Sim, eu choro. Não tanto quanto deveria mas choro. Sempre achei bobagem o conceito “homem não chora” por motivos biológicos: se não choramos, por que nascemos com glândulas lacrimais? Quem quer que tenha inventado a suposta força masculina não levou em consideração que somos diferentes das mulheres apenas em alguns traços biológicos. Esconder o que sentimos pode ser “coisa de macho” mas torna-se contraproducente com o passar dos anos, ao nos vermos angustiados e macambúzios sem um motivo aparente.
Pode ser por vergonha, falta de traquejo; são raros os homens que sabem chorar. E saber chorar não é apenas deixar as lágrimas verterem rosto abaixo, é entregar parte de nossos medos e deixar o abandono consumir as energias a cada soluço. É preciso entender que o choro não precisa de um motivo lógico, apesar do que nos foi ensinado no decorrer da infância e adolescência.
Veja a tristeza, por exemplo. Ela é o motivo clássico do choro e mesmo ela é solenemente ignorada numa fungada proeminente e na mudança de assunto. Num belo dia o homem reclama das noites sem dormir, da inquietude sem motivo aparente, da irritabilidade com mulher e filhos e culpa qualquer causa externa disponível ao intelecto. Onde já se viu, ser responsável por algo mais do que o pagamento das contas?
Aprendi o valor terapêutico do choro da melhor maneira: chorando. Tinha nove anos em 1979 e estava numa instituição que abrigava menores em Campinas – um dia eu conto o porquê. Num domingo de julho minha mãe foi me visitar. Não esperava que ela viesse, pois sabia que ela trabalhava muito, inclusive nos finais de semana. A ausência dela era sentida apenas como um leve desconforto no peito, rapidamente abafado pelo dia a dia de estudo e trabalho.
Naquele domingo, porém, ela caminhou devagar em minha direção após sair do carro. A princípio não acreditei, depois corri alucinado para receber e dar um gostoso abraço. Durante o período da visita, entre 9 e 17 horas, senti a felicidade em seu estado bruto. Ouso afirmar que esse momento é um dos cinco mais felizes de minha vida até então. Estava eufórico, falante, sorridente. Mostrei meus lugares prediletos, sentei-me ao lado dela em meu banco (eu o considerava meu por ser meu ponto de fuga, para evitar o contato com aqueles estranhos que me chamavam pelo nome). Na pequena capela, rezamos um Pai-Nosso e continuamos a falar amenidades, nada memorável em termos de retórica porém era como um cobertor felpudo durante aqueles invernos de sete graus.
O tempo, que não está nem aí para a saudade alheia, determinou o fim quando ela olhou para o pequeno relógio de pulso que ela portou até o dia de sua morte e me disse, suavemente: “Nei,tenho que ir embora”. Fiquei quieto e a acompanhei até o Fusca, onde outra mulher a esperava. Dividimos outro abraço, depois ela sorriu e acariciou meu rosto. O último “tchau” foi dado entre a poeira que os pneus fizeram ao afastar dona Benedita de mim.
Sabia que antes do anoitecer deveria estar na casa 3, onde eu e mais 29 meninos convivíamos. Sabia que eu deveria tomar banho antes de jantar e guardar os lençóis de domingo. Sabendo de tudo isso fui ao meu banco, entre os eucaliptos e desabei nas tábuas parafusadas em troncos. Coloquei as mãos em meu rosto e senti o aroma do perfume dela; um odor adocicado com pequeno tom verde. Então chorei. Solucei. Todo o desconforto transformou-se em saudade doída que me deixou vertendo lágrimas salgadas e abundantes.
Após muito tempo, não sei precisar o quanto, parei, exausto. Respirava fundo, quase comendo o ar. Enxuguei meu rosto com as palmas das mãos, suspirei e me dirigi à casa. Tomei meu banho, comi meu jantar, dobrei e guardei meus lençóis de domingo. E dormi. Profundamente.
É apenas um pequeno fato de minha vida. Chorei sim. Mas depois a vida seguiu seu curso e não remoí aquela saudade pungente. Chorei mais vezes, por motivos diversos – como por exemplo ao ouvir “Seguir em frente” do Rick e Renner no ônibus, na ida ao meu antigo emprego ou por ouvir “Os velhinhos” na voz de Roberto Carlos, ou por ouvir “você não faz meu tipo” da pessoa que mais amei até 2004-e depois de cada lágrima,o cansaço e um certo alívio. Sim, pois quantas toneladas pesam um rancor, uma palavra não dita!
Choro sim. Não com a mesma intensidade e com a mesma freqüência com que dou risada, mas choro. E sei que preciso chorar mais.