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Viajar no sul de Portugal antes de 1889

A linha ferroviária entre Lisboa e Faro entrou em actividade a partir de 1889. Até essa data viajar de Lisboa para Faro (e vice-versa) não era fácil nem cómodo. Manuel Teixeira Gomes (1860 - 1941) conta em breves linhas, no livro Gente Singular, a demora e desconforto do viajante vindo do norte em direcção ao sul: 

« [...] pus-me a caminho de Faro.
Duríssima travessia!
A linha férrea mal chegava a Beja, onde se tomava a dolorosa diligência de Mértola que, por seu turno, transbordava os viajantes num vaporzinho  manhoso sobre o qual se descia o Guadiana até à foz, e dali, na pombalina Vila Real de Santo António, outra diligência nos joeirava os já desconjuntados ossos pelo decurso das muitas horas necessárias a alcançar Faro.
Os percevejos de Mértola - e um quadro a missanga, principal ornamento da sua estalagem , representando um cãozinho de água levando na boca um cesto de cerejas, ilustrado  pela seguinte  legenda:

De meu tio o senhor José,
Certamente sou sobrinha,
Eu, Maria, e peço que
Sim me aceite esta avezinha.

-, o calor que dos xistos marginais do Guadiana se reflectia por catódicas labaredas no vaporzinho, convertendo-o em frigideira dos passageiros, e as sufocantes nuvens de ardente poeira da estrada algarvia são as mais claras recordações que me ficaram de tão calamitosa jornada.
Cheguei a Faro de noite [...].»

Torres Vedras vista por um alemão em 1798

O botânico alemão Heinrich Friedrich Link (1767 - 1851) viajou até Portugal em 1798 com o objectivo de estudar a flora portuguesa. Link foi professor de zoologia, botânica e química na Universidade de Rostock, e teve uma licença de dois anos para poder efectuar o estudo da flora ibérica. Viajou por todo o país, observando e analisando as mais variadas paisagens. Quando regressou à Alemanha publicou, em 1801, um livro de dois volumes sobre as memórias da sua viagem.
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Heinrich Friedrich Link (1767 - 1851), desenho de Eduardo Malta. (fonte: LINK, 2005, capa)
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Nessa obra, traduzida em português pela Biblioteca Nacional, encontra-se um manacial de informações sobre o Portugal finisecular de setecentos, incluindo descrições dos centros urbanos. Após ter estado algum tempo em Lisboa, Link parte para o norte de Portugal, através da estrada de Lisboa - Caldas da Rainha - Coimbra. A primeira cidade com que se depara é Torres Vedras. E sobre ela escreveu o seguinte parágrafo:
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«Torres Vedras é uma pequena cidade a sete léguas de Lisboa, situada numa colina onde se encontram as ruínas de um velho castelo. Tem pouco mais de 600 fogos, quatro igrejas paroquiais e três conventos fora da cidade. As igrejas e os conventos dão-lhe um aspecto melhor do que depois se acha. Em tempos foi uma fortaleza famosa, ainda hoje é sede de um corregimento. A região em redor é agradável e está bem cultivada, em particular cheia de jardins e vinhedos banhados pelo pequeno ribeiro Sizandro que está ladeado de amieiros e salgueiros. De um dos lados, logo recomeçam as montanhas arenosas e os pinhais, enquanto que do outro se avistam alegres colinas calcárias cobertas de mato. No sopé das mesmas brota uma fonte tépida que contém um pouco de anidrido carbónico, tendo-se também aqui encontrado carvão mineral numa camada de argila.» (LINK, 2005, p. 166)
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Bibliografia:
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LINK, Heinrich Friedrich - Notas de uma viagem a Portugal e através de França e Espanha, trad., introd., e notas de Fernando Clara. Lisboa: Biblioteca Nacional, 2005

Impressões da Grécia em 1897

Desde da independência da Grécia em 1829 as relações grego - turcas foram quase sempre conflituosas. O Império Turco Otomano jamais deixou de tentar reconquistar os domínios gregos enquanto que os helenos almejavam uma posição de proeminência na península balcânica, suportada no apoio da diplomacia inglesa, francesa e russa que através deles combatiam o domínio turco nos Balcãs, nos estreitos de Bósforo e Dardanelos que controlavam a navegação entre o Mar Negro e Mediterrâneo. 1897 foi mais um ano de beligerância, consequência da disputa pela ilha de Creta. A opinião pública europeia apaixonou-se pela defesa da Grécia, berço da civilização ocidental em luta pelo direito à nacionalidade independente, valor bem caro ao espírito homem ocidental do século XIX.
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Um jovem português de 18 anos, Furtado de Mendonça, movido pela mesma paixão decidiu dedicar-se à causa grega dando o corpo ao manifesto, ou seja, voluntariando-se para combater no exército grego. Parte com destino a Marselha, um importante porto de embarque dos cerca de 20. 000 voluntários para a Grécia, a maioria de 2ª geração dos emigrantes gregos na Europa Ocidental. Chega a Atenas a 5 de Maio de 1897, desiludindo-se com a primeira impressão da cultura ateniense, contrária à sua expectativa: «Que decepção a minha! Eu, que imaginava encontrar tudo de fustanella e saruguia, venho encontrar estes gregos trajados como qualquer lisboeta ou parisiense! Eu, que não tinha querido ouvir informações sobre Athenas, […] só para receber em cheio a impressão […] do seu aspecto clássico - sofro assim uma desillusão! Encontro tudo francez: cidade, hábitos, língua, vestuário - quando imaginava uma transição, mas com o seu carácter próprio da Europa, para a Ásia! O horrendo frac em logar da fustanella artística - eis a synthese da minha decepção.» (Mendonça, 1897, p. 26) Dois dias depois é enviado para a frente de batalha em Domokos, cerca de 80 km a nordeste de Atenas, não sem antes censurar a ociosidade patriótica dos habitantes da capital grega: «Com que altivez encaramos com os degenerados athenienses, que se ficavam saboreando o seu eterno café, emquanto que a pátria agonizava á falta de braços valentes e corações dedicados!» (Ibid., p. 29).

Furtado de Mendonça em traje militar. Fonte: (Mendonça, 1897)
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Ao percorrer as paisagens da Grécia rural regista a pobreza dos campos e das populações: «As estradas são péssimas e até agora não encontramos mais que uma pequena vila. A planicie de Lamia é productiva mas mal cultivada. Grandes porções de terreno bravio alternam com pedaços de milho enfezado, pequenas searas de trigo, e leiras de tabaco.» (Ibid., p. 31). Quando chega ao acampamento escreve: «Domokos é uma pequena villa de construção turca, da qual ainda conserva três mesquitas, tão porcas quanto miseraveis, e cujos habitantes são tão repellentes e sordidos quanto as suas habitações. Presentemente está quasi abandonada, e só restam habitadas meia dúzia de fetidas espeluncas onde se vende tabaco, vellas de cebo e insupportavel vinho. […] As ruas só existem in nominé, porque não encontramos nas poucas travessas que compõem a villa de Domokos, mais que uma informe agglomeração de pedras, sobre que somos obrigados a passar com grave risco das nossas botas. […] As aldeias que circundam o nosso acampamento, bem como a villa de Agourinia, dão a medida exacta do estado de atraso em que se encontra a Grecia interior. Se se figurar um irregular agrupamento de cabanas, construídas de tecido vegetal e cobertas de colmo, podendo abrigar duzentas pessoas, ter-se-há uma ideia approximada da villa de Agourinia. Mal conhecem a cal, e mui pouco a agua.» (Ibid., p. 41-42). Reforça a sua impressão escrevendo: «O interior da Grécia é um paiz inculto e selvagem, sem estradas ou qualquer meio de comunicação. […] É admirável, e também desconsolador, ver abandono a que estes imbecis votam os belos terrenos com que a natureza dotou uma grande parte da Grecia. Até agora só encontrei culturas de trigo, milho, tabaco e pouco feijão.» (Ibid., p. 67-68)
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Ao juízo pouco lisonjeiro da ruralidade grega junta-se-lhe a estranheza do relacionamento agressivo das populações locais para com os voluntários que arriscavam a vida em prol da pátria alheia. A falta de alimentos era problema mais grave para os militares, e os civis receando assaltos dos soldados famintos raramente os recebiam com benevolência. Esta situação provoca a crítica áspera à população civil: «Estamos pois em Asselanari, onde encontramos um grego, - único, até hoje - que nos forneceu gratuitamente, e com abundância, vinho, tabaco e rhum. […] De resto, teem-se portado com um egoísmo ou uma indifferença repellentes. A fome é grande e os mantimentos escasseiam por completo. Estes miseráveis gregos fugiram de nós como fugiriam dos turcos, escondendo algumas coisas que nos podiam ser uteis, levando outras consigo e estragando muitas - porque preferem isso a venderem-nol-as [sic] ou a que nós, por qualquer forma, nos apropriemos d’ellas! […] Os gregos são bêbedos, ladrões e incapazes de civilização.» (Ibid., p. 65). Ao mesmo tempo acusa-os de desinteresse em defender a própria pátria: «A guerra não os tem preoccupado: «quem a fez que a desfaça; se os turcos chegarem a Athenas, passaremos á Italia.» (Ibid., p. 89)
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A 17 de Maio desfere-se a batalha de Domokos. O português foi atingido por uma bala turca mas o botão da farda salvou-o travando o projéctil. Os turcos saem vencidos mas os gregos não aproveitam o feito militar. Abandonam o campo de batalha, situação que indigna o nosso personagem: «Não conheço um facto analogo a este em toda a historia. Batemos o inimigo causando-lhe innumeras baixas, vencemos, e no fim abandonamos o campo, cuja conquista nos custou tantas mil vidas! Depois de vencer - voltamos as costas! É horrível!» (Ibid., p. 51) Horas depois é recebida a ordem de retirada e a 24 de Maio recebe a notícia do armistício. Foram 17 dias de participação no conflito passados a maior parte entre marchas de avanço e recuo. Neste período ocorreram dois episódios de beligerância com o exército turco, a batalha de Domokos e um pequeno combate contra um destacamento de soldados irregulares turcos.
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Com a paz Furtado de Mendoça larga a pele de guerreiro e veste a de turista. Visita Kalcis, Atenas, Eleusis, Patras, Olímpia, Corfu. A impressão retida da Grécia monumental e urbana não é distinta da Grécia rural, pobre, abandonada e devastada pela guerra. No regresso à capital grega, descreve Kalcis deste modo: «Kalcis é uma grande cidade com bons estabelecimentos e hotéis. […] percorremol-a [sic] em todas as direcções, sendo bem recebidos» (Ibid., p. 84-85). Sobre Atenas diz o seguinte: «O aspecto da cidade tem o quer que seja de phantastico, sobretudo á noite. Pelas 8 horas fecham os estabelecimentos, e a ausencia ruido, a luz electrica e a do gaz, dão á cidade uma apparencia de encanto, que nos apraz extraordinariamente.» (Ibid., p. 88-89). Na viagem de retorno a Portugal pára em Corfu que o impressiona bastante: «O mais ideal, mais encantador panorama que uma ardente imaginação possa phantasiar, encontra-se realisado em Corfu. Nenhuma das cidades que conheço tem os encantos d’esta […].»
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Concluindo, Furtado de Mendonça conheceu duas Grécias. A Grécia rural, devastada pela guerra, ingrata e até desumana, algo que provavelmente nunca imaginara quando se voluntariara para a defender. Testemunhou um povo acossado pela guerra, faminto e receoso, contra o qual teve de se defender em algumas ocasiões. Ao mesmo tempo contemplou a Grécia da paz, clássica, histórica, bem ao jeito do imaginário ocidental, o berço da civilização, de braços abertos para quem lutava por ela. Quando o voluntário português se despede do país onde esteve 34 dias entre a guerra e a paz, em jeito de balanço confessa: «Apesar de alguns contratempos e decepções que soffri - é com profunda magua que deixo a Grécia…Tenho d’ella boas recordações.» (Ibid., p. 130).
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Bibliografia:
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MENDONÇA, Furtado (1897) - Na Grécia: notas d’um estudante voluntário na guerra grego-turca. Lisboa: Livraria Ferin - editores