mais? Ela jamais efetuou um progresso sem conduzir os idividuos e os povos através do sangue e da lama, através da miséria e da degradação?

As Índias não recolherão os frutos dos elementos da nova sociedade semeados aqui e acolá entre eles pela burguesia inglesa, até que na própria Inglaterra as classes dominantes não tenham sido suplantadas pelo proletariado industrial, ou que os próprios hindus não tenham se tornado fortes o suficiente para rejeitar definitivamente o jugo inglês. Em todo caso, esperamos poder ver, em uma época mais ou menos distante, a regeneração desse grande e interessante país, cujas gerações nativas são, para retomar a expressão do príncipe Saltykov, mesmo nas classes mais inferiores,"mais finos e hábeis que os italianos", cuja submissão mesma é contrabalançada por uma calma nobre, a qual, a despeito de sua indolência natural, tem deixado atônitos os oficiais britânicos pela sua coragem, país que foi fonte de nossas linguas, de nossas religiões e que apresenta o tipo do antigo alemão no djat e o tipo do antigo grego no brâmane.

Eu não posso deixar o assunto das Índias sem algumas observações para concluir.

A hipocrisia profunda e a bárbarie inerente à civilização burguesa se difunde sem véus diante de nossos olhos, passando da sua fornalha natal, onde ela assume formas respeitáveis, às colônias onde ela assume suas formas sem véus. Os burgueses são os defensores da propriedade privada, mas algum partido revolucionário já deu origem a revoluções agrárias como as que tiveram lugar em Bengala, em Madras e em Bombaim? Não teria ela, na Índia, para empregar uma expressão deste grande saqueador, o próprio lord Clive, recorrido a atrozes extorsões, lá onde a simples corrupção não podia satisfazer sua voracidade? Enquanto eles peroram na Europa sobre a inviolabilidade santificada da dívida pública, não confiscam na Índia os dividendos dos rajás que haviam investido sua poupança privada nos valores da Companhia [das Índias Orientais]? Enquanto eles combatem a revolução francesa sob o pretexto de defender"nossa santa religião", não proíbem ao mesmo tempo a propagação do cristianismo na Índia para extorquir os peregrinos que afluem aos templos de Orissa e do Bengala, e não tiram proveito do tráfico da morte e da prostituição perpetrada no templo de Jagannatha? Tais são os homens de"Propriedade, Ordem, Família e Religião".

Os efeitos devastadores da indústria inglesa, considerados em relação à Índia, um país tão vasto como a Europa e de uma superfície de 150 milhões de acres, são palpáveis e aterrorizantes. Mas não devemos esquecer que eles não são senão os resultados orgânicos de todo o sistema de produção, tal qual está presentemente constituido. Essa produção repousa sobre a dominação toda poderosa do capitalismo. A centralização do capital é essencial a sua existência enquanto potência independente. A influência destrutiva dessa centralização sobre os mercados do mundo não faz senão revelar, à mais gigantesca escala, as leis orgânicas inerentes à economia política atualmente em vigor em toda cidade civilizada. O período burguês da História tem por missão criar a base material do mundo novo; de uma parte, a intercomunicação universal fundada na dependência mútua da humanidade e os meios dessa intercomunicação; de outra parte, o desenvolvimento das forças produtivas da produção material a partir da dominação científica dos elementos. A indústria e o comércio burgueses criam estas condições materiais de um mundo novo do mesmo modo que as revoluções geológicas criaram a superfície da terra. Quando uma grande revolução social tiver se assenhorado dessas realizações da época burguesa, do mercado mundial e das forças modernas de produção, e os tiver submetido ao controle comum dos povos mais avançados, somente então o progresso humano cessará de parecer com este horrível ídolo pagão que somente quer beber o néctar no crânio de suas vítimas.

O Movimento Revolucionário - Karl Marx

Artigo publicado na Nova Gazeta Renana(Neue Rheinische Zeitung), nº 184, 1/1/49. *Colônia, 31 de dezembro. Jornal editado por Marx durante as revoluções de 48 e 49. Extraído do livro Nova Gazeta Renana: Artigos de Karl Marx. Tradutor: Livia Cotrim. Edição: 1. Ano: 2010. Local: SÃO PAULO. Editora: EDUC


Nunca um movimento revolucionário iniciou com uma abertura tão edificante quanto o movimento revolucionário de 1848. O Papa o abençoou religiosamente, a harpa eólia de Lamartine estremeceu sob a suave melodia filantrópica cujo texto era a Fraternité, a fraternidade entre as partes da sociedade e as nações.

Milhões sejam cingidos
Neste beijo do mundo todo! (Da ode de Schiller “À Alegria”.)

Neste momento o Papa senta-se em Gaëta, expulso de Roma, sob a proteção do tigre idiota Ferdinand, o “Iniciatore” da Itália(1), intrigando contra a Itália com o inimigo mortal hereditário dela, com a Áustria, que ele em seu período feliz ameaçou com a excomunhão. A última eleição presidencial francesa forneceu as tabelas estatísticas(2) à impopularidade de Lamartine, o traidor. Nada mais filantrópico, humano, fraco do que as revoluções de fevereiro e março, na da mais brutal do que as conseqüências necessárias dessa humanidade dos fracos. Testemunhas: Itália, Polônia, Alemanha e, sobretudo, os vencidos de junho.

Com a derrota dos trabalhadores franceses em junho foram, entretanto, vencidos os próprios vencedores de junho. Ledru-Rollin e os outros homens da Montanha(3) foram reprimidos pelo partido dos republicanos burgueses, pelo partido do “National”(4); o partido do “National” pela oposição dinástica(5), Thiers-Barrot, e esta mesma precisou ceder o lugar aos legitimistas(6), como se o ciclo das três restaurações não se tivesse fechado e Luis Napoleão fosse mais do que a urna oca em que os camponeses franceses fizeram sua entrada no movimento social-revolucionário e os trabalhadores franceses depositaram seu voto de condenação a todos os líderes da época passada, Thiers-Barrot, Lamartine e Cavaignac-Marrast. Mas tomemos nota do fato de que a derrota da classe trabalhadora revolucionária francesa trouxe após si, como conseqüência inevitável, a derrota da burguesia republicana francesa, que a abateu agora mesmo.

A derrota da classe trabalhadora na França, a vitória da burguesia francesa, foi ao mesmo tempo a nova opressão das nacionalidades que tinham respondido com heróicas tentativas de emancipação ao canto do galo gaulês(7). Polônia, Itália e Irlanda foram mais uma vez saqueadas, violentadas, assassinadas pelos esbirros prussianos, austríacos e ingleses. A derrota da classe trabalhadora na França, a vitória da burguesia francesa foi ao mesmo tempo a derrota da classe média em todos as regiões européias em que a classe média, unida por um momento ao povo, tinha respondido com uma revolução sangrenta contra o feudalismo ao canto do galo gaulês. Nápoles, Viena, Berlim! A derrota da classe trabalhadora na França, a vitória da burguesia francesa foi ao mesmo tempo a vitória do oriente sobre o ocidente, a derrota da civilização pela barbárie. Na Valáquia começou a repressão dos romanos pelos russos e seus instrumentos, os turcos(8); em Viena os croatas, panduros(9), tchecos, [Sereschaner] e semelhantes lumpensinatos estrangularam a liberdade alemã, e neste momento o czar é onipresente na Europa. A derrubada da burguesia na França, o triunfo da classe trabalhadora francesa, a emancipação da classe trabalhadora em geral é, portanto, a senha para a libertação européia.

Mas o país, a nação inteira transformada em seu proletariado, que com sua imensa pobreza abarcou o mundo inteiro, que com seu dinheiro já uma vez financiou os custos da restauração européia, em cujo seio os conflitos de classe assumiram sua forma mais característica e descarada – a Inglaterra parece ser o rochedo no qual se quebram as ondas revolucionárias, em que a nova sociedade morre de fome já no seio materno. A Inglaterra domina o mercado mundial. Uma transformação das relações econômico-nacionais em todos os países do continente europeu, no continente europeu em seu conjunto sem a Inglaterra, é uma tempestade num copo d’água(10). As relações da indústria e do comércio no interior de cada nação são dominadas por meio de seu intercâmbio com outras nações, são condicionadas por sua relação com o mercado mundial. Mas a Inglaterra domina o mercado mundial, e a burguesia domina a Inglaterra.

A libertação da Europa, seja a insurreição das nacionalidades oprimidas pela independência, seja a derrubada do absolutismo feudal, são, portanto, condicionadas pela insurreição vitoriosa da classe trabalhadora francesa. Mas toda transformação social francesa choca-se necessariamente na burguesia inglesa, no domínio mundial industrial e comercial da Grã-Bretanha. Toda reforma social parcial na França, e no continente europeu em geral, é e permanece, se pretende ser definitiva, um vazio voto piedoso. E a velha Inglaterra só será derrubada por uma guerra mundial, a única que pode oferecer ao partido cartista, o partido organizado dos trabalhadores ingleses, as condições para uma insurreição bem-sucedida contra seu poderoso opressor. Os cartistas à cabeça do governo inglês – só neste momento a revolução social sai do reino da utopia para o reino da realidade. Mas toda guerra européia na qual a Inglaterra seja envolvida é uma guerra mundial. Ela será travada no Canadá como na Itália, na Índia oriental como na Prússia, na África como no Danúbio. E a guerra européia é a primeira conseqüência da revolução vitoriosa dos trabalhadores na França. Como à época de Napoleão, a Inglaterra estará na ponta dos exércitos contra-revolucionários, mas será arremessada pela própria guerra à ponta do movimento revolucionário e resgatará sua dívida com a revolução do século XVIII.

Insurreição revolucionária da classe trabalhadora francesa, guerra mundial – este é o sentido do ano de 1849.


Notas

(1) O Papa Pio IX implementou, logo após sua eleição em 1846, uma série de reformas liberais, para prevenir um crescimento do movimento popular (anistia parcial para presos políticos, abolição da censura prévia etc.). Depois do levante popular em Roma, Pio IX fugiu em 24 de novembro de 1848 na fortaleza Gaëta, no reino de Nápoles.
(2) Nas eleições presidenciais de 10 de dezembro de 1848, Luis Bonaparte recebeu 5.430.000 votos. Lamartine, candidato do partido do “National”, sofreu uma derrota completa. Ele recebeu 17.900 votos e, com isso, ficou em último lugar, atrás de Cavaignac, Ledru-Rollin e Raspail.
(3) Montagne (Montanha) – agrupamento de democratas pequeno-burgueses e republicanos liderado por Ledru-Rollin em torno do jornal “La Réforme”; a ele aderiram os socialistas pequeno-burgueses sob a direção de Louis Blanc. “La Réforme” apareceu em Paris como jornal diário de 1843 a 1850.
(4) Jornal francês, publicado em Paris de 1830 a 1851; nos anos 40 foi o órgão dos republicanos burgueses moderados. O redator-chefe do “National” e líder desse agrupamento político que se apoiava na burguesia industrial e numa parte da inteligência liberal era Armanda Marrast. Jules Bastide foi até 1846 um dos redatores do “National”.
(5) Grupo liderado por Odilon Barrot na Câmara dos Deputados francesa durante a Monarquia de Julho, cujos membros expressavam as opiniões políticas dos círculos liberais da burguesia industrial e comercial e que defendia a realização de uma reforma eleitoral moderada; ele via aí um meio de prevenir a revolução e manter a dinastia Orléans.
(6) Partidários da “legítima” dinastia dos Bourbon, que se manteve no poder na França de 1589 a 1793 e, durante o período da Restauração, de 1814 a 1830; defendiam os interesses dos grandes proprietários hereditários de terra.
(7) Na introdução escrita em 1831 à obra “Kahldorf sobre a nobreza em cartas ao conde M. von Moltke”, diz Heine, considerando a revolução francesa de 1830: “O galo gaulês cantou agora pela segunda vez, e também na Alemanha é dia”.
(8) Em junho de 1849, na Valáquia (Bucarest), depois da fuga do príncipe Bibesko, foi formado pelas forças liberais um governo provisório, o qual esforçou-se por realizar uma série de reformas burguesas e uma constituição segundo o modelo europeu, bem como um acordo com a Turquia. Em conseqüência disso, um corpo de exército russo cruzou o Pruth [?]. Ao mesmo tempo, o governo czarista conseguiu mobilizar a Turquia para também enviar tropas para a repressão do movimento de libertação naquela região. No decorrer de setembro tropas turcas ocuparam a Valáquia e realizaram em Bucareste uma sangrenta prestação de contas com a população.
(9) Croatas – soldados do exército imperial austríaco, cuja cavalaria ligeira e infantaria eram originariamente recrutadas entre os membros desse povo eslavo do sul. Panduros – formações militares do exército imperial austríaco, que apresentavam um tipo específico de tropas de infantaria irregulares e se comportavam de forma extremamente brutal e impiedosa.
(10) Essa comparação plástica para uma grande excitação [emoção, irritação] em um âmbito limitado, que não produz nenhum efeito em conseqüência, foi utilizada por Montesquieu em relação ao tumulto na mini-república San Marino.

terça-feira, 3 de maio de 2011

Glosas Críticas Marginais - Karl Marx

Glosas Críticas Marginais ao Artigo "O Rei da Prússia e a Reforma Social". De um prussiano.
Karl Marx
7 de Agosto de 1844

Publicado originalmente no jornal Vorwärts, nºº 63, sete de agosto de 1844. Extraído do elo: http://www.marxists.org/portugues/marx/1844/08/07.htm


O jornal Vorwärts, nº 60, contém um artigo intitulado: O rei da Prússia e a reforma social, assinado: "Um prussiano".

O assim chamado prussiano começa referindo-se ao conteúdo da ordem do gabinete do rei da Prússia sobre a insurreição dos trabalhadores silesianos e à opinião do jornal francês La Refórme sobre a ordem do gabinete prussiano.

La Refórme entende que a ordem do gabinete foi motivada pelo "terror e pelo sentimento religioso"" do rei. E até descobre nesse documento o pressentimento das grandes reformas que ameaçam a sociedade civil. O "prussiano" ensina ao Refórme nestes termos:

"O rei e a sociedade alemã não chegaram ainda ao pressentimento de sua reforma" e menos ainda as insurreições silesiana e boêmia deram origem a tal sentimento. É impossível, para um país não-político como a Alemanha, compreender que a miséria parcial dos distritos industriais é uma questão geral e muito menos que representa um problema para o conjunto da sociedade. Para os alemães, esse acontecimento tem o mesmo caráter de qualquer seca ou carestia local. Por isso o rei o considera como um defeito de administração ou de assistência. Por esse motivo e também porque bastaram poucos soldados para liquidar os frágeis tecelões, a demolição das fábricas e das máquinas não incute "terror", nem ao rei, nem às autoridades. Além do mais, a ordem do gabinete nem sequer foi ditada pelo sentimento religioso: trata-se de uma sóbria expressão da arte política cristã e de uma doutrina que não deixa subsistir nenhuma dificuldade diante do seu único remédio, "a boa disposição dos corações cristãos". Miséria e crime são duas grandes calamidades: quem poderá repará-las? O Estado e as autoridades? Não, mas, ao contrário, a união de todos os corações cristãos".

O suposto prussiano nega o "terror" do rei, entre outras coisas, porque bastaram poucos soldados para liquidar os frágeis tecelões.

Ora, em um país no qual banquetes com brindes liberais e espuma liberal de champanhe - lembre-se a festa de Dusserdorf - provocam uma ordem do gabinete real pela qual não houve necessidade de um só soldado para acabar com os anseios de liberdade de imprensa e de constituição de toda a burguesia liberal; em um país em que a obediência passiva está na ordem do dia; em um tal país não seria um acontecimento e um acontecimento aterrorizante ter que recorrer à força armada? Considere-se ainda o fato de que os frágeis tecelões saíram vencedores no primeiro choque. Apenas mediante consideráveis reforços de tropas é que foram vencidos. A revolta de uma massa de trabalhadores é por acaso menos perigosa pelo fato de não ser necessário um exército para sufocá-la? Que o inteligente prussiano compare a revolta dos tecelões silesianos com as revoltas dos operários ingleses e os tecelões silesianos lhe parecerão tecelões fortes.

Partindo da relação geral da política com os males sociais, poderemos esclarecer porque a revolta dos tecelões não podia infundir nenhum "terror" particular ao rei. Por ora seja suficiente isto: a revolta não era dirigida diretamente contra o rei da Prússia, mas contra a burguesia. Como aristocrata e monarca absoluto, o rei da Prússia não pode amar a burguesia; menos ainda se pode aterrorizar se a sua submissão e a sua impotência forem acrescidas de relações tensas e difíceis com o proletariado. Além do mais: o católico ortodoxo é mais hostil ao protestante ortodoxo do que ao ateu, assim como o legitimista é mais hostil ao liberal do que ao comunista. Não porque o ateu e o comunista tenham mais afinidade com o católico e o legitimista, mas porque eles são mais estranhos do que o protestante e o liberal, uma vez que se situam do lado de fora do seu círculo. Enquanto homem político, o rei da Prússia tem, na política, o seu antagonista direto no liberalismo. Para o rei, o antagonismo com o proletariado existe tão pouco quão pouco o rei existe para o proletariado. O proletariado já deveria ter alcançado uma força decisiva para sufocar as antipatias, os antagonismos e atrair sobre si a total hostilidade da política. Por último: para o bem conhecido caráter do rei, desejoso de coisas interessantes e significativas, devia constituir de fato uma surpresa agradavelmente excitante o fato de encontrar no seu território aquele "interessante" e "tão falado" pauperismo, e com isso uma ocasião para fazer com que falassem novamente de si. Como deve ter-lhe sido agradável a notícia de que ele já possuía o seu "próprio" real pauperismo prussiano.

O nosso "prussiano" é ainda mais infeliz quando nega que o "sentimento religioso" seja a fonte da ordem do gabinete real. Por que o sentimento religioso não é a fonte dessa ordem de gabinete? Porque é "uma muito sóbria expressão da arte política cristã", uma "sóbria" expressão da doutrina que "diante do seu único remédio, a boa disposição dos corações cristãos, não deixa subsistir nenhuma dificuldade".

O sentimento religioso não é a fonte da arte política cristã? Não se funda no sentimento religioso uma doutrina que possui o seu remédio na boa disposição dos corações cristãos? Uma expressão sóbria do sentimento religioso deixa de ser uma expressão do sentimento religioso muito cheio de si, muito apaixonado aquele que procura o "remédio para os grandes males" na "união dos corações cristãos", negando-o ao "Estado e às autoridades". É um sentimento religioso muito apaixonado aquele que - segundo admite o "prussiano" - particulariza todo o mal na falta de sentido cristão, remetendo as autoridades ao único meio para reforçar este sentido, à "exortação". A disposição cristã é, segundo o "prussiano", o objetivo da ordem do gabinete. É claro que, quando não é sóbrio, ele se considera o único bem. Lá onde descobre males, ele os atribui à sua ausência, uma vez que, se é o único bem, também é somente ele que pode produzir o bem. A ordem do gabinete, ditada pelo sentimento religioso, dita por sua vez, como conseqüência, o sentimento religioso. Um político com sentimento religioso sóbrio, na sua "perplexidade", nunca procuraria o seu "auxílio" na "exortação do piedoso pregador ao sentimento cristão".

Como demonstra, então, o suposto prussiano, ao Réforme, que a ordem do gabinete não é uma emanação do sentimento religioso? Apresentando sempre a ordem do gabinete como uma emanação do sentimento religioso. Pode-se esperar que uma mente tão ilógica seja capaz de penetrar nos acontecimentos sociais? Ouçamos um pouco as suas conversas sobre as relações da sociedade alemã com o movimento dos trabalhadores e com a reforma social em geral.

Distingamos aquilo que o "prussiano" negligencia, distingamos as diferentes categorias que são compreendidas na expressão "sociedade alemã": governo, burguesia, imprensa, enfim os próprios trabalhadores. Essas são as diferentes massas todas juntas e, todas em massa. Para ele, a sociedade alemã nem sequer chegou ainda a pressentir a sua reforma.

Por que lhe falta esse instinto?

"Num país não-político como a Alemanha", responde o prussiano, "é impossível compreender que a miséria parcial dos distritos industriais é uma questão geral e menos ainda que é um dano para o conjunto da sociedade. Para os alemães, o acontecimento tem o mesmo caráter de qualquer seca ou carestia local. Por isso, o rei o considera como um 'defeito de administração e de assistência'."

O "prussiano" explica então essa concepção invertida da miséria dos trabalhadores, através da peculiaridade de um país não-político.

Admitir-se-á que a Inglaterra seja um país político. Admitir-se-á, além do mais, que a Inglaterra seja o país do pauperismo; a própria palavra é de origem inglesa. Por isso, o exame da Inglaterra é a experiência mais segura para conhecer-se a relação de um país político com o pauperismo. Na Inglaterra, a miséria dos trabalhadores não é parcial, mas universal; não se limita aos distritos industriais, mas se estende aos agrícolas. Aqui, os movimentos não estão numa fase inicial, mas acontecem periodicamente há quase um século.

Como, então, concebem o pauperismo a burguesia inglesa e o governo e a imprensa a ela ligados?

Na medida em que a burguesia inglesa admite que o pauperismo é uma responsabilidade da política, o whig considera o tory e o tory o whig a causa do pauperismo. Segundo o whig, o monopólio da grande propriedade fundiária e a legislação protecionista contra a importação de cereais são a fonte principal do pauperismo. Segundo o tory, todo o mal reside no liberalismo, na concorrência, no exagerado desenvolvimento industrial. Nenhum dos partidos encontra a causa na política em geral, pelo contrário, cada um deles a encontra na política do partido adversário; porém, ambos os partidos sequer sonham com uma reforma da sociedade.

A expressão mais clara da interpretação inglesa do pauperismo - referimo-nos sempre às opiniões da burguesia inglesa e do governo inglês - é a economia política inglesa, isto é, o reflexo científico da situação econômica nacional inglesa.

Um dos melhores e mais famosos economistas ingleses, que conhece a situação atual e deve ter uma visão de conjunto do movimento da sociedade burguesa, um discípulo do cínico Ricardo, MacCulloch, ousa ainda aplicar à economia política, numa preleção pública, em meio a manifestações de aplauso, aquilo que Bacon diz da filosofia:

"O homem que, com verdadeira e infatigável sabedoria, suspenda o seu juízo, progrida pouco a pouco e supere um depois do outro os obstáculos que impedem como montanhas o curso dos estudos, atingirá com o tempo o cume da ciência, onde se goza a paz e o ar puro, onde a natureza se expõe diante dos olhos em toda a sua beleza e onde, por meio de uma senda em cômodo declive, pode-se descer até os últimos detalhes da prática".

Bom ar puro a atmosfera pestilencial das habitações nos pardieiros ingleses! Grande beleza da natureza os fantasiosos trapos com que se vestem os pobres ingleses e a carne mirrada e enrugada das mulheres roídas pelo trabalho e pela miséria; as crianças que jazem no esterco; os abortos provocados pelo excesso de trabalho no uniforme mecanismo das fábricas! E os graciosíssimos últimos detalhes da prática: a prostituição, o crime e a forca!

Até mesmo aquela parte da burguesia inglesa que está consciente do perigo do pauperismo concebe este perigo, como também os meios para repará-lo, não apenas de forma particular, mas, para dizê-lo sem rodeios, de forma infantil e sem graça.

Assim, por exemplo, o doutor Kay, no seu opúsculo Recent measures for he promotion of education in England, reduz tudo a uma educação descuidada. Adivinhe-se por que motivo! Com efeito, por falta de educação o que o reduzem necessariamente ao pauperismo. Daí a sua rebelião. Isto pode "perturbar a prosperidade das manufaturas inglesas e do comércio inglês, abalar a confiança recíproca dos homens de negócios, diminuir a estabilidade das instituições políticas e sociais".

A tal ponto chega a desconsideração da burguesia inglesa e de sua imprensa pelo pauperismo, por esta epidemia nacional da Inglaterra.

Admitamos, porém, que sejam fundadas as recriminações que o nosso "prussiano" faz à sociedade alemã. Será que o motivo reside na situação não-política da Alemanha? Conduto, se a burguesia da não-política Alemanha é incapaz de tomar consciência da importância universal de uma miséria parcial, a burguesia da política Inglaterra é capaz de desconhecer a importância universal de uma miséria universal, de uma miséria que evidenciou a sua importância universal, tanto através do seu retorno periódico no tempo como através da sua difusão no espaço e também através do fracasso de todas as tentativas de remediá-la.

O "prussiano" atribui ainda à situação não-política da Alemanha o fato de que o rei da Prússia encontre a causa do pauperismo numa falha de administração e de assistência, os meios contra o pauperismo.

Por acaso, será exclusivo do rei da Prússia este modo de ver? Dê-se uma rápida olhada à Inglaterra, o único país no qual se pode falar de uma grande ação política contra o pauperismo.

A atual legislação inglesa sobre a pobreza data da lei contida no Ato 43 do governo de Elisabeth. Em que consistem os meios desta legislação? Na obrigação imposta às paróquias de socorrer os seus trabalhadores pobres, no imposto para os pobres, na beneficiência legal. Essa legislação - a assistência por via administrativa - durou três séculos. Depois de longas e dolorosas experiências, quais são as posições do parlamento no seu Amendment Bill de 1834?

Antes de mais nada, o assustador aumento do pauperismo é atribuído a uma "falha de administração".

Por isso, a administração do imposto para os pobres, constituída por empregados das respectivas paróquias, é reformulada. São constituídas Uniões de cerca de vinte paróquias, unidas em uma única administração. Um comitê de funcionários - Board of Guardians - eleitos pelos contribuintes, reúne-se em um determinado dia na sede da União e avalia os pedidos de subsídio. Esses comitês são dirigidos e supervisionados por delegados do governo, da Comissão Central da Somerset House, o ministério do pauperismo, segundo a precisa definição de um francês. O capital de que essa administração cuida quase equivale à soma que a administração militar custa na França. O número de administrações locais que dependem dela chega a quinhentas e cada uma dessas administrações locais, por sua vez, ocupa, pelo menos, doze funcionários.

O parlamento inglês não se limitou à reforma formal da administração.

Segundo ele, a causa principal da grave situação do pauperismo inglês está na própria lei relativa aos pobres. A assistência, o meio legal contra o mal social, acaba favorecendo-o. E quanto ao pauperismo em geral seria, de acordo com a teoria de Malthus, uma eterna lei da natureza:

"Uma vez que a população tende a superar incessantemente os meios de subsistência, a assistência é uma loucura, um estímulo público a miséria. Por isso, o Estado nada mais pode fazer do que abandonar a miséria ao seu destino e, no máximo, tornar mais fácil a morte dos pobres".

A essa filantrópica teoria, o parlamento inglês agrega a idéia de que o pauperismo é a miséria da qual os próprios trabalhadores são culpados, e ao qual portanto não se deve prevenir como uma desgraça, mas antes reprimir e punir como um delito.

Surgiu, assim, o regime das workhouses, isto é, das casas dos pobres, cuja organização interna desencoraja os miseráveis de buscar nelas a fuga contra a morte pela fome. Nas workhouses, a assistência é engenhosamente entrelaçada com a vingança da burguesia contra o pobre que apela à sua caridade.

Como se vê, a Inglaterra tentou acabar com o pauperismo primeiramente através da assistência e das medidas administrativas. Em seguida, ela descobriu, no progressivo aumento do pauperismo, não a necessária conseqüência da indústria moderna, mas antes o resultado do imposto inglês para os pobres. Ela entendeu a miséria universal unicamente como uma particularidade da legislação inglesa. Aquilo que, no começo, fazia-se derivar de uma falta de assistência, agora se faz derivar de um excesso de assistência. Finalmente, a miséria é considerada como culpa dos pobres e, deste modo, neles punida.

A lição geral que a política Inglaterra tirou do pauperismo se limita ao fato de que, no curso do desenvolvimento, apesar das medidas administrativas, o pauperismo foi configurando-se como uma instituição nacional e chegou por isso, inevitavelmente, a ser objeto de uma administração ramificada e bastante extensa, uma administração, no entanto, que não tem mais a tarefa de eliminá-lo, mas, ao contrário, de discipliná-lo. Essa administração renunciou a estancar a fonte do pauperismo através de meios positivos; ela se contenta em abrir-lhe, com ternura policial, um buraco toda vez que ele transborda para a superfície do país oficial. Bem longe de ultrapassar as medidas de administração e de assistência, o Estado inglês desceu muito abaixo delas. Ele já não administra mais do que aquele pauperismo que, em desespero, deixa agarrar-se e prender-se.

Até agora, portanto, o "prussiano" não mostrou nada de particular no comportamento do rei da Prússia. Mas, por que, exclama o rei com rara ingenuidade: "Por que o rei da Prússia não determina imediatamente a educação de todas as crianças abandonadas? Por que se dirige antes às autoridades, esperando seus planos e projetos?"

O inteligentíssimo prussiano se tranqüilizará quando souber que o rei da Prússia é, nisso, tão pouco original quanto o é no resto das suas ações e que, pelo contrário, trilhou o único caminho que o chefe de um Estado pode trilhar.

Napoleão queria acabar de um golpe com a mendicância. Encarregou as suas autoridades de preparar planos para a eliminação da mendicância em toda a França. O projeto demorava: Napoleão perdeu a paciência, escreveu ao seu ministro do interior, Crétet, e lhe ordenou que destruísse a mendicância dentro de um mês, dizendo:

"Não se deve passar sobre a terra sem deixar traços que relembrem à posteridade a nossa memória. Não me peçam mais três ou quatro meses para receber informações; vocês têm funcionários jovens, prefeitos inteligentes, engenheiros civis bem preparados, ponham ao trabalho todos eles; não fiquem modorrando no costumeiro trabalho de escritório".

Em poucos meses tudo estava terminado. No dia cinco de julho de 1808 foi promulgada a lei que reprime a mendicância. Como? Por meio dos depósitos, que se transformaram em penitenciárias com tanta rapidez que bem depressa o pobre chegava aí exclusivamente pela estrada do tribunal da polícia correcional. E, no entanto, naquele tempo, o senhor Noailles du Gard, membro do corpo legislativo, exclamava:

"Reconhecimento eterno ao herói que assegura à necessidade um lugar de refúgio e à miséria os meios de subsistência. A infância não será mais abandonada, as famílias pobres não serão mais privadas de recursos, nem os operários de estímulo e ocupação. Nos pas ne seront plus arrêtés par l'image dégoûtante des infirmités et de la honteuse misère".

O último cínico período é a única verdade desse panegírico.

Mas, se Napoleão se dirigia ao discernimento dos seus funcionários, prefeitos e engenheiros, por que não o rei da Prússia às suas autoridades?

Por que Napoleão não ordenou a imediata supressão da mendicância? O mesmo valor tem a pergunta do "prussiano": Por que o rei da Prússia não determina a imediata educação de todas as crianças abandonadas? Sabe o "prussiano" o que o rei da Prússia deveria determinar? Nada menos que a eliminação do proletariado. Para educar as crianças, é preciso alimentá-las e liberá-las da necessidade de trabalhar para viver. Alimentar e educar as crianças abandonadas, isto é, alimentar e educar todo o proletariado que está crescendo, significaria eliminar o proletariado e o pauperismo.

A Convenção teve, por um momento, a coragem de determinar a eliminação do pauperismo, não certamente "de modo imediato", como o "prussiano" exigiria do seu rei, mas depois de haver encarregado o seu Comitê de Salvação Pública de elaborar os planos e as propostas necessários, e depois que esse utilizou os amplos levantamentos da Assembléia Constituinte sobre as condições da miséria na França e propôs, através de Barère, a fundação do Livre de la bienfaisance nationale etc.. Qual foi a conseqüência da determinação da Convenção? Que houvesse uma determinação a mais no mundo e que um ano depois mulheres esfomeadas cercassem a Convenção.

E, no entanto, a Convenção era o máximo da energia política, da força política, e do intelecto político.

Assim, de modo imediato, sem um acordo com as autoridades, nenhum governo do mundo tomou medidas a respeito do pauperismo. O parlamento inglês chegou até a mandar, a todos os países da Europa, comissários para conhecer os diferentes remédios administrativos contra o pauperismo. Porém, por mais que os Estados tivessem se ocupado do pauperismo, sempre se ativeram a medidas de administração e de assistência, ou, ainda mais, desceram abaixo da administração e da assistência.

Pode o Estado comportar-se de outra forma?

O Estado jamais encontrará no "Estado e na organização da sociedade" o fundamento dos males sociais, como o "prussiano" exige do seu rei. Onde há partidos políticos, cada um encontra o fundamento de qualquer mal no fato de que não ele, mas o seu partido adversário, acha-se ao leme do Estado. Até os políticos radicais e revolucionários já não procuram o fundamento do mal na essência do Estado, mas numa determinada forma de Estado, no lugar da qual eles querem colocar uma outra forma de Estado.

O Estado e a organização da sociedade não são, do ponto de vista político, duas coisas diferentes. O Estado é o ordenamento da sociedade. Quando o Estado admite a existência de problemas sociais, procura-os ou em leis da natureza, que nenhuma força humana pode comandar, ou na vida privada, que é independente dele, ou na ineficiência da administração, que depende dele. Assim, a Inglaterra acha que a miséria tem o seu fundamento na lei da natureza, segundo a qual a população supera necessariamente os meios de subsistência. Por um outro lado, o pauperismo é explicado como derivando da má vontade dos pobres, ou, de acordo com o rei da Prússia, do sentimento não cristão dos ricos, e, segundo a Convenção, da suspeita disposição contra-revolucionária dos proprietários. Por isso, a Inglaterra pune os pobres, o rei da Prússia admoesta os ricos e a Convenção guilhotina os proprietários.

Finalmente, todos os Estados procuram a causa em deficiências acidentais intencionais da administração e, por isso, o remédio para os seus males em medidas administrativas. Por que? Exatamente porque a administração é a atividade organizadora do Estado.

O Estado não pode eliminar a contradição entre a função e a boa vontade da administração, de um lado, e os seus meios e possibilidades, de outro, sem eliminar a si mesmo, uma vez que repousa sobre essa contradição. Ele repousa sobre a contradição entre vida privada e pública, sobre a contradição entre os interesses gerais e os interesses particulares. Por isso, a administração deve limitar-se a uma atividade formal e negativa, uma vez que exatamente lá onde começa a vida civil e o seu trabalho, cessa o seu poder. Mais ainda, frente à conseqüências que brotam da natureza a-social desta vida civil, dessa propriedade privada, desse comércio, dessa indústria, dessa rapina recíproca das diferentes esferas civis, frente a estas conseqüências, a impotência é a lei natural da administração. Com efeito, esta dilaceração, esta infâmia, esta escravidão da sociedade civil, é o fundamento natural onde se apoia o Estado moderno, assim como a sociedade civil da escravidão era o fundamento no qual se apoiava o Estado antigo. A existência do Estado e a existência da escravidão são inseparáveis. O Estado antigo e a escravidão antiga - fracas antíteses clássicas - não estavam fundidos entre si mais estreitamente do que o Estado moderno e o moderno mundo de traficantes, hipócritas antíteses cristãs. Se o Estado moderno quisesse acabar com a impotência da sua administração, teria que acabar com a atual vida privada. Se ele quisesse eliminar a vida privada, deveria eliminar a si mesmo, uma vez que ele só existe como antítese dela. Mas nenhum ser vivo acredita que os defeitos de sua existência tenham a sua raiz no princípio da sua vida, na essência da sua vida, mas, ao contrário, em circunstâncias externas à sua vida. O suicídio é contra a natureza. Por isso, o Estado não pode acreditar na impotência interior da sua administração, isto é, de si mesmo. Ele pode descobrir apenas defeitos formais, casuais, da mesma, e tentar remediá-los. Se tais modificações são infrutíferas, então o mal social é uma imperfeição natural, independente do homem, uma lei de Deus, ou então a vontade dos indivíduos particulares é por demais corrupta para corresponder aos bons objetivos da administração. E quem são esses pervertidos indivíduos particulares? São os que murmuram contra o governo sempre que ele limita a liberdade e pretendem que o governo impeça as conseqüências necessárias dessa liberdade.

Quanto mais poderoso é o Estado e, portanto, quanto mais político é um país, tanto menos está disposto a procurar no princípio do Estado, portanto no atual ordenamento da sociedade, do qual o Estado é a expressão ativa, autoconsciente e oficial, o fundamento dos males sociais e a compreender-lhes o princípio geral. O intelecto político é político exatamente na medida em que pensa dentro dos limites da política. Quanto mais agudo ele é, quanto mais vivo, tanto menos é capaz de compreender os males sociais. O período clássico do intelecto político é a Revolução francesa. Bem longe de descobrir no princípio do Estado a fonte dos males sociais, os heróis da Revolução Francesa descobriram antes nos males sociais a fonte das más condições políticas. Deste modo, Robespierre vê na grande miséria vê na grande miséria e na grande riqueza um obstáculo à democracia pura. Por isso, ele quer estabelecer uma frugalidade espartana geral. O princípio da política é a vontade. Quanto mais unilateral, isto é, quanto mais perfeito é o intelecto político, tanto mais ele crê na onipotência da vontade e tanto mais é cego frente aos limites naturais e espirituais da vontade e, consequentemente, tanto mais é incapaz de descobrir a fonte dos males sociais. Não é preciso argumentar mais contra a insensata esperança do "prussiano", segundo a qual o "intelecto político" é chamado a descobrir as raízes da miséria social na Alemanha.

Foi loucura não somente exigir do rei da Prússia um poder que nem a Convenção e Napoleão juntos tiveram; foi loucura exigir dele um modo de ver do qual o inteligente "prussiano" está pelo menos tão longe quanto o seu rei. Toda essa declaração foi ainda mais insensata na medida em que o "prussiano" nos confessa:

"As boas palavras e as boas disposições são baratas, o que é caro são a perspicácia e as ações eficazes; neste caso, elas são mais do que caras, estão muito longe da possibilidade de efetivação".

Se estão muito longe da possibilidade de efetivação, imagine-se quem, então, a partir daí tentar alcançar o possível. No mais, deixo a critério do leitor julgar se, neste caso, a linguagem mercantil, de cigano, na base do "barato", "caro", "mais do que caro", "longe da possibilidade de efetivação", possa ser incluída na categoria das "boas palavras" e das "boas disposições".

Suponhamos, porém, que as observações do "prussiano" sobre o governo alemão e sobre a burguesia alemã - esta última está, sem dúvida, compreendida na sociedade alemã - tenham pleno fundamento. Será que essa parte da sociedade é mais irrefletida na Alemanha do que na Inglaterra ou na França? Pode-se ser mais irrefletido do que na Inglaterra, onde a irreflexão foi erigida em sistema? Se, hoje, em toda a Inglaterra pipocam manifestações de trabalhadores, é porque a burguesia e o governo locais não estão hoje mais lúcidos do que no último trintênio do século dezoito. Seu único juízo é a força material e uma vez que a força material decresce na mesma medida em que cresce a extensão do pauperismo e a consciência do proletariado, do mesmo modo aumenta, em proporção geométrica, a irreflexão inglesa.

Enfim é falso, efetivamente falso, que a burguesia alemã desconheça inteiramente a importância geral da revolta silesiana. Em várias cidades, os mestres artesãos procuram associar-se aos aprendizes. Todos os jornais liberais, os órgãos da burguesia liberal, estão repletos de referências à organização do trabalho, à reforma da sociedade, à crítica aos monopólios e à concorrência etc.. Tudo isso em conseqüência dos movimentos dos trabalhadores. Os jornais de Tréveris, Aquisgrana, Colônia, Wesel, Mannheim, Breslau e até de Berlim trazem freqüentemente artigos sociais facilmente compreensíveis, dos quais o "prussiano" pode até aprender alguma coisa. Mais ainda, em cartas da Alemanha se exprime constantemente o espanto diante da fraca resistência da burguesia contra as tendências e idéias sociais.

O prusiano - se tivesse maior familiaridade com a história dos movimentos sociais - teria formulado a sua pergunta ao contrário. Por que também a burguesia alemã vê na miséria parcial uma miséria relativamente tão universal? De onde provém a animosidade e o cinismo da burguesia política, de onde provém a falta de resistência e as simpatias da burguesia não-política para com o proletariado?

Vamos agora aos oráculos do "prussiano" sobre os trabalhadores alemães.

"Os Alemães pobres", graceja, "não são mais inteligentes do que os pobres alemães, quer dizer, não enxergam nada além do seu lar, da sua fábrica, do seu distrito; até agora toda a questão está ainda abandonada pela alma política que penetra em tudo".

Para poder comparar a situação dos trabalhadores alemães com a situação dos trabalhadores franceses e ingleses, o "prussiano" deveria comparar a primeira etapa, o início do movimento dos trabalhadores franceses e ingleses com o movimento alemão que começou agora. Mas ele negligencia isto. Deste modo, o seu raciocínio cai em obviedades, como essa de que a indústria na Alemanha ainda não está tão desenvolvida como na Inglaterra, ou então de que um movimento no seu início se apresenta diferente do que numa etapa posterior. Ele gostaria de falar das particularidades do movimento dos trabalhadores alemães. No entanto, não diz uma palavra a respeito desse assunto.

Que o "prussiano" se situe, pois, do ponto de vista correto. Verá que nenhuma das revoltas dos operários franceses e ingleses teve um caráter tão teórico e consciente como a revolta dos tecelões silesianos.

Lembre-se, antes de mais nada, a canção dos tecelões, aquela audaz palavra-de-ordem de luta na qual lar, fábrica e distrito não são mencionados uma vez sequer e na qual, pelo contrário, o proletariado proclama, de modo claro, cortante, implacável e poderoso, o seu antagonismo com a sociedade da propriedade privada. A revolta silesiana começa exatamente lá onde terminam as revoltas dos trabalhadores franceses e ingleses, isto é, na consciência daquilo que é a essência do proletariado. A própria ação traz este caráter superior. Não só são destruídas as máquinas, essas rivais do trabalhador, mas também os livros comerciais, os títulos de propriedade, e enquanto todos os outros movimentos se voltavam primeiramente contra o senhor da indústria, o inimigo visível, este movimento volta-se também contra o banqueiro, o inimigo oculto. Enfim, nenhuma outra revolta de trabalhadores ingleses foi conduzida com tanta coragem, reflexão e duração.

No que concerne à condição ou à capacidade cultural dos trabalhadores alemães em geral, remeto aos geniais escritos de Witilng, os quais, sob o aspecto teórico, muitas vezes ultrapassam o próprio Proudhon, embora permaneçam aquém dele no que se refere à forma. Onde poderia a burguesia - incluídos os seus filósofos e eruditos - exibir uma obra igual à de Weitilng: Garantien der Harmonie und Freiheit, relativa à emancipação da burguesia, à emancipação política? Caso se compare a insossa e tola mediocridade da literatura política alemã com essa enorme e brilhante estréia literária dos operários almães; caso se compare esse gigantesco calçado de criança do proletariado com a disforme pequenez do gasto calçado político da burguesia alemã, deve-se prognosticar para a Cinderela alemã uma figura de atleta. Deve-se admitir que o proletariado alemão é o teórico do proletariado europeu, assim como o proletariado inglês é o seu economista e o proletariado francês o seu político. Deve-se admitir que a Alemanha tem uma vocação tão clássica para a revolução social quanto é incapaz de uma revolução política. Com efeito, assim como a impotência da burguesia alemã é a impotência política da Alemanha, assim a disposição do proletariado alemão - ainda que prescindindo da teoria alemã - é a disposição social da Alemanha. A desproporção entre o desenvolvimento filosófico e o desenvolvimento político na Alemanha não é nenhuma anormalidade. É uma desproporção necessária. Somente no socialismo pode um povo filosófico encontrar a sua práxis correspondente e, portanto, somente no proletariado o elemento ativo da sua libertação.

Mas, nesse momento, não tenho nem tempo nem disposição para explicar ao "prussiano" a relação da "sociedade alemã" com a revolução social, e, a partir dela, de um lado a fraca reação da burguesia alemã contra o socialismo e, de outro, as excelentes disposições para o socialismo do proletariado alemão. Ma minha Introdução à crítica da filosofia do direito de Hegel (Deutsch-Franzosische Jahrbucher), ele encontrará os primeiros elementos para compreender esse fenômeno.

A inteligência dos alemães pobres está, portanto, em uma relação inversa com a inteligência dos pobres alemães. No entanto, pessoas para as quais qualquer assunto deve servir para exercícios públicos de estilo, vêem-se levadas, através dessa atividade formal, a um conteúdo equivocado, equivocado, por sua vez, imprime novamente à forma o selo da banalidade. Deste modo, a tentativa do "prussiano", em uma ocasião como essa das revoltas dos operários silesianos, de expressar-se na forma de antíteses, leva-o à maior antítese contra a verdade. A única tarefa de uma mente pensante e amiga da verdade frente à primeira explosão da revolta dos trabalhadores silesianos, não consistia em desempenhar o papel de pedagogo desse acontecimento, mas, pelo contrário, em estudar o seu caráter peculiar. Para isto, requer-se, antes de mais nada, uma certa perspicácia científica e um certo amor pela humanidade, ao passo que, para a outra operação, é suficiente uma fraseologia ligeira, embebida em uma complacência vazia.

Por que o "prussiano" julga com tanto desprezo os trabalhadores alemães? Porque ele acha que toda a questão - isto é, a questão da miséria dos operários - está abandonada "ainda até hoje" pela "alma política que penetra tudo". Eis como ele vai derramando o seu amor platônico pela alma política:

"No sangue e na incompreensão serão sufocadas todas as revoltas que explodem nesse desesperado isolamento dos homens da comunidade e de suas idéias dos princípios sociais; mas logo que a miséria tiver gerado o intelecto e o intelecto político dos alemães tiver descoberto as raízes da miséria social, então também na Alemanha esses acontecimentos serão percebidos como sintomas de uma grande mudança".

Permita-nos o "prussiano", antes de mais nada, uma observação estilística. Sua antítese está incompleta. Na primeira metade, diz-se: a miséria gera o intelecto e na segunda metade: o intelecto político descobre as raízes da miséria social. O intelecto simples, na primeira metade da antítese, torna-se, na segunda metade, um intelecto político, como a miséria simples da primeira metade da antítese torna-se, na segunda, uma miséria social. Por que motivo o nosso estilista tratou de maneira tão desigual as duas metades da antítese? Não creio que tenha notado isso. Vou mostrar-lhe o seu verdadeiro instinto. Se o "prussiano" tivesse escrito: "A miséria social gera o intelecto político e o intelecto político descobre as raízes da miséria social", nenhum leitor atento teria deixado de perceber a falta de sentido dessa antítese. Todo mundo se teria perguntado, antes de mais nada, por que o anônimo não opõe o intelecto social à miséria social e o intelecto político à miséria política, como manda a lógica mais elementar. Mas vamos ao que interessa!

Tão falso é que a miséria social gere o intelecto político, como mais verdadeiro é antes o contrário, isto é, que o bem-estar social gera o intelecto político. O intelecto político é um espiritualista e é concedido a quem já possui e desfruta das comodidades. Que o nosso "prussiano" ouça, a esse propósito, um economista francês, o senhor Michel Chevalier:

"No ano de 1789, quando a burguesia se sublevou, para ser livre faltava-lhe apenas a participação no governo do país. Para ela, a libertação consistiu em arrebatar das mãos dos privilegiados que tinham o monopólio dessas funções, a direção dos negócios públicos, as mais altas funções civis, militares e religiosas. Sendo rica e ilustrada, podendo bastar-se e dirigir-se a si mesma, ela queria subtrair-se ao régime du bon plaisir".

Já demonstramos ao "prussiano" quanto o intelecto político é incapaz de descobrir a fonte da miséria social. Apenas mais uma palavra sobre essa sua concepção. Quanto mais evoluído e geral é o intelecto político de um povo tanto mais o proletariado - pelo menos no início do movimento - gasta suas forças em insensatas e inúteis revoltas sufocadas em sangue. Uma vez que ele pensa na forma da política, vê o fundamento de todos os males na vontade e todos os meios para remediá-los na violência e na derrocada de uma determinada forma de Estado. Demonstração: as primeiras revoltas do proletariado francês. Os operários de Lyon julgavam perseguir apenas fins políticos, ser apenas soldados do socialismo. Deste modo, o seu intelecto político lhes tornou obscuras as raízes da miséria social, falseou o conhecimento dos seus objetivos reais e, deste modo, o seu intelecto político enganou o seu instinto social.

Mas se o "prussiano" acha que a miséria gera o intelecto, por que então coloca junto os "sufocamentos no sangue" e os "sufocamentos na incompreensão"? Se a miséria é, em geral, um meio, a miséria sangrenta será então um meio muito agudo para gerar a compreensão. Portanto, o "prussiano" deveria ter dito: o sufocamento em sangue sufocará a incompreensão e trará à compreensão uma oportuna lufada de ar.

O "prussiano" prognostica o sufocamento das revoltas que irrompem no "desesperado isolamento dos homens da comunidade e na separação de suas idéias dos princípios sociais".

Já demonstramos que a revolta silesiana de modo nenhum se realizou num estado de separação entre as idéias e os princípios sociais. Temos agora que nos haver com o "desesperado isolamento dos homens da comunidade". Por comunidade se deve entender aqui a comunidade política, o Estado. É sempre a velha cantilena da não-politicidade da Alemanha.

Por acaso não rebentam todas as revoltas, sem exceção, no desesperado isolamento do homem da comunidade? Será que qualquer revolta não supõe necessariamente esse isolamento? Teria havido a revolução de 1789 sem o desesperado isolamento dos cidadãos franceses da comunidade? Ela estava destinada exatamente a suprimir esse isolamento.

Mas a comunidade da qual o trabalhador está isolado é uma comunidade inteiramente diferente e de uma outra extensão que a comunidade política. Essa comunidade, da qual é separado pelo seu trabalho, é a própria vida, a vida física e espiritual, a moralidade humana. A essência humana é a verdadeira comunidade humana. E assim como o desesperado isolamento dela é incomparavelmente mais universal, insuportável, pavoroso e contraditório, do que o isolamento da comunidade política, assim também a supressão desse isolamento e até uma reação parcial, uma revolta contra ele, é tanto mais infinita quanto infinito é o homem em relação ao cidadão e a vida humana em relação à vida política. Deste modo, por mais parcial que seja uma revolta industrial, ela encerra em si uma alma universal; e por mais universal que seja a revolta política, ela esconde, sob as formas mais colossais, um espírito estreito.

O "prussiano" fecha dignamente o seu artigo com esta frase:

"Uma revolução social sem alma política (isto é, sem uma visão organizativa do ponto de vista da totalidade), é impossível".

É óbvio. Uma revolução social se situa do ponto de vista da totalidade porque - mesmo que aconteça apenas em um distrito industrial - ela é um protesto do homem contra a vida desumanizada, porque parte do ponto de vista do indivíduo singular real, porque a comunidade, contra cuja separação o indivíduo reage, é a verdadeira comunidade do homem, é a essência humana. Ao contrário, a alma política de uma revolução consiste na tendência das classes politicamente privadas de influência a superar o seu isolamento do Estado e do poder. O seu ponto de vista é aquele do Estado, de uma totalidade abstrata, que subsiste apenas através da separação da vida real, que é impensável sem o antagonismo organizado entre a idéia geral e a existência individual do homem. Por isso, uma revolução com alma política organiza também, de acordo com a natureza limitada e discorde dessa alma, um círculo dirigente na sociedade às custas da sociedade.

Gostaríamos de confidenciar ao "prussiano" o que é "uma revolução social com uma alma política"; com isso também lhe revelamos o segredo de porque ele não consegue, mesmo nos seus torneios estilísticos, elevar-se para além do limitado ponto de vista político.

Uma revolução "social" com uma alma política ou é um completo absurdo, se o "prussiano entende por revolução "social" uma revolução "social" contraposta a uma revolução política e apesar de tudo confere à revolução social uma alma política, além de social, ou, então, uma "revolução social com uma alma política" não é mais do que uma paráfrase do que já se chamou uma "revolução política" ou "simplesmente uma revolução". Toda revolução dissolve a velha sociedade; neste sentido é social. Toda revolução derruba o velho poder; neste sentido é política.

Que o "prussiano" escolha entre a paráfrase e o absurdo! Contudo, se é parafrásico ou absurdo uma revolução social com uma alma política, é racional, ao contrário, uma revolução política com uma alma social. A revolução em geral - a derrocada do poder existente e a dissolução das velhas relações - é um ato político. Por isso, o socialismo não pode efetivar-se sem revolução. Ele tem necessidade desse ato político na medida em que tem necessidade da destruição e da dissolução. No entanto, logo que tenha início a sua atividade organizativa, logo que apareça o seu próprio objetivo, a sua alma, então o socialismo se desembaraça do seu revestimento político.

Toda essa prolixidade foi necessária para rasgar o tecido de erros que se esconde em apenas uma coluna de jornal. Nem todos os leitores podem ter a cultura e o tempo necessários para perceber uma tal charlatanice literária. Não tem, portanto, o "prussiano", diante do público leitor, o dever de renunciar momentaneamente a qualquer atividade de escritor no campo político e social, bem como às declamações sobre a situação da Alemanha, e de começar um consciencioso exame da sua própria situação?






A Questão Judaica - Karl Marx

Texto extraído do site: http://www.marxists.org/portugues/marx/1843/questaojudaica.htm

I

Bruno Bauer, A Questão judaica (Die Juden frage).

Braunschweig, 1843.

Os judeus alemães aspiram emancipar-se. A que emancipação aspiram? A emancipação civil, à emancipação política.

Bruno Bauer os contesta: Na Alemanha, ninguém está politicamente emancipado. Nós mesmos carecemos de liberdade. Como vamos, então, libertar-vos? Vós, judeus, sois egoístas quando exigis uma emancipação especial para vós, como judeus. Como alemães, devíeis trabalhar pela emancipação política da Alemanha; como homens, pela emancipação humana. Ao invés de sentir o tipo especial de vossa opressão e de vossa ignomínia como uma exceção à regra, devíeis, pelo contrário, senti-lo como a confirmação desta.

Ou, o que exigem os judeus é, por acaso, que se lhes equipare aos súditos cristãos? Se assim é, reconhecem a legitimidade do Estado cristão, reconhecem o regime de sujeição geral. Por que, então, lhes desagrada o jugo especial, se lhes agrada o jufo geral? Por que se há de interessar o alemão pela emancipação do judeu, se este não se interessa pela emancipação daquele?

O Estado cristão só conhece privilégios. O judeu possui o privilégio de ser judeu. Tem, como judeu, direitos que os cristãos carecem. Por que aspira a direitos que não possui e que os cristãos desfrutam?

Ao pretender a emancipação do Estado cristão, o judeu exige que o Estado cristão abandone seu preconceito religioso. Por acaso ele abandona o seu? Tem, assim, o direito de exigir dos outros que abdiquem de sua religião?

O Estado cristão não pode, sem abrir mão de sua essência, emancipar os judeus, assim como - acrescenta Bauer – o judeu não pode, . . . abrir mão de sua essência, ser emancipado. Enquanto o Estado permanecer cristão e o judeu, judeu, ambos serão igualmente incapazes: um de outorgar a emancipação, o outro de recebê-la.

O Estado cristão só pode conduzir-se à sua própria maneira diante do judeu, isto é, como Estado cristão, segregando os judeus dentre os demais súditos, fazendo com que este sinta a pressão das outras esferas mantidas aparte, que a sinta com tanto mais força quanto maior o antagonismo religioso do judeu em face da religião dominante. Por sua vez, tampouco pode o judeu conduzir-se com relação ao Estado senão à maneira judaica, ou seja, como um estranho ao Estado, opondo à nacionalidade real sua nacionalidade quimérica e à lei real sua lei ilusória, crendo-se com o direito de manter-se à margem da humanidade, a não participar, por princípio, do movimento histórico, a aferrar-se à esperança de um futuro que nada tem a ver com o futuro geral do homem, considerando-se membro do povo hebraico, que reputa eleito.

A título de que, então, aspirais à emancipação? Em virtude de vossa religião? Esta é a inimiga mortal da religião do Estado. Como cidadãos? Na Alemanha não se conhece a cidadania. Como homens? Não sois semelhantes homens, como tampouco o são aqueles a quem apelais.

Bauer coloca, em termos novos, o problema da emancipação dos judeus, depois de nos brindar com a crítica das formulações e soluções anteriores do problema. Isto é, pergunta-se, a natureza do judeu a quem se trata de emancipar e a do Estado, que há de emancipá-lo? Contesta com uma crítica da religião hebraica, analisa a antítese religiosa entre o judaísmo e o cristianismo e esclarece a essência do Estado cristão, tudo isto com audácia, sutileza, espírito e profundidade e com um estilo tão preciso quanto substancioso e enérgico.

Como, então, resolve Bauer a questão judaica? Qual o resultado? Formular um problema é resolvê-lo. crítica da questão judaica é a resposta a esta formulação. E resultado, resumido, os seguinte.:

Antes de poder emancipar os outros, precisamos emancipar-nos.

A forma mais rígida da antítese entre o judeu e o cristão é a antítese religiosa. Como se resolve uma antítese? Tornando-a impossível. E como se torna impossível uma antítese religiosa? Abolindo a religião. Tão logo o judeu e o cristão reconheçam que suas respectivas religiões nada mais são do que fases diferentes do desenvolvimento do espírito humano, diferentes peles de serpente com que cambiou a história, sendo o homem a serpente que muda de pele em cada uma destas fases, já não se enfrentarão mais num plano religioso, mas somente no plano crítico, científico, num plano humano. A ciência será, então, sua unidade. E, no plano científico, a própria ciência se encarrega de resolver as antíteses.

O judeu alemão enfrenta, de fato, a carência de emancipação política em geral e a assim chamada cristandade do Estado. Para Bauer, a questão judaica tem, contudo, um alcance geral, independentemente das condições alemãs específicas. Trata-se das relações entre a religião e o Estado, da contradição entre as cadeias religiosas e a emancipação política. A emancipação da religião se coloca como condição, tanto para o judeu que se quer emancipar politicamente, como para o Estado que o emancipa e deve, ao mesmo tempo, ser emancipado.

"Bem, diz-se, - e o próprio judeu o confirma - o judeu deve ser emancipado, não como judeu, pelo fato de ser judeu, não porque professe um princípio geral tão excelente de moral humana; o judeu, como tal, passará a segundo plano: primeiro será cidadão. E será cidadão apesar da condição de judeu e de permanecer judeu, isto é, será e permanecerá judeu apesar de cidadão e de viver num contexto de relações humanas gerais: sua essência judaica e limitada continuará a triunfar sempre sobre seus deveres humanos e políticos. Prevalecerá o preconceito, ainda que predominem os princípios gerais. Todavia, predominando o preconceito, ele dominará tudo mais". "O judeu só pode permanecer na vida política por um sofisma; por conseguinte, se quisesse permanecer judeu, o sofisma seria o essencial e o que afinal haveria de triunfar, isto é, sua vida política seria mera aparência ou exceção momentânea frente à essência e à regra" (Die Fdhigkeit der heutigen luden und Christen, frei zu werden, p. 57)

Vejamos, por outro lado, em que forma coloca função do Estado:

"A França nos tem oferecido recentemente (debates sustentados na Câmara dos Deputados a 26 de dezembro de 1840), com relação à questão judaica - como, constantemente, em todas as demais questões políticas (desde a revolução de julho) - o espetáculo de uma vida livre, restringindo, porém, esta liberdade à letra jurídica, isto é, declarando-a simples formalidade, ao mesmo tempo em que refuta suas leis libertárias com fatos que são a sua própria negação" (Die ludenfrage, p. 64).

"Na França, a liberdade geral não chega a ser lei, a questão judaica ainda não foi tampouco resolvida, porque a liberdade legal - a norma de que todos os cidadãos são iguais - vê-se restringida na realidade, dominada e cindida pelos privilégios religiosos e esta falta de liberdade repercute sobre a lei e a obriga a sancionar a divisão dos cidadãos livres em oprimidos e opressores" (p. 65) .

Quando, então, se resolveria para a França a questão judaica?

"O judeu, por exemplo, deixaria de ser judeu se sua lei não o impedisse cumprir seus deveres para com o Estado e seus concidadãos, de ir, por exemplo, à Câmara dos Deputados e tomar parte nas deliberações públicas em dia de sábado. Seria preciso abolir todo privilégio religioso em geral, incluindo, portanto, o monopólio de uma igreja privilegiada e quando um, vários ou mesmo a grande maioria se acreditasse na obrigação de cumprir seus deveres religiosos, o cumprimento desses deveria ficar a seu próprio arbítrio, como assunto exclusivamente privado" (p. 65). "Quando já não houver religiões privilegiadas, a religião terá deixado de existir. Se suprimirmos da religião sua força de exclusão, já não haverá religião" (p. 66). "Do mesmo modo que o senhor Martin du Nord considera a proposta encaminhada para suprimir da lei a menção do domingo como uma proposta que visa a declarar que o cristianismo deixou de existir, com o mesmo direito (direito perfeitamente justificado) a declaração de que a lei sabática já não tem força de obrigação para o judeu, equivaleria a proclamar a abolição do judaísmo" (p. 97) .

Bauer exige, assim, que o judeu abandone o judaísmo e que o homem em geral abandone a religião, para ser emancipado como cidadão. E, por outro lado, considera a abolição política da religião como abolição da religião em geral. O Estado que pressupõe a religião não é um verdadeiro Estado, um Estado real.

"É certo que a crença religiosa oferece garantias ao Estado; mas, a que Estado? A que tipo de Estado?" (p. 97).

Neste ponto, manifesta-se claramente o caráter unilateral da formulação da questão judaica.

Não se trata de investigar, apenas, quem há de emancipar e quem deve ser emancipado. A crítica tem que indagar-se, além disso, outra coisa: de que espécie de emancipação se trata; quais as condições implícitas da emancipação que se postula. A própria crítica da emancipação política era, de rigor, a crítica final da questão judaica e sua verdadeira dissolução no "problema geral da época".

Bauer incorre em contradições, por não trazer o problema para este nível. Apresenta condições que não se fundamentam na essência da própria emancipação política. Formula perguntas que não envolvem seu problema e resolve outros que deixam sua pergunta sem contestação. Ao se referir aos adversários da emancipação dos judeus, Bauer diz textualmente que "seu erro consistia somente em partir do pressuposto do Estado cristão como o único verdadeiro e de não submetê-lo à mesma crítica que dirigiam ao judaísmo" (p. 3). Verificamos, aqui, que o erro de Bauer reside em concentrar sua crítica somente no "Estado cristão", ao invés de ampliá-la para o "Estado em geral". Bauer não investiga a relação entre a emancipação política e a emancipação humana, fato que o faz apresentar condições que só se podem explicar pela confusão isenta de espírito crítico entre emancipação política e emancipação humana em geral. A pergunta de Bauer, dirigida aos judeus: "Tendes, do vosso ponto de vista, direito a aspirar à emancipação política?", opomos o inverso: "Terá o ponto de vista da emancipação política direito a exigir do judeu a abolição do judaísmo e, do homem em geral, a abolição da religião?"

A questão judaica, dependendo do Estado em que vive o judeu, apresenta uma fisionomia diferente. Na Alemanha, onde não existe um Estado político, um Estado como tal, a questão judaica assume uma conotação puramente teológica. O judeu está em contraposição religiosa com o Estado que tem por fundamento o cristianismo. Este Estado é um teólogo ex professo. A crítica, aqui, é a crítica da teologia, uma crítica que se desdobra em duas: em crítica da teologia cristã e em crítica da teologia hebraica. Porém, aqui, continuamos a nos mover dentro dos marcos da teologia, por mais que estejamos certos de atuar criticamente dentro deles.

Na França, no Estado constitucional, a questão judaica é o problema do constitucionalismo, o problema de meia emancipação política. Ao conservar aqui a aparência de uma religião de Estado, ainda que sob uma capa fútil e contraditória consigo mesma, à maneira de religião da maioria, a atitude dos judeus diante do Estado conserva a aparência de uma contraposição religiosa, teológica.

Só nos Estados livres da América do Norte - ou, pelo menos, em parte deles - perde a questão judaica seu sentido teológico para converter-se em verdadeira questão secular. Somente ali, onde existe o Estado político plenamente desenvolvido pode manifestar-se em sua peculiaridade, em sua pureza, o problema da atitude do judeu e, em geral, do homem religioso, diante do Estado político. A crítica desta atitude deixa de ser uma crítica teológica tão logo o Estado deixe de se conduzir de modo teológico em face da religião, tão logo passe a se conduzir como Estado diante dela, isto é, politicamente. E, neste ponto, onde a questão deixa de ser teológica, deixa a crítica de Bauer de ser crítica. "Il n'existe aux Êtats-Unis ni religion déclarée celle de Ia majorité, ni préeminence d'un cultè sur un autre. L'État est étranger à tous les cintes" (1) (Marfe ou !'esclavage aux Êtats-Unis, etc., par G. de Beaumont, Paris, 1835, p. 214). E ainda mais, existem alguns Estados norte-americanos nos quais "la constitution n'impose pas les croyances religieuses et Ia pratique d'un culte comme condition des privilèges politiques" (2) (obra citada, p. 225). Não obstante, "on ne croit pas aux Êtats-Unis qu'on homme sans religion puisse être un honnête homme" (3) (obra citada, p. 224) . Assim, a América do Norte se apresenta como o país da religiosidade, tal qual nos asseguram unanimemente Beaumont, Tocqueville e o inglês Hamilton. Os Estados norte-americanos nos servem, apesar disto, somente de exemplo. O problema está em saber como se conduz a emancipação política acabada em face da religião. Se até num país de emancipação política acabada nos deparamos não só com a existência da religião mas, também, com a sua existência exuberante e vital, temos nisto a prova de que a existência da religião não se opõe à perfeição do Estado. Todavia, como a existência da religião é a existência de um defeito, não podemos continuar buscando a fonte desse defeito somente na essência do Estado. A religião já não constitui, para nós, o fundamento; apenas e simplesmente, constitui o fenômeno da limitação secular. Explicamos, portanto, as cadeias religiosas dos cidadãos livres por suas cadeias seculares. Não afirmamos que devam acabar com a limitação religiosa para poder destruir suas barreiras seculares. Afirmamos que acabam com a limitação religiosa ao destruir suas barreiras temporais. Não convertemos problemas seculares em problemas teológicos. Depois da história estar mergulhada na superstição durante séculos, dissolvemos a superstição da história. O problema das relações da emancipação política com a religião converte-se, para nós, no problema das relações da emancipação ,política com a emancipação humana. Criticamos a debilidade. religiosa do Estado político ao submetê-lo à crítica, prescindindo das debilidades religiosas de sua estrutura secular. Humanizamos a contradição do Estado com uma determinada religião, por exemplo o judaísmo, vendo nela a contradição do Estado com determinados elementos seculares, humanizamos a contradição do Estado com a religião em geral, vendo nela a contradição do Estado com suas premissas em geral.

A emancipação política do judeu, do cristão e do homem religioso em geral é a emancipação do Estado do judaísmo, do cristianismo e, em geral, da religião. De modo peculiar à sua essência, como Estado, o Estado se emancipa da religião ao emancipar-se da religião de Estado, isto é, quando o Estado como tal não professa nenhuma religião, quando o Estado se reconhece muito bem como tal. A emancipação política da religião não é a emancipação da religião de modo radical e isento de contradições, porque a emancipação política não é o modo radical e isento de contradições da emancipação humana.

O limite da emancipação política manifesta-se imediatamente no fato de que o Estado pode livrar-se de um limite sem que o homem dele se liberte realmente, no fato de que o Estado pode ser um Estado livre sem que o homem seja um homem livre. E o próprio Bauer reconhece isto tacitamente quando estabelece a seguinte condição para a emancipação política: "Todo privilégio religioso em geral, incluindo, por conseguinte, o monopólio de uma igreja privilegiada, deveria ser abolido; se alguns, vários ou mesmo a grande maioria se acreditasse na obrigação de cumprir seus deveres religiosos, o cumprimento destes deveria ficar a seu próprio arbítrio, como assunto exclusivamente privado". Portanto, o Estado pode ter-se emancipado da religião, ainda que e inclusive, a grande maioria continue religiosa. E a grande maioria não deixará de ser religiosa pelo fato da sua religiosidade ser algo puramente privado.

Porém, a atitude do Estado em face da religião - e nos referimos aqui ao Estado livre - é a atitude diante da religião dos homens que formam o Estado. Donde se conclui que o homem se liberta por meio do Estado; liberta-se politicamente de uma barreira ao se colocar em contradição consigo mesmo, ao sobrepor esta barreira de modo abstrato e limitado, de um modo parcial. Deduz-se, além disso, que ao emancipar-se politicamente, o homem o faz por meio de um subterfúgio, através de um meio, mesmo que seja um meio necessário. Conclui-se, finalmente, ainda quando se proclame ateu por mediação dó Estado, isto é, proclamando o Estado ateu, o homem continua sujeito às cadeias religiosas, precisamente porque só se reconhece a si mesmo mediante um subterfúgio, através de um meio. A religião é, cabalmente, o reconhecimento do homem através de um mediador. O Estado é o mediador entre o homem e a sua liberdade. Assim como Cristo é o mediador sobre quem o homem descarrega toda sua divindade, toda sua servidão religiosa, assim também o Estado é o mediador para o qual desloca toda sua não-divindade, toda sua não-servidão humana.

A ascensão política do homem acima da religião partilha de todos os inconvenientes e de todas as vantagens da ascensão política em geral. O Estado como tal, anula, por exemplo, a propriedade privada. O homem declara abolida a propriedade privada de modo político quando suprime o aspecto riqueza (4) para o direito de sufrágio ativo e passivo, como já se fez em muitos Estados norte-americanos. Hamilton interpreta com toda exatidão este fato, do ponto de vista político, ao dizer: "A grande massa triunfou sobre os proprietários e o poder do dinheiro". Acaso não se suprime idealmente a propriedade privada quando o despossuído se converte em legislador dos que possuem? O aspecto riqueza é a última forma política de reconhecimento da propriedade privada.

Não obstante, a anulação política da propriedade privada, ao contrário e longe de destruir a propriedade privada, a pressupõe. O Estado anula, a seu modo, as diferenças de nascimento, de status social, de cultura e de ocupação, ao declarar o nascimento, o status social, a cultura e a ocupação do homem como diferenças não políticas, ao proclamar todo membro do povo, sem atender a estas diferenças, co-participante da soberania popular em base de igualdade, ao abordar todos os elementos da vida real do povo do ponto de vista do Estado. Contudo, o Estado deixa que a propriedade privada, a cultura e a ocupação atuem a seu modo, isto é, como propriedade privada, como cultura e como ocupação, e façam valer sua natureza especial. Longe de acabar com estas diferenças de fato, o Estado só existe sobre tais premissas, só se sente como Estado político e só faz valer sua generalidade em contraposição a estes elementos seus. Por isto Hegel determina, com toda exatidão, a atitude do Estado político em face da religião, ao salientar: "Para que o Estado adquira existência como realidade moral do espírito que se conhece a si mesma, é necessário que se distinga da forma da autoridade e da fé; esta distinção só se manifesta na medida em que o lado eclesiástico chega a separar-se em si mesmo; somente assim, sobre igrejas especiais, o Estado adquire e leva à existência a generalidade do pensamento, o princípio de sua forma" (Hegel, Rechtsphilosophie, 1ª, ed., p. 346) . Com efeito, só assim, acima dos elementos especiais, o Estado se constitui como generalidade.

O Estado político acabado é, pela própria essência, a vida genérica do homem em oposição a sua vida material. Todas as premissas desta vida egoísta permanecem de pé à margem da esfera estatal, na sociedade civil, porém, como qualidade desta. Onde o Estado político já atingiu seu verdadeiro desenvolvimento, o homem leva, não só no plano do pensamento, da consciência, mas também no plano da realidade, da vida, uma dupla vida: uma celestial e outra terrena, a vida na comunidade política, na qual ele se considera um ser coletivo, e a vida na sociedade civil, em que atua como particular; considera outros homens como meios, degrada-se a si próprio como meio e converte-se em joguete de poderes estranhos. O Estado político conduz-se em relação à sociedade civil de modo tão espiritualista como o céu em relação à terra. Acha-se, com relação a ela, em contraposição idêntica e a supera do mesmo modo que a religião, que a limitação do mundo profano, isto é, reconhecendo-a também de novo, restaurando-a e deixando-se necessariamente dominar por ela. O homem, em sua realidade imediata, na sociedade civil, é um ser profano. Aqui, onde passa ante si mesmo e frente aos outros por um indivíduo real, é uma manifestação carente de verdade. Pelo contrário, no Estado, onde o homem é considerado como um ser genérico, ele é o membro imaginário de uma soberania imaginária, acha-se despojado de sua vida individual real e dotado de uma generalidade irreal.

O conflito entre o homem, como crente de uma religião especial e sua cidadania, e os demais homens enquanto membros da comunidade, reduz-se ao divórcio secular entre o Estado político e a sociedade civil. Para o homem, como bourgeois, "a vida política é só aparência ou exceção momentânea da essência e da regra". É certo que o bourgeois, assim como o judeu, só permanece na vida política por um sofisma, do mesmo modo que o citoyen só por sofisma permanece judeu ou bourgeois. Mas esta sofística não é pessoal. É a sofistica do próprio Estado político. A diferença entre o homem religioso e o cidadão é a diferença entre o comerciante e, .q cidadão, entre o trabalhador e o cidadão, entre o latifundiário e o cidadão, entre o indivíduo vivendo e o cidadão. A contradição entre o homem religioso e o homem político é a mesma contradição que existe entre o bourgeois e o citoyen, entre o membro da sociedade burguesa e sua aparência política.

Bauer ignora a luta secular a que se reduz, em última análise, a questão judaica, isto é, a relação entre o Estado político e suas premissas, sejam estas elementos materiais, como a propriedade privada, etc., ou elementos espirituais, como a cultura e a religião; desconhece a luta entre o interesse geral e o interesse particular, o divórcio entre o Estado político e a sociedade burguesa: deixa de pé estas antíteses seculares, limitando-se a polemizar contra sua expressão religiosa. "É justamente o seu fundamento, a necessidade que assegura à sociedade burguesa sua existência e garante sua necessidade, que vai expor sua existência a perigos constantes, nutrir nela um elemento inseguro e provocar uma fusão sujeita a mudanças constantes de pobreza e de riqueza, de penúria e de prosperidade, que provocam a mudança em geral" (p. 8) .

Confronte-se todo o capítulo "A Sociedade Civil" (p. 8-9), escrito de conformidade com os princípios gerais da Filosofia do Direito de Hegel. A sociedade civil, em contraposição ao Estado político, se reconhece como necessária porque o Estado político se reconhece como tal.

Não há dúvida que a emancipação política representa um grande progresso. Embora não seja a última etapa da emancipação humana em geral, ela se caracteriza como a derradeira etapa da emancipação humana dentro do contexto do mundo atual. É óbvio que nos referimos à emancipação real, à emancipação prática.

O homem se emancipa politicamente da religião ao bani-Ia do direito público para o direito privado. A religião já não é o espírito do Estado, onde o homem - ainda que de modo limitado, sob uma forma especial e numa esfera especial - comporta-se como ser genérico, em comunidade com os outros homens; ela se converte, agora, no espírito da sociedade burguesa, da esfera do egoísmo, no espírito do bellum omnium contra omnes (5) Já não é a essência da comunidade, mas a essência da diferença. Converteu-se na expressão da separação do homem de sua comunidade, de si mesmo e dos outros homens, daquilo que foi em suas origens. Não é mais do que a confissão abstrata da inversão especial, do capricho particular, da arbitrariedade. A infinita dispersão da religião na América do Norte, por exemplo, já lhe dá exteriormente a forma de incumbência individual. A religião se viu pressionada a baixar ao nível dos interesses particulares e desterrada da comunidade como tal. Porém, não nos deixemos enganar sobre as limitações da emancipação política. A cisão do homem na vida pública e na vida privada, o deslocamento da religião em relação ao Estado, para transferi-la à sociedade burguesa, não constitui uma fase, mas a consagração da emancipação política, a qual, por isso mesmo, não suprime nem tem por objetivo suprimir a religiosidade real do homem.

A desintegração do homem no judeu e no cidadão, no protestante e no cidadão, no homem religioso e no cidadão, não é uma mentira contra a cidadania, não é a evasão da emancipação política; representa, isto sim, a própria emancipação política, o modo político de emancipação da religião. É certo que nas épocas em que o Estado político nasce violentamente, como tal, do seio da sociedade burguesa, quando a auto-emancipação humana aspira realizar-se sob a forma de auto-emancipação política, o Estado pode e deve ir até à abolição da religião, até sua destruição, assim como vai até à abolição da propriedade privada, das taxas exorbitantes, do confisco, do imposto progressivo, à abolição da vida, à guilhotina. A vida política trata de esmagar - nos momentos de seu amor próprio especial - aquilo que é a sua premissa, a sociedade burguesa e seus elementos, e a constituir-se na vida genérica real do homem, isenta de contradições. Só pode consegui-lo, todavia, mediante contradições violentas com suas próprias condições de vida, declarando permanente a revolução; o drama político termina, por conseguinte, não menos necessariamente, com a restauração da religião, da propriedade privada, de todos os elementos da sociedade burguesa, do mesmo modo que a guerra termina com a paz.

Não é, com efeito, o chamado Estado cristão, que professa o cristianismo e o tem por fundamento, como religião de Estado e adota, por conseguinte, uma atitude de exclusão diante das outras religiões, o Estado cristão em sua forma acabada; esta forma acabada se adequa muito mais ao Estado ateu, ao Estado democrático, ao Estado que relega a religião entre os demais elementos da sociedade burguesa. O Estado teológico, que ainda mantém em caráter oficial a profissão de fé no cristianismo, que ainda não se atreve a proclamar-se como Estado, não consegue expressar de forma secular, humana, em sua realidade como Estado, o fundamento humano cuja expressão superabundante é o cristianismo. O chamado Estado cristão é, só e simplesmente, o não-Estado pois não é possível realizar em criações verdadeiramente humanas o cristianismo como religião mas, tão-somente, o fundamento humano da religião cristã.

O chamado Estado cristão é a negação cristã do Estado, mas, de modo algum, a realização estatal do cristianismo. O Estado que continua a professar o cristianismo sob a forma de religião não o professa sob a forma de Estado, pois conduz-se religiosamente diante da religião; noutras palavras, não é a execução real do fundamento humano da religião, é o apelo à irrealidade, à forma imaginária deste produto humano. O chamado Estado cristão é o Estado imperfeito deste produto humano. O chamado Estado cristão é o Estado imperfeito e a religião cristã serve de complemento e de instrumento de santificação desta imperfeição. A religião se converte para ele, portanto e necessariamente, num meio; este é o Estado da hipocrisia. Há uma grande diferença em o Estado acabado contar a religião entre suas premissas, em razão de deficiência implícita na essência geral do Estado, e o fato do Estado imperfeito declarar a religião como seu fundamento, em razão da deficiência que sua existência especial traz consigo, como Estado imperfeito. No segundo caso, a religião se converte em política imperfeita. No primeiro, imputa-se à religião a própria imperfeição da política acabada. O chamado Estado cristão necessita da religião cristã para aperfeiçoar-se como Estado. O Estado democrático, real, não necessita da religião para seu aperfeiçoamento político. Pode, ao contrário, prescindir desta, já que nele o fundamento humano da religião se realiza de modo secular. O chamado Estado cristão, por sua vez, conduz-se politicamente em face da religião e religiosamente diante da política. E, ao degradar as formas de Estado a mera aparência, degrada igualmente a religião a simples aparência.

Para explicar esta antítese, examinemos a construção baueriana do Estado cristão, construção nascida da contemplação do Estado cristão-germânico.

"Ultimamente - diz Bauer - para demonstrar a impossibilidade ou a inexistência de um Estado cristão, costuma-se invocar aquelas sentenças evangélicas de que o Estado (atual) "não só não acata, como também não pode acatar, se não quiser dissolver-se totalmente" (como Estado). Porém, isto não se resolve tão facilmente. "Que postulam estas sentenças bíblicas? A negação sobrenatural de si mesmo, a submissão à autoridade e à revelação, a repulsa do Estado, a abolição das relações seculares. Pois bem, tudo isto é o que postula e pratica o Estado cristão. Este Estado assimilou o espírito do evangelho e, se não o predica com as mesmas palavras é, simplesmente, porque este espírito se manifesta sob formas estatais, isto é, sob formas que, embora tomadas da natureza do Estado e do inundo, ficam reduzidas a mera aparência no renascimento religioso que são obrigadas a experimentar. Este Estado é a repulsa da instituição que se realiza sob formas estatais".

E, em continuação, Bauer desenvolve o critério de que o povo do Estado cristão nada mais é do que um não-povo no caudilho a que se encontra submetido. Este, contudo, por sua origem e natureza, lhe é completamente estranho, isto é, foi instituído por Deus e se coloca à frente dele, sem intervenção sua, do mesmo modo que as leis deste povo não são obra sua, mas revelações positivas; que seu chefe necessita de mediadores privilegiados para entender-se com o verdadeiro povo, com a massa; que a massa se rompe numa multiplicidade de círculos especiais formados e determinados ao acaso, distintos entre si pela natureza de seus interesses, paixões especiais e preconceitos, que recebem como privilégio a autorização de discernir uns dos outros, etc. (p. 56).

Contudo, diz ainda o mesmo Bauer:

"A política deixa de ser política quando já não deseja suplantar a religião, da mesma forma que não podemos considerar como assunto doméstico o ato de lavar panelas, se este for considerado rito religioso" (p. 108).

Pois bem, no Estado cristão-germânico, a religião é "assunto doméstico", do mesmo modo que os "assuntos domésticos" assumem a forma de religião. No Estado cristão-germânico, o poder da religião é a religião do poder.

Separar o "espírito do evangelho" da "letra do evangelho" é um ato irreligioso. O Estado que faz da prédica evangélica sua letra política, outra letra que não a do Espírito Santo, comete sacrilégio aos olhos de sua própria religião, ainda que não o cometa aos olhos dos homens. Ao Estado que professa o cristianismo como norma suprema, que professa a Bíblia como Carta, deve-se-lhe opor as palavras da Sagrada Escritura, que é sagrada, como Escritura, até na letra. Este Estado, assim como o esterco humano em que repousa, incorre numa dolorosa contradição -insuperável do ponto de vista da consciência religiosa - quando se lhe atiram aquelas sentenças evangélicas de que "não só não acata, como também não pode acatar, se não quiser dissolver-se totalmente". E, por que não quer dissolver-se totalmente? Ele mesmo não pode contestar-se nem contestar os outros. Ante sua própria consciência, Estado oficial cristão é um vir-a-ser cuja realização resulta inexeqüível, que só logra comprovar a realidade de sua existência ao mentir a si mesmo e que, portanto, permanece ante si próprio como um objeto de dúvida, como um objeto inseguro, problemático. Por isto, a crítica tem todo o direito de obrigar o Estado que apela à Bíblia a reconhecer sua consciência deformada, já que nem ele mesmo sabe se é fantasia ou realidade, desde o momento em que a ignomínia de seus fins seculares, aos que a religião somente serve de capa, entram em contradição insolúvel com a honorabilidade de sua consciência religiosa, que vê na religião a finalidade do mundo. Este Estado só pode redimir-se de seu tormento interior convertendo-se em guardião da igreja católica. Diante dela, diante de uma igreja que considera o poder secular como seu braço armado, o Estado é impotente, impotente o poder secular que afirma ser o império do espírito religioso.

A alienação e não o homem rege, certamente, o chamado Estado cristão. O rei, único homem que aqui significa alguma coisa, é um ser especificamente distinto dos demais homens e, além disso, um r por si mesmo religioso, que se acha em relação direta com o céu, com Deus. Os vínculos que aqui imperam continuam a ser vínculos fundados na fé. Por conseguinte, o espírito religioso ainda não se secularizou realmente.

Todavia, o espírito religioso tampouco se pode secularizar realmente pois, o que é este espírito, senão a forma não-secular de um grau de desenvolvimento do espírito humano? O espírito religioso só pode vir a realizar-se na medida em que o grau de desenvolvimento do espírito humano, de que é a expressão religiosa, venha a destacar-se e a constituir-se em sua forma secular. O fundamento deste Estado não é o cristianismo, mas o fundamento humano do cristianismo. A religião continua a ser a consciência ideal, não-secular de seus membros, porque é a forma do grau humano de desenvolvimento que nele se processa.

Os membros do Estado político são religiosos pelo dualismo existente entre a vida individual e a vida genérica, entre a vida da sociedade burguesa e a vida política; são religiosos, na medida em que o homem se conduz, frente à vida do Estado, - que está muito além de sua individualidade real - como se esta fosse sua verdadeira vida; religiosos, na medida em que a religião, aqui, é o espírito da sociedade burguesa, a expressão do divórcio e do distanciamento do homem em relação no homem. A democracia política é cristã na medica em que nela o homem, não apenas um homem, mas todo homem, vale como um ser soberano, como ser supremo; porem, o nomem em sua manifestação não-cultivada e não-social, o homem em sua existência fortuita, o homem tal qual se levanta e anda, o homem tal qual se acha corrompido por toda a organização de nossa sociedade, perdido de si mesmo, alienado, entregue ao império de relações e elementos inumanos; numa palavra, o homem que ainda não é um ser genérico real. A imagem fantástica, o sonho, o postulado do cristianismo, a soberania do homem, porém como um ser estranho, distinto do homem real, esta é, na democracia, realidade sensível, presente, máxima secular.

Quanto mais a consciência religiosa carece, aparentemente, de sentido político, de fins terrenos, quanto mais for, aparentemente, incumbência do espírito retraído do mundo, expressão da limitação do entendimento, produto da arbitrariedade e da fantasia, quanto mais concentrada no além, tanto mais religiosa, tanto mais teológica ela é considerada na democracia acabada. Enquanto as concepções mais díspares do mundo agrupam-se umas junto às outras à maneira do cristianismo e, ainda mais, pelo fato de nem sequer se lhes fazer a exigência do cristianismo, mas apenas da religião em geral, o cristianismo adquire aqui a expressão prática de seu significado religioso-universal (cf. obra citada de Beaumont). A consciência religiosa recria-se na riqueza da antítese religiosa e da diversidade religiosa.

Vimos, portanto, como a emancipação política em relação à religião a deixa de pé, ainda que não se trate de uma religião privilegiada. A contradição em que se encontra o crente de uma determinada religião com sua cidadania nada mais é do que uma parte da contradição secular geral entre o Estado político e a sociedade burguesa. A consagração do Estado cristão reside na abstração da religião de seus membros, quando o Estado se professa como tal. A emancipação do Estado em relação à religião não é a emancipação do homem real em relação a esta.

Por isto, não dizemos aos judeus, como Bauer: não podeis emancipar-vos politicamente se não vos emancipais radicalmente do judaísmo. Ao contrário, dizemos: podeis emancipar-vos politicamente sem vos desvincular radical e absolutamente do judaísmo porque a emancipação política não implica emancipação humana. Quando vós, judeus, quereis a emancipação política sem vos emancipar humanamente, a meia-solução e a contradição não residem em vós, mas na essência e na categoria da emancipação política. E, ao vos perceber encerrados nesta categoria, lhes comunicais uma sujeição geral. Assim como o Estado evangeliza quando, apesar de já ser uma instituição, se conduz cristãmente frente aos judeus, do mesmo modo o judeu pontifica quando, apesar de já ser judeu, adquire direitos de cidadania dentro do Estado.

Mas, se o homem, embora judeu, pode emancipar-se politicamente, adquirir direitos de cidadania dentro do Estado, pode reclamar e obter os chamados direitos humanos? Bauer nega esta possibilidade. "O problema está em saber se o judeu, como tal, isto é, o judeu que se confessa obrigado por sua verdadeira essência a viver eternamente isolado dos outros, é capaz de obter e conceder aos outros os direitos gerais do homem".

"A idéia dos direitos humanos só foi descoberta no século passado. Não é uma idéia inata ao homem, mas este a conquistou na luta contra as tradições históricas em que o homem antes se educara. Os direitos humanos não são, por conseguinte, uma dádiva da natureza, um presente da história, mas fruto da luta contra o acaso do nascimento, contra os privilégios que a história, até então, vinha transmitindo hereditariamente de geração em geração. São o resultado da cultura; só pode possui-los aquele que os soube adquirir e merecê-los".
"Sendo assim, pode realmente o judeu chegar a possuir estes direitos? Enquanto permanecer judeu, a essência limitada que faz dele um judeu tem que triunfar necessariamente sobre a essência humana que, enquanto homem, o une aos demais homens e o dissocia dos que não são judeus. E, através desta dissociação, declara a essência especial que faz dele um judeu sua verdadeira essência suprema, diante da qual a essência humana tem que passar para segundo plano".
"E, do mesmo modo, não pode o cristão, como tal, conceder nenhuma espécie de direitos humanos" (p. 19-20).

Segundo Bauer, o homem tem que sacrificar o "privilégio da fé" se quiser obter os direitos gerais de homem. Detenhamo-nos, um momento, a examinar os chamados direitos humanos em sua forma autêntica, sob a forma que lhes deram seus descobridores norte-americanos e franceses. Eu parte, estes direitos são direitos políticos, direitos que só podem ser exercidos em comunidade com outros homens. Seu conteúdo é a participação na comunidade e, concretamente, na comunidade política, no Estado. Estes direitos se inserem na categoria de liberdade política, na categoria dos direitos civis, que não pressupõem, como já vimos, a supressão absoluta e positiva da religião nem, tampouco, portanto e por exemplo, do judaísmo. Resta considerar a outra parte dos direitos humanos, os droits de l'homme,(6) e como se distinguem dos droits du citoyen.(7)

Figura entre eles a liberdade de consciência, o direito de praticar qualquer culto. O privilégio da fé é expressamente reconhecido, seja como um direito humano, seja como conseqüência de um direito humano, da liberdade.

Déclaration des droits de 1'homme et du citoyen, (8) 1791, art. 10: "Nul ne droit inquieté pour ses opinions même religieuses" (9) E a parte I da Constituição de 1791 consagra como direito "La liberté à tout homme d'exercer le culte religieux auquel il est attaché". (10)

A Déclaration des droits de 1'homme, etc., 1795, inclui entre os direitos humanos, em seu art. 7: "Le libre exercice des cultes".(11) E mais ainda, no que tange ao direito de expressar pensamentos e opiniões em público, diz, inclusive, que "La nécessité d'enoncer ces droits suppose ou Ia présence ou le souvenir récent du despotisme". (12) Consulte-se, com relação a isto, a Constituição de 1795, parte XIV, art. 354.

Constitution de Pennsylvanie, art. 9, § 3º: "Tous les hommes ont reçu de Ia nature le droit imprescriptible d'adorer le Tout Puissant selon les inspirations de leur conscience, et nul ne peut légalment être en train de suivre, instituer ou soutenir contre son gré aucun culte ou ministère religieux. Nulle autorité humaine ne peut, das aucun cas, intervenir dans les questiona de conscience et contrôler les pouvoirs de l'ame". (13)

Constitution de New-Hampshire, arts. 5 e 6: "Au nombre des droits naturels, quelques-uns sont inaliénables de leur nature, parce que rien n'en peut être 1'équivalent. De ce nombre sont les droits de conscience" (14) (Beaumont, 1. c., p. 213-14).

A religião, longe de se constituir incompatível com o conceito dos direitos humanos, inclui-se expressamente entre eles. Os direitos humanos proclamam o direito de ser religioso, sê-lo como achar melhor e de praticar o culto que julgar conveniente. O privilégio da fé é um direito humano geral.

Os droits de l'homme, os direitos humanos, distinguem-se, como tais, dos droits du citoyen, dos direitos civis. Qual o homme que aqui se distingue do citoyen? Simplesmente, o membro da sociedade burguesa. Por que se chama o membro da sociedade burguesa de "homem", homem por antonomásia, e dá-se a seus direitos o nome de direitos humanos? Como explicar o fato? Pelas relações entre o Estado político e a sociedade burguesa, pela essência da emancipação política.

Registremos, antes de mais nada, o fato de que os chamados direitos humanos, os droits de l'homme, ao contrário dos droits du citoyen, nada mais são do que direitos do membro da sociedade burguesa, isto é, do homem egoísta, do homem separado do homem e da comunidade. A mais radical das Constituições, a Constituição de 1793, proclamou:

Déclaration des droits de l'homme et du citoyen

Art. 2: Ces droits, etc. (Les droits naturels et imprescriptibles) sont: l'égalité, Ia liberté, Ia súreté, Ia proprieté. (15)

Em que consiste Ia liberté?

Art. 6: "La liberté est le pouvoir qui appartient à l'homme de faire ce qui ne nuit pas aux droits d'autrui", (16) ou, segundo a Declaração dos Direitos do Homem, de 1791: "La liberté consiste à pouvoir faire tout ce qui ne nuit pas à autrui".(17)

A liberdade, por conseguinte, é o direito de fazer e empreender tudo aquilo que não prejudique os outros. O limite dentro do qual todo homem pode mover-se inocuamente em direção a outro é determinado pela lei, assim como as estacas marcam o limite ou a linha divisória entre duas terras. Trata-se da liberdade do homem como de uma mônada isolada, dobrada sobre si mesma. Por que, então, segundo Bauer, o judeu é incapaz de obter os direitos humanos? "Enquanto permanecer judeu, a essência limitada que faz dele um judeu tem que triunfar necessariamente sobre a essência humana que, enquanto homem, o une aos demais homens e o dissocia dos que não são judeus". Todavia, o direito do homem à liberdade não se baseia na união do homem com o homem, mas, pelo contrário, na separação do homem em relação a seu semelhante. A liberdade é o direito a esta dissociação, o direito do indivíduo delimitado, limitado a si mesmo.

A aplicação prática do direito humano da liberdade é o direito humano à propriedade privada.

Em que consiste o direito humano à propriedade privada?

Art. 16 (Constituição de 1793) : "Le droit de propriété est celui qui appartient à tout citoyen de jouir et de disposer à son gré de ses biens, de ses revenues du fruit de son travail et de son industrie". (18)

O direito humano à propriedade privada, portanto, é o direito de desfrutar de seu patrimônio e dele dispor arbitrariamente (à son gré), sem atender aos demais homens, independentemente da sociedade, é o direito do interesse pessoal. A liberdade individual e esta aplicação sua constituem o fundamento da sociedade burguesa. Sociedade que faz com que todo homem encontre noutros homens não a realização de sua liberdade, mas, pelo contrário, a limitação desta. Sociedade que proclama acima de tudo o direito humano "de jouir et de disposer à son gré de ses biens, de ses revenues, du fruit de son travail et de son industrie".

Resta, ainda, examinar os outros direitos humanos, la égalité e la súreté.

La égalité, considerada aqui em seu sentido não político, nada mais é senão a igualdade da liberté acima descrita, a saber: que todo homem se considere igual, como uma mônada presa a si mesma. A Constituição de 1795 define o conceito desta igualdade, segundo seu significado:

Art. 3 (Constituição de 1795) : "L'égalité consiste en ce que Ia loi est Ia même por tous, soit qu'elle protège, soit qu'elle punisse». (19)

E La süreté?

Art. 8 (Constituição de 1795) : "La súreté consiste dans Ia protection accordé par Ia societé à chacun de ses membres pour Ia conservation de sa personne, des ses droits et de ses propriétés". (20)

A segurança é o conceito social supremo da sociedade burguesa, o conceito de polícia, segundo o qual toda a sociedade somente existe para garantir a cada um de seus membros a conservação de sua pessoa, de seus direitos e de sua propriedade Neste sentido, Hegel denomina a sociedade burguesa de "Estado de necessidade e de entendimento".

O conceito de segurança não faz com que a sociedade burguesa se sobreponha a seu egoísmo. A segurança, pelo contrário, é a preservação deste.

Nenhum dos chamados direitos humanos ultrapassa, portanto, o egoísmo do homem, do homem como membro da sociedade burguesa, isto é, do indivíduo voltado para si mesmo, para seu interesse particular, em sua arbitrariedade privada e dissociado da comunidade. Longe de conceber o homem como um ser genérico, esses direitos, pelo contrário, fazem da própria vida genérica, da sociedade, um marco exterior aos indivíduos, uma limitação de sua independência primitiva. O único nexo que os mantém em coesão é a necessidade natural, a necessidade e o interesse particular, a conservação de suas propriedades e de suas individualidades egoístas.

É um pouco estranho que um povo que começa precisamente a libertar-se, que começa a derrubar as barreiras entre os distintos membros que o compõe, a criar uma consciência política, que este povo proclame solenemente a legitimidade do homem egoísta, dissociado de seus semelhantes e da comunidade (Déclaration de 1791); e, ainda mais, que, repita esta mesma proclamação no momento em que só a mais heróica abnegação pode salvar o país e é, portanto, imperiosamente exigida, no momento em que se coloca na ordem do dia o sacrifício de todos os interesses no altar da sociedade burguesa, em que o egoísmo deve ser castigado como um crime (Déclaration des droits de l'homme, etc., de 1795) . Mas este fato torna-se ainda mais estranho quando verificamos que os emancipadores políticos rebaixam até mesmo a cidadania, a comunidade política ao papel de simples meio para a conservação dos chamados direitos humanos; que, por conseguinte, o citoyen é declarado servo do homme egoísta; degrada-se a esfera comunitária em que atua o homem em detrimento da esfera em que o homem atua como ser parcial; que, finalmente, não se considera como homem verdadeiro e autêntico o homem enquanto cidadão, senão enquanto burguês.

"Lê but de toute association est la conservation des droits naturels et imprescriptibles de 1'homme" (21) (Déclaration des droits, etc., de 1791, art. 2). "Le gouvernement est institué pour garantir à 1'homme Ia jouissance de ses droits naturels et imprescriptibles" (22) (Déclaration, etc., de 1793, art. 1). Portanto, até mesmo nos momentos de entusiasmo juvenil, exaltado pela força das circunstâncias, a vida política se declara como simples meio, cujo fim é a vida da sociedade burguesa. É óbvio que a prática revolucionária está em contradição flagrante com a teoria. Assim, por exemplo, a proclamação da segurança como um direito humano coloca publicamente na ordem do dia a violação do segredo de correspondência. Garante-se a "liberté indéfinie de Ia presse" (23) (Constitution de 1795, art. 122) como conseqüência do direito humano, da liberdade individual, mas isto não impede que se suprima totalmente a liberdade de imprensa, pois "la liberté de Ia presse ne doit pas être permise lorsqu'elle compromet Ia liberté politique" (24) (Robespierre jeune, Histoire Parlamentaire de la Révolution Française, par Buchez et Roux, tomo 28, p. 159) ; isto significa que o direito humano à liberdade deixa de ser um direito ao colidir com a vida política, ao passo que, teoricamente, a vida política é tão somente a garantia dos direitos humanos, dos direitos do homem individual, devendo, portanto, abandonar-se a estes direitos com a mesma rapidez com que se contradiz em sua finalidade. Porém, a prática é somente exceção e, a teoria, regra. Assim sendo, se nos empenhamos em considerar esta prática revolucionária como o estabelecimento seguro da relação, resta saber por que se invertem os termos da relação na consciência dos emancipadores políticos, apresentando-se o fim como meio e o meio como fim. A ilusão ótica de sua consciência não deixa de ser um mistério, ainda que psicológico, teórico.

O mistério se resolve de modo simples.

A emancipação política é, simultaneamente, a dissolução da velha sociedade em que repousa o Estado alienador e a dissolução do poder senhorial. A revolução política é a revolução da sociedade civil. O que caracterizava a velha sociedade? Uma simples palavra, o feudalismo. A velha sociedade civil tinha diretamente um caráter político, isto é, os elementos da vida burguesa como, por exemplo, a possessão, a família, o tipo e o modo de trabalho se haviam elevado ao nível de elementos da vida estatal, sob a forma de propriedade territorial, de estamento ou de comunidade. Sob esta forma, estes elementos determinavam as relações entre o indivíduo e o conjunto do Estado, isto é, suas relações políticas ou, o que dá no mesmo, suas relações de separação e exclusão das outras partes integrantes da sociedade. Com efeito, aquela organização da vida do povo não elevava a possessão do trabalho ao nível de elementos sociais mas, pelo contrário, conduzia a sua separação do conjunto do Estado e os constituía em sociedades especiais dentro da sociedade. Não obstante, as funções e condições de vida da sociedade civil continuavam a ser políticas, se bem que políticas no sentido feudal; isto é, excluíam o indivíduo do conjunto do Estado e convertiam a relação especial de sua comunidade com o conjunto do Estado em sua própria relação geral com a vida do povo, do mesmo modo que convertiam determinadas atividades e situações burguesas em sua atividade e situação gerais. Como conseqüência desta organização, revela-se necessariamente a unidade do Estado, enquanto a consciência, a vontade e a atividade da unidade do Estado, e o poder geral deste, também se manifestam como incumbência especial de um senhor dissociado do povo e de seus servidores.

A revolução política que derrubou este poder senhorial, que fez ascender os assuntos de Estado a assuntos do povo, que constituiu o Estado político como incumbência geral, isto é, como Estado real, destruiu necessariamente todos os estamentos, corporações, grêmios e privilégios que eram outras tantas expressões da separação entre o povo e sua comunidade. A revolução política suprimiu, com ele, o caráter político da sociedade civil. Rompeu a sociedade civil em suas partes integrantes mais simples: de um lado, os indivíduos, de outro, os elementos materiais e espirituais que formam o conteúdo de vida, a situação civil destes indivíduos. Libertou de suas cadeias o espírito político, que se encontrava cindido, dividido e detido nos diversos compartimentos da sociedade feudal; unindo os frutos dispersos do espírito político e despojando-o de sua perplexidade diante da vida civil, a revolução política fez com que viesse a se constituir - como esfera da comunidade, da incumbência geral do povo - na independência ideal em relação àqueles elementos especiais da vida civil. A atividade determinada de vida e a situação de vida determinada passaram a ter um significado puramente individual. Deixaram de representar a relação geral entre o indivíduo e o conjunto do Estado. Longe disso, a incumbência pública como tal se converteu em incumbência geral de todo indivíduo e, a função pública, em sua função geral.

Contudo, a consagração do idealismo do Estado era, simultaneamente, a consagração do materialismo da sociedade civil. Ao sacudir-se o jugo político, romperam-se, ao mesmo tempo, as cadeias que aprisionavam o espírito egoísta da sociedade civil. Daí, a emancipação política ter sido a emancipação da sociedade civil em relação à política, sua emancipação até mesmo da aparência de um conteúdo geral.

A sociedade feudal estava dividida em seu fundamento, no homem. Mas no homem, tal qual ele se apresentava como fundamento, no homem egoísta. Este homem, membro da sociedade burguesa, é agora a base, a premissa do Estado político. E, como tal, é reconhecido nos direitos humanos.

A liberdade do egoísta e o reconhecimento desta liberdade são a expressão do reconhecimento do movimento desenfreado dos elementos espirituais e materiais que formam seu conteúdo de vida.

Por conseguinte, o homem não se libertou da religião; obteve, isto sim, liberdade religiosa. Não se libertou da propriedade, obteve a liberdade de propriedade. Não se libertou do egoísmo da indústria, obteve a liberdade industrial.

A constituição do Estado político e a dissolução da sociedade burguesa nos indivíduos independentes - cuja relação se baseia no direito, ao passo que a relação entre os homens dos estamentos e dos grêmios se fundava no privilégio - se processa num só e mesmo ato. Assim sendo, o homem enquanto membro da sociedade civil, isto é, o homem não-político, surge como homem natural. Os droits de l'homme aparecem como droits naturels, pois a atividade consciente de si mesma se concentra no ato político. O homem egoísta é o resultado passivo, simplesmente encontrado da sociedade dissolvida, objeto de certeza imediata e, portanto, objeto natural. A revolução política dissolve a vida burguesa em suas partes integrantes sem revolucionar estas partes nem submetê-las à crítica. Conduz-se, em relação à sociedade burguesa, ao mundo das necessidades, do trabalho, dos interesses particulares, do direito privado, como se estivesse frente à base de sua existência, diante de uma premissa que já não é possível fundamentar e, portanto, como frente à sua base natural. Finalmente, o homem enquanto membro da sociedade burguesa, é considerado como o verdadeiro homem, como homme, distinto do citoyen por se tratar do homem em sua existência ~ sensível e individual imediata, ao passo que o homem político é apenas o homem abstrato, artificial, alegórico, moral. O homem real só é reconhecido sob a forma de indivíduo egoísta; e o homem verdadeiro, somente sob a forma do citoyen abstrato.

Rousseau descreve corretamente a abstração do homem político ao dizer:

"Celui qui ose entreprendre d'instituer un peuple doit se sentir en état de changer pour ainsi dire Ia nature humaine, de transformer partie d'un grand tout dont cet individu reçoive en quelque sorte sa vie et son être, de substituer une existence partielle et morale à 1'existence physique et indépendante. Il faut qu'il ôte à 1'homme ses forces propres pour lui en donner qui lui soient étrangères et dont il ne puisse faire usage sans les secours d'autrul" (25) (Contrat Social, livro II, Londres, 1782, p. 67).

Toda emancipação é a recondução do mundo humano, das relações, ao próprio homem.

A emancipação política é a redução do homem, de um lado, a membro da sociedade burguesa, a indivíduo egoísta independente e, de outro, a cidadão do Estado, a pessoa moral.

Somente quando o homem individual real recupera em si o cidadão abstrato e se converte, como homem individual, em ser genérico, em seu trabalho individual e em suas relações individuais; somente quando o homem tenha reconhecido e organizado suas "forces propres" (26) como forças sociais e quando, portanto, já não separa de si a força social sob a forma de força política, somente então se processa a emancipação humana
II

Capacidade aos atuais Judeus e Cristãos de ser Livres

(Die Fühigkeit der heutigen Juden und Christen, frei zu werden),

Bruno Bauer

Sob esta forma, Bauer trata a atitude da religião hebraica e cristã como sua atitude frente à crítica. Sua atitude diante desta é o seu comportamento em relação "à capacidade de ser livres".

Donde se conclui: "O cristão só necessita remontar-se a uma fase, à sua religião, para superar a religião em geral", isto é, para chegar a ser livre; "o judeu, pelo contrário, tem que romper não só com a sua essência judaica, mas também com o acabamento de sua religião, com um desenvolvimento que lhe permanece estranho" (p. 71).

Como vemos, Bauer converte aqui o problema da emancipação dos judeus numa questão puramente religiosa. O escrúpulo teológico de quem possui melhores perspectivas de alcançar a bem-aventurança, se o judeu ou o cristão, repete-se agora de forma mais clara: qual dos dois é mais capaz de chegar a emancipar-.se? A pergunta já não é, certamente: o judaísmo ou o cristianismo tornam o homem livre?, mas, isto sim, a fórmula contrária: O que faz o homem mais livre, a negação do judaísmo ou a negação do cristianismo?

"Se querem chegar a ser livres, os judeus não devem abraçar o cristianismo, mas a dissolução deste e da religião em geral, isto é, a ilustração, a crítica e seu resultado, a livre humanidade" (p. 70).

Continua, para o judeu, a tratar-se de uma profissão de fé, que já não é, agora, a do cristianismo, mas da dissolução deste.

Bauer pede aos judeus que rompam com a essência da religião cristã, exigência que, como ele mesmo faz notar, não brota do desenvolvimento da essência judaica.

Depois que Bauer, no final da Questão Judaica, concebera o judaísmo simplesmente como uma inexpressiva crítica religiosa do cristianismo, concedendo-lhe, assim, "somente" um significado religioso, era de se imaginar que também a emancipação dos judeus se converteria, para ele, num ato filosófico, teológico.

Bauer concebe a essência abstrata ideal do judeu sua religião, como toda sua essência. Daí concluir, com razão:

"O judeu nada entrega à humanidade quando despreza sua lei limitada", quando supera todo o seu judaísmo (p. 65) .

A atitude de judeus e cristãos é. portanto, a seguinte: o único interesse do cristão pela emancipação do judeu é um interesse geral humano, um interesse teórico. Segundo a perspectiva religiosa do cristão, o judaísmo é um fato ultrajante. Tão logo a sua perspectiva deixa de ser religiosa, deixa também este fato de ser ultrajante. A emancipação do judeu não é, pela sua natureza, tarefa para o cristão.

Ao contrário, para libertar-se, o judeu tem que levar adiante não só a sua própria tarefa como, além disso e ao mesmo tempo, a tarefa do cristão, a Crítica dos Sinóticos, da Vida de Jesus, etc.

"Eles mesmos devem abrir os olhos: seu destino está em suas próprias mãos; a história não permite que ninguém se omita" (p. 71).

Nós tentamos romper a formulação teológica do problema. O problema da capacidade do judeu para se emancipar, converte-se, para nós, no problema de que elemento social especifico vencer para superar o judaísmo. A capacidade de emancipação do judeu atual é a atitude do judaísmo frente à emancipação do mundo de hoje. Atitude que se deduz necessariamente da posição especial que ocupa o judaísmo no mundo escravizado de nossos dias.

Fixemo-nos no judeu real que anda pelo mundo; não no judeu sabático, como diz Bauer, mas no judeu quotidiano.

Não vamos buscar o mistério do judeu em sua religião, mas, ao contrário, buscamos o mistério da religião no judeu real.

Qual é o fundamento secular do judaísmo? A necessidade prática, o interesse egoísta.

Qual é o culto secular praticado pelo judeu? A usura. Qual o seu Deus secular? O dinheiro.

Pois bem, a emancipação da usura e do dinheiro, isto é, do judaísmo prático, real, seria a auto-emancipação de nossa época.

Uma organização social que acabasse com as premissas da usura e, portanto, com a possibilidade desta, tornaria impossível o judeu. Sua consciência religiosa se desanuviaria como um vapor turvo que pairava na atmosfera real da sociedade. Por outro lado, ao reconhecer como nula esta sua essência prática e ao trabalhar pela sua anulação, o judeu está-se empenhamo-lo, com o amparo de seu desenvolvimento anterior, pela emancipação humana pura e simples e manifestando-se contra a suprema expressão prática da auto-alienação humana.

Mas, reconhecemos no judaísmo um elemento anti-social presente de caráter geral, que o desenvolvimento histórico -que conta com a zelosa colaboração dos judeus - neste aspecto se encarregou de levar até o apogeu em que hoje se encontra e a partir do qual tem que dissolver-se necessariamente.

A emancipação dos judeus é, em última análise, a emancipação da humanidade do judaísmo.

O judeu já se emancipou à maneira judaica. "O judeu que em Viena, por exemplo, pouco mais é que tolerado, determina, com seu poder monetário, a sorte de todo o império". Um judeu que careça de direitos no menor dos estados alemães, decide a sorte da Europa.

"Enquanto as cooperações e os grêmios cerram suas portas ao judeu ou não se inclinam suficientemente até ele, a indústria, com intrepidez, ri-se da teimosia das instituições medievais" (B. Bauer, Judenfrage, p. 114).

Este não é um fato isolado. O judeu se emancipou à maneira judaica não só ao apropriar-se do poder do dinheiro como, também, porque o dinheiro se converteu, através dele e à sua revelia, numa potência universal, e o espírito prático dos judeus no espírito prático dos povos cristãos. Os judeus se emanciparam na medida em que os cristãos se fizeram judeus.

O habitante devoto da Nova Inglaterra, politicamente livre, nos informa por exemplo o coronel Hamilton,

"é uma espécie de Laocoonte que não faz o menor esforço para livrar-se das serpentes que o atormentam. Seu ídolo é Mammón, que adora não só com os lábios, mas com todas as forças do corpo e do espírito. A terra não é, a seus olhos, mais do que uma imensa bolsa, e estas pessoas estão convencidas de não ter outra missão neste mundo senão a de enriquecer mais que seus vizinhos. A usura quedou-se de todos os seus pensamentos; sua única distração é ver como os objetos se transformam sob a sua ação. Quando viajam, levam às costas, de um lado para outro, por assim dizer, sua loja ou escritório, e só falam de interesses e de benefícios. E ao afastarem, por um momento, os olhos de seus próprios negócios, o fazem para saber o dos outros".

Mais ainda, o senhorio prático do judaísmo sobre o mundo cristão alcançou, na América do Norte, a expressão inequívoca e normal de que a prédica do próprio evangelho, do ensino da doutrina cristã, converteu-se em artigo comercial e o negociante falido, que passou a comerciar com o evangelho, dedica-se agora a seus negócios, tal qual o evangelista enriquecido: "Tel que vous voyez à Ia tête d'une congrégation respectable a commencé par être marchand; son commerce étant tombé, il s'est fait ministre; cet autre a débuté par le sacerdoce, mais dês qu'il a eu quelque somme d'argent à sa disposition, il a laissé Ia chaire pour le négoce. Aux yeux d'un grand nombre, le ministère religieux est une véritable carrière industrielle" (27) (Beaumont, 1. c., p. 185-6).

Segundo Bauer, é falso o fato de que, teoricamente, negue-se ao judeu direitos políticos, enquanto que, na prática, possui imenso poder e exerce influência política por atacado, embora esta seja desdenhada a varejo (Judenfrage, p. 114).

A contradição que existe entre o poder político prático do judeu e seus direitos políticos é a contradição entre a política e o poder do dinheiro em geral. Enquanto que a primeira predomina idealmente sobre a segunda, na prática dá-se justamente o contrário.

O judaísmo manteve-se ao lado do cristianismo não só como crítica religiosa deste, como dúvida incorporada à origem religiosa do cristianismo, senão, também, porque o espírito prático judaico, porque o judaísmo se tem mantido nesta mesma sociedade cristã, adquirindo dela, inclusive, seu desenvolvimento máximo. O judeu, que aparece na sociedade burguesa como um membro especial, não é senão a manifestação específica do judaísmo da sociedade burguesa.

O judaísmo não se tem conservado apesar da história, mas por intermédio desta.

A sociedade burguesa engendra constantemente o judeu em suas próprias entranhas.

Qual era o fundamento da religião hebraica? A necessidade prática, o egoísmo.

O monoteísmo do judeu é, portanto, na realidade, o politeísmo das muitas necessidades, um politeísmo que converte até mesmo o vaso sanitário em objeto da lei divina. A necessidade prática, o egoísmo, é o princípio da sociedade burguesa e se manifesta como tal em toda sua pureza da mesma maneira que a sociedade burguesa extrai totalmente de seu próprio seio o Estado político. O Deus da necessidade prática e do egoísmo é o dinheiro.

O dinheiro é o Deus zeloso de Israel, diante do qual não pode legitimamente prevalecer nenhum outro Deus. O dinheiro humilha todos os deuses do homem e os converte em mercadoria. O dinheiro é o valor geral de todas as coisas, constituído em si mesmo. Portanto, despojou o mundo inteiro de seu valor peculiar, tanto o mundo dos homens como a natureza. O dinheiro é a essência do trabalho e da existência do homem, alienada deste, e esta essência estranha o domina e é adorada por ele.

O Deus dos judeus se secularizou, converteu-se em Deus universal. A letra de câmbio é o Deus real do judeu. Seu Deus é somente a letra de câmbio ilusória.

A concepção que se tem da natureza sob o império da propriedade e do dinheiro é o desprezo real, a degradação prática da natureza, que na religião hebraica existe, certamente, mas só na imaginação.

Neste sentido, declara Thomas Münzer que é intolerável "que se tenha convertido em propriedade a todas as criaturas, aos peixes na água, aos pássaros no ar e às plantas na terra, pois também a criatura deve ser livre".

O que está implícito de modo abstrato na religião hebraica, o desprezo da teoria, da arte, da história e do homem como fim em si, é o ponto de vista consciente, real, a virtude do homem e a mulher, etc., convertem-se em objeto de comércio. A mulher é negociada.

A nacionalidade quimérica do judeu é a nacionalidade do negociante, do homem de dinheiro em geral.

A lei insondável e carente de fundamento do judeu não é senão a caricatura religiosa da moralidade e do direito em geral, carentes de fundamento e insondáveis, dos ritos puramente formais que circundam o mundo do egoísmo.

Também aqui vemos que a atitude suprema do homem é a atitude legal, a atitude frente a leis que regulam a sua conduta não porque sejam leis de sua própria vontade e de sua própria essência, mas porque imperam e porque sua infração é punida.

O jesuitismo judaico, este mesmo jesuitismo que Bauer põe de relevo no Talmude, é a atitude do mundo do egoísmo diante das leis que o dominam e cuja astuta alusão constitui a arte fundamental deste mundo.

Mais ainda, o movimento deste mundo dentro de suas leis é, necessariamente, a abolição constante da lei.

O judaísmo não pôde continuar a desenvolver-se como religião, a desenvolver-se teoricamente, porque a concepção do mundo da necessidade prática é limitada por natureza e reduz-se a umas tantas características.

A religião da necessidade prática não podia, pela própria essência, encontrar sua consagração na teoria, mas somente na prática, precisa ... porque a prática é a sua verdade.

O judaísmo não podia criar um mundo novo; só podia atrair as novas criações e as novas relações do mundo à órbita de sua engenhosidade, porque a necessidade prática, cujo cérebro é o egoísmo, se conduz passivamente e não tem a faculdade de ampliar-se, mas se encontra ampliada pelo desenvolvimento sucessivo dos acontecimentos sociais.

O judaísmo atinge seu apogeu com a consagração da sociedade burguesa; mas a sociedade burguesa só alcança a consagração no mundo cristão. Somente sob a égide do cristianismo, que converte em relações puramente externas para o homem todas as relações nacionais, naturais, morais e teóricas, podia a sociedade civil chegar a se separar totalmente da vida do Estado, romper todos os vínculos genéricos do homem, suplantar estes vínculos genéricos pelo egoísmo, pela necessidade egoísta, dissolver o mundo dos homens num mundo de indivíduos que se enfrentam uns aos outros atomística, hostilmente.

O cristianismo brotou do judaísmo. E tornou a dissolver-se nele. O cristão foi, desde o primeiro instante, o judeu teórico; o judeu é, portanto, o cristão prático, e o cristão prático se fez novamente judeu.

O cristianismo só havia chegado a superar o judaísmo real na aparência. Era demasiado nobre, demasiado espiritualista para eliminar o rigor das necessidades práticas, senão elevando-se ao reino das nuvens.

O cristianismo é o pensamento sublime do judaísmo, assim como o judaísmo é a aplicação prática vulgar do cristianismo. Porém, esta aplicação só poderia chegar a ser geral quando o cristianismo, como religião acabada, levasse a termo, teoricamente, a auto-alienação do homem de si mesmo e da natureza.

Só então pôde o judaísmo impor seu império geral e alienar o homem alienado e a natureza alienada, convertê-los em coisas venais, em objetos entregues à sujeição da necessidade egoísta, à negociação e à usura.

A venda é a prática da alienação. Assim como o homem - enquanto permanece sujeito às cadeias religiosas - só sabe expressar sua essência convertendo-a num ser fantástico, num ser estranho a ele, assim também só poderá conduzir-se praticamente sob o império da necessidade egoísta, só poderá produzir praticamente objetos, colocando seus produtos e sua atividade sob o império de um ser estranho e conferindo-lhes o significado de uma essência estranha, do dinheiro.

O egoísmo cristão da bem-aventurança se transforma, necessariamente, em sua prática acabada, no egoísmo concreto do judeu, a necessidade celestial na terrena, o subjetivismo na utilidade própria. Não explicamos a tenacidade do judeu a partir da religião, mas do fundamento humano de sua religião, da necessidade prática, do egoísmo.

O fato de a essência real do judeu realizar-se e ter-se realizado de modo geral, na sociedade burguesa, explica por que esta mesma sociedade não pôde convencer o judeu da irrealidade de sua essência religiosa, que não é, cabalmente, senão a concepção ideal da necessidade prática. Não será, por conseguinte, no Pentateuco ou no Talmude, mas na sociedade atual que iremos encontrar a essência do judeu de hoje, do judeu que não mais se apresenta como aquele ser abstrato, senão como um ser altamente empírico, do mesmo modo que é na sociedade de nossos dias que se encontra a limitação do judeu e a limitação judaica da sociedade.

O judeu se tornará impossível tão logo a sociedade consiga acabar com a essência empírica do judaísmo, com a usura e suas premissas. O judeu será impossível porque sua consciência carecerá de objeto, porque a base subjetiva do judaísmo, a necessidade prática, se terá humanizado, porque se terá superado o conflito entre a existência individual-sensível e a existência genérica dó homem.

A emancipação social do judeu é a emancipação da sociedade do judaísmo.

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Notas:

(1) Nos Estados Unidos não existe religião de Estado, nem religião declarada como da maioria, nem a preeminência de um culto sobre outro. 0 Estado é alheio a todos os cultos.
(2) A Constituição não impõe crenças religiosas nem a prática de um culto como condição dos privilégios políticos.
(3) Nos Estados Unidos não se acredita que um homem sem religião possa ser um homem honesto
(4) Nota da Tradução Brasileira: O direito de voto estava condicionado a determinado teto. O indivíduo que não possuísse o mínimo estipulado não podia ser eleitor.
(5) Guerra de todos contra todos.
(6) Direitos do homem.
(7) Direitos do cidadão.
(8) Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão.
(9) A ninguém se perseguirá por suas opiniões, inclusive religiosas.
(10) A todos é assegurada a liberdade de praticar o culto religioso a que se encontre vinculado.
(11) O livre exercício dos cultos.
(12) A necessidade de anunciar estes direitos pressupõe ou a presença ou a lembrança do despotismo
(13) Constituição da Pensilvânia, art. 9, § 3.º: "Todos os homens receberam da natureza o direito imprescritível de adorar o Todo Poderoso segundo os ditames de sua consciência; ninguém pode, legalmente, ser obrigado a praticar, instituir ou sustentar qualquer culto religioso contra sua vontade. Em caso algum a autoridade humana, seja ela qual for, -poderá intervir em questões de consciência e fiscalizar as faculdades de alma-.
(14) Constituição de New-Hampshire, arts. 5 e 6: "Entre os direitos naturais, alguns são inalienáveis por si mesmos, já que não podem ser substituídos por outros. Entre eles, figuram os direitos de consciência".
(15) Estes direitos, etc. (os direitos naturais e imprescritíveis) são: a igualdade, a liberdade, a segurança e a propriedade.
(16) A liberdade é o poder próprio do homem de fazer tudo aquilo que não conflite com os direitos de outro.
(17)A liberdade consiste em poder fazer tudo aquilo que não prejudique a ninguém.
(18) O direito à propriedade é o direito assegurado a todo cidadão de gozar e dispor de seus bens, rendas, dos frutos de seu trabalho e de sua indústria como melhor lhe convier.
(19) A igualdade consiste na aplicação da mesma lei para todos, quando protege ou quando castiga.
(20)A segurança consiste na proteção conferida pela sociedade a cada um de seus membros para a conservação de sua pessoa, de seus direitos e de suas propriedades.
(21) O fim de toda associação política é a conservação dos direitos naturais e imprescritíveis do homem.
(22) O governo foi instituído para garantir ao homem o gozo de seus direitos naturais e imprescritíveis.
(23) Liberdade indefinida de imprensa.
(24) A liberdade de imprensa não deve ser permitida sempre que comprometer a liberdade política.
(25) Aquele que se propõe a tarefa de instituir um povo deve sentir-se capaz de transformar, por assim dizer, a natureza humana, de transformar cada indivíduo, que é por si mesmo um todo perfeito, solitário, em parte de um todo maior, do qual o indivíduo receba até certo ponto sua vida e seu ser, de substituir a existência física e independente por uma existência parcial e moral. Deve despojar o homem de suas próprias forças, a fim de lhe entregar outras que lhe são estranhas e das que só possa fazer uso com a ajuda de outros homens.
(26) Próprias forças.
(27) Esse que aí veis à testa de uma respeitável corporação começou como comerciante; falindo seu negócio, fez sacerdote; este outro começou pelo sacerdócio, porém, ao dispor de certa quantia, abandonou o púlpito pelos negócios. Aos olhos de muitos, o ministério religioso é uma verdadeira carreira industrial.