A historiografia não tem dedicado particular atenção à vida e obra do infante D. Francisco (1691 - 1742), irmão do rei D. João V (1689 - 1750). O esplendor do realeza joanina proporcionado pelo ouro brasileiro, o reforço do poder real, ou ainda a eventual inexistência de algo relevante na acção histórica deste personagem, deixou-o na sombra da História, desconhecido, ignoto, apesar de ser um dos grandes senhores do reino pela condição de infante mais velho, logo donatário da Casa do Infantado, mas também pelos títulos acumulados: 7º Duque de Beja, Prior do Crato e Condestável do Reino.
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Infante D. Francisco (1691-1742)
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Vilão?
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Bastantes historiadores registraram os traços malévolos de personalidade e comportamento do infante D. Francisco. Por exemplo, a obra Portugal - Dicionário Histórico, Corográfico, Heráldico, Biográfico, Bibliográfico, Numismático e Artístico, Volume III, págs. 570-571, (19??) afirma: «Tornou-se tristemente célebre pela perversidade da sua índole. Ainda muito novo, consistia um dos seus mais dilectos divertimentos, para mostrar a sua perícia em atirar ao alvo, fazer fogo sobre os pobres marujos, que no serviço de bordo se empoleiravam nos mastros dos navios surtos no Tejo, e que o saudavam quando o viam passar pelo rio.» Este episódio é frequentemente apontado por vários historiadores como uma evidência do carácter violento e agressivo do infante.
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Não obstante a quase unanimidade das fontes (secundárias, não esqueçamos) em referirem este episódio, a veracidade do mesmo é posta em causa por um autor coevo. O botânico suiço Charles Fréderic de Merveilleux no livro Memórias Instrutivas sobre Portugal (1723 - 1726) escreve o seguinte: «Conta-se que este infante se divertia a atirar das janelas do seu palácio sobre os marinheiros ingleses. É exagerada a história, porque qualquer almirante inglês o teria feito castigar se tal exercício se tivesse tornado habitual.» [1]. Apesar desta aparente contradição, o autor não têm dúvidas quanto ao carácter do infante D. Francisco: «É um grande príncipe, mas soberbo e violento. […] Encolerizando-se facilmente era geralmente temido.» [2].
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Outros episódios descrevem o carácter belicoso deste príncipe, como aquele em que quis obrigar uma família a conceder em casamento a filha única a um criado seu pelo preço de 100 000 cruzados. Recusada a proposta, o infante contrariado mandou agredir o pai a ponto de receber a extrema-unção, enquanto a mãe e a filha refugiaram-se no convento de Odivelas [3]. Particularidades de personalidade ou velhos hábitos violentos da alta aristocracia?
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Potencial usurpador?
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Mas para a História interessa sobretudo saber se este personagem desenvolveu alguma acção política relevante. Quase todos os autores admitem como real a ambição deste príncipe em se substituir ao irmão no trono, especialmente na fase inicial do reinado deste, quando ainda não tinha nascido o herdeiro da coroa, e depois em 1715, quando D. João V estava retirado da corte por motivo de "melancolia". Nesta ocasião, o infante D. Francisco tornou-se figura assídua da corte com o objectivo, dizem, de conquistar romanticamente a cunhada e deste modo apoderar-se da coroa, repetindo assim a manobra política do seu pai, o rei D. Pedro II (1648-1706), quando se apoderou do trono do irmão, o rei D. Afonso VI (1643-1683). A ambição perigosa do príncipe foi um dos argumentos apresentados pelos conselheiros do rei e pela rainha para demover D. João V da projectada peregrinação a N. Sr.ª do Loreto em Roma [4]. A prolongada ausência do rei deixaria a rainha demasiado exposta às manobras do infante.
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Durante a Guerra da Sucessão de Espanha, em 1707, as Câmara Municipais de Serpa, Moura e Beja, perante o perigo de ataque do exército franco - espanhol, escreveram ao infante D. Francisco rogando auxílio militar. Na sequência do pedido, o infante conseguiu com que fossem enviados o Terço da Armada e o da Junta para a protecção das ditas vilas [5]. Tarde demais. Semanas depois, Serpa e Moura caem nas mãos dos espanhóis. Mais tarde, o infante manifestou interesse em visitar a frente de batalha. Porém o seu pedido foi recusado pelo Concelho de Guerra [6]. Receio de ingerência nos assuntos militares? Preocupação por um eventual protagonismo militar crescente, iniciado com o envio o exército para Serpa e Moura?
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Parece certo que o infante D. Francisco não se relacionava muito bem com a corte joanina. Ausentava-se por longos períodos nas suas propriedades de Salvaterra e Samora Correia, quase sempre ocupado com a caça. Só frequentava Lisboa durante as festas mais solenes. Tinha uma inimizade declarada ao duque do Cadaval, D. Jaime, situação provavelmente impeditiva de usufruir a corte num bom ambiente emocional, porque o D. Jaime era um cortesão inseparável do rei, não só por ser o Estribeiro Mór da Casa Real, mas ainda por ser de sangue real [7].
Mecenas naval?
Também é com uma certa unanimidade que a historiografia reconhece nesta figura uma acção de mérito no meio naval da época. O infante foi um apaixonado pela marinha. Várias vezes equipou à custa dos seus grossos rendimentos navios para as comissões militares. O académico José Soares da Silva regista duas ocasiões em que o empenho do príncipe foi determinante no envio das embarcações: «Quarta feira 8 [Junho de1707] sairão as Nãos que se aprestarão mais, para ir esperar as frotas, e foram duas nossas […] com mais quatro estrangeiras […] Não se deve pouco a expedição dellas ao Senhor Infante D. Francisco que com incançavel diligência as fez aviar, e sair, indo com ellas ate 8 legoas ao mar fora da barra […] [8]». Noutra ocasião, ainda em 1707, « sairão outra vez as Nãos que tinham entrado, e forão só nove, que nem essas hirião tam cedo se não fora a incançavel deligência do Senhor Infante, que todos os dias inteiramente assistia a elles, e com effeito as foy fazer sair […] [9]». Anos mais tarde, em 1716, o infante D. Francisco ofereceu à expedição naval de auxílio ao papa Clemente XI, ameaçado pelos turcos otomanos no Mediterrâneo, dois navios, um com 80 peças e outro com 30, totalmente equipados à sua custa [10].
Resumindo. Trata-se de um personagem pouco conhecida para um avaliação definitiva. Talvez por isso seja interessante saber mais sobre ele.
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[1] O Portugal de D. João V visto por três forasteiros, trad., pref., notas Castelo Branco Chaves, 2ª ed. Lisboa: Biblioteca Nacional, 1989, p. 219
[2] Ibid., pp. 219, 220
[3] CASTRO apud CASTELO BRANCO, ibid., p. 118
[4] Nobreza de Portugal, dir., coord., comp. de Afonso Eduardo Martins Zuquete, Lisboa: Editorial Enciclopédia, 1960, pp. 563, 600
[5] SILVA, José Soares da - Gazeta em forma de carta, Lisboa: Biblioteca Nacional, 1933, tomo I, p.107
[6] Ibid., p. 197
[7] CASTRO apud CASTELO BRANCO, ibid., p. 118
[8] SILVA, José Soares da - Gazeta em forma de carta, Lisboa: Biblioteca Nacional, 1933, tomo I, p.160
[9] Ibid., p. 173
[10] DÓRIA, António Álvaro in Dicionário de História de Portugal, dir. Joel Serrão, Porto: Livraria Figueirinhas, 1990 [imp.], vol. III, pp. 73