O Museu Nacional de Arte Antiga teve a iniciativa de surpreender os transeuntes da cidade de Lisboa, ou melhor, de alguns bairros da cidade, com a iniciativa "Coming Out" onde quase 40 reproduções de quadros seus foram colocadas no exterior, com a respectiva moldura e legenda. Ou seja, copiando a forma como estão expostas no museu mas fora de portas, na rua Estamos a falar de obras de pintura antiga e não moderna ou contemporânea, portanto pinturas que foram encomendadas e produzidas a pensar no seu visionamento num espaço interior, a maior parte das vezes público (espaços religiosos). A novidade, o inesperado e uma ideia de democratização do acesso à arte devem ter contribuído para a recepção positiva da iniciativa.
O desvio de quatro obras para um bairro periférico da grande Lisboa por parte de moradores deste bairro, reclamando desta forma singular o lugar de pertença à Cidade, pertença onde os bairros da Baixa e Chiado se veem também assim reforçados, traz de forma mais aguda à superfície os motivos porque esta iniciativa pode ser uma má ideia e um serviço público duvidoso. Ação que se encaixa de alguma maneira no caminho trilhado pela atual direção do Museu, que é, em suma, considerar o espólio de que são responsáveis uma mercadoria. Uma mercadoria é um ativo, passível de se transformar em dividendos que, por sua vez, se transformam no principal meio de subsistência das próprias obras (os custos da sua conservação, do seu estudo e manutenção). Uma ideia não muito diferente da que grassou nos últimos governos para imensos setores públicos da sociedade. Na ciência e investigação, na saúde, no ensino. E a ideologia que subjaz à própria manutenção do sistema, o trabalho que produzimos tem um valor, esse valor é transacionável no mercado de trabalho como se de uma mercadoria se tratasse, com esse valor tentamos subsistir, o que para a maioria da população na Terra significa manter-se capaz de continuar a colocar a sua força de trabalho nesse mercado.
Colocar uma obra de arte, no caso uma pintura, numa parede de um prédio de uma rua na cidade, fora do seu contexto original ou fora de um qualquer contexto (neste caso o do museu) implica que concedemos à obra plástica um valor per si, que o tem também claro, mas que esse valor é suficiente para que a imagem se imponha sem mais e cumpra o seu papel comunicacional e interaja sem mediação com o fruidor. É impôr-lhe, e ao espaço público que irá ocupar e com que vai interagir, um novo lugar. Um lugar de autoridade, muito mais pela moldura dourada e a etiqueta MNAA que traz apensa. Não se trata aqui de colocar em diálogo a pintura de determinada época com o pensamento e o conhecimento que temos dela, aquilo que nos diz sobre o seu tempo, o nosso, e as próprias artes. O diálogo aqui é a exibição da marca MNAA e o símbolo de autoridade que representa associado a uma reprodução de qualidade numa obra que alguém não terá visto nunca, e talvez nunca tenha visto porque a tal marca de autoridade que cobre, legitima e institucionaliza o Museu, intimida e afasta grande parte da população de o visitar.
Então se as pessoas não vêm ao museu vamos levar o Museu às pessoas não é assim? Sim, fosse este tipo de iniciativa outra coisa diferente da de um claro merchandizing da própria instituição, que procura não aproximar as suas obras e o que elas nos propõem como espaços problemáticos -como todo o conhecimento - mas aumentar o score de visitantes. Principalmente os visitantes estrangeiros e os frequentadores de espaços de consumo mais associados à cultura e com maior poder de compra, a avaliar pela escolha dos bairros onde se espalharam as cópias. Operação de publicidade que de caminho rouba para título um nome com elevada carga política, "Coming Out", como se as obras estivessem escondidas e privadas da liberdade que só encontrariam fora do armário, no caso, na rua. Um caminho feito portanto, também aqui, da banalização e parasitismo de termos que têm um campo de ação presente e significativo na emancipação de tantas pessoas.
Chegados aqui podemos perguntar: então, se as reproduções na rua levaram gente ao Museu e chegada lá pôde ver os originais e entrar no espaço mediado e no contexto da obra, não foi um ganho? Não cumpriu o museu um dos seus papéis que é o aumento do número de visitantes e o aumento diversificado do seu público? Sim, se ao museu coubesse só ou fosse mesmo esta a mais importante das suas funções.
No século XIX a par da filantropia que ajudou a criar os primeiros museus nacionais, herdeiros diretos do romantismo e do advento dos estados-nação, propagava-se a ideia nalgumas áreas do saber (a saúde mental, a criminologia por ex.) de que o contacto com uma obra de arte podia transformar efectivamente um indivíduo. Um autista podia sair da sua doença, um assassino podia ser redimido e arrependido pelo simples bafejar de uma obra de pintura de um mestre consagrado. A estas crenças não foi alheia a própria discussão que se seguiria até ao modernismo do que definiria um obra de arte. Nem é alheio o facto de alguns países manterem ainda hoje o acesso livre aos seus mais importantes espólios. No Reino Unido foi isso que mereceu a gratuitidade nos principais museus, muito mais do que as conquistas democráticas em torno da cultura.
Para além de escolher (adquirir) e preservar, o Museu cria narrativas e através da interação com os seus públicos emite ideologia, o Museu é uma instituição produtora de cultura. A obrigação de criar e aumentar públicos -e de receita - é um entre os seus papéis e não seguramente o mais importante. A ideia de que as reproduções dos quadros do MNAA embelezam uma rua no Bairro Alto mais do que um grafitti um cartaz uma tabuleta de uma loja ou uma janela da mesma rua é beneficiária dessa visão de que a beleza reside nos mestres consagrados pela instituição. E mais totalitária será a ideia de que se virmos determinadas obras asseguramos a nossa pertença a um determinado património (que não é mais do que uma instituição com poder escolheu como tal), da mesma forma que se lermos as obras escolhidas pelo plano nacional de leitura podemos concluir com êxito determinado grau de escolaridade. Ou seja, tornarmo-nos em portugueses e portuguesas. Não uns quaisquer, mas aqueles que entraram nos Jerónimos, que viram as obras X e Y no MNAA. A construção da pátria é uma das narrativas do Museu. Saber que, entre os frágeis desse país se vão escolher as imagens que uma instituição com poder selecionou como construtoras da nossa identidade comum, que a mesma instituição nos impingiu (no museu escolhemos ir vê-las, na rua somos obrigados a vê-las) como suas/nossas, que os excluídos da Cidade pela economia, pela produção, venham buscar e reclamar essas mesmas imagens para as levar para o seu bairro lembra colonialismos. Não foi o Museu buscar arte à periferia, o etnográfico recolher as estatuetas ou os instrumentos e utensílios da comunidade, foi a comunidade buscar as imagens à metrópole para se redimir e tornar melhor.
As obras que sobraram foram a Leilão esta semana tendo rendido 33 mil euros que serão aplicados na compra do quadro de Domingos Sequeira.
Actualização a 12 Outubro.
E no trilho de uma certa ideia de colonização pela imagem eis uma iniciativa idêntica do Museu do Prado para as ruas de Costa Rica.
Colocar uma obra de arte, no caso uma pintura, numa parede de um prédio de uma rua na cidade, fora do seu contexto original ou fora de um qualquer contexto (neste caso o do museu) implica que concedemos à obra plástica um valor per si, que o tem também claro, mas que esse valor é suficiente para que a imagem se imponha sem mais e cumpra o seu papel comunicacional e interaja sem mediação com o fruidor. É impôr-lhe, e ao espaço público que irá ocupar e com que vai interagir, um novo lugar. Um lugar de autoridade, muito mais pela moldura dourada e a etiqueta MNAA que traz apensa. Não se trata aqui de colocar em diálogo a pintura de determinada época com o pensamento e o conhecimento que temos dela, aquilo que nos diz sobre o seu tempo, o nosso, e as próprias artes. O diálogo aqui é a exibição da marca MNAA e o símbolo de autoridade que representa associado a uma reprodução de qualidade numa obra que alguém não terá visto nunca, e talvez nunca tenha visto porque a tal marca de autoridade que cobre, legitima e institucionaliza o Museu, intimida e afasta grande parte da população de o visitar.
Então se as pessoas não vêm ao museu vamos levar o Museu às pessoas não é assim? Sim, fosse este tipo de iniciativa outra coisa diferente da de um claro merchandizing da própria instituição, que procura não aproximar as suas obras e o que elas nos propõem como espaços problemáticos -como todo o conhecimento - mas aumentar o score de visitantes. Principalmente os visitantes estrangeiros e os frequentadores de espaços de consumo mais associados à cultura e com maior poder de compra, a avaliar pela escolha dos bairros onde se espalharam as cópias. Operação de publicidade que de caminho rouba para título um nome com elevada carga política, "Coming Out", como se as obras estivessem escondidas e privadas da liberdade que só encontrariam fora do armário, no caso, na rua. Um caminho feito portanto, também aqui, da banalização e parasitismo de termos que têm um campo de ação presente e significativo na emancipação de tantas pessoas.
Chegados aqui podemos perguntar: então, se as reproduções na rua levaram gente ao Museu e chegada lá pôde ver os originais e entrar no espaço mediado e no contexto da obra, não foi um ganho? Não cumpriu o museu um dos seus papéis que é o aumento do número de visitantes e o aumento diversificado do seu público? Sim, se ao museu coubesse só ou fosse mesmo esta a mais importante das suas funções.
No século XIX a par da filantropia que ajudou a criar os primeiros museus nacionais, herdeiros diretos do romantismo e do advento dos estados-nação, propagava-se a ideia nalgumas áreas do saber (a saúde mental, a criminologia por ex.) de que o contacto com uma obra de arte podia transformar efectivamente um indivíduo. Um autista podia sair da sua doença, um assassino podia ser redimido e arrependido pelo simples bafejar de uma obra de pintura de um mestre consagrado. A estas crenças não foi alheia a própria discussão que se seguiria até ao modernismo do que definiria um obra de arte. Nem é alheio o facto de alguns países manterem ainda hoje o acesso livre aos seus mais importantes espólios. No Reino Unido foi isso que mereceu a gratuitidade nos principais museus, muito mais do que as conquistas democráticas em torno da cultura.
Para além de escolher (adquirir) e preservar, o Museu cria narrativas e através da interação com os seus públicos emite ideologia, o Museu é uma instituição produtora de cultura. A obrigação de criar e aumentar públicos -e de receita - é um entre os seus papéis e não seguramente o mais importante. A ideia de que as reproduções dos quadros do MNAA embelezam uma rua no Bairro Alto mais do que um grafitti um cartaz uma tabuleta de uma loja ou uma janela da mesma rua é beneficiária dessa visão de que a beleza reside nos mestres consagrados pela instituição. E mais totalitária será a ideia de que se virmos determinadas obras asseguramos a nossa pertença a um determinado património (que não é mais do que uma instituição com poder escolheu como tal), da mesma forma que se lermos as obras escolhidas pelo plano nacional de leitura podemos concluir com êxito determinado grau de escolaridade. Ou seja, tornarmo-nos em portugueses e portuguesas. Não uns quaisquer, mas aqueles que entraram nos Jerónimos, que viram as obras X e Y no MNAA. A construção da pátria é uma das narrativas do Museu. Saber que, entre os frágeis desse país se vão escolher as imagens que uma instituição com poder selecionou como construtoras da nossa identidade comum, que a mesma instituição nos impingiu (no museu escolhemos ir vê-las, na rua somos obrigados a vê-las) como suas/nossas, que os excluídos da Cidade pela economia, pela produção, venham buscar e reclamar essas mesmas imagens para as levar para o seu bairro lembra colonialismos. Não foi o Museu buscar arte à periferia, o etnográfico recolher as estatuetas ou os instrumentos e utensílios da comunidade, foi a comunidade buscar as imagens à metrópole para se redimir e tornar melhor.
As obras que sobraram foram a Leilão esta semana tendo rendido 33 mil euros que serão aplicados na compra do quadro de Domingos Sequeira.
Actualização a 12 Outubro.
E no trilho de uma certa ideia de colonização pela imagem eis uma iniciativa idêntica do Museu do Prado para as ruas de Costa Rica.