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A Companhia de Pescarias Lisbonense (1835 - 1857)

Após a vitória do liberalismo em 1834 a economia portuguesa sofre profundas alterações de paradigma. O mercado impõe-se em definitivo como norma e os empresários vêem retirados os obstáculos fiscais e institucionais do Antigo Regime ao desenvolvimento da iniciativa privada em larga escala. No seguimento do pensamento fisiocrático, os recursos naturais são encarados pela burguesia capitalista como potenciais fontes de sustentação de progresso económico. Formam-se grandes projectos de exploração dos recursos naturais, sobretudo no sector agrícola. No domínio dos recursos marinhos o grande projecto empresarial dá pelo nome Companhia de Pescarias Lisbonense (CPL).
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A ideia de constituir uma grande empresa de pesca surge no interior da Associação Mercantil Lisbonense a 2 Julho de 1835. Colheu bastantes apoios e até Setembro foram postas à subscrição 4000 acções no valor total de 1000 contos de reis, um investimento nunca visto no sector das pescas. A 22 de Setembro de 1835 é fundada a CPL com todas as acções subscritas. O rápido aparecimento da CPL e a relativa facilidade de angariação de capitais pode explicar-se pela consciência que a burguesia, particularmente a de Lisboa, tinha do potencial económico da pesca. Os investidores conheciam o lucrativo comércio do bacalhau, dominado pelos mercadores ingleses. A seguir aos produtos têxteis, o bacalhau seria provavelmente o produto das importações inglesas mais consumido em Portugal. Também sabiam como era proveitoso o negócio do óleo de baleia, produto usado principalmente na iluminação pública, e todos conheciam o valor do atum em conserva, especialmente no mercado externo. Por outro lado, sabia-se há muito que litoral português era rico em recursos biológicos de relevância comercial (sardinha e atum na plataforma continental, baleia nos Açores) e que a posição geográfica de Portugal era competitiva no acesso rápido e fácil ao Norte de Africa e Atlântico Sul onde se situavam as rotas migratórias da baleia, exploradas desde o século XVIII por baleeiros ingleses e americanos. Mesmo o acesso aos bancos da Terra Nova para a pesca do bacalhau era vantajoso devido à localização geo-estratégica do arquipélago dos Açores como porto de escala.
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A CPL definiu uma estratégia multisectorial na área da pesca, pois visava explorar as várias espécies piscícolas mais lucrativas da época (bacalhau, baleia, atum, sardinha e pescada), situação que requeria investimento avultado para aquisição e manutenção de frota, equipamentos, contratação de tripulação, etc...Não obstante a existência de capital e de um mercado de consumo assegurado, a empresa nunca teve vida fácil e ao fim de 22 anos declara falência.
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Baleeiro americano de Nova Inglaterra na 2.ª metade do século XIX. Os 2 navios baleeiros da Companhia de Pescarias Lisbonense, activos entre 1837 e 1841, provavelmente teriam um aspecto semelhante ao retratado na imagem. (Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Imagem:Walfang_zwischen_1856_und_1907.jpg#file )
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O estudo da CPL é fundamental para se perceber a pesca portuguesa no século XIX. Tendo sido um projecto com um forte investimento, beneficiando de um enquadramento político favorável às grandes iniciativas empresariais e dispondo de um mercado seguro, estudar os factores que conduziram à extinção da empresa é estudar os grandes problemas da pesca em Portugal no século XIX. Quais foram os constrangimentos e vicissitudes que impediram o desenvolvimento desta e de outras empresas de pesca? Que estratégias foram implementadas para se minimizarem os factores de risco ou de desvantagem? Que política de pescas existia no âmbito da política económica ou da economia política portuguesa?
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Como fontes para o estudo desta problemática, publicam-se os primeiros seis relatórios da Direcção da CPL apresentados à Assembleia-geral de accionistas. A transcrição destes documentos fazem parte da nossa investigação sobre a CPL, ainda em curso, mas que podem desde já formalizar pistas, hipóteses e suscitar interesse pelo tema.
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Documentos:
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Actas do Concelho de Direcção da Associação Mercantil Lisbonense, 2 Jul. - 18 Ago. 1835
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CPL - Relatório da Direcção, 30 Jun. 1836
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CPL - Relatório da Direcção, 16 Jan. 1837
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CPL - Relatório da Direcção, 15 Jan. 1840
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CPL - Relatório da Direcção, 1.º semestre 1840
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CPL - Relatório da Direcção, 15 Out. 1840
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CPL - Relatório da Direcção, 31 Mar. 1841
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Nota: Não foram impressos os relatórios da Direcção referentes a 1838/1839
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Almadrava: a epopeia da pesca do atum

A almadrava consiste num sistema de redes de grandes dimensões para a pesca do atum. O vocábulo, de génese arábica, caiu gradualmente em desuso a partir do início do século XIX, tendo sido substituído pelo termo armação de pesca, ou simplesmente armação.
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Tratando-se de uma espécie de migração sazonal, o atum nos meses de Maio e Junho, vindo do Atlântico Norte, transita pelo Golfo de Cádiz em direcção ao Mediterrâneo para realizar a desova, regressando em Agosto ao Atlântico. No território nacional, o Algarve é a região com melhores condições hidrográficas para a sua captura, pois situa-se na rota de ida para o Mediterrâneo e de retorno ao Atlântico. Até ao século XX e ao longo do litoral algarvio as almadravas eram colocadas a pouca distância da costa em sentido transversal ao rumo dos cardumes para lhes bloquear o movimento migratório. O atum ao tentar contorná-las dirigia-se para um compartimento de rede totalmente fechado denominado copo e aí ficava encurralado sem qualquer possibilidade de fuga. Estando o copo suficientemente cheio de atuns, os pescadores içavam-no para a superfície e com uns ganchos metálicos , os bicheiros, «fisgavam» os ditos peixes para o interior das embarcações, operação denominada copejo.
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O levantamento da almadrava. O atum é compelido a vir à superfície à medida que a rede do copo é levantada do fundo do mar. (Fonte: GALVÃO, António Miguel - Um século de História da Companhia de Pescarias do Algarve [...]. Faro: Cmpanhia de Pescarias do Algarve, 1948, p. 120)
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Caracteriza-se a captura do atum pelos profusos movimentos energéticos do peixe que tenta desesperadamente fugir à morte certa, e pela azáfama dos pescadores que parecem “dançar” no esforço de golpearem a presa. A água torna-se rubra e branca do sangue e da espuma, dando tons vivos ao jogo de movimentos. O copejo, espectáculo de cor e acção caótica, conhecido também como a “tourada do mar” despertou a atenção de Raul Brandão que na obra Os pescadores descreveu-o assim:
«Uns homens têm na mão direita a ganchorra curta e afiada, presa ao pulso pela alça, e outros, armados de um bicheiro mais comprido, só esperam que o atum comece a saltar para o chegarem aos barcos. Agita-se a água...Vêem-se os grande dorsos reluzentes e os rabos que chapinham... Espetam o peixe. Para não caírem à água, deitam a mão esquerda à corda amarrada ao pau de entrevela, curvam-se e fisgam-nos pela cabeça. O peixe resiste e quer fugir: sentindo-se preso, ergue-se, apoiado na cauda e é esse movimento de recuo que ajuda o homem a metê-lo para dentro da caverna, largando logo da mão o bicheiro, que lhe fica suspenso do pulso pela alça. Baixa-se o homem, ergue-se logo...Os barcos estão cheios de peles luzidias e de manchas gordurosas de sangue. São bichos enormes e escorregadios, de grossa de pele azulada, que batem pancadas sobre pancadas com o rabo. A gritaria aumenta – Eh! Eh!... É uma mixórdia que me cansa. Só vejo manchas sobre manchas, sobrepostas, a cor e o movimento, a cor dos homens, a cor dos grandes peixes que se debatem e morrem e a agitação que se precipita e acelera os gestos confundidos. E sobre tudo isto um grito, um grito de triunfo, o grito de matança que explode numa alegria feroz, a alegria primitiva: - Eh! Eh!... num quadro imutável, todo vermelho e negro.... Cheira a açougue. A água tinge-se de sangue, a água pegajosa encharca os barcos. Misturam-se as cores e as peles escorregadias.... A carnificina enfarta e enjoa.... há laivos nódoas de sangue na tinta azul do mar.... Imensa tela a tons violentos, com uma agitação frenética no primeiro plano
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O copejo. O atum está ao alcançe dos braços dos pescadores que tentam golpeá-lo com os bicheiros. (Fonte: GALVÃO, António Miguel - op. cit., p. 78)
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A cada almadrava no mar correspondia um arraial em terra. O arraial constituía-se pelo conjunto de cabanas onde os pescadores residiam com as suas famílias durante a temporada da pesca. Frei João de S. José, na obra Corografia do Reino do Algarve, escrita em 1577, descreve um arraial de pescadores:
«A pescaria deste peixe não só é proveitosa, [...] mas também de muito gosto e desenfado, porque [...] acode a ela grande soma de pescadores de todo Algarve, com suas mulheres, filhos e outra chusma e fazem suas cabanas por toda a costa onde estão as armações e continuadamente acode a eles toda a gente comarcã a lhe trazer todo o mantimento e refresco necessário e levar peixe, assi deste como d'outro que também ali morre. De maneira que cada armação parece ua feira. Cada armação não traz menos de 70, 80 homens de serviço, com suas barcas e caravelões pera recolher e levar o peixe onde se há-de dizimar e pagar os mais direitos, afora os mercadores do reino e d'outros muitos estrangeiros que tratam nele e o levam a suas terras
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Pescadores concertando as redes da almadrava. Ao fundo veêm-se as cabanas do arraial. (Fonte: SANTOS, Luís Filipe Rosa - A pesca do atum no Algarve. Loulé: s.n., 1989, p. 61)
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A referência documental mais antiga sobre as almadravas em Portugal data de 1305, quando D. Dinis autoriza o seu lançamento a João Momedes e Bonanati e lhe concede um empréstimo de 1500 dobras, mediante o pagamento da dízima e sétima parte dos atuns, espadartes e golfinhos capturados. Com efeito, a pesca ao atum por meio de armadilhas de rede era conhecida desde da Antiguidade Clássica. No século III a. C. o grego Appianus descrevia na sua obra Haliêutica um método de pesca aparentemente semelhante ao das almadravas. Ele menciona « armadilhas de rede que seguiam pelo mar adentro e em certa altura se fixavam, formando como que casas, com vestíbulos, portas e câmaras interiores onde o peixe era colhido em quantidades apreciáveis».
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Esta faina estava incluída nas Pescarias Reais, tal como a pesca da baleia, golfinho, corvina e espadarte; actividades piscatórias de direito real, exercidas mediante autorização régia. Os interessados na sua exploração comercial tinham de pagar ao tesouro real 60% sobre o peixe capturado. A pesca do atum no Algarve interessou particularmente aos armadores e pescadores catalães e italianos, sobretudo sicilianos. Em 1368 armadores sicilianos estabelecidos em Lagos levam a cabo experiências visando uma maior eficácia das almadravas, e em 1440 D. Duarte arrendou-as a uma sociedade de sicilianos. Depois, em 1485, catalães e italianos exportavam milhares de arrobas de atum salgado para os seus países a partir do porto de Lagos. O atum salgado sempre foi um produto de exportação, principalmente para o mercado italiano e catalão. Devido ao elevado preço, o mercado português foi quase sempre secundário. Já em 1505, registra-se um contrato de arrendamento das almadravas entre o rei D. Manuel e um armador italiano, um tal de Bartolomeu «froletim», na importância de 1.310.504 reis. Em alguns casos constituíram-se sociedades comerciais com avultadas somas de capital para investirem na pesca do atum. No arquivo municipal de Messina (Sicilia) existem pelo menos três registos da formação de sociedades comerciais cujo fim era a pesca e comércio do atum algarvio. A participação dos mercadores sicilianos foi bastante incentivada, particularmente no reinado manuelino, através de isenções aduaneiras e medidas de protecção económica.
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Outro aspecto do copejo. São necessários dois homens para colocarem dentro da embarcação um atum. (Fonte: GALVÃO, António Miguel - op. cit., p. 121)

À medida que a receita do arrendamento das almadravas aumentava, a autoridade real preocupava-se mais com a sua fiscalização. Para melhor administrar os direitos reais foi criado o cargo de Feitor das Almadravas em 1498. Os 60% de direitos reais contribuíam com importâncias cada vez maiores para o tesouro da coroa. Os tempos áureos da pesca atuneira perduram sensivelmente até 1619, com rendimentos anuais na ordem dos 10.500.000 a 20.000.000 reis.

Todavia os valores decrescem drasticamente. Nos três anos seguintes as receitas reais cifram-se em apenas 8.120 000 reis e daí em diante até 1721 a média dos rendimentos andará na ordem dos 800 reis, só havendo notícias de alguma recuperação em 1739. O Marquês de Pombal pretendendo revitalizar o sector, funda a Companhia Geral das Reaes Pescarias do Reino do Algarve (CGRPRA) em 1773. Para retirar a pesca do atum da crise foram revistos os tradicionais processos de exploração da actividade, de modo a satisfazer todas as partes envolvidas no trato; rei e armadores. Procedeu-se a uma “revolução” na gestão do negócio pela mão do Marquês de Pombal. Os direitos reais sobre o pescado diminuiu para 20% e o preço do sal das marinhas de Castro Marim e Tavira desceu para 900 réis o moio. A CGRPRA tinha por concessão real a pesca e o comércio em regime de exclusividade de todo o atum na costa do Algarve, sempre renovada até 1836, ano da extinção da empresa.

Nesta imagem é bem visível o golpe desferido pelo pescador na sua presa. (Fonte: GALVÃO, António Miguel - op. cit. p. 122)
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Com o início do liberalismo económico após a guerra civil de 1832-34 surgiram várias empresas de pesca no Algarve que exploravam uma ou mais almadravas. O número de almadravas subiu continuadamente ao longo do século XIX, atingindo o número máximo de 19 entre 1898 e 1903. A pesca do atum conheceu um período de prosperidade económica até ao fim da I Guerra Mundial. Depois com a desvalorização dos preços, a concorrência de outras artes de pesca e o decréscimo da afluência do atum, as almadravas foram-se extinguindo gradualmente até 1971.

Bibliografia:

ANDRADE, Vicente Joaquim de - Memória sobre as Pescarias Reaes do Reino do Algarve, Lisboa: Imprensa Régia, 1813.

ARIENZO, Valdo d’ – No extremo ocidental: privilégios, empreendimentos e investimentos sicilianos no Algarve in Ler História, n.º 44 (2003).

BRANDÃO, Raul- Os pescadores, s.l.: publicações Europa- América, s.d.

CABREIRA, Thomaz - O Algarve económico, Lisboa: s.n., 1918.

COSTA, Fausto- A pesca do atum nas armações da costa algarvia, Lisboa: Bizâncio, 2000.

GALVÃO, António Miguel - Um século de História da Companhia de Pescarias do Algarve: elementos para o estudo da pesca do atum no Algarve e da sua evolução histórico-jurídica, Faro: Edição de Companhia de Pescarias do Algarve, 1948.

MAGALHÃES, Joaquim Romero - Para o estudo do Algarve económico durante o século XVI, Lisboa: Edições Cosmos, 1970.

Idem - O Algarve económico 1600-1773, Lisboa: Editorial Estampa, 1993.

SANTOS, Luís Filipe Rosa - A pesca do atum no Algarve, Loulé: s.n., 1989.

S. JOSÉ, João de, Fr. - Corografia do Reino do Algarve in Duas descrições do Algarve do século XVI, apresentação, notas e glossário de Manuel Viegas e Joaquim Romero Magalhães, Lisboa: Sá da Costa, 1983.

SILVA, Baldaque da - A pesca do atum in Revista Portugueza Colonial e Marítima, A. 1, (2º Semestre, 1897/98).

PS: Este post é uma modesta homenagem ao meu bisavô, João Prudênco de Jesus (1868 - 1954), na foto, ao meu tio-avô Francisco Prudêncio, ao meu avô António Prudêncio (1907 - 1988) e aos meus tios António Prudêncio e Casimiro Branco, todos eles antigos pescadores nas almadravas.

A pesca do coral em Portugal

Quando o académico da Academia de Ciências de Lisboa e professor de Física na Universidade de Coimbra, Constantino Botelho de Lacerda Lobo (1756-1821) apresentou a Memória sobre a decadência das pescarias em Portugal, editada em 1812 no tomo IV das Memórias Económicas da Academia das Ciências de Lisboa, argumentava que um dos indicadores da crise da pesca era o abandono de certo tipo de pescarias que no passado tinham sido praticadas pelos pescadores portugueses, como a pesca da baleia, do bacalhau e do coral.
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De todas as tipologias de pesca, a do coral era a que mais se distinguia pelo método. O pescador coraleiro mergulhava até ao fundo marinho e com o recurso a instrumentos de corte e raspagem retirava o coral para dentro de cestos que eram içados até à superfície, para dentro das embarcações. O coral foi usado no comércio da Índia e em Portugal a sua exploração se confinou à costa algarvia , havendo notícias históricas do seu exercício no século XV. Na mencionada memória económica, Constantino Botelho de Lacerda Lobo refere que no reinado de D. Afonso V, um tal Carlos Florentim (florentino), residente em Lagos «retirara muito coral» e não quisera pagar o dizímo deste ao Cabido da Sé de Silves em 1462. Depois, e até ao século XVIII, escasseiam elementos sobre a pesca do coral (LOBO, 1991 [2.ª ed.], p.257). Em 1711 parece estar definitivamente abandonado, porque no alvará real dado a Vicente Francisco para reintroduzir no Algarve a extracção do coral, se diz «[...] que nas costas do reino do Algarve houvera antigamente pescaria do coral, a qual se perdera por incúria dos homens, ou por falta de cabedais [...]». A licença dada ao investidor lisboeta Vicente Francisco foi por três anos, desconhecendo-se qualquer registo de continuidade desta pescaria para além desse tempo (LOBO, 1991 [2.ª ed.], p. 258).
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As poucas referências sobre a pesca do coral durante um período tão largo pode indiciar uma pouca adesão entre as comunidades piscatórias. Seria porventura arriscada e dispendiosa, comparativamente a outras pescarias. Por outro lado, no Mediterrâneo, em particular no Levante espanhol, Catalunha, Baleares, sul de França e Itália, o coral foi explorado com mais intensidade e até ao século XIX, circunstância provocadora, no mínimo, de uma certa concorrência ao coral português.
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Pescadores coraleiros em plena actividade. Os submersos manipulam os instrumentos de extração do coral (coraleiras), enquanto os que estão à superfície puxam as coraleiras com os cestos carregados de coral. Gravura do século XIX. (Fonte: Drassana: revista del Museu Maritim, n.º 2 (1994). Barcelona: Consorci de les Drassanes de Barcelona, p. 22

.Pormenor de uma arte coraleira segundo o Diccionário Histórico de las Artes de la Pesca Nacional (1791-1795), de A. Sáñrz Reguart. Fonte: Drassana: revista del Museu Maritim, n.º 2 (1994). Barcelona: Consorci de les Drassanes de Barcelona, p. 18

Bibliografia:

LOBO, Constantino Botelho de Lacerda (1991 [2.ª ed.]) - Memória sobre a decadência das pescarias de Portugal in Memórias Económicas da Academia Real das Ciências de Lisboa (1789-1815). Lisboa: Banco de Portugal, tomo IV

A pesca em Portugal no final do século XVIII

A Academia das Ciências de Lisboa (ACL), fundada em 1779, teve por objectivo o adiantamento da agricultura, das artes, e da indústria em Portugal e suas conquistas. Para esse fim, e no âmbito do pensamento económico fisiocrático, do qual era a principal representante em Portugal, patrocinou inúmeros estudos sobre o desenvolvimento da economia nacional. Constantino Botelho de Lacerda Lobo (1754 -1821), professor de física da Universidade de Coimbra e sócio da ACL, foi um dos estudiosos patrocinados pela ACL, dedicando parte dos seus esforços ao estudo da economia marítima portuguesa nos anos 1789 a 1791, mais concretamente sobre a actividade da pesca e da salinicultura.
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Efectuou 3 viagens para avaliar o estado das pescas em Portugal. De 1789 a 1791 viajou à costa de Entre Douro e Minho e ao litoral entre a foz do Sado e Guadiana. Dessas viagens de observação resultaram 4 estudos publicados nas Memórias da Academia das Ciências de Lisboa nos tomos III, IV, e V, nos anos 1791, 1812 e 1815 respectivamente. Um dos estudos é de âmbito local (Monte Gordo), dois são de âmbito regional (Algarve e Entre Douro e Minho) e um outro é de âmbito nacional (Portugal Continental), não obstante ser muito parco em informações sobre as comunidades piscatórias situadas entre a foz do Mondego e Sado.
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Barco de pesca da Ericeira. Imagem dos finais do século XVIII inserida no 4.º vol. da obra Algemeines Worterbuch der Marine de Jhoam Hinrich Roding, publicada por António J. Nabais. (Fonte: NABAIS, António J. - Barcos, 2.ª ed., Seixal:Câmara Municipal do Seixal, 1984, p. 75)
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População piscatória em 1789/1790
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Do cômputo dos elementos quantitativos publicados por Constantino B. L. Lobo é possível determinar os seguintes dados: na região Entre Douro e Minho, existiam em 1789, 8 comunidades piscatórias (S. João da Foz, Matosinhos, Vila do Conde, Póvoa de Varzim, Esposende, Fão, Viana do Castelo e Caminha) com 2 466 pescadores e 532 embarcações.(LOBO (b), 1991, [2.ª ed.], pp. 289 - 313).
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Para o Algarve, em 1790, existiam 13 comunidades piscatórias (Lagos, Alvor, Portimão, Ferragudo, Armação de Pêra, Albufeira, Quarteira, Faro, Olhão, Fuzeta, Tavira, V. R. Santo António e Castro Marim), com 3 811 pescadores e 354 embarcações (Idem (c), 1991, [2ª. ed.], pp. 69 - 101). Os valores destas regiões referentes ao número de pescadores totalizam 6 277 pescadores.
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Pensando nós que o restante litoral português não aglomerava um número de pescadores superior à região Entre Douro e Minho e Algarve, a população piscatória portuguesa nos anos 1789/1790 não devia ultrapassar os 12 500 efectivos.
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A decadência das pescas: os sintomas
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Constantino B. L. Lobo avaliou o estado das pescas como decadente. Como sintomas dessa decadência considera:
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1 - O abandono de diversos ramos da pesca, como a pesca do bacalhau, da baleia e do coral (Idem (a), 1991, [2ª ed.], p. 263) outrora praticados pelos pescadores portugueses.
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2 - A crise de vocação profissional, devido os filhos dos pescadores não quererem seguir a actividade dos pais. A pouca atractividade social da pesca foi verificada em diversos lugares (Viana, Vila do Conde, Matosinhos, S. João da Foz, Aveiro Setúbal, Algarve), factor que provocava a falta generalizada de mão de obra no sector pesqueiro (Ibidem, pp. 262, 263, 266, 274, 280). A pobreza, as dificuldades e entraves ao exercício da pesca desviavam os pescadores para a emigração no Brasil e Espanha ou para outras actividades económicas.
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3 - A importação de pescado, sobretudo da Galiza, para determinadas regiões do país, como o Minho, região antes auto-suficiente e exportadora de peixe constituía outro dos sinais de decadência (Ibidem, p. 262 - 264). Mesmo as comunidades piscatórias mais produtivas, como Póvoa de Varzim, eram incapazes de satisfazer a procura dos mercados regionais (Ibidem, p. 263).

Lancha de pesca do alto. Imagem dos finais do século XVIII inserida no 4.º vol. da obra Algemeines Worterbuch der Marine de Jhoam Hinrich Roding, publicada por Nabais. (Fonte: NABAIS, António J. - Barcos, 2.ª ed., Seixal: Câmara Municipal do Seixal, 1984, p. 69)

A decadência das pescas: as causas

Segundo Constantino B. L. Lobo, as causas da crise da pesca eram as seguintes:

1 - A ausência de capital para um desempenho positivo da pesca, «porque qualquer pescador, que houver de ser ocupado nela na maior parte dos lugares da nossa costa, deverá de ter ao menos seis redes de pescada, e outras tantas mugigangas, ou redes sardinheiras, três mengoeiras, oito rascas, um espinhel, um barco, e quantidade de casca de salgueiro que for precisa para tingir as redes. As despesas de todos estes aparelhos são incompatíveis com a grande pobreza, em que vivem nossos pescadores» (Ibidem, pp. 271, 272).

2 - Desiquílibrio na distribuição do lucro. Estando a maioria dos pescadores descapitalizados para investirem na aquisição de embarcações e aparelhos de pesca próprios, grande parte exerciam a actividade sob arrendamento desses equipamentos, situação que deixava ao pescador reduzida margem de lucro, porque uma parte substancial do pescado destinava-se ao pagamento da renda de utilização da embarcação e/ou redes. Sobre o reduzido lucro incidiam os direitos fiscais, agravando ainda mais as condições de rendimento do pescador. «Por isso muitos pescadores andam mendigando de porta em porta no tempo de Inverno, quando não podem ir ao mar» (Ibidem, p. 272).

3 - A falta de formação especializada para um exacto conhecimento hidrográfico do fundo marinho, dos locais mais propícios à pesca, das espécies e seus movimentos migratórios, era outro dos factores concorrentes para a ruína das pescas. Na opinião de Constantino B. L. Lobo os filhos dos pescadores reuniam os requisitos para aprenderem todos os segredos da profissão. Contudo, estes preferiam emigrar ou aprender algum oficio mecânico (Ibidem, pp. 273, 274). 4 - O abuso das prerrogativas dos rendeiros dos direitos, das autoridades municipais, eclesiásticas, militares e de pessoas poderosas sobre as comunidades piscatórias. Recolha indevida de direitos, proibições de pescar durante os dias santos e domingos, recrutamento compulsivo para o exército e interdições de vária ordem, constituíam abusos e violências praticados contra os pescadores desde há muito, incentivando a emigração dos pescadores para Espanha e o Brasil (Ibidem, pp. 275 - 282).

4 - Problemas técnicos, nomeadamente a malha demasiado pequena das redes que contribuia para a captura de peixe demasiado pequeno para a salga e posterior comercialização, e a acção dos caneiros nos rios que provocava a excassez de peixe (Ibidem, pp. 283, 284).

5 - O assoreamento das barras, prejudicial à navegação das embarcações de pesca de maior tonelagem (Ibidem, pp. 287, 288).

6 - A falta de tanques de água doce junto da linha de costa para lavagem das redes (Ibidem, p. 288).

Bibliografia:

LOBO (a), Constantino Botelho de Lacerda (1991) - Memória sobre a decadência das pescarias de Portugal, in Memórias Económicas da Academia das Ciências de Lisboa, 2.º ed., Lisboa: Banco de Portugal, tomo IV, pp. 241 - 288

Idem (b), (1991) - Memória sobre algumas observações feitas no ano de 1789 relativas ao estado da pescaria da província de Entre Douro e Minho, in Memórias Económicas da Academia da Ciências de Lisboa, 2.ª ed., Lisboa: Banco de Portugal, tomo IV, pp. 289 - 314

Idem (c), (1991) - Memória sobre o estado das pescarias da costa do Algarve no ano de 1790, in Memórias Económicas da Academia das Ciências de Lisboa, 2.ª ed., Lisboa: Banco de Portugal, tomo V, pp. 69 - 102