Em
uma tigela, coloque cerca de 300 gramas de farinha de trigo.
Acrescente uma pitada de sal e coloque água na mistura, batendo
vigorosamente até que a farinha salgada transforme-se em uma pasta
com consistência entre a massa de bolo e a panqueca. Reserve. Em uma
frigideira, coloque óleo de soja ou qualquer tipo de gordura
disponível – os fanáticos por comida saudável vão sofrer uma
apoplexia quando ler, mas minha casa tinha um depósito quase
industrial de gordura de torresmo, cortesia de minha vó e depois de
meu tio – e deixe aquecer. Quando a gordura estiver quente, pegue
uma colher, retire uma porção da massa anteriormente batida e
deposite sobre o óleo. Repita a operação até que toda a massa
esteja frita. O tempo de fritura vai depender do seu gosto; se quiser
os bolinhos crocantes, como os meus preferidos, uns cinco minutos por
batelada. Rápido, prático, calórico, nada saudável e a salvação
da lavoura em tempos bicudos.
Geralmente
eu não dava trabalho nenhum a ninguém; eu mesmo preparava meu café
e meus bolinhos, em uma época em que eu ficava constantemente
sozinho em casa. Infelizmente, meu pai, meu tio e meus irmãos
descobriram as delícias de produzir picuinhas em voz alta e com som
em alto volume, minando meus espaços calmos e os reduzindo às horas
que eles não estavam. Para que estes poucos instantes não fossem
embora durante a fritura dos bolinhos, tive a ideia de comprar
algumas frutas, já que me sobravam alguns cruzeiros (depois cruzados
e cruzados novos) após as obrigações. Numa segunda-feira após o
expediente, fui ao mercado e comprei maçãs, laranjas e bananas,
numa quantidade grande o suficiente para que eu pudesse ler meus
livros beliscando algo por pelo menos quatro dias.
No
dia seguinte, chego em casa, tomo meu banho e pego meu livro (“O
Caso dos Dez Negrinhos”, Agatha Christie, me lembro bem). Vou à
geladeira para pegar uma maçã e... só tem uma! Vou à bacia que
servia de fruteira e as bananas e laranjas tinham acabado. Puto, mas
ainda civilizado, pergunto candidamente: “já acabaram as frutas?”.
“É, o pessoal comeu”, respondeu meu tio. Não consegui terminar
a leitura, tamanha a raiva.
Sábado.
Meu tio e meu pai perguntam se eu ainda tinha dinheiro para comprar
“mistura”. Disse que não e avisei que iria dar uma volta. Como
sempre, deram de ombros – sempre tive a impressão que eles
continuariam a dar de ombros mesmo se eu dissesse “vou ao centro
ficar pelado e esfaquear todos os vira-latas que encontrar” - e fui
para Indaiatuba. Mais especificamente, para o maior supermercado da
cidade naquela época.
A
caminhada não durou mais do que vinte minutos. Ao entrar no
supermercado, peguei uma cestinha, inalei o caldo indistinto formado
pelo aroma vindo das seções de hortifruti, açougue, higiene e
limpeza e padaria e andei como se pisando na borda do precipício.
Calma e calculadamente. As gôndolas desfraldavam os produtos numa
ordem simétrica, marca com marca, pacotes retangulares, quadrados,
circulares. Foi a primeira e única vez em que entrei em um
estabelecimento comercial sem saber o que eu queria previamente. A
compra deve ter durado inacreditáveis 45 minutos.
Saindo
com a sacola plástica na mão, visualizei meu trajeto mentalmente e
decidi onde pararia: à sombra de uma pata-de-vaca perto do
Indaiatuba Clube. Um lugar ermo, onde, ao contrário de hoje, viva
alma ousava passar (ok, é um exagero, mas digamos que a densidade
populacional de Indaiatuba não era tão grande assim). Sentei meu
traseiro gordo em um paralelepípedo estrategicamente colocado
embaixo da árvore e comecei a destrinchar o conteúdo da sacola.
Primeiro,
o iogurte. Seis bandejas, quatro delas sabor morango. Foi como
desnudar a pessoa amada: o invólucro de cada potinho foi
meticulosamente retirado e eu sorvi os seis com gana. Literalmente,
lambi os beiços. Terminei e coloquei os seis potes empilhados ao meu
lado, no chão. Depois, mais iogurte, desta vez líquido. Aquelas
garrafas de 1 litro. “Agite antes de beber”, ordenava o rótulo.
A embalagem parecia uma coqueteleira em minhas mãos felizes. Um
minuto depois, retiro calmamente a tampa e bebo. Como água.
Ininterruptamente. Tudo o que eu pude dizer no final foi “coco”.
Próximo
item: um pedaço de cerca de 350 gramas de queijo mussarela. Quase
dois centímetros de espessura, e um cheiro que eu jamais vou me
esquecer; não por evocar sabores, mas por ser o troféu de uma
conquista gastronômica. “ Esse eu não preciso dividir com
ninguém. E nem comer uma ou duas fatiazinhas”, pensei. Não houve
esforço ao mastigar e quando cada pedaço alojou-se em minha boca,
eu o chupava como bala, como que prolongando o sabor e a sensação.
O
salgadinho veio quase que imediatamente após. Cebolitos. Ele foi o
responsável pelo maior dilema dentro do supermercado: Cebolitos,
Baconzitos ou Stiksy? Nunca me arrependi desta decisão, e hoje o salgadinho
faz parte dos sabores de minha memória afetiva. Mas o melhor, ao
menos para mim, reservei para o final.
Quando
foi lançado, o bolinho Ana Maria era o que o povo aqui de casa
chamava de coisa de rico. Quando isso era dito eu meio que
automaticamente aceitava, como se nossa “pobreza” fosse motivo de
alguma espécie anacrônica de orgulho. O problema é que eu senti o
cheiro do bolinho. Baunilha. Tentei emular o sabor da baunilha nos
doces que eu comprava no bar ou até mesmo esquecer que o bolinho
existia. Afinal, eu nunca compraria e comeria aquele troço.
Na
sacola a meu lado, três pacotes com seis bolinhos Ana Maria. Todos
de chocolate com recheio de baunilha. Fui cruel comigo mesmo naquele
momento. Abri um pacote, enfiei o nariz e me intoxiquei com odor. A
saliva matou minha língua afogada. Peguei um bolinho e fiz o que
alguns homens fazem com charutos: cheirei toda a extensão da Ana
Maria antes de abocanhar.
Foi
a última vez em que comer foi quase uma experiência mística,
religiosa. Digo isso porque nunca mais chorei ao comer algo.