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O naufrágio do Roumania

No dia 27 ou 28 de Outubro de 1892 o navio inglês Roumania naufragou a poucos kms a norte da barra a Lagoa de Óbidos devido a um grande temporal acompanhado de nevoeiro. Possivelmente o naufrágio deu-se de noite dado que alguns corpos apareceram nas praias em camisa de dormir. Apesar da proximidade da terra, a cerca de 200 metros, a violência das ondas e a força das correntes marítimas foram tais a ponto de passageiros morreram de exaustão. Naufragaram cerca de duas centenas de pessoas. A carga do navio era essencialmente constituída por chitas e fazendas, além de máquinas de costura. Transportava também material ferroviário destinado à construção de uma ferrovia na Índia, na época colónia inglesa. Várias pessoas da região recuperaram parte da mercadoria do navio que deu à costa, principalmente tecidos de chita. Em 1963 foi feito um levantamento da carga do navio e alguns trabalhos de desmantelamento e recuperação pela firma António M. Parreira Cruz e Herdeiros Lda.

O S. S. ROUMANIA veleiro inglês construído em 1889 que naufragou junto à barra da Lagoa de Óbidos a 28 de Outubro de 1892. Imagem retirada em 21/08/06 de: http://caminheirosdascaldas.com.sapo.pt/2006/01/57-passeio-naufrgio-ss-romania.htm

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Em Portugal, a imprensa da época noticiou bastante o naufrágio: Correio da Noite; Novidades; Século; Caldense; Diário de Notícias, Distrito de Leiria. A imprensa inglesa também relatou a tragédia: The Times; The Liverpool Daily Post, entre outros. Entre os passageiros, na maioria escoceses, viajavam missionários, militares, funcionários do administração colonial e respectivos familiares, além dos indianos de quem pouco se fala.

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Uma das seis sepulturas dos náufragos ingleses no cemitério da Serra do Bouro (Caldas da Rainha). Foto do autor.

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Os corpos que deram à costa foram sepultados nos cemitérios da região (Serra do Bouro, Famalicão, Vau e Peniche). Na zona reservada aos túmulos dos náufragos, conhecida como "Cemitério dos Ingleses", situada no topo oeste do cemitério da freguesia da Serra do Bouro, estão sepultadas seis pessoas: duas crianças, uma de um ano e outra de dois anos e meio, e quatro senhoras. Todos estas são campas rasas à excepção da esposa do Revendo William Burgess, senhora Lillie Hay que tem uma campa diferente com uma lápide à cabeceira e com a data de 27 de Outubro de 1892. Há outros corpos resultantes do naufrágio aqui enterrados mas que não têm lápide. Até há poucos anos atrás o cemitério dos ingleses estava separado do cemitério dos católicos, devido aos facto de serem protestantes. Uma lápide comemorativa do centenário deste acontecimento da autoria da Junta de Freguesia da Serra do Bouro reza o seguinte: «Em 28 de Outubro de 1892, nesta costa naufragou o navio de nacionalidade inglesa S.S. Roumania. Alguns dos seus náufragos repousam sob estas lápides. Evocação do 1º centenário com a presença das autoridades locais e de entidades consulares britânicas. 12 de Dezembro de 1992».

Entrada do cemitério da Serra do Bouro (Caldas da Rainha), entrevendo-se a área reservada aos túmulos dos náufragos do Roumania. Foto do autor.

A pesca do coral em Portugal

Quando o académico da Academia de Ciências de Lisboa e professor de Física na Universidade de Coimbra, Constantino Botelho de Lacerda Lobo (1756-1821) apresentou a Memória sobre a decadência das pescarias em Portugal, editada em 1812 no tomo IV das Memórias Económicas da Academia das Ciências de Lisboa, argumentava que um dos indicadores da crise da pesca era o abandono de certo tipo de pescarias que no passado tinham sido praticadas pelos pescadores portugueses, como a pesca da baleia, do bacalhau e do coral.
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De todas as tipologias de pesca, a do coral era a que mais se distinguia pelo método. O pescador coraleiro mergulhava até ao fundo marinho e com o recurso a instrumentos de corte e raspagem retirava o coral para dentro de cestos que eram içados até à superfície, para dentro das embarcações. O coral foi usado no comércio da Índia e em Portugal a sua exploração se confinou à costa algarvia , havendo notícias históricas do seu exercício no século XV. Na mencionada memória económica, Constantino Botelho de Lacerda Lobo refere que no reinado de D. Afonso V, um tal Carlos Florentim (florentino), residente em Lagos «retirara muito coral» e não quisera pagar o dizímo deste ao Cabido da Sé de Silves em 1462. Depois, e até ao século XVIII, escasseiam elementos sobre a pesca do coral (LOBO, 1991 [2.ª ed.], p.257). Em 1711 parece estar definitivamente abandonado, porque no alvará real dado a Vicente Francisco para reintroduzir no Algarve a extracção do coral, se diz «[...] que nas costas do reino do Algarve houvera antigamente pescaria do coral, a qual se perdera por incúria dos homens, ou por falta de cabedais [...]». A licença dada ao investidor lisboeta Vicente Francisco foi por três anos, desconhecendo-se qualquer registo de continuidade desta pescaria para além desse tempo (LOBO, 1991 [2.ª ed.], p. 258).
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As poucas referências sobre a pesca do coral durante um período tão largo pode indiciar uma pouca adesão entre as comunidades piscatórias. Seria porventura arriscada e dispendiosa, comparativamente a outras pescarias. Por outro lado, no Mediterrâneo, em particular no Levante espanhol, Catalunha, Baleares, sul de França e Itália, o coral foi explorado com mais intensidade e até ao século XIX, circunstância provocadora, no mínimo, de uma certa concorrência ao coral português.
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Pescadores coraleiros em plena actividade. Os submersos manipulam os instrumentos de extração do coral (coraleiras), enquanto os que estão à superfície puxam as coraleiras com os cestos carregados de coral. Gravura do século XIX. (Fonte: Drassana: revista del Museu Maritim, n.º 2 (1994). Barcelona: Consorci de les Drassanes de Barcelona, p. 22

.Pormenor de uma arte coraleira segundo o Diccionário Histórico de las Artes de la Pesca Nacional (1791-1795), de A. Sáñrz Reguart. Fonte: Drassana: revista del Museu Maritim, n.º 2 (1994). Barcelona: Consorci de les Drassanes de Barcelona, p. 18

Bibliografia:

LOBO, Constantino Botelho de Lacerda (1991 [2.ª ed.]) - Memória sobre a decadência das pescarias de Portugal in Memórias Económicas da Academia Real das Ciências de Lisboa (1789-1815). Lisboa: Banco de Portugal, tomo IV

Pequenas batalhas navais III (Trafaria, século XVIII)

Ao contrário das anteriores batalhas navais descritas, envolvendo forças militares, a pequena batalha naval relatada neste post trata-se de um episódio de violência no mar entre grupos civis, a saber, pescadores da Trafaria e um grupo de algarvios. O relato da batalha foi impresso na Catalunha, anonimamente e sem data, mas é muito provavel datar-se do século XVIII, período de actividade da casa tipográfica onde foi impresso. Tem como título Nova relação da batalha naval que tiveram os algarvios com os saveiros nos mares, que confinam com o celebrado paiz da Trafaria, e não existe sobre esta obra qualquer referência nos compêndios de bibliografia que ajude a atribuir-lhe autoria e uma data concreta. O relato da batalha foi republicado em 1980 por João Palma-Ferreira, integrado numa antologia de textos sobre naufrágios e batalhas navais, o qual se transcreve com algumas pequenas supressões por economia de texto.
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«Nova relação da batalha naval que tiveram os algarvios com o saveiros nos mares que confinam com o celebrado país da Trafaria
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Em uma tarde do ardente Julho, [...] apareceu, em travessia do Cabo Espinhel (sic), a bombordo da nossa barra de Lisboa, uma armada de embarcações do Algarve, que constava de três lanchas guarnecidas, cada uma delas, com bastantes algarvios, vinte e tantos chuços, dezoito bicheiros, nove facas flamengas, vinte e cinco navalhas de dez réis e setenta e tantos cachimbos, entre velhos e novos; e assim vinham preparados para o que pudesse suceder, pois esta gente do Algarve, como são ali confinantes com os mouros, por isso todos são arrenegados [...].
Vai senão quando vindo estes três piratas do presente, por lhe faltar o contrato do passado, já dentro do nosso Tejo, tomando rumo da parte colateral do Bugio, chegaram à frente daquela famosa terra da Trafaria, [...] divisou uns vultos no meio da água; e entendendo ser atum ou golfinho deu logo parte ao seu comandante, e mandou este que voltassem por estibordo e que fossem a provar a natureza daqueles monstros marinhos. [...] entendendo ser empresa em que pudessem tirar os ventres de miséria, entraram a remar com toda a força e chegando aos ditos vultos, acharam-se engasgados com bóias de uma rede que ali tinham botado os ditos saveiros. Fizeram consulta entre si e votaram que se levantasse a rede e se saqueasse o peixe e tudo o mais que pudessem agadanhar para saciarem a desesperada fome das suas negregadas barrigas. Porém, estando todos nesta diligência, sucedeu vir um dos saveiros saindo da costa que fica ao sul da Trafaria, [...] e vendo este que ao redor da rede se divisavam três embarcações, supôs logo serem piratas e remando para trás com toda a força, foi logo dar parte aos companheiros [...]. Estes, que também não são moles pelo rústico modo de viver, [...] desassossegados com o aviso, deram logo ordem, com toda a pressa, a botarem as suas embarcações ao mar; armando-se de cacheiras, chuços, paus e facas, se embarcaram valorosos [...] e remando com inexplicável ligeireza chegaram a avistar as embarcações dos algarvios que já a este tempo tinham saqueado a rede com todo o peixe.
[...] chegando os saveiros a tiro de cachamorra e certificando-se de que eles lhe tinham furtado a rede com o peixe, [...] deram princípio à mais furibunda batalha que se tem visto cá nos nossos tempos.
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Pois juntando-se os saveiros, que eram sete, todos em fileira, fizeram cerco às três embarcações dos algarvios e estes, vendo-se no meio, lançaram mãos aos chuços e travando-se dura guerra de parte a parte, era tão grande o marcial estrépito [...] que toda a gente de Trafaria saiu a campo, sem que ficasse velhas no canto da chaminé, nem moça na porta da rua que não acudisse à praia, adonde se avistava o lugar da batalha; aqui já soavam as vozes de que tinham morrido cinco e dois que caíram ao mar, afogados e trinta e tantos feridos de uma e outra parte, certificando-se esta notícia com o sangue que já era tanto que chegava a tingir as brancas areias das cristalinas praias e qual outro Mar Vermelho apareceu o nosso Tejo nesta ocasião, que faltando já as forças a uns por feridos e as vidas a outros por mortos, metendo-se de permeio a obscuridade da noite, deram fim à batalha com grandes destroços de parte a parte.
E indo-se já recolhendo a justiça que teve notícia do sucesso, saltando-lhe ancas, prendeu tudo, fora uns poucos que fugiram e, passando-se só alvará de soltura aos que ficaram mortos, levaram trinta e tantos para a torre do Bugio e vinte e sete se acham no tronco desta cidade. [...]»
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Os algarvios sempre foram assíduos frequentadores do estuário do Tejo. Desde a Idade Média que grande parte do comércio entre o Algarve e Lisboa se fazia por via marítima. Talvez os protagonistas desta batalha estivessem empregados no transporte de mercadorias e no auge do desespero de uma crise ou aproveitando uma oportunidade de saque se entregassem a actos de banditismo.

Caíque algarvio, embarcação de pequena tonelagem e de navegação de cabotagem, utilizada na pesca e no transporte de mercadorias até ao inicio do século XX. É possível que as três embarcações dos algarvios referidas na narração da batalha da Trafaria fossem caíques. Imagem publicada por Artur Baldaque da Silva em Estado actual das pescas em Portugal, 1891. (Fonte: CAVACO, Carminda, 1976 - O Algarve Oriental: as vilas, o campo e o mar. Faro: Gabinete do Planeamento da Região do Algarve, vol. 2, p. 222)

Bibliografia:

Naufrágios, viagens, fantasias & batalhas - selecção, pref., leitura de texto e notas de João Palma-Ferreira. Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1980, pp. 31, 32

Pequenas batalhas navais II (Albufeira, 1554)

Desde o término da Reconquista, em 1249, até ao início do século XIX, a orla costeira portuguesa foi frequentemente atacada por corsários magrebinos. Oriundos de Argel, Salé, Tetuão, Trípoli e Tunes, rapidamente alcançavam a costa meridional da Península Ibérica através dos ventos favoráveis na maior parte do ano. Entre a Primavera e o Outono a população e o tráfego marítimo tinham de estar precavidos, particularmente no Algarve, a zona mais afectada pelo corso norte africano, pois a qualquer momento poderia surgir no horizonte uma frota de corsários. As operações de corso não eram de grande espectacularidade, procuravam alvos fáceis, tais como embarcações isoladas, de pequena tonelagem, e pequenas aldeias junto à costa. Ao contrário do corso francês, inglês e holandês, que procurava as ricas frotas das Américas, estes buscavam o rapto de pessoas, fosse quem fosse. Os elevados resgates pagos pelos familiares das vítimas, pelos religiosos da Ordem da Santíssima Trindade, pelas Misericórdias ou ainda pelo tesouro régio, faziam desta actividade um próspero negócio. Se o raptado não fosse resgatado ao fim de um certo período, o mais certo era ser vendido para o mercado de escravos, ou ser usado como remador forçado nas galés corsárias. Enfim, a perda nunca era total , valendo o esforço e risco.
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Cedo também as autoridades portuguesas implementaram acções de defesa e prevenção. Depois da terra, o mar era a nova fronteira. A partir dele vinham os perigos. Ergueram-se torres de vigia e fortes ao longo da costa. Aos mais suscetíveis de serem atacados, como os pescadores, autorizou-se o porte de armas brancas. Porém, a acção mais preventiva foi talvez a organização da Armada de Guarda Costa. Tinha como missão patrulhar todos os anos, entre a Primavera e o Outono, a costa até ao Estreito de Gibraltar, com o objectivo de combater em pleno mar as frotas corsárias, evitando assim os ataques em terra. Na maioria das vezes os corsários evitavam o confronto, mas em certas ocasiões travavam-se pequenas batalhas navais, com a que se descreve, ao largo de Albufeira em 1554.
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« [...] Dom Pedro da Cunha, Capitam Moor das minhas galés e da mais armada que traguo na costa do Reino do Algarve pera defemsam dela, que sabendo o dito Dom Pedro que eram vindos oyto navios de remo de turquos de Argel, de que era capitam Cazale, turquo, pesoa de muita expeiremcia e credicto amtre os turquos de Argel para saltear e daneficarem os lugares da costa do Reino do Algarve, correra a dita costa omde chegou nova como aos XX deste mes quatro dos dictos navios lamçaram jemte fora jumto a dita vila de Albofeira e dahy a hũua leguoa os descobrio que vinham corremdo a costa. E como o viram se fizeram de volta ao maar para ver se se poderiam por a balrravemto dele, o qual trabalhou de se por a balrravemto dos dictos navios, e hũus e outros remaram desta maneira, mais de tres leguoas ao mar. E ficando ja o dicto Dom Pedro com a sua galee a balrravemto dos dictos navios deu vela em popa comtra a galee capitaina dos dictos turquos; a qual era de vinte e hũu bamcos e a ymvestio quasy pelo meo e lhe meteo o esporam de madeira que se nam poderam mays aparttar, e tirada artelharia sua e dos turquos ficaram aas arcabuzadas. Trazia a dita galee oytemta remeiros, dos quaes eram setemta christaãos e trazia mais de setemta arcabuzeiros, e o mays deles alem dos arcabuzes traziam arcos turquiscos. Emtraram quinze ou vimte turcos pola proa na galee do dicto Dom Pedro, matando e ferindo aa espada. Tornou os a lamçar fora e alguus deles ficaram morttos, e alem de asy pelejarem aa espada, nam cesava de juguar de hũua partte e da outra a arcabuzaria. Durou a peleja mays de duas oras, per derradeiro a remdeo o dicto Dom Pedro e premdeo o dicto Cazale, capitam dela, com lhe primeiro matarem quarenta turcos e a mor partte dos outros muito feridos. E eles mataram ao dicto Dom Pedro nove homens e feriram lhe quasy cimcoenta, antre forçados, soldados e criados de Sua Alteza.
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Dom Vasco da Cunha, yrmão do dicto Dom Pedro, capitam doutra galee ymvestio outro navio dos dictos turquos de dezanove bamcos e o remdeo e durou a peleja huua ora. O dicto navio trazia sesemta arcabuzeiros turquos e quasy toda a remavam christaãos captivos. Mataram ao dicto Dom Vasco oyto homens e feriram lhe quaremta.
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Dom Nuno da Cunha, tambem capitam doutra galee deu caça a duas fustas do dito turquo que ficavam mays perto do dicto Dom Nuno, e abalroou com hũua, e a remdeo, onde lhe mataram tres homens e feriram quinze, e ao entrar da dita fusta socobrou e virou a quilha para cima. Deu lhe huu cabo para a trazer, pareçe que se salvara posto que os mares eram grandes e o vemto muito e estava sette leguoas de terra.
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A outra fusta vemdo o desbarato dos tres navios fugiu. Dizse que se tomariam em todos os tres navios mays de duzemtos turquos e que os christaãos que se neles acharam, que amdavam captivos e forçados seriam cento. Nam se sabe aymda em certto o ditto número de turcos, nem dos christaãos. Dos outros quatro navios de turquos que vinham em comserva destes outros nam se sabe mays deles, que a noyte pasada do dia da peleja se aparttarem por gramde vento que fazia. [...] (IRIA, apud GUEDES, 1988, pp. 37, 38)»*
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Combate entre galés da Ordem de Malta e galés turcas no Mediterrãneo. Como ilustra esta expressiva imagem, os combates navais envolvendo galés privilegiavam a táctica da abordagem e a luta corpo a corpo, tal como ocorreu ao largo de Albufeira em 1554. Gravura de J. Callot, séc. XVII. Fonte: GUERREIRO, Luís R. - O grande livro da pirataria e do corso. [S.l.]: Temas e Debates, 1997, p. 210
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Notas:
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* Esta transcrição é um trecho da carta que o rei D. João III escreve a D. Duarte, embaixador português no Sacro Império Romano-Germânico, datada de Julho de 1554. Foi publicada por Alberto Iria em 1976, na obra Da importância geo-política do Algarve na defesa marítima de Portugal nos séculos XV a XVIII, p. 41.
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Bibliografia:
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GUEDES, Lívio da Costa (1988) - Aspectos do Reino do Algarve nos séculos XVI e XVII: a «Descripção» de Alexandre Massai (1621). Lisboa: Arquivo Histórico Militar

Pequenas batalhas navais I (barra de Lisboa, 1706)

Inicia-se com este post uma pequena série de três descrições de pequenas batalhas navais que ocorreram ao largo da costa de Portugal. Entende-se por pequenas batalhas navais confrontos violentos entre várias embarcações e respectivas equipagens, sem qualquer consequência politico-militar, episódios de guerra omitidos nas grandes sínteses históricas, mas registados por autores coevos, de cujo relato nós recorremos para a sua descrição.
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A primeira batalha naval deste conjunto de textos desferiu-se à entrada da barra de Lisboa no mês de Maio de 1706, e foi relatada por José Soares da Silva, académico de número da Academia Real de História, na Gazeta em forma de carta, manuscrito publicado pela Biblioteca Nacional em 1933.
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«Chegarão as nossas frotas, com o favor de Deus, e só com o favor de Deus, fiado no qual vierão do Brazil 150 naos (tais, quais nem em numero, nem em riqueza entrarão nunca neste porto) em as tres frotas da Bahia, Rio e Pernambuco. Entrarão primeiro as de Pernambuco, e Bahia que fazião 108 naos mercantes com 5 de comboy, as quais aqui na barra se encontrarão com duas naos de guerra de França, e hum pataxo de fogo, que com toda a rezolução investirão logo a mais possante da frota, a qual se havia apartado das outras mais do necessario, e era a nao Alamoda, de que era capitam Antonio Vas Salgado, sobrinho de Antonio Dias Rego, que sem se lhe dar dos avizos do tio, cabo de toda a frota, se meteu debaxo da artilharia franceza, que com effeito a poucos passos, ou a poucos tiros a rendeu logo; a tempo que ja lhe acudia o Rego, ao qual as duas quizerão fazer o mesmo, atracando a cada hua por seu costado; e assim briga 7 oras incessantemente; sendo as quatro companheiras testemunhas de como aquilo se fazia; e so no fim da obra chegou hu capitam a dar lhe então hua carga por despedida, e de largo, pelo que podia suceder. Se estes Senhores tivessem que lhes ensinasse o como isto se fazia, elles o não fizerão como o fizerão. O que he sem duvida, que só a nao S. João de Deus, em que vinha o Rego, livrou a nao Alamoda, e muita parte da frota de irem a salvamento a França; que os outros capitães faltava-lhe o vento, e derão em calmaria: e tambem he certo que a poder ella jogar a artilharia debaxo (o que não fez por muito carregada, que he moda galante dos nossos comboys) talvez que entrara com mais algua nao das que trazia. Custou a galhofa a vida do tal capitam Salgado (vá com Deus) e a do nosso Rego (que he lastima) que na peleja o matavão, ficando tambem sem hum braço o capitam tenente , e mais de cento e tantos mortos e feridos: o que tudo sei de pessoa grave e fidedigna, que foi testemunha de vista, e que na verdade tem bem que contar da batalha. A frota do Rio entrou depois com melhor successo, e com melhores conductores (SILVA, 1933, pp. 64, 65).»*
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A Guerra da Sucessão de Espanha (1701 - 1714), na qual Portugal participou em aliança com a Inglaterra e as Províncias Unidas (à época conhecidas como Potências Marítimas) expôs a frente marítima portuguesa às acções ofensivas dos navios franceses, sobretudo de corsários (GUERREIRO, 1997, pp. 281 - 289). Estes navegavam entre o continente e arquipélago dos Açores, na expectativa de conseguirem assaltar as frotas vindas do Brasil. A conjuntura de guerra veio mostrar as debilidades da marinha portuguesa em conseguir defender as frotas vindas das colónias, conforme demonstra a batalha naval descrita, e em proteger o vasto litoral ultramarino, como aconteceu em 1708 quando os franceses saqueiam a ilha de São Jorge e de S. Tomé, ou em 1711 no Rio de Janeiro onde o corsário francês Duguay-Trouin ocupou a cidade durante mais de um mês.
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Notas:
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* Na transcrição do texto desdobraram-se as abreviaturas e regularizaram-se as maiúsculas.
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Bibliografia:
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SILVA, José Soares da (1933) - Gazeta em forma de carta (anos 1701 - 1716). Lisboa: Biblioteca Nacional, tomo I
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GUERREIRO, Luís R. (1997) - O grande livro da pirataria e do corso. [S.l.]: Temas e Debates

As campanhas oceanográficas do rei D. Carlos

Desde a expansão marítima e até ao fim do século XIX, o mar foi visto sobretudo como uma via de comunicação entre Portugal e o resto do mundo, particularmente com as colónias, e um palco de guerra onde se defendiam as frotas mercantes, as rotas comerciais e a costa do reino dos ataques de corsários e potências rivais. Foram poucos os que viram no mar uma fonte de conhecimento científico.
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As campanhas oceanográficas do rei D. Carlos (1889 - 1908) introduziram uma outra visão do mar português. Por elas o mar constituía-se mundo em sim mesmo, revelador de segredos e conhecimentos ignorados, um novo espaço de expansão que justificava o investimento de recursos para o seu estudo científico. Compreendendo o valor do oceano, D. Carlos patrocinou 12 campanhas oceanográficas a bordo do iate Amélia entre 1896 e 1907. Neste projecto contou com a preciosa orientação científica do naturalista Alberto Alexandre Artur Girard (1860 - 1914), conservador do Museu de História Natural de Escola Politécnica e o organizador da colecção oceanográfica resultante das investigações. O objectivo principal do estudo oceanográfico da costa portuguesa era o conhecimento exaustivo da fauna marítima, especialmente aquela com maior valor económico para a pesca. Esperava-se por via do estudo das espécies desenvolver métodos de pesca mais eficazes. A intensa actividade oceanográfica desenvolvida passou ainda por campos tão diversos como o estudo das correntes ou da topografia dos fundos marítimos, tendo inclusivamente chegado a reconhecer a existência de profundos vales submarinos próximo da costa, na região do Cabo Espichel.
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O iate Amélia. Imagem do desenho oferecido pelo rei D. Carlos a Alexandre Girard como recordação da campanha oceanográfica de 1896. (fonte: PAILLER, Jean - D. Carlos I, Rei de Portugal: destino maldito de um rei sacrificado. Lisboa: Bertrand Editora, 2002)

Ao fim de 12 campanhas, foi reunida uma colecção oceanográfica de elevado valor científico, ainda mais que eram poucos os países na altura com projectos oceanográficos. D. Carlos como mecenas e Girard como cientista colocaram Portugal na vanguarda mundial do estudo do mar no início do século XX. Não se pouparam esforços para divulgar a colecção e o resultado dos estudos Foram feitas exposições públicas, como a que inaugurou o Aquário Vasco da Gama em 1898, com o material recolhido nas campanhas de 1897 e 1898, no Rio de Janeiro e em Milão. Nesta última cidade a colecção oceanográfica foi bastante lisonjeada pela imprensa e comunidade científica. Editaram-se as seguintes obras para divulgar a investigação oceanográfica portuguesa na comunidade científica:

Yacht Amélia: campanha oceanográfica de 1896. Lisboa: Imprensa Nacional, 1897

Resultado das investigações científicas feitas a bordo do yacht “Amélia” e sob a direcção de D. Carlos de Bragança: pescas marítimas. Lisboa: Imprensa Nacional, 1899 - 1904, 2 vols. Vol. I: A pesca do atum no Algarve em 1898 (Ichthyologia); vol. II: Esqualos obtidos nas costas de Portugal durante as Campanhas de 1896 - 1903

D. Carlos de Bragança - bulletin des campagnescientifiques accomplies sur le yacht “Amélia”. Lisbonne: Imprimerie Nationele, 1902, 112 p.

. Alexandre Girard (1860 - 1914), responsável científico das campanhas oceanográficas. (fonte: PAILLER, Jean - D. Carlos I, Rei de Portugal: destino maldito de um rei sacrificado. Lisboa: Bertrand Editora, 2002)

Pretendia o rei D. Carlos inaugurar um museu oceanográfico no Palácio das Necessidades, mas o seu assassinato em 1908 gorou essa intenção. D. Manuel cedeu em 1910 a colecção à Liga Naval Portuguesa, que inaugurou a Secção Oceanográfica D.Carlos I do então Museu de Marinha, situado no Palácio dos Duques de Palmela, ao Calhariz. Mais tarde, com a extinção da Liga Naval Portuguesa em 1929, a colecção transita para o Museu Condes de Castro Guimarães, em Cascais, sendo doada por escritura pública notarial e por decreto-lei de 11 de Junho de 1935, ao Aquário Vasco da Gama-Estação de Biologia Marítima. A Biblioteca Científica do Rei, incluindo verdadeiras preciosidades bibliográficas e constituindo um espólio de valor inimaginável, foi também oferecida nessa mesma altura. Desde então, o Aquário Vasco da Gama tem sido responsável pela conservação deste fantástico património, parcialmente em exposição permanente ao público visitante desde 20 de Maio de 1943, por ocasião do 45º aniversário desta instituição, altura em que reabriu ao público o Museu Oceanográfico D. Carlos I.

Bibliografia:

http://aquariovgama.marinha.pt/AVGama/Site/PT/Museu/Coleccao_rei/

http://aquariovgama.marinha.pt/AVGama/Site/PT/Museu/rei_dom_carlos/

SILVA, Inocêncio Francisco da (1810 - 1876); ARANHA, Brito (1833 - 1914) - Diccionario bibliographico portuguez [doc. electrónico]. Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 2001

A pesca em Portugal no final do século XVIII

A Academia das Ciências de Lisboa (ACL), fundada em 1779, teve por objectivo o adiantamento da agricultura, das artes, e da indústria em Portugal e suas conquistas. Para esse fim, e no âmbito do pensamento económico fisiocrático, do qual era a principal representante em Portugal, patrocinou inúmeros estudos sobre o desenvolvimento da economia nacional. Constantino Botelho de Lacerda Lobo (1754 -1821), professor de física da Universidade de Coimbra e sócio da ACL, foi um dos estudiosos patrocinados pela ACL, dedicando parte dos seus esforços ao estudo da economia marítima portuguesa nos anos 1789 a 1791, mais concretamente sobre a actividade da pesca e da salinicultura.
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Efectuou 3 viagens para avaliar o estado das pescas em Portugal. De 1789 a 1791 viajou à costa de Entre Douro e Minho e ao litoral entre a foz do Sado e Guadiana. Dessas viagens de observação resultaram 4 estudos publicados nas Memórias da Academia das Ciências de Lisboa nos tomos III, IV, e V, nos anos 1791, 1812 e 1815 respectivamente. Um dos estudos é de âmbito local (Monte Gordo), dois são de âmbito regional (Algarve e Entre Douro e Minho) e um outro é de âmbito nacional (Portugal Continental), não obstante ser muito parco em informações sobre as comunidades piscatórias situadas entre a foz do Mondego e Sado.
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Barco de pesca da Ericeira. Imagem dos finais do século XVIII inserida no 4.º vol. da obra Algemeines Worterbuch der Marine de Jhoam Hinrich Roding, publicada por António J. Nabais. (Fonte: NABAIS, António J. - Barcos, 2.ª ed., Seixal:Câmara Municipal do Seixal, 1984, p. 75)
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População piscatória em 1789/1790
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Do cômputo dos elementos quantitativos publicados por Constantino B. L. Lobo é possível determinar os seguintes dados: na região Entre Douro e Minho, existiam em 1789, 8 comunidades piscatórias (S. João da Foz, Matosinhos, Vila do Conde, Póvoa de Varzim, Esposende, Fão, Viana do Castelo e Caminha) com 2 466 pescadores e 532 embarcações.(LOBO (b), 1991, [2.ª ed.], pp. 289 - 313).
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Para o Algarve, em 1790, existiam 13 comunidades piscatórias (Lagos, Alvor, Portimão, Ferragudo, Armação de Pêra, Albufeira, Quarteira, Faro, Olhão, Fuzeta, Tavira, V. R. Santo António e Castro Marim), com 3 811 pescadores e 354 embarcações (Idem (c), 1991, [2ª. ed.], pp. 69 - 101). Os valores destas regiões referentes ao número de pescadores totalizam 6 277 pescadores.
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Pensando nós que o restante litoral português não aglomerava um número de pescadores superior à região Entre Douro e Minho e Algarve, a população piscatória portuguesa nos anos 1789/1790 não devia ultrapassar os 12 500 efectivos.
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A decadência das pescas: os sintomas
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Constantino B. L. Lobo avaliou o estado das pescas como decadente. Como sintomas dessa decadência considera:
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1 - O abandono de diversos ramos da pesca, como a pesca do bacalhau, da baleia e do coral (Idem (a), 1991, [2ª ed.], p. 263) outrora praticados pelos pescadores portugueses.
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2 - A crise de vocação profissional, devido os filhos dos pescadores não quererem seguir a actividade dos pais. A pouca atractividade social da pesca foi verificada em diversos lugares (Viana, Vila do Conde, Matosinhos, S. João da Foz, Aveiro Setúbal, Algarve), factor que provocava a falta generalizada de mão de obra no sector pesqueiro (Ibidem, pp. 262, 263, 266, 274, 280). A pobreza, as dificuldades e entraves ao exercício da pesca desviavam os pescadores para a emigração no Brasil e Espanha ou para outras actividades económicas.
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3 - A importação de pescado, sobretudo da Galiza, para determinadas regiões do país, como o Minho, região antes auto-suficiente e exportadora de peixe constituía outro dos sinais de decadência (Ibidem, p. 262 - 264). Mesmo as comunidades piscatórias mais produtivas, como Póvoa de Varzim, eram incapazes de satisfazer a procura dos mercados regionais (Ibidem, p. 263).

Lancha de pesca do alto. Imagem dos finais do século XVIII inserida no 4.º vol. da obra Algemeines Worterbuch der Marine de Jhoam Hinrich Roding, publicada por Nabais. (Fonte: NABAIS, António J. - Barcos, 2.ª ed., Seixal: Câmara Municipal do Seixal, 1984, p. 69)

A decadência das pescas: as causas

Segundo Constantino B. L. Lobo, as causas da crise da pesca eram as seguintes:

1 - A ausência de capital para um desempenho positivo da pesca, «porque qualquer pescador, que houver de ser ocupado nela na maior parte dos lugares da nossa costa, deverá de ter ao menos seis redes de pescada, e outras tantas mugigangas, ou redes sardinheiras, três mengoeiras, oito rascas, um espinhel, um barco, e quantidade de casca de salgueiro que for precisa para tingir as redes. As despesas de todos estes aparelhos são incompatíveis com a grande pobreza, em que vivem nossos pescadores» (Ibidem, pp. 271, 272).

2 - Desiquílibrio na distribuição do lucro. Estando a maioria dos pescadores descapitalizados para investirem na aquisição de embarcações e aparelhos de pesca próprios, grande parte exerciam a actividade sob arrendamento desses equipamentos, situação que deixava ao pescador reduzida margem de lucro, porque uma parte substancial do pescado destinava-se ao pagamento da renda de utilização da embarcação e/ou redes. Sobre o reduzido lucro incidiam os direitos fiscais, agravando ainda mais as condições de rendimento do pescador. «Por isso muitos pescadores andam mendigando de porta em porta no tempo de Inverno, quando não podem ir ao mar» (Ibidem, p. 272).

3 - A falta de formação especializada para um exacto conhecimento hidrográfico do fundo marinho, dos locais mais propícios à pesca, das espécies e seus movimentos migratórios, era outro dos factores concorrentes para a ruína das pescas. Na opinião de Constantino B. L. Lobo os filhos dos pescadores reuniam os requisitos para aprenderem todos os segredos da profissão. Contudo, estes preferiam emigrar ou aprender algum oficio mecânico (Ibidem, pp. 273, 274). 4 - O abuso das prerrogativas dos rendeiros dos direitos, das autoridades municipais, eclesiásticas, militares e de pessoas poderosas sobre as comunidades piscatórias. Recolha indevida de direitos, proibições de pescar durante os dias santos e domingos, recrutamento compulsivo para o exército e interdições de vária ordem, constituíam abusos e violências praticados contra os pescadores desde há muito, incentivando a emigração dos pescadores para Espanha e o Brasil (Ibidem, pp. 275 - 282).

4 - Problemas técnicos, nomeadamente a malha demasiado pequena das redes que contribuia para a captura de peixe demasiado pequeno para a salga e posterior comercialização, e a acção dos caneiros nos rios que provocava a excassez de peixe (Ibidem, pp. 283, 284).

5 - O assoreamento das barras, prejudicial à navegação das embarcações de pesca de maior tonelagem (Ibidem, pp. 287, 288).

6 - A falta de tanques de água doce junto da linha de costa para lavagem das redes (Ibidem, p. 288).

Bibliografia:

LOBO (a), Constantino Botelho de Lacerda (1991) - Memória sobre a decadência das pescarias de Portugal, in Memórias Económicas da Academia das Ciências de Lisboa, 2.º ed., Lisboa: Banco de Portugal, tomo IV, pp. 241 - 288

Idem (b), (1991) - Memória sobre algumas observações feitas no ano de 1789 relativas ao estado da pescaria da província de Entre Douro e Minho, in Memórias Económicas da Academia da Ciências de Lisboa, 2.ª ed., Lisboa: Banco de Portugal, tomo IV, pp. 289 - 314

Idem (c), (1991) - Memória sobre o estado das pescarias da costa do Algarve no ano de 1790, in Memórias Económicas da Academia das Ciências de Lisboa, 2.ª ed., Lisboa: Banco de Portugal, tomo V, pp. 69 - 102

O projecto naval do conde de Castelo Melhor

Pelo tratado militar e comercial de 1661 com a Inglaterra e o tratado de paz de 1663 com as Províncias Unidas, estabelecidos no âmbito da política de alianças militares da Guerra da Restauração, Portugal permitia a liberdade de navegação nos seus domínios ultramarinos aos súbditos destas duas potências, legalizando uma situação que antes de 1640 era considerada beligerante. Alterava-se deste modo o paradigma de navegação no Atlântico Sul, que de monopólio passa a concorrencial com as marinhas mercantes dos aliados. Estas, mais numerosas, ponham em causa o domínio português do Atlântico Sul. Por outro lado, o acesso directo, na origem, aos produtos coloniais brasileiros (açucar, madeiras tropicais, tabaco), por parte dos mercadores ingleses e holandeses, sobretudo os da Companhia Holandesa das Indias Ocidentais, retirava a Portugal o papel de grande centro abastecedor dos mercados do nordeste europeu com duras repercussões para as receitas do tesouro régio.
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Reconhecendo o grave prejuízo económico desta situação, D. Luís de Vasconcellos e Souza, 3º conde de Castelo Melhor, ministro de D. Afonso VI, gizou um plano destinado a eliminar a navegação estrangeira e assegurar a hegemonia da marinha mercante portuguesa no transporte marítimo de e para o Brasil. O plano está expresso em dois pareceres enviados ao rei, de 15 e 24 de Agosto de 1664, onde explica todo o processo de execução (Souza, 2001, p. 189-201).
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D. Luís de Vasconcellos e Souza (1636-1720), 3º Conde de Castelo Melhor, Escrivão da Puridade de D. Afonso VI entre 1661 e 1667. Fonte: ( SOUZA, 2001)
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O afastamento da presença marítima inglesa e holandesa da costa brasileira dependeria da evolução dos preços no sentido do custo mais barato dos produtos aos mercadores holandeses e ingleses em Lisboa do que nos portos brasileiros. Só seria possível tornar os preços mais competitivos mediante um stock permanente em quantidades suficientes que viabilizassem uma baixa de preços. O preço do açucar carregado em Lisboa teria de ser competitivo a ponto de não justificar economicamente a viagem dos concorrentes ao local de produção, declarando Castelo Melhor «Se Portugal trouxer assim tanto açucar, que em todo o tempo os navios estrangeiros tenham carga que levar em retôrno da que trouxeram, tenho por certo que não buscarão em nenhuma outra parte. Regularmente podemos pôr no preço o açucar de Inglaterra com o nosso. [...] Deixo de falar em que, quando haja muito açucar, valerá menos o nosso do que o seu e ser esta uma das principais razões para arruinar o tráfego desta droga nas suas terras. [...] Digo que nesta droga, vindo-a buscar a Portugal, ganham 30 por 100.» (Souza, 2001, p. 196). A existência de um stock ineterrupto implicava um regular afluxo de produtos do Brasil. Por conseguinte, era de extrema importância a vinda atempada das frotas, sem atrasos, de forma a assegurar uma eficaz capacidade de resposta da metrópole às exigências do mercado europeu. Se os negociantes ingleses e holandeses encontrassem o porto de Lisboa em ruptura de stock devido à demora da frota, mantinham-se os motivos da sua navegação para o Brasil.
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Sendo a regular chegada das frotas mercantes um factor chave, a implementação do plano assentava num único eixo: a reforma da Companhia Geral do Comércio do Brasil (CGCB), entidade dominadora da navegação mercante para o Brasil. Esta companhia instituida em 1649, à semelhança das companhias de comércio holandesas, tinha por finalidade a segurança do transporte marítimo que a coroa em extremas dificuldades financeiras era incapaz de garantir. Para isso a CGCB estipulou com o rei D. João IV o enviou de duas frotas anuais de 18 embarcações de guerra armadas com 20 a 30 canhões. Em contrapartida foil-lhe concedido o monopólio do comércio do vinho, azeite, cereais e bacalhau para o Brasil, o privilégio de poder estabelecer uma taxa sobre todos os fardos de açucar, tabaco, algodão, peles transportados e o monopólio da exportação das madeiras tropicais (Monteiro, 2003). Não obstante os privilégios comerciais e fiscais, o investimento privado de 1.200.000 cruzados foi insuficiente para manter o compromisso de duas frotas anuais. Resultante desta incapacidade financeira a CGCB apenas enviou uma frota, posteriormente reduzida a 10 embarcações e na regência de D. Catarina ficou reduzida a 7 unidades. A frota da CGCB chegava frequentemente atrasada, provocando longos períodos de carência de produtos, circunstância que fazia perigar toda a navegação portuguesa nos mares do sul . Escreve Castelo Melhor: «Parece-me que nos havemos de valer da proposta da companhia em que sejam duas as frotas que todos os anos vão para aquele estado, e venham dele. Com isto se evitarão aos homens as demoras que fazem, porque os que não alcançarem uma frota lhe fica muito fácil esperar para a outra, e dois mêses de detença arruinarão menos. Indo duas frotas cada ano, se evitará o poderem os estrangeiros navegar para as conquistas (Souza, 2001, p. 197).
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Enquanto a CGCB não garantisse a navegação normalizada, respondendo em pleno às exigências de consumo do holandeses e ingleses a preços competitivos, estes teriam motivo para se abastecerem no Brasil. Perante a situação financeira da CGCB, impossibilitadora do envio de duas frotas anuais, ou seja, impossibilitadora do cumprimento do contrato estabelecido com o Rei, Castelo Melhor recomendava a integração da empresa na administração da coroa, sendo os investidores da empresa recompensados pela transferência dos seus interesses para rendimentos da coroa mais seguros e garantidos como era o contrato do tabaco (Ibid., 2001, p. 193). Caso os proprietários da CGCB não aceitassem a integração na administração real, o ministro aconselhava D. Afonso VI a obrigá-los a indemenizar a coroa por todas as embarcações não enviadas, ou em alternativa, obrigar ao pagamento de uma parte das das compensações financeiras a ceder aos holandeses pelo tratado de paz de 1663, que tornava menos perigoça a navegação, logo não obrigava a tantos gastos de defesa das frotas a que estavam obrigados por contrato (Ibid., 2001, p. 190). Os investidores não tiveram outra opção senão aceitarem a proposta de Castelo Melhor.
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Concretizado o processo de "nacionalização" da empresa, haveria lugar à reorganização da navegação e das frotas. Relativamente ao modelo de navegação, Castelo Melhor reconhecia as vantagens navegação livre, sem monopólios privados, para o desincetivo da navegação estrangeira e para a melhoria das receitas do reino. Diz «É conveniente que se navegue mais livremente e que não sejam os estrangeiros quem façam esta nevegação.
De se navegar mais livremente resultará o virem mais drogas e, quando não venham mais, sempre virão a melhor tempo, porque o vir muito açucar junto faz ordinàriamente que não seja tão reputado, e se este vier aos poucos sempre terá melhor reputação. Seguir-se-ão daqui ao Reino duas grandes utilidades. A primeira, o rendimento das alfandegas e mais direitos reais, porque quanto mais vier a portugal das conquistas, mais virão a ele buscar os estrangeiros e para virem buscar muito não hão-de trazer pouco, e não trazendo pouco é certo que hão-de render as alfandegas muito [...].
A segunda é que como não há nação no mundo que tão comodamente possa navegar esta droga de açucar, dando-a por melhor preço que a Portuguêsa, por este meio pode evitar que nenhuma outra queira se não pelas suas mãos.» (Ibid., 2001, p. 196) .
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Quanto à organização da frota, a armada da CGCB deveria ter uma frota de 6 galeões e 12 fragatas. A esta armada juntar-se-ia algumas embarcações da armada real, de modo a perfazer um armada composta por 10 galeões e 24 fragatas em prontidão permanente. (Ibid., 2001, p. 192) As frotas organizar-se-iam da seguinte forma: «As frotas me parece sejam de dois navios de guerra cada uma; um pode ir ao Rio de Janeiro, outro ficar na Baia, sendo a maior defêsa de toda a frota armada que V. Mde trouxer no mar, aqui [Portugal continental] e na altura das Ilhas [Açores], e em caso que para o Brasil passe algum corsário, das fragatas de V. Mde se poderão apartar aquelas que bastem para os irem buscar [...]» (Ibid., 2001, p. 197). Estimava Castelo Melhor que houvessem cerca de 15 000 homens de mar em todo o reino. «Destes sempre se poderão escolher 2.000. Com este número se guarnecerão as 24 fragatas e quando faltem 300 ou 400 sempre os estrangeiros suprirão [...] Com esta gente e com outra tanta de guerra havemos de guarnecer esta armada porque ainda hà-de haver muitas fragatas dela que tenham 200 homens de guarnição, muitas não excederão o número de 100 e, [...] para que se possa V. Mde servir dos homens do mar, como convem para esta armada, farei presente a V. Mde quais são os seus privilégios e como deles se usa hoje e o remédio que deve haver para que esta gente, sobre o privilégio que gozam, não custe a V. Mde mais do que a outra de guerra.» (Ibid., 2001, p. 199, 200). Os 10 galeões e 24 fragatas seriam custeados pelos rendimentos da CGCB obtidos do comércio do pau Brasil, do sal de setúbal, lucros da fábrica das naus e dos armazéns.
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Portanto, a reforma da CGCB com vista à manutenção de duas frotas anuais ao Brasil era imprescindível para o afluxo normalizado de açucar a Lisboa. Só assim se podia praticar preços baixos, condição sine qua nom para o desincentivo e afastamento de ingleses e particularmente holandeses do Atlântico Sul. Paralelamente, o fim dos privilégios monopolistas da CGCB num quadro de navegação livre ajudaria a completar os objectivos do plano marítinmo de Castelo Melhor por via das sinergias criadas pelos pequenos armadores que ajudariam a regularizar o afluxo de produtos. Por outro lado, uma frota militar de 10 galeões e 24 fragatas garantiria a segurança das frotas, sobretudo entre os Açores e Portugal,podendo até mais tarde recuperar as possesões perdidas da India (Ibid., 2001, p. 192)
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Bibliografia:
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MONTEIRO, Paulo - A perda do galeão S. Pantaleão (1651) [em linha]. [S.l.] Texas A&M University, 2003 [acedido em 29 de Abril de 2007]. Disponível em URL: http://nautarch.tamu.edu/shiplab/projects%20ir%20saopantaleao1.htm
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SOUZA, Francisco da Silveira de Vasconcellos e, (2001) - O Ministro de D. Afonso VI: Luís de Vasconcellos e Souza 3.º Conde de Castello Melhor. Vila Nova de Foz Côa: Câmara Municipal de Vila Nova de Foz Côa