23 setembro 2022

Diário da Bica

Defronte de uma nova máquina automática desde há uns meses, mais ou menos o começo da guerra. Delta Gold, diz-me o técnico que a visita semanalmente que é o lote melhor. Mói os grãos na altura e não falha. Vinte cêntimos. Continuo a sentir a falta de um expresso com aquela quantidade de bares, e do risco da descoberta. Este café é bom, funciona e tudo ao redor é tranquilo ou até alegre. Fugir o mais que possa às pequenas conflagrações ainda que possam servir grandes paixões em cada um. A humanidade, encontro-a no caminho. 

26 março 2022

Diário da Bica

Apesar de não ser nenhuma igual podem saber todas ao mesmo. Deve ser de nós, dos humores inconstantes do corpo e dos seus mistérios. Bebidas como um remédio ainda que por vezes resultem pouco ou nada como qualquer outro remédio. Insistir, mudar a prescrição médica, não sucumbir a essas pequenas derrotas que são uma bica não ser o ilmuninador fulminante do presente. Aproveitar o cheiro forte das flores da laranjeira do vizinho, não se comem, mas invadem numa surpresa os dias maiores.

17 março 2022

O céu amarelo é um pano que desceu, um mecanismo de suspense, um guardanapo para limpar a boca antes de comer.

MEC

09 março 2022

Diário da Bica

Muitas vezes há bicas que sabem ao mesmo. Não interrompem assim a cadência desnorteada do tempo. Perdi de vista a máquina de café automática para onde olhei regularmente durante o último ano. Trinta cêntimos, um café seguro e discreto apesar do design e arquitetura dos interiores. 

04 março 2022

O jornalista diz na TV que o vídeo que vamos ver é verdadeiro. Depois de avisar que vivemos tempos de extrema desinformação. E como nos diz que este é verdadeiro nada nos resta senão acreditar que é verdadeiro como todos os outros, a verdade é assim o que nunca foi. Apesar de termos chegado até aqui. Chegámos, o que deve querer dizer que ela nunca foi fundamental ou determinante. Se determinou, é com a mesma angústia de desconhecer que caminhamos, em direção ao próximo supermercado ou às próximas palavras. 

24 fevereiro 2022

Diário da bica

Não há uma bica igual a outra. Como o cheiro de uma pessoa. Podemos esquecer-nos ou não nos lembrarmos, até que o paladar aberto, a luz do dia e as circunstâncias exatas daquela máquina e daquelas sementes apanhadas, transportadas torradas e conservadas, nos façam acordar pelos sentidos, a memória ou a descoberta da primeira vez. A busca incessante desse momento inaugural tranquiliza, dá sequência ao ponto alto do dia.

18 fevereiro 2022

Diário da Bica

Volto ao momento no pequeno balcão do pequeno café quando o número de mortos nas enxurradas no Brasil era bem menor. Volto para me lembrar de um rosto que sorria lá fora para alguém numa das duas mesas postas cá fora. 

A escala da cidade aqui é mais inóspita, não em todos os sítios mas quase em todas as ligações para eles, são os carros, os aviões ou as árvores grandes e sós que dominam. Nós sujeitamo-nos, ao som e velocidade nas grandes artérias com um corpo pequeno e desabrigado. Corpo sujeito ao ruído como ao trabalho.

16 fevereiro 2022

Diário da Bica

Andei um pouco mais para ver se o pequenino café já tinha reaberto. É uma chinesa e deve ter ido à China celebrar o ano novo. E nunca se vai por menos de um mês. Os chineses que têm negócios aqui que funcionam conseguem ir talvez todos os anos, como a família da mercearia. Este café é excelente e todas as plantas e decorações são hospitaleiros a combinar com a dona, rápida como uma pequena flecha não deixa de cumprimentar quem chega e quem sai. Estava aberto e não fora por isso continuava a desconhecer que ontem morreram quase 40 pessoas arrastadas por inundações no Rio de Janeiro.

14 fevereiro 2022

Segunda viagem da máquina expresso em forma de pássaro até à oficina. É preciso descer duas colinas e subir outras duas, se não fosse o co2 era melhor.Tirou quatro bicas, uma para o ralo, não aguentou a quinta. Pretexto para um novo dia à procura do café perfeito. 

12 fevereiro 2022

Mas a cafeteira tem segredos e os seus mitos. Talvez não chegue a vida ou o apurar dos sentidos para alançá-los. O lume baixo, a tampa aberta, a pressão com que se calca o café sobre o filtro, o metal lavado só com água. E no fim, fica a faltar o expresso, porque nos tornámos rudes e ávidos. 

11 fevereiro 2022

Diário da Bica

A máquina de casa esteve na oficina do Tiago que a desmontou, trocou uma peça, e a fez quase regressar a uma nova vida. Quando chegou a casa não aguentou a pressão do primeiro café e soltou-se um tubo lá dentro. Espera pelo regresso à oficina e as cápsulas anti-ecológicas sossegam. Voltei à cafeteira moca, fui buscar a maior e mais rústica porque algo se passa com a que tinha mais à mão com o design delicado. A antiga é perfeita, tamanho 3 chávenas ou 4, reencontrar o sabor como um amor antigo. O poder do expresso não permite aceder à subtileza do café fervido.

09 fevereiro 2022

Diário da Bica

Uma máquina Delta imponente e luminosa na sala de espera do atendimento do Hospital inquietava. Muito mais alta que qualquer de nós, ecrán tátil, com as escolhas vibrantes. Intimidou-me, a mim e à senhora que esperava atrás, partilhei com ela a sensação de ter ouvido um moinho a moer os grãos antes de ser vertido o líquido aromático para o copo miserável de plástico. Com as nossas máscaras não sei se ela percebeu, acho que não, estava nervosa como eu em saber se seria capaz de lidar com a tecnologia. Nada a assinalar a não ser ter conseguido a bica antes de mergulhar no mundo dos exames à retina que me iam atirar para uma visão desfocada do mundo por tempo indeterminado.

08 fevereiro 2022

Diário da Bica

7fev. Entrei num dos cafés em frente ao liceu. Pequenino, só uma mesa com duas cadeiras cá fora onde dois estudantes artistas fumavam o primeiro cigarro e trocavam palavras, calmas e entusiasmadas, a semana a começar. A campainha da escola tocou, entrei e bebi o café com os olhos encadeados pelo sol e com a voz de quatro cantoneiros da junta que entraram para o pequeno almoço. Não era melhor que o da máquina no trabalho, onde bebi o segundo três horas mais tarde. O terceiro foi o melhor, o sol tombava sobre a mesa e lá fora onde o pessoal do hospital descansava na hora do almoço. 
 
8fev. Ontem no regresso ao trabalho depois do café do almoço um rapaz muito jovem perguntou-me o que eu achava do homo sapiens. Fez-me uma pequena entrevista enquanto caminhávamos e disse-lhe no fim que era importante manter a esperança, quando me perguntou se achava que íamos a tempo de salvar o planeta. Pouco antes também na rua, dois rapazes igualmente jovens, pediram-me dinheiro para comer