1.10.11

Avareza







Alguns hábitos não nos deixam, mesmo quando não encontramos um motivo lógico para que os mantenhamos. Quando vou bater perna ou cumprir compromissos financeiros na parte central da cidade, faço como muitos contemporâneos meus: anuncio com uma certa pompa “vou pra Indaiatuba”, resquício de uma época em que a cidade era informalmente dividida entre o “lado de lá” da linha férrea (o Centro) e o “lado de cá” (a periferia). Enfim. Uma vez por mês, lá vou eu pra Indaiatuba, boletos, contas de consumo e listas nas mãos e paciência na alma.

Depois das inevitáveis filas e das notas de real que rareiam na carteira, a missão “cidadão pagador de impostos, taxas e afins” é cumprida dentro do prazo. Há momentos em que a fome não nos acompanha com a proximidade de uma sombra,mas no oitavo dia do mês de Agosto, a manhã dando adeus, meu estômago anunciou que não poderia aguardar o almoço em casa. Como só me alimento com arroz e feijão no (des)conforto do lar, minha escolha foi a mais óbvia possível: Pastelaria Kibe e Esfiha.

Para quem não conhece a outrora pacata cidade de Indaiatuba, o estabelecimento acima citado é famoso pelos preços não muito escorchantes e lanches rápidos acima da média. Adoro o pão de queijo, a coxinha, os folhados e as esfirras fechadas. Prático e decidido quando o assunto é comida, já estava com o menu anotado mentalmente quando entrei. Infelizmente, todas as mesas estavam ocupadas e tive que optar em colocar os produtos em uma caixa que eles fornecem no balcão self-service para degustar os petiscos na praça em frente à Pastelaria. Escolher, colocar, pedir o suco, pagar. 
 
Visualizo um banco sob a agradável sombra de uma sibipiruna; sento, deposito a caixa ao meu lado, e ataco os salgados com precisão cirúrgica: guardanapos de papel envolvendo a esfirra, abrir a boca e comer. Nesse momento tudo o que desejo é a paz de minhas mastigadas em silêncio. Só que sempre existem as pessoas que adoram ser um empecilho consciente ao alento alheio.

À minha esquerda, ocupando um banco mais a mureta que separa os buxinhos do passeio público, cinco pessoas. Cinco seres humanos, que adoram mostrar que não tomam banho há semanas e que dividem garrafas pet de 600 mililitros preenchidas com aguardente, dividiam sua atenção entre os goles de pinga e o achaque aos transeuntes, vítimas de sobrinhos postiços que sempre querem um real (“ô, tio, arruma uma moedinha aí!”). Um desses cinco seres humanos, carregando uma caixa de engraxate, me reconheceu e veio célere em minha direção. Meu pensamento foi invadido por duas palavras. “Ô, merda...”.

O sujeito era tristemente famoso pela notória cara-de-pau. Não importava quantas vezes o Serviço Social o enviava à sua suposta terra natal (Jundiaí, ele sempre dizia), lá estava o gajo de volta às ruas, ora sentado em uma sarjeta pedindo esmolas com cara de cão sem dono, ora simplesmente abordando as pessoas usando a velha tática da vergonha alheia para conseguir o que queria. E justo num dos raros dias em que me dou ao luxo de comprar algo além do estritamente necessário ele resolve me tornar alvo de suas palavras.

“E aí, gordão! Tá gostoso aqui né?”, disse o cabra, à guisa de cumprimento. Grunhi algo ininteligível graças à minha boca cheia de massa de esfirra. “Dá um real aí! O troco do lanchinho!”, ele pediu com um tom arrogante. “Não sobrou troco”, respondo seco. “Então me dá um pão de queijo, tô com fome. Não vai negar comida prum irmão né?”.

Não sei bem porquê, me lembrei quando eu e minha irmã voltávamos do supermercado, há mais ou menos quatro anos, comendo o conteúdo de uma caixa de Bis, quando passamos por quatro crianças brincando na calçada. Um deles, um moleque loirinho, gritou “tio, dá um Bis”. Sem pensar muito, atendi ao pedido. As outras crianças começaram a pedir com uma certa insistência; aquilo de certa forma me divertiu e fui distribuindo chocolate até que eu ri e joguei para cima o restante da caixa na direção deles. Continuamos nosso trajeto ao som de “obrigado, tio!”. 
 
Contudo, não era uma criança a me pedir um pão de queijo. Era um sujeito que já me fez passar muita vergonha por diversas vezes. E quando eu o ouvi pedindo com empáfia, como se o meu salgado fosse o direito divino DELE, olhei bem no fundo dos olhos dele e disse “não”.

Ao ouvir a negativa, ele começou a usar a velha tática de agir como pobre-diabo faminto. “Nossa, vai negar comida mesmo? Cadê seu coração?”. Continuei a olhar para ele e disse: “esse é meu almoço. Fiz por merecer e vou comer tudo. Agora com licença”. Peguei a caixa com os dois pães de queijo e o folhado de frango, me levantei abruptamente e dei as costas pro sujeito. “Olha, gente, o gordão tá me negando um salgadinho! Tomara que engasgue!”.

Abandonei a sombra e me sentei em outro banco que ficava a pelo menos 100 metros longe daquele sujeito, sob o sol do meio dia. Com a mão direita, levava o folhado à boca; com a mão direita, tapava meus olhos como uma viseira, impedindo precariamente a incidência dos raios solares sob meus olhos. O que deveria ter sido um momento de degustação tornou-se um cocho onde engoli o restante dos salgados. O suco ajudou a empurrar goela abaixo. E não engasguei. “Da próxima vez”, pensei, “me sento nem que seja no chão da pastelaria”.

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