Alguns
hábitos não nos deixam, mesmo quando não encontramos um motivo
lógico para que os mantenhamos. Quando vou bater perna ou cumprir
compromissos financeiros na parte central da cidade, faço como
muitos contemporâneos meus: anuncio com uma certa pompa “vou pra
Indaiatuba”, resquício de uma época em que a cidade era
informalmente dividida entre o “lado de lá” da linha férrea (o
Centro) e o “lado de cá” (a periferia). Enfim. Uma vez por mês,
lá vou eu pra Indaiatuba, boletos, contas de consumo e listas nas
mãos e paciência na alma.
Depois
das inevitáveis filas e das notas de real que rareiam na carteira, a
missão “cidadão pagador de impostos, taxas e afins” é cumprida
dentro do prazo. Há momentos em que a fome não nos acompanha com a
proximidade de uma sombra,mas no oitavo dia do mês de Agosto, a
manhã dando adeus, meu estômago anunciou que não poderia aguardar
o almoço em casa. Como só me alimento com arroz e feijão no
(des)conforto do lar, minha escolha foi a mais óbvia possível:
Pastelaria Kibe e Esfiha.
Para
quem não conhece a outrora pacata cidade de Indaiatuba, o
estabelecimento acima citado é famoso pelos preços não muito
escorchantes e lanches rápidos acima da média. Adoro o pão de
queijo, a coxinha, os folhados e as esfirras fechadas. Prático e
decidido quando o assunto é comida, já estava com o menu anotado
mentalmente quando entrei. Infelizmente, todas as mesas estavam
ocupadas e tive que optar em colocar os produtos em uma caixa que
eles fornecem no balcão self-service para degustar os petiscos na
praça em frente à Pastelaria. Escolher, colocar, pedir o suco,
pagar.
Visualizo
um banco sob a agradável sombra de uma sibipiruna; sento, deposito a
caixa ao meu lado, e ataco os salgados com precisão cirúrgica:
guardanapos de papel envolvendo a esfirra, abrir a boca e comer.
Nesse momento tudo o que desejo é a paz de minhas mastigadas em
silêncio. Só que sempre existem as pessoas que adoram ser um
empecilho consciente ao alento alheio.
À
minha esquerda, ocupando um banco mais a mureta que separa os
buxinhos do passeio público, cinco pessoas. Cinco seres humanos, que
adoram mostrar que não tomam banho há semanas e que dividem
garrafas pet de 600 mililitros preenchidas com aguardente, dividiam
sua atenção entre os goles de pinga e o achaque aos transeuntes,
vítimas de sobrinhos postiços que sempre querem um real (“ô,
tio, arruma uma moedinha aí!”). Um desses cinco seres humanos,
carregando uma caixa de engraxate, me reconheceu e veio célere em
minha direção. Meu pensamento foi invadido por duas palavras. “Ô,
merda...”.
O
sujeito era tristemente famoso pela notória cara-de-pau. Não
importava quantas vezes o Serviço Social o enviava à sua suposta
terra natal (Jundiaí, ele sempre dizia), lá estava o gajo de volta
às ruas, ora sentado em uma sarjeta pedindo esmolas com cara de cão
sem dono, ora simplesmente abordando as pessoas usando a velha tática
da vergonha alheia para conseguir o que queria. E justo num dos raros
dias em que me dou ao luxo de comprar algo além do estritamente
necessário ele resolve me tornar alvo de suas palavras.
“E
aí, gordão! Tá gostoso aqui né?”, disse o cabra, à guisa de
cumprimento. Grunhi algo ininteligível graças à minha boca cheia
de massa de esfirra. “Dá um real aí! O troco do lanchinho!”,
ele pediu com um tom arrogante. “Não sobrou troco”, respondo
seco. “Então me dá um pão de queijo, tô com fome. Não vai
negar comida prum irmão né?”.
Não
sei bem porquê, me lembrei quando eu e minha irmã voltávamos do
supermercado, há mais ou menos quatro anos, comendo o conteúdo de
uma caixa de Bis, quando passamos por quatro crianças brincando na
calçada. Um deles, um moleque loirinho, gritou “tio, dá um Bis”.
Sem pensar muito, atendi ao pedido. As outras crianças começaram a
pedir com uma certa insistência; aquilo de certa forma me divertiu e
fui distribuindo chocolate até que eu ri e joguei para cima o
restante da caixa na direção deles. Continuamos nosso trajeto ao
som de “obrigado, tio!”.
Contudo,
não era uma criança a me pedir um pão de queijo. Era um sujeito
que já me fez passar muita vergonha por diversas vezes. E quando eu
o ouvi pedindo com empáfia, como se o meu salgado fosse o direito
divino DELE, olhei bem no fundo dos olhos dele e disse “não”.
Ao
ouvir a negativa, ele começou a usar a velha tática de agir como
pobre-diabo faminto. “Nossa, vai negar comida mesmo? Cadê seu
coração?”. Continuei a olhar para ele e disse: “esse é meu
almoço. Fiz por merecer e vou comer tudo. Agora com licença”.
Peguei a caixa com os dois pães de queijo e o folhado de frango, me
levantei abruptamente e dei as costas pro sujeito. “Olha, gente, o
gordão tá me negando um salgadinho! Tomara que engasgue!”.
Abandonei
a sombra e me sentei em outro banco que ficava a pelo menos 100
metros longe daquele sujeito, sob o sol do meio dia. Com a mão
direita, levava o folhado à boca; com a mão direita, tapava meus
olhos como uma viseira, impedindo precariamente a incidência dos
raios solares sob meus olhos. O que deveria ter sido um momento de
degustação tornou-se um cocho onde engoli o restante dos salgados.
O suco ajudou a empurrar goela abaixo. E não engasguei. “Da
próxima vez”, pensei, “me sento nem que seja no chão da
pastelaria”.
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