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Junot na literatura romancista oitocentista

É interessante notar como a figura de Junot, general comandante da 1.ª invasão francesa a Portugal (1807), foi tratada na literatura romancista de alguns autores do século XIX, nomeadamente de Camilo Castelo Branco e de Manuel Pinheiro Chagas.
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Camilo escreveu um pequeno romançe, "Livro de Consolação", cujo o enredo coloca em atracção de amor dois personagens, a saber, o alferes Eduardo Pimenta e a fidalga D. Antónia de Portugal, «famigerada formosura naquele tempo». Como é frequente nos romançes camilianos, o amor destas duas personagens estava impedido pelo conservadorismo social predominante em Portugal do Antigo Regime, representado na figura de um tio tutor de D. Antónia de Portugal que tomou as medidas necessárias para que amor tão genuíno não se florescesse. Ora o tio de D. Antónia, ao qual Camilo não lhe dá nome, apenas referindo «que por vezes exercera o então poderoso cargo de ministro de Estado» perante a tenacidade do amor de ambos, coloca em clausura a sobrinha no Mosteiro de Santa Clara em Coimbra, ao mesmo tempo que encarcera o alferes Eduardo Pimenta no forte de S. João da Foz no Porto, acusado de deserção.
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Estão neste ponto as coisas, quando entrou em Portugal Junot, «e com ele a vanguarda de ideias livres vestidas com a pompa da iguldade humana - santas palavras que desafogam corações abafados às mãos de tirania de pais e tutores.». Logo D. Antónia de Portugal escreve ao general francês a descrever a injusta situação e a pedir a sua e a libertação do seu amado, pedido a que Junot responde: «Madame. A inocência oprimida não se dirige inutilmente ao representante do grande Napoleão [...] ordeno que se vos dê liberdade e passaporte para Lisboa. Vinde ali, e de lá ser-vos-á fácil fazer sair dos cárceres do Porto o ente que vos interessa [...]. Eu vos protegerei a ambos. [...]».
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No romançe "Os Guerilheiros da Morte", conta Manuel Pinheiro Chagas uma história em tudo semelhante à de Camilo, existindo neste caso uma paixão proibida entre o sargento da Guarda Real de Policia, Jaime Altavila e a filha mais nova do Conde de Vila Velha, Madalena, que por insuficiência de riqueza da casa condal para o dote do seu casamento ficou reservada para esposa de Cristo. Quando Jaime pede a mão de Madalena ao Conde de Vila Velha, «O conde caiu das nuvens e julgou-se insultado.» Durante a ocupação francesa, o sargento Jaime Altavila conseguio empregar-se no Quartel General de Junot, sedeado no Palácio de Quintela (Rua do Alecrim). Tendo acesso directo a Junot e sentindo o seu favor, falou-lhe do seu caso sentimental. Junot ordena imediatamente a libertação de Madalena do convento pondo-a sob protecção da Condessa da Ega, enquanto diligencia junto do Papa Pio VII a anulação dos votos de claurura.
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Junot, representando a entrada, ainda que violenta, da nova ordem social resultante da Revolução Franccesa é apresentado simbolicamente por alguns romancistas como o libertador dos sentimentos amorosos oprimidos pela velha ordem social portuguesa. Ao mandar soltar as mulheres amadas das celas conventuais, Junot questiona o paradigma sócio-familiar vigente da aristocracia portuguesa, pronunciando novos tempos, que haveriam de chegar com a Revolução Liberal de 1820.
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Bibliografia:
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BRANCO, Camilo Castelo - Livro de Consolação in Obras Completas de Camilo Castelo Branco, vol. VII, dir. Justino Mendes de Almeida. Porto:Lello e Irmão, 1987, pp. 137 - 324.
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CHAGAS, Manuel Pinheiro - Os Guerrilheiros da Morte. Lisboa: Planeta editora, 2009.

Elogio (irónico?) a Junot

Encontra-se no Arquivo Histórico Militar um documento composto por três fólios manuscritos, (cota AHM/DIV/1/14/006/32), onde se faz o elogio e a defesa do governo de Junot, comandante do exército francês da 1.ª Invasão francesa a Portugal (1807 -08). O documento é uma cópia do original, sendo a autoria desconhecida, embora a última palavra do manuscrito seja Valle. Será o nome do autor? Pelo conteúdo do texto é provável que date do periodo dos levantamentos populares organizados pelas sucessivas juntas formadas ao longo do país a partir de Junho de 1808 e antes do fim do governo de Junot com a Convenção de Sintra em Agosto do mesmo ano. Neste post publica-se a sua transcrição na íntegra e sem qualquer alteração à ortografia original.

Jean Andoche Junot (1771 -1813) num retrato da Biblioteca Nacional de Portugal

«Copia de hua Carta escripta a M[onsieu]r. Junot por / hum seu ami[g]º.
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Como he voluvel a Roda da fortuna que n’hum momento / corta a fio da mais solida ventura! Nunca imaginei que vos havia / de chegar a Santa – unção primeiro que a Quintella [?]. Que des/consolação para os vossos amigos, e para a vossa M[ademoisell]e Ega, ver-/vos espirar depois d’hum Ducado tão glorioso no Mundo / como o Reinado de vosso amo! Vos tinheis os fundamentos lançado de / hua fama tão assignalada como a d’aquelle Heroe que en/cendiou em Efezo o Templo de Diana, e em tudo, e por tu -/do se vião reproduzidas em vos as virtudes deste: Porem / q[uan]to pode a Ingratidão dos Portuguezes tomando as armas / contra vos! Como depressa se esquecerão da Protecção que / troussesteis ao seu Paiz, fazendo delle hua Conquista de / amigo, abrindo Estradas, rompendo Canais, e pondo a / coberto o seu ouro, e prata da influencia maligna d’In-/glaterra; ah meu amigo quanto sinto ver vos á borda do / percepicio, vereficando-se em vos o Vifão antigo = Entradas / de Leão e sahidas de sendeiro = Quem me dera hua voz tão robus-/ ta que ressoasse nos montes e valles, ou tão irada cômo o / som da artilharia: eu bradaria então = Portuguezes, que / mal vos fez o vosso protector, para assim o acometerdes com / ferro e fogo? Não he à illuminada Politica deste general / que o Pobre Tejo deve o incomparavel beneficio de se ver desa-/frontado d’aquelles Exércitos de vasos, que fazião gemer as su-/as agoas com o enorme peso dos trigos, quejos, manteigas, ar/roses, assucares, farinhas de Pão, algodoens, Panos, dro-/gas e outras redicularias deste genero? Não he à grande / [fol. 2] protecção deste virtuoso chefe que a famosa Lisboa deve o / ver-se evacuada d’Inglezes, americanos, gregos, Marroquinos, / Hollandezes, e de outros Pobretoens deste género, que nunca / souberão commerciar como Mr. Lunist [?], nem possuirão a gran/de arte de felicitar os Povos como Napoleão; e não he por elle que / se vio estinta na vossa Capital a grande praga da traça / ficando tudo aliviado do pezo das Lans, e remediada a / sordida Indigencia? Não he nas suas mãos que se vio reunido / como em hum so ponto todo o vosso Comercio [?]; as artes em hum / vigor tão prodigioso, que não fatigavão ja os membros dos / operários; as sciencias em tanto que brevem[en]te vos da-/rião hum novo Camoens; a Religião tão despida das supers/ticçoens que a desonrão que sem demora seria o vosso cate-/cismo o Filosofo militar, o Emilio, e outros illuminados / Apóstolos que não teve a Igreja nos seus fundamentos, / e em concluzão hua Policia tambem ordenada que / tudo era hua Limpeza decedida e ellevada ao seu cu-/me. E he contra hum politico desta ordem que / vos tomais as armas? assim insultais o Omnipotente / que o enviou a protegervos, e que decidio a vossa sorte d’hum / modo tão glorioso e honrado? assim se recompensão as aç-/coens grandes que elle obrou entre vos, e aquella piedoza pro-/tecção que enviou aos Cidadãos das Caldas, pelo Ministério / d’hum general tão grande na virtude como mesquinho / nos membros. Amigo Junot, assim falaria eu por / vos, porem a Natureza que me não fez gigante golias, / nem me deu a lyra d’Orpheo. Eu ouço já o estrondo / [fol 3] das armas portuguezas que marchão em vosso alcance / e se o vento vos deixa ainda articular alguns sons, pedi / a Vossa amante, ou que tome as armas da sua caza p[ar]a / vingar como Heroína, o insulto que se derige a Vossa Pes-/soa, ou que diga hum eterno A Deos aos / arbustos do Ramalhão, com que coroaste os seus / mimosos sorrisos.
Valle»

A acção educativa de frei José Mayne

A 8 de Abril de 1780 foi eleito Ministro Geral da Congregação da Terceira Ordem da Penitência de S. Francisco frei José de Jesus Maria Mayne (1723-1792), homem de riqueza, proveniente da herança familiar e com acesso ao topo do poder real na qualidade de confessor do rei consorte D. Pedro III. Era também um homen de cultura científica, pondo ao dispor dela parte dos rendimentos advindos do seu património e do serviço de confessor real quando tomou posse do cargo de Ministro Geral da Congregação. Desenvolveu a biblioteca do Convento de Nossa Senhora de Jesus com a compra de muitos livros e adquiriu instrumentos de Física e «cousas raras e de História Natural» para «milhor aperfeiçoar o nosso Museu», ou seja, o museu do Convento de N. S.ª Jesus (CARVALHO, 1993, p. 9, 10).
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O museu, de fundação anterior a 1780, viu ampliadas as colecções de temática vária. No século XVIII os museus, também conhecidos por Gabintes de Curiosidades, não se dedicavam em exclusivo a uma única área do saber. O coleccçionismo setecentista congregava no mesmo espaço objectos relacionados com a História do Homem, desde artefactos arqueológicos (moedas, estátuas, etc...), a peças de arte, livros, desenhos, mapas, e peças da História da Natureza (fósseis, animais e plantas conservados, conchas, minerais, etc..). No museu do Convento de N. S.ª de Jesus, a par da colecção de medalhística e numismática, havia a colecção de pintura sobre tela e a de História Natural. Foi particularmente no domínio da História Natural onde a acção do frei José Mayne mais se fez sentir, ao adquirir inúmeras peças. Por exemplo, em 1788 recebe do negociante hamburguês Nicolau Kopke três caixas da Rússia em que uma tinha pássaros e animais secos, outra uma coluna de minerais do Cáucaso e a terceira 89 embrulhos de minerais da Sibéria. (BRIGOLA, 2003, p. 417, 418).
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Frei José Mayne, Ministro Geral da Congregação da Terceira Ordem da Penitência de S. Francisco entre 1780 e 1792, Confessor de D. Pedro III e sócio da Academia das Ciências de Lisboa. Durante os 12 anos de governo da Terceira Ordem da Penitência de S. Francisco, aumentou bastante a colecção de História Natural do museu do Convento N. Sr.ª de Jesus e preparou a instituição de uma escola pública de História Natural. (Fonte: Academia das Ciências de Lisboa. Lisboa: Academia das Ciências de Lisboa, 1999, p. 24)
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No ano da sua morte, em 1792, depois de ter conseguido um importante espólio para o museu, Mayne pretende instituir uma aula pública de História Natural a ser leccionada no Convento de N. Sr.ª de Jesus. É esta a vontade expressa no Requerimento a S. M. concernente á doação do Gabinete de História Natural, Pintura, e Artefactos, assim como de bens para instituir uma escola publica e, desenvolver a Livraria do Convento de N. S. de Jesus de Lisboa. Preocupado com a proliferação do ideal revolucionário de além Pirineus, o religioso franciscano queria ensinar a «Existencia de Deos, a sua Sabedoria, Providencia, Bondade, e mais Atributos» através do «Estabelecimento de huma Escola publica com huma Cadeira de Historia Natural Theologica, em que se ensine a Sciencia da Historia Natural.» No âmbito do iluminismo católico, visava combater as doutrinas dos «Atheistas, Pulitheistas, e mais Incredulos» (BRIGOLA, 2003, p. 421; CARVALHO, 1993, p. 11).
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Pelo método pedagógico baseado na observação e experimentação deveriam os professores demonstrar a harmonia da fé no Deus Criador com o conhecimento científico da Natureza. No entanto, Mayne sabia que o convento não era o local mais vocacionado para administrar tal ensino, porque, como dizia, «parece moralmente impossivel que todos os Padres Geraes tenhão a necessaria efficacia, propensão para perpetuar huma Sciencia, cujo ensino não está em uso dentro dos claustros.» (BRIGOLA, 2003, p. 421, 422). Assim, entrega o ministério da escola pública de História Natural à Academia das Ciências de Lisboa (ACL), instituição orientada para tal ensino pois leccionava também uma aula de Mineralogia na sua sede, o Palácio do Poço dos Negros. A aula funcionou com intermitências até a ACL se instalar definitivamente no extinto Convento de N. S.ª de Jesus em 1834. A partir desse ano passa a denominar-se Aula Maynense ou mais vulgarmente Instituto Maynense. Até ao ano lectivo de 1849/50 apenas ensina Zoologia, depois e até 1919, lecciona igualmente Física, Química, Geografia Física, Geologia, Mineralogia e Botânica (CARVALHO, 1993, p. 13, 14).
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Resumindo, frei José Mayne realizou uma relevante acção educativa através do desenvolvimento da colecção de História Natural do museu do Convento de N. Sr.ª de Jesus, colecção que passou para a posse da ACL em 1834, quando esta ocupou as instalações do antigo convento. O trabalho educativo de José Mayne fez-se sentir ainda na instituição da aula pública de História Natural, deixando tudo preparado para que tal projecto arrancasse. O ensino da História Natural, igualmente a cargo da ACL perdurou até 1919.

Bibliografia:

BRIGOLA, João Carlos Pires (2003) - Colecções, Gabinetes e Museus em Portugal no século XVIII. Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa

CARVALHO, Rómulo de (1993) - O material didáctico dos séculos XVIII e XIX do Museu Maynense da Academia das Ciências de Lisboa. Academia das Ciências de Lisboa, Lisboa

Um torriense Mártir do Japão

O padre Cristóvão Ferreira (1579 - 1652), natural do lugar de Zibreira, concelho de Torres Vedras, iniciou em 1596 o seu noviçiado na Companhia de Jesus em Coimbra. Requerendo a missão de evangelização do Oriente parte em 1600 para Goa juntamente com 19 companheiros. Anos depois, em 1609, transfere-se para o Japão, onde se torna o Superior dos jesuítas na região.
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Quando estava a desempenhar funções de 23.º Vice-Rei da Índia (1629 - 1635), D. Miguel de Noronha, 3.º Conde de Linhares, recebeu em Goa uma lista com os nomes dos mártires do Japão falecidos no decurso da perseguição instaurada pelas autoridades japoneses em 1633. Tinham sido mortos 31 religiosos, a maioria jesuítas, 6 dominicanos e 2 agostinhos. Dos jesuítas, 11 eram padres, 10 catequistas e 1 seminarista. Havia entre estes alguns religiosos nativos, japoneses. Quase todos tinham padecido o martírio por tortura. Nagasáqui foi o principal local do martírio.
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Na lista constava o nome do padre Cristóvão Ferreira, Provincial da Companhia de Jesus no Japão, governador do bispado. D. Miguel de Noronha transcreveu a lista para o seu diário, que na parte respeitante ao padre Cristóvão Ferreira reza o seguinte: « O Padre Christovão Ferreira, portugues natural de Torres Vedras, Provincial da Companhia de Jesus em Japão e governador do bispado o qual passou a Japão o anno 1609. E todos estes vinte e quatro annos trabalhou e padeçeo grandissimas persseguições em diversos reinos com grandissimo fruito das almas até ser prezo em 3 de Agosto deste prezente ano [1633], em 15 de Outubro foi dependurado cõ os mais religiozos. E esteve no tormento çinco oras, e depois o tirarão para o atromentarem de novo, e descobrir os demais padres por elle ser superior. E este era o termo de seu martirio; quando os portuguezes partirão de Nangassaqui. E ja alguns dizião que ao despregar as vellas o tornarão ao tormento.» (NORONHA, 1937, p. 100).
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Mas segundo Barbosa Machado, o padre Cristóvão Ferreira não chegou a morrer na grande perseguição de 1633 porque no momento da tortura renegou a actividade de missionário cristão, sendo poupado com vida pelas autoridades nipónicas. No entanto, talvez por remorsos de consciência, retomou a acção missionária em consequência da qual sofreu de novo a perseguição, desta vez culminando com o martírio em 1652, aos 74 anos.
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O padre Cristóvão Ferreira escreveu o relato da perseguição sofrida pela Companhia de Jesus nos diversos reinos do arquipélago nipónico, documento posteriormente editado em italiano sob o título Relatione delle persecutioni mosse contro la fede di Christo in varij regni del Giappone ne gl'anni 1628. 1629. e 1630. Al molto reu.do in Christo P. Mutio Vitelleschi preposito generale della Compagnia di Giesu (In Roma : appresso Francesco Corbelletti, 1635).
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Bibliografia:
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MACHADO, Barbosa - Bibliotheca Lusitana [cd-room], Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, s.d., (série Ophir, 2)
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NORONHA, D. Miguel de (1937) - Diário do 3.º Conde de Linhares, Vice-Rei da Índia, Lisboa: Biblioteca Nacional
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Para saber mais sobre o Padre Cristóvão Ferreira:
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O infante D. Francisco, um vilão na História?

A historiografia não tem dedicado particular atenção à vida e obra do infante D. Francisco (1691 - 1742), irmão do rei D. João V (1689 - 1750). O esplendor do realeza joanina proporcionado pelo ouro brasileiro, o reforço do poder real, ou ainda a eventual inexistência de algo relevante na acção histórica deste personagem, deixou-o na sombra da História, desconhecido, ignoto, apesar de ser um dos grandes senhores do reino pela condição de infante mais velho, logo donatário da Casa do Infantado, mas também pelos títulos acumulados: 7º Duque de Beja, Prior do Crato e Condestável do Reino.
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Infante D. Francisco (1691-1742)
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Vilão?
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Bastantes historiadores registraram os traços malévolos de personalidade e comportamento do infante D. Francisco. Por exemplo, a obra Portugal - Dicionário Histórico, Corográfico, Heráldico, Biográfico, Bibliográfico, Numismático e Artístico, Volume III, págs. 570-571, (19??) afirma: «Tornou-se tristemente célebre pela perversidade da sua índole. Ainda muito novo, consistia um dos seus mais dilectos divertimentos, para mostrar a sua perícia em atirar ao alvo, fazer fogo sobre os pobres marujos, que no serviço de bordo se empoleiravam nos mastros dos navios surtos no Tejo, e que o saudavam quando o viam passar pelo rio.» Este episódio é frequentemente apontado por vários historiadores como uma evidência do carácter violento e agressivo do infante.
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Não obstante a quase unanimidade das fontes (secundárias, não esqueçamos) em referirem este episódio, a veracidade do mesmo é posta em causa por um autor coevo. O botânico suiço Charles Fréderic de Merveilleux no livro Memórias Instrutivas sobre Portugal (1723 - 1726) escreve o seguinte: «Conta-se que este infante se divertia a atirar das janelas do seu palácio sobre os marinheiros ingleses. É exagerada a história, porque qualquer almirante inglês o teria feito castigar se tal exercício se tivesse tornado habitual.» [1]. Apesar desta aparente contradição, o autor não têm dúvidas quanto ao carácter do infante D. Francisco: «É um grande príncipe, mas soberbo e violento. […] Encolerizando-se facilmente era geralmente temido.» [2].
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Outros episódios descrevem o carácter belicoso deste príncipe, como aquele em que quis obrigar uma família a conceder em casamento a filha única a um criado seu pelo preço de 100 000 cruzados. Recusada a proposta, o infante contrariado mandou agredir o pai a ponto de receber a extrema-unção, enquanto a mãe e a filha refugiaram-se no convento de Odivelas [3]. Particularidades de personalidade ou velhos hábitos violentos da alta aristocracia?
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Potencial usurpador?
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Mas para a História interessa sobretudo saber se este personagem desenvolveu alguma acção política relevante. Quase todos os autores admitem como real a ambição deste príncipe em se substituir ao irmão no trono, especialmente na fase inicial do reinado deste, quando ainda não tinha nascido o herdeiro da coroa, e depois em 1715, quando D. João V estava retirado da corte por motivo de "melancolia". Nesta ocasião, o infante D. Francisco tornou-se figura assídua da corte com o objectivo, dizem, de conquistar romanticamente a cunhada e deste modo apoderar-se da coroa, repetindo assim a manobra política do seu pai, o rei D. Pedro II (1648-1706), quando se apoderou do trono do irmão, o rei D. Afonso VI (1643-1683). A ambição perigosa do príncipe foi um dos argumentos apresentados pelos conselheiros do rei e pela rainha para demover D. João V da projectada peregrinação a N. Sr.ª do Loreto em Roma [4]. A prolongada ausência do rei deixaria a rainha demasiado exposta às manobras do infante.
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Durante a Guerra da Sucessão de Espanha, em 1707, as Câmara Municipais de Serpa, Moura e Beja, perante o perigo de ataque do exército franco - espanhol, escreveram ao infante D. Francisco rogando auxílio militar. Na sequência do pedido, o infante conseguiu com que fossem enviados o Terço da Armada e o da Junta para a protecção das ditas vilas [5]. Tarde demais. Semanas depois, Serpa e Moura caem nas mãos dos espanhóis. Mais tarde, o infante manifestou interesse em visitar a frente de batalha. Porém o seu pedido foi recusado pelo Concelho de Guerra [6]. Receio de ingerência nos assuntos militares? Preocupação por um eventual protagonismo militar crescente, iniciado com o envio o exército para Serpa e Moura?
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Parece certo que o infante D. Francisco não se relacionava muito bem com a corte joanina. Ausentava-se por longos períodos nas suas propriedades de Salvaterra e Samora Correia, quase sempre ocupado com a caça. Só frequentava Lisboa durante as festas mais solenes. Tinha uma inimizade declarada ao duque do Cadaval, D. Jaime, situação provavelmente impeditiva de usufruir a corte num bom ambiente emocional, porque o D. Jaime era um cortesão inseparável do rei, não só por ser o Estribeiro Mór da Casa Real, mas ainda por ser de sangue real [7].

Mecenas naval?

Também é com uma certa unanimidade que a historiografia reconhece nesta figura uma acção de mérito no meio naval da época. O infante foi um apaixonado pela marinha. Várias vezes equipou à custa dos seus grossos rendimentos navios para as comissões militares. O académico José Soares da Silva regista duas ocasiões em que o empenho do príncipe foi determinante no envio das embarcações: «Quarta feira 8 [Junho de1707] sairão as Nãos que se aprestarão mais, para ir esperar as frotas, e foram duas nossas […] com mais quatro estrangeiras […] Não se deve pouco a expedição dellas ao Senhor Infante D. Francisco que com incançavel diligência as fez aviar, e sair, indo com ellas ate 8 legoas ao mar fora da barra […] [8]». Noutra ocasião, ainda em 1707, « sairão outra vez as Nãos que tinham entrado, e forão só nove, que nem essas hirião tam cedo se não fora a incançavel deligência do Senhor Infante, que todos os dias inteiramente assistia a elles, e com effeito as foy fazer sair […] [9]». Anos mais tarde, em 1716, o infante D. Francisco ofereceu à expedição naval de auxílio ao papa Clemente XI, ameaçado pelos turcos otomanos no Mediterrâneo, dois navios, um com 80 peças e outro com 30, totalmente equipados à sua custa [10].

Resumindo. Trata-se de um personagem pouco conhecida para um avaliação definitiva. Talvez por isso seja interessante saber mais sobre ele.

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[1] O Portugal de D. João V visto por três forasteiros, trad., pref., notas Castelo Branco Chaves, 2ª ed. Lisboa: Biblioteca Nacional, 1989, p. 219

[2] Ibid., pp. 219, 220

[3] CASTRO apud CASTELO BRANCO, ibid., p. 118

[4] Nobreza de Portugal, dir., coord., comp. de Afonso Eduardo Martins Zuquete, Lisboa: Editorial Enciclopédia, 1960, pp. 563, 600

[5] SILVA, José Soares da - Gazeta em forma de carta, Lisboa: Biblioteca Nacional, 1933, tomo I, p.107

[6] Ibid., p. 197

[7] CASTRO apud CASTELO BRANCO, ibid., p. 118

[8] SILVA, José Soares da - Gazeta em forma de carta, Lisboa: Biblioteca Nacional, 1933, tomo I, p.160

[9] Ibid., p. 173

[10] DÓRIA, António Álvaro in Dicionário de História de Portugal, dir. Joel Serrão, Porto: Livraria Figueirinhas, 1990 [imp.], vol. III, pp. 73

Recordar Possidónio da Silva (1806 - 1896)

O arquitecto e arqueólogo Possidónio da Silva.
(Fonte: Arqueologia e História, vol. 51 (1999), imagem da capa.)
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Arquitecto, arqueólogo e fotógrafo, Joaquim Possidónio Narciso da Silva é uma das figuras do oitocentismo português merecedora de ser recordada, sobretudo este ano, quando ocorre o bicentenário do seu nascimento. Em 1824 vai para Paris frequentar o curso de Arquitectura na École de Beaux Arts que conclui ao fim de 4 anos. Entre 1829 e 1830 esteve em Roma, voltando a Paris para colaborar nas obras do Palais Royal e das Tulheries. No final de 1833 retorna a Portugal, tornando-se arquitecto da Casa Real. Participa nas obras dos Palácio da Pena, São Bento, Necessidades, traçando também o Palácio do Alfeite.
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O romatismo, revisitando o passado medieval e descobrindo nele as origens nacionais, valoriza uma estética arquitectónica neo-medieval, supostamente reflectora da genuinidade nacional. Possidónio da Silva apreendera em França e Itália esta nova cultura que tanto influenciou a arquitectura europeia, e é como arquitecto do romantismo que toma contacto com os grandes edifícios históricos de Portugal. Percebeu que a necessidade de valorizar o passado que viu nascer Portugal implicava intrinsecamente a perseveração dos testemunhos arquitectónicos. Assim, no final da década de 50 de oitocentos conseguiu obter o apoio do governo para o primeiro levantamento dos principais monumentos nacionais, e recorrendo aos jornais procurou sensibilizar a opinião pública para a problemática da perseveração do património arquitectónico. Nos numerosos encontros internacionais apresentava comunicações sobre História da Arquitectura portuguesa, e foi um dos primeiros a usar a fotografia para registar a imagem dos monumentos nacionais.
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Mas o seu interesse pela conservação do património não se resume à Arquitectura histórica. A Arqueologia, neste período uma ciência emergente, recolhe igualmente toda a dedicação de Possidónio da Silva. Em 1863 foi um dos sete fundadores da Real Associação dos Architectos Civis e Archeologos Portugueses, hoje denominada Associação dos Arqueólogos Portugueses (AAP). A AAP da qual Possidónio da Silva foi o principal mentor e 1º presidente foi a única instituição em Portugal que durante décadas zelaria e pugnaria pela preservação e divulgação do património arquitectónico e arqueológico. A própria localização da sede da AAP é paradigmática dessa realidade. A Igreja do Convento do Carmo, edifício gótico do final do século XIV e início do século XV, estava na época devoluta e atulhada de lixo. Possidónio da Silva e os seus companheiros solicitaram ao rei D. Luís a cedência do edifício para localizar a sede da AAP como estratégia de perseveração do monumento. Um dos primeiros objectivos da AAP era a criação de um museu arqueológico, o primeiro em Portugal, dedicado à recolha do património arqueológico, arquitectónico e histórico, devotado ao abandono tanto em Lisboa como nas províncias, salvaguardando-o da perda total. Possidónio da Silva usou a AAP como instrumento da sua política de perseveração, divulgação do património e sensibilização das populações para a necessidade de o proteger. Exemplo disso, é a criação no âmbito da AAP de cursos de História da Arte e de Arqueologia, a solicitação aos sócios correspondentes de um levantamento dos monumentos megálitos das suas áreas de residência.
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Por fim, em 1880 Possidónio da Silva, recorrendo à sua influência política conseguiu obter da parte do governo a fundação da Commissão de Monumentos Nacionaes, órgão que tinha a missão de identificar e classificar o património histórico nacional e a recomendação de legislação que visasse a sua protecção.A obra possidiana confrontou-se com obstáculos ciclópicos: o atraso cultural das populações, o desinteresse e ignorância das elites políticas, sobretudo as da administração local, uma opinião pública inexistente ou muito débil, hobbies poderosos, etc, fizeram com que muito ficasse por fazer. No entanto, Possidónio da Silva abriu em Portugal a problemática da conservação do património histórico, tema ainda tão actual, quase sempre envolto em polémica, talvez porque os problemas com que Possidónio da Silva se confrontou ainda se fazem sentir.