quinta-feira, 29 de setembro de 2011
É já só o que falta
Não contem a ninguém, mas começo a ter pesadelos recorrentes com rebanhos que se dirigem pelo seu pé para o matadouro, balindo rezinguices e comentando as vantagens dos choques eléctricos em comparação com a degola, ou o esventramento.
Nalgumas noites, a coisa dura mais um pouco até acordar. Então, carneiros muito subitamente emagrecidos desatam à cornada aos outros e entre si, para júbilo de outros marchantes, que se entusiasmam a tentar acertar uma cornada nos cães do pastor. O que, por sua vez, enche de júbilo uns terceiros, que nisso imaginam futuros radiosos.
E a marcha continua. Por entre o som incessante de balidos de resignação, de indignação, de justificação, de ira e de exortação.
Por vezes, ao acordar, procuro assarapantado certificar-me se não me terá, entretanto, crescido lã.
Entre tais terrores nocturnos e fotos de certeira ironia, como esta, vem-me por vezes um amargo à boca.
É que, por certeira que a ironia seja, faz-me também pesar a ameaça de outros pesadelos.
E passa-me pela cabeça: Se a tal de hegemonia continuar a funcionar tão bem, a que é que ainda assistiremos - por exemplo - num país da minha predilecção em que 50 a 60% do orçamento de estado é pago por governos da "Europa em crise", e em que todo esse dinheiro é apenas 25 a 30% do que por lá entra em "ajuda ao desenvolvimento"?
Que os seus governantes repetissem entre si a frase da foto, em jeito de prece, pouco me surpreenderia.
Mas... e se a coisa hegemonicamente se espalha?
Será que ainda vamos ver miúdos de calção rasgado a escreverem na terra, agora em português (já que a escrita das línguas locais só em altos estudos se aprende), «Por favor salvem os bancos»?
É já só o que falta.
quinta-feira, 7 de julho de 2011
Lixando a vidinha à gente
Em parte, parece que a Moody's viu uma evidência. Afinal, não é necessário ser nenhum génio matemático ou contabilístico para concluir que a dívida pública portuguesa tem que ser re-escalonada, por ser impagável nas condições em que foi contratada.
Sobretudo aquela assumida nos últimos dois anos a juros surrealistas, na patética tentativa de sobrevivência política do anterior governo, procurando adiar o inevitável com tespestades de areia para os olhos, não dos tais de "mercados", mas dos eleitores.
Isto porque os tais "mercados", é claro, não estão ali para assegurar um simpático e seguro juro das suas aplicações financeiras (ou não se transaccionariam acções por preços que tornam miserável o dividendozinho anual, comparado com o rendimento noutros sítios onde pôr o dinheiro), mas para comprar e vender com lucro - ou seja, numa palavra de que não gostam, para especular.
Para os tais "mercados" (desculpem-me a evidência, mas é necessário repeti-la, já que os decisores políticos e económicos, seguidos de comentadores e media, regurgitam a vulgata marginalista mainstream que se ensina nas escolas onde os peões e barões dos "mercados" estudaram), é pouco relevante o valor real daquilo que transaccionam, ou o risco envolvido.
Se o valor intrínseco daquilo que compram e vendem fosse relevante (mas a teoria económica que partilham dogmaticamente diz que isso não existe, que só há valor no mercado), não teria acontecido a crise de 2008, de que andamos a pagar os prejuízos que eles tiveram.
Se os juros de dívida pública subissem por causa do maior risco de não se ser reembolsado e por ninguém o querer assumir, os tais de "mercados" não se acotovelariam para comprar cada emissão de dívida pública portuguesa, acotovelando-se tanto mais quanto maior for o juro que consigam sacar, suspostamente por ser maior o risco de incumprimento.
Risco pouco credível, aqui entre a gente, pois não imaginam a União Europeia a deixar cair um país do Euro em simples incumprimento de pagamento, mesmo que para isso tivesse que adoptar aquelas medidas óbvias que, chatice, tirariam aos bancos alemães e franceses em busca de re-capitalização este maná tão lucrativo - e, por isso, não foram até agora adoptadas.
Mas isso de o risco ser pouco relevante para os tais "mercados", é uma forma de dizer. Passa a ser uma coisa muito relevante quando serve para fazer subir o lucro a ganhar - se for dívida, o juro e as condições de transacção nos mercados secundários. É a comezinha lógica de "quanto mais eles estão à rasca, mais caro lhes podemos vender o dinheiro". Acompanhada de "quanto mais dissermos que é arriscado e mais exigirmos vender caro, mais eles ficam à rasca".
"Acalmar os mercados" é, por isso, a maior das imbecilidades politico-económicas repetidas à exaustão no último ano. Os tais de "mercados" não querem ser acalmados, querem abocanhar este maná nas mais lucrativas condições possíveis. Querem razões de nervosismo - ou porque não se faz nada contra o seu ataque, ou porque se aceitam medidas recessivas que pioram a situação, em evidente desespero de quem está à rasca.
Claro que me chateia que, no meio disto tudo, não haja como criminalizar as "agências de rating" que servem de desculpa e instrumento a isto, e os decisores que nos meteram e mantêm no buraco que continuam a cavar. Mas adianta resmungar?
Parece-me que a coisa tão pouco passa por resmungar a evidência de que esta mesma Moody's (e todas as congéneres) classificavam como AAA a Lehman Brothers e a Islândia, na véspera de falirem.
Também já não passa pela única coisa que teria evitado a situação, há um ano atrás - o resgate massivo, pelo BCE, de dívida pública dos países vulneráveis, antes vendida a juros incomportáveis. Mas, claro, como se iriam então os bancos alemães e franceses recapitalizar nestes tempos difíceis?
Por cá, passa certamente pelo rápido re-escalonamento da dívida.
E passa, caso a União Europeia queira estancar a hemorragia que é cada vez mais sua (não falemos de coisas esquisitas, como solidariedade, construção europeia e outras ideias ingénuas) pela urgente emissão de dívida pública europeia.
Nada de novo, como ideias. Mas não são mais evidentes a cada dia que passa?
segunda-feira, 25 de abril de 2011
Constatações polémicas - 3: Aniversário de pais incógnitos
Isto porque, é bem sabido, o objectivo de uma guerrilha não é vencer militarmente no terreno, mas levar o opositor a não ter vontade e/ou condições para continuar a combater.
As independências vieram depois, por vezes com enormes sobressaltos até lá. Mas a sua estrondosa vitória deu-se na madrugada de 24 para 25 de Abril de 1974.
Uma vitória de pais incógnitos. Por lá, porque deve ter havido quem achasse que o objectivo estratégico da sua luta armada não seria suficientemente heroico, quando vertido no discurso público. Por cá, porque reaparecem ciclicamente umas alminhas carunchosas a clamar que as guerras não estavam militarmente perdidas, como se isso fosse o relevante em guerras como aquelas.
Entretanto, combatentes dos movimentos de libertação, obrigado pela vossa contribuição para a nossa própria libertação.
quarta-feira, 16 de março de 2011
O nojo!
Que o professor jubilado Aníbal Cavaco Silva nunca tenha dito uma palavra contra a ditadura do "Estado Novo" e justifique isso por não ser um menino rico e não se poder dar a esses luxos, revela-nos um cobardolas como muitos milhares, capaz de esconder essa característica por detrás da desvalorização e insulto aos que não se calaram.
Que, para aceder a um emprego, tenha escrito preto no branco estar em consonância com o regime vigente (o tal da altura), até pode ter constituído uma mentira ou semi-verdade, reveladora da falta de espinha vertebral ou da sua capacidade de fazer a sua vidinha, fosse qual fosse o regime político em que vivesse.
Que o presidente da república (desculpem a ausência de maiúsculas mas, hoje, não as consigo escrever) Aníbal Cavaco Silva tenha chamado ao 10 de Junho "Dia da Raça", até poderia ter sido, com muito boa vontade da parte de quem ouvisse, um lapso de quem tão facilmente se adaptou aos tempos da outra senhora.
Mas que em 2011 exorte "os jovens" (essa vaga entidade que de novo se tornou politicamente apetecível) a empenharem-se «em missões e causas essenciais ao futuro do país com a mesma coragem, o mesmo desprendimento e a mesma determinação com que os jovens de há 50 anos assumiram a sua participação na guerra do Ultramar» vai para lá de qualquer imbecilidade, falta de cultura democrática ou de visão histórica.
É cuspir nos jovens de hoje, é cuspir nos jovens de ontem que foram obrigados a travar essas 3 guerras, é cuspir nos mortos e mutilados físicos e psicológicos que delas resultaram, é cuspir nos povos tiranizados pelo colonialismo e naqueles que contra ele se levantaram, é cuspir naqueles que derrubaram a ditadura tendo o fim dessas guerras como um dos seus três objectivos fundamentais, é cuspir no regime democrático que disso resultou e que este senhor é suposto presidir e representar.
Também por lá andou, como muitos? Sim. Mas isso não desculpa (tal como a sua declaração escrita de apoio à ditadura não o justifica) o branqueamento da história, desconfortável mas nossa, com base no próprio discurso fascista.
Este presidente não é apenas um erro de casting pela forma como se comportou antes de 1974 e pelas discordâncias políticas que com ele se tenham no presente.
De cada vez que abre a boca acerca do passado (ou de qualquer coisa que com ele esteja relacionada), fica mais claro que não foi apenas uma pessoa demasiado cobarde para criticar a ditadura, ou sequer demasiado conformista para se sentir desconfortável por viver nela.
Fica mais claro que é lá que estão as suas referências políticas e sociais profundas, e não no Portugal democrático em que, com todas as suas limitações, vivemos.
Nem vale a pena, suponho, lembrar as consequências que declarações como estas teriam em qualquer país democraticamente decente.
E, afinal, elas fazem com que saudar, no mesmo discurso, os «militares de etnia africana» pareça quase uma calinada irrelevante.
quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011
Economia e revolta política
A de que "aquilo" aconteceu devido à pobreza e ao desemprego, que são revoltas mais económicas do que políticas.
Esta interpretação habitual tem subjacente, para além do desconhecimento, um preconceito: o de que os pobres pensam com a barriga e a sua política é o estômago.
Por sua vez, esse preconceito passa por "natural", face ao economicocentrismo aparentemente tecnocrático do discurso político hoje dominante - enformado pelas visões económicas neo-clássicas e neo-liberais, mas que parece fazer sentido a quem partilhe uns fragmentos mal digeridos de marxismo de manual de divulgação.
Mas dizem-nos os tais dados que a actual onda de protestos árabes começou no país com, de longe, a menor taxa de pobres da região (3,8%) e que está a ter a maior visibilidade num país que, embora com 20% de pobres, tem a segunda menos alta taxa de desemprego (9,8%).
Convidando-nos a pensar - sem, para isso, termos que recorrer a coisas esquisitas como a teoria do caos - que a pobreza e os aumentos de preços podem ser um caldo de cultura, um catalisador ou uma faísca para a revolta (e, desta vez, a faísca até foi um acto simbólico), mas nem bastam para que ela ocorra, nem são a única coisa que ela expressa e contra a qual se insurge.
Podem variar muito as visões acerca do que é a dignidade, do que são os direitos, do que o poder político é e deveria ser. Mas só muito excepcionalmente (se é que tal pode acontecer) uma revolta popular ou amotinação pública poderá não ser, na sua génese, mobilização e desenvolvimento, uma expressão e reivindicação política.
Mesmo que, ao contrário de agora, só explicitamente se insurja contra questões económicas e não reivindique o afastamento dos detentores do poder estatal.
É assim nos países árabes (em cada caso diferentes), como foi assim nas revoltas de 2008 e 2010 em Moçambique, e assim foi um pouco por toda a África sub-sariana, nos últimos anos.
O que, por outro lado, nos obriga a conhecermos cada situação e cada caso, na complexidade dos muitos factores envolvidos, para o podermos compreender.
E nos "proíbe" generalizações simplistas, ou a redução das pessoas ao seu aparelho digestivo.
quarta-feira, 19 de janeiro de 2011
"Primeiro levaram" & cois'ital
No entanto, mais do que como caso particular ou como situação, creio que elas nos devem sobretudo preocupar e indignar enquanto indícios e partes de um processo.
Ao serem desnecessárias e excessivas, são, para além do próprio acto, uma declaração de intenções, um "aviso" para o futuro. E um "aviso" com passado.
Durante os preparativos para a cimeira da NATO (para além do bloqueio de meia cidade e da cégada dos blindados anti-motim) cometeram-se todo o tipo de abusos ao abrigo da reinstauração do controlo de fronteiras, como impedir a entrada no país a cidadãos europeus perigosamente armados de canivetes ou de panfletos e t-shirts de protesto. Um legítimo restabelecimento do controlo de circulação transfronteiriço tornou-se um controlo e atentado à liberdade de manifestação e de expressão.
Durante a própria cimeira, foi imposto um dress-code a quem se manifestasse ou, simplesmente, circulasse nas ruas.
Em ambos os casos, e na prática, as forças policiais foram instruídas pelo Governo para se comportarem como se o estado de emergência tivesse sido decretado.
Houve coisas antes, como o extemporâneo e injustificado apontar como desígnio de segurança nacional a criminalização da "apologia do terrorismo",
E houve coisas depois, como o acordo de fornecimento de dados antropométricos à administração norte-americana - que, para além dos seus contornos inconstitucionais, constitui um insulto ao país e um insulto do Governo aos cidadãos.
Não creio, por tudo isso, que estejamos perante mais um isolado caso de falta de descernimento e de excesso policial, mas antes perante mais um momento de uma mesma tentativa de subordinação dos direitos e liberdades à paranoia securitária.
Que, tal como sempre acontece (l'appétit vient en mangeant) rapidamente passa das já de si fluidas "ameaças terroristas" para a contestação social dentro do quadro de liberdades e direitos constitucionalmente vigente - como, aliás, o nosso querido Ministro da Administração Interna sustenta, de uma muito explícita forma implícita, no livro que escreveu enquanto chefe da secreta.
Dizem que Benjamin Franklin disse qualquer coisa parecida com "quem está disposto a abdicar de parte da sua liberdade em favor da sua segurança não merece nem uma nem outra".
É verdade que, quando a questão são direitos e liberdades (que não constituem uma coisa "natural" nem "cultural", mas política, resultante de um historial de conflitos e da sua imposição pelos dominados aos dominantes), não se trata de "merecimento", como se de privilégios oferecidos a bem comportados se tratasse.
Mas, exactamente pela sua natureza construída e conquistada, desconfortável para os dominantes e precária, os processos de paulatino enfraquecimento e erosão dos direitos e liberdades de que usufruímos não podem ser objecto da nossa desatenção ou minimização.
É a tal história do "Primeiro levaram...", & cois'ital.
Não só tipos sucessivos de pessoas.
Também o sucessivo exercício efectivo de direitos, liberdades e garantias. Até que estes se tornem letra morta. Ou nem sequer letra.
quarta-feira, 17 de novembro de 2010
Insurreição dos pregos II
É o caso, no longínquo dia da primeira Greve Geral realizada em Portugal, da aparição televisiva do então Ministro da Administração Interna e actual guru Ângelo Correia, denunciando uma situação de "insurreição iminente", cuja principal prova era a intercepção, pela polícia, de um automóvel transportando uma caixa com pregos, certamente destinados a furar pneus e criar o caos no país.
Se os mais maduros (ou, conforme a perspectiva, os mais próximos do prazo de validade) puxarem pelo bestunto, talvez se lembrem do gozo que na altura se espalhou, acerca da logo apelidada "Insurreição dos Pregos".
Foi essa anti-patriótica e anarquizante memória que hoje me assaltou, ao ler neste jornal que um perigoso casal foi detido na fronteira na posse de panfletos anarquistas contra as forças policiais (descritas, pasme-se, como "chulos e prepotentes" e que "torturam, maltratam, matam e ficam impunes"), para além de um arsenal de armas brancas composto por um estilete, uma navalha e uma "catana de 40 centímetros".
(O que entre outras coisas prova, como verificarão os leitores africanos, que as catanas encolhem com o frio, ao chegarem a climas europeus.)
E dei comigo a perguntar:
Será que notícias destas são o custo de se ter o mais conspícuo ex-chefe da secreta a exercer as funções de Ministro da Administração Interna?
Mas uma outra dúvida existencial me assalta:
Escrevia o velho das barbas que a história se repete, a primeira vez como tragédia e a segunda como farsa.
Mas, se a primeira já era farsa, o que é que o seu remake nos reserva?
segunda-feira, 27 de setembro de 2010
Saques, feitiço e ética
Por toda a cidade se multiplicam as histórias que justificam esse acto inesperado. No Trevo, uma família terá sido acometida de fortes dores de barriga após comer desse arroz. No Benfica, terá saltado de um saco um rato que não era cinzento nem castanho, mas preto. Em Magoanine, conta-se de arroz que jorrava para fora da panela, ao ser cozinhado. Em Maxaquene, haverá quem tenha encontrado uma cobra ao abrir o saco, ou apenas cobras e nenhum arroz. Em vários pontos da cidade, gatos pretos pertencentes a esses comerciantes foram vistos a rondar as casas de quem os tinha saqueado.
É simples (tão simples que talvez se torne simplista) encarar este movimento colectivo de devolução de bens saqueados e as histórias que lhe estão associadas como um resultado exclusivo de medo da feitiçaria.
De facto, ao longo de todo o país, a propriedade é protegida por meios mágicos. Circulando pelas estradas, quantas vezes nos cruzamos com bancas de produtos à venda, cujo dono não se vislumbra? No entanto, nada dali é roubado – porque o dono “tratou” a banca contra roubo e, sobretudo, porque os potenciais ladrões acreditam na eficácia desse tratamento, não se arriscando a sofrer as consequências.
Também em Maputo, seria surpreendente (pelo menos, para o ‘cidadão comum’ dos bairros populares) que alguém no seu perfeito juízo abrisse um estabelecimento comercial sem ter encomendado um tratamento para atrair clientes e outro para evitar e punir roubos. Tinyanga das mais diversas origens retiram, aliás, uma parte apreciável dos seus rendimentos desses serviços de protecção a lojas, barracas, automóveis ou casas de habitação – embora também estejam habilitados a fornecer serviços de camuflagem mágica àqueles que pretendem roubar, seja na rua, seja em empresas ou instituições.
Mas, nestas coisas de protecção da propriedade, os estrangeiros são, por assim dizer, ‘jogadores de outra liga’. Os de origem europeia serão mais vulneráveis, por terem a mania de “não acreditar nessas coisas” e, por isso, não se precaverem. Já os de origem africana serão mais perigosos do que os nacionais, por se esperar que tragam consigo protecções e feitiços bem poderosos e, sobretudo, desconhecidos aqui – não se sabendo, por isso, que efeitos podem ter e como os neutralizar. Os próprios negociantes dos contentores-cantina fazem, aliás, gala em insinuar a confiança que sentem na protecção de que dispõem.
Assim, é perfeitamente compreensível que, após um acto de saque executado no calor e efervescência dos acontecimentos, acabem por chegar a apreensão e o medo acerca do mal que aqueles produtos roubados nos podem vir a fazer. E que, quando se oiça uma história como as que referi no início deste artigo, a apreensão se reforce e confirme, tornando bem mais seguro devolver do que consumir, por muita falta que aquele arroz nos faça.
Contudo, a minha experiência profissional faz-me suspeitar que, embora isto seja verdade, não é toda a verdade.
São duas as principais razões que me fazem pensar assim.
Por um lado, e embora a gravidade do que aqui aconteceu fosse muitíssimo menor, o carácter selectivo dos saques a contentores-cantina (atingindo africanos estrangeiros, mas poupando os moçambicanos que exercem a mesma actividade ao seu lado) trouxe à memória, de forma demasiado clara e intensa, um acontecimento recente que foi colectivamente traumático: os ataques xenófobos de que moçambicanos e outros estrangeiros foram vítimas na África do Sul, em 2008.
Para aquilatarmos o impacto social do que então sucedeu, bastará recordarmos – para além dos comentários de surpresa e indignação que se ouviam um pouco por todo o lado – que a onda de linchamentos periurbanos que vinha em crescendo desde finais de 2007 praticamente parou, só vindo a reaparecer muitos meses depois, quando se tornou público que altos dignitários do ministério do interior estavam acusados do roubo de bens públicos. E, para vermos como se tornou rapidamente claro para as pessoas esse desconfortável paralelo entre o que acontecera em Maputo e os anteriores ataques na África do Sul, bastará lembrar que um dos primeiros boatos populares acerca dos saques (que não ‘pegou’ e se deixou de ouvir) os atribuía, contra todas as evidências, às pessoas que tinham sido obrigadas a fugir da África do Sul em 2008 e não tinham conseguido refazer a sua vida.
Ou seja, parece que o difuso desagrado popular para com o sucesso e alegada arrogância dos chamados “nigerianos”, que foi expresso nos saques que sofreram, foi contrabalançado, passada a acção ‘a quente’, pelo desconforto moral de se ter feito para com eles uma coisa semelhante (embora bem menos violenta e grave) àquela que, chocante e traumaticamente, compatriotas haviam sofrido na África do Sul, por serem lá estrangeiros.
Mas, conforme referi, parece-me haver ainda uma outra razão envolvida nas devoluções de bens alimentares saqueados no início do mês.
É que não foi apenas nos mass media que os saques foram condenados, independentemente de quem os censurava poder até ser compreensivo ou mesmo entusiástico em relação às outras acções da “greve”. Também nos bairros (onde, conforme referi neste jornal a semana passada, as barricadas de pneus são assumidas como uma acção de todos mesmo por quem não participou nelas) os saques foram objecto de reprovação, embora mais tolerante quando se tratou de armazéns de grandes empresas, em vez de pequenos comerciantes.
Em parte, essa reprovação pode ter um carácter geral, independentemente de quem foi saqueado. Trata-se como que de uma mancha que veio poluir uma expressão de protesto com que essas pessoas concordam.
Mas a desaprovação pode também reforçar-se em função de quem é roubado. Tal como tende a existir tolerância, apesar do desagrado, para com os actos do “cabrito” que “come onde está amarrado”, ela também existe para com outros roubos, particularmente quando incidem sobre pessoas e entidades empregadoras. Neste caso, eles podem até ser olhados como um complemento que repõe alguma justiça num salário injusto. Pelo contrário, quem é linchado são pobres que (real ou supostamente) roubaram pobres.
Face a esta duplicidade de critérios morais (ou, se preferirmos, a esta adaptação da moralidade às posições sociais), os comerciantes de contentor estão numa posição ambígua. São considerados ricos em comparação com as pessoas a quem vendem, mas sabe-se que são pobres em comparação com os ‘verdadeiros’ ricos; ademais, mesmo quando estrangeiros, têm um estilo de vida semelhante ao dos seus clientes – ou seja, não são “mulungos de pele preta”, ao contrário dos habitantes das mansões, das vivendas e dos bons apartamentos. Por outras palavras, são suficientemente ricos e diferentes para serem pilhados no calor da revolta, mas nem eram aqueles ‘ricos’ o alvo do protesto, nem são suficientemente ricos para que o roubo possa, depois, ser visto como legítimo e aceitável.
Dessa forma, parece-me tão normal que estes saques tenham suscitado medo da feitiçaria como que tenham suscitado um duplo desconforto moral, reforçado pela implícita ou explícita reprovação dos vizinhos que não participaram neles: o desconforto com os seus paralelismos com acontecimentos xenófobos traumáticos e o desconforto com a pouca legitimidade daquele roubo, àquelas pessoas.
A apreensão popular para com o poder dos feitiços protectores (e legítimos) desses comerciantes estrangeiros já existia, muito antes de 1 de Setembro.
Sugiro contudo que, mais do que A razão para devolver os produtos saqueados (que, no caso de muitas pessoas, pode bem ter sido), o medo de efeitos mágicos foi, sobretudo, uma linguagem disponível e pertinente para expressar esse duplo desconforto moral e uma óptima justificação para lhe pôr cobro.
Não digo que as pessoas não acreditem nas histórias que relatei no início deste artigo. Digo que acreditaram de forma tão rápida e generalizada, e fizeram o que era racional fazer a partir do momento em que acreditaram (devolver os produtos), porque isso confluía com o dilema que tinham entre mãos e lhes permitia resolvê-lo.
O que, confesso, me agrada.
Babalaze* da "Greve"
* ressaca
Para alguém que tenha chegado a Maputo para realizar uma pesquisa há muito agendada, parece que nenhum outro assunto interessa às pessoas com quem se vai encontrando neste e naquele bairro, senão a “greve” (ou “manifestação”, ou “distúrbios”, ou “revolta”, ou “vandalismo”, ou “levantamento popular” – escolha o leitor) de 1 e 2 de Setembro.
E o que vai aprendendo um visitante crónico que assim se desloca pelo “caniço” do Grande Maputo em tempos de babalaze desses acontecimentos marcantes?
Antes de mais, que os participantes mais activos na “greve” (aquelas pessoas que de facto queimaram pneus, lançaram pedras, confrontaram a polícia ou, mesmo, pilharam cantinas-contentor) não têm nada de especial. Muitos jovens, como é normal pela demografia, pela energia necessária para tais confrontos, pela escola que nesses dias não houve e pelo desemprego “formal” que, no entanto, lhes exige biscates e vendas para contribuírem para a subsistência familiar. Muitas mulheres, sobretudo dessas donas de casa que também têm que inventar o que podem para pôr comida na mesa. Mas também muitos homens adultos, talvez mais discretos quando se generalizaram os tiros e mortes.
Não foram os mais miseráveis, que morrem de fome e não têm onde se abrigar. Não foram os assaltantes das esquinas escuras. Foram pessoas que, tal como a esmagadora maioria dos maputenses, têm que mobilizar e inventar todos os recursos possíveis, “formais” e “informais” e envolvendo todos os membros da família que o consigam, para garantir que têm quase sempre comida e os restantes bens de consumo essenciais no espaço urbano. E que vivem na permanente insegurança sobre se isso será possível lá para o fim do mês, na semana que vem, ou amanhã.
Foram pessoas tão normais, e tão sentidas pelos vizinhos como representativas da comunidade e dos seus sentimentos e preocupações, que mesmo quem estava fora do bairro nunca usa a palavra “eles”, para referir o que lá foi feito e quem o fez. Homens que se dirigiram ao emprego a horas em que ainda parecia que nada iria acontecer, mulheres que ficaram a tomar conta de crianças pequenas, pessoas idosas que ficaram em casa, todos eles dizem «nós queimámos», «nós bloqueámos», «nós fugimos quando a polícia disparou».
Também por isso, a indignação que persiste em relação aos epítetos insultuosos lançados pelo ministro do interior, ou mesmo ao discurso da produtividade e trabalho que o governo manteve até a segunda-feira seguinte. «Trabalhar mais? Mas onde?», ouvi repetidas vezes. «Se não tem emprego, tem que trabalhar muito para fazer uma quinhenta. Mais que esses folgados!», insurgiam-se outros, qual “improdutivos” do século XXI.
Todos temos consciência de que, se estas pessoas são “não-empregáveis” conforme ouvi um economista afirmar, não é porque não o queiram ou porque (como está na moda dizer em economês) tenham um deficit de capacidades; é porque não há emprego disponível em quantidade, independentemente das qualificações exigidas, nesta economia a duas velocidades que se vive na cidade de Maputo. E, para serem “empreendedoras” (mais do que já são para subsistirem) e “criadoras de riqueza e emprego”, teriam que dispor de algum do capital que sobra àqueles que se orgulham de o ser. Mas, olhadas as pessoas “de cima” e embrulhadas nos lugares-comuns que se repetem nos fóruns internacionais, estas evidências que todos conhecem acerca da realidade peri-urbana local parecem fáceis de esquecer…
No entanto, tais atitudes e retórica sobranceira, quando não insultuosa, tiveram o condão de reforçar o sentimento que – ao que tudo indica – constituiu uma mola essencial para transformar insegurança e descontentamento em revolta violenta, agora e em 5 de Fevereiro de 2008.
Escrevi no passado dia 2, num depoimento para um jornal português que o Canal de Moçambique teve a simpatia de transcrever a semana passada, que as pessoas que agora se manifestaram não estão apenas descontentes com as suas dificuldades económicas e os aumentos de preços. Também (ou sobretudo) indignam-se por sentirem que a sua situação e dificuldades não interessam a “quem manda” – afinal, que elas são irrelevantes para os poderosos.
O que as indigna (e contra que protestaram) não é apenas a decisão política de aumentar preços que põem a sua subsistência em risco; é uma forma de exercício do poder em que, sentem, foram abandonadas e não têm como ser ouvidas; é o que consideram ser uma quebra do dever básico de quem governa: o de, independentemente de tirar proveito da sua posição, garantir aos governados um mínimo básico de bem-estar e condições de subsistência.
Tenho podido confirmar que assim é – estejam as pessoas a ser justas ou injustas nesta apreciação que fazem das elites políticas. Mas, assim sendo, o evitamento de novos Setembros e Fevereiros não se pode reduzir à tomada de medidas económicas.
Claro que, na sua raiz, a resolução do problema estaria em garantir às pessoas condições materiais de vida dignas, estáveis e previsíveis. Mas, num país em que o crescimento económico reflectido pelas estatísticas se traduz (devido ao modelo adoptado e à forma absoluta como é interpretado) em aumento das assimetrias sociais e, segundo dados recentes, em aumento da pobreza, não basta que a economia cresça para que esse objectivo de bem-estar social seja alcançado. Aliás, mesmo que isso fosse possível, sê-lo-ia num tempo tão longínquo que, tal como o horizonte, pareceria afastar-se à medida que dele nos aproximássemos.
Parece então evidente que, para resolver o problema e o potencial de violência que ele provoca, não basta esperar pela acção do mercado (que tem alargado o desemprego e as dificuldades dos mais pobres), pela construção da “burguesia nacional” (que pouco investe em actividades produtivas, mas no comércio e serviços), ou dos dinheiros internacionais (que tenderão a diminuir a curto prazo, dadas as dificuldades, bem diferentes destas, que enfrentam os próprios “países doadores”).
Talvez seja hora de nos lembrarmos que, nesses países com velhas e sólidas economias de mercado de onde vêm os teorizadores do absoluto liberalismo, há preços subsidiados. E isso não acontece por altruísmo dos ricos e governantes, mas por muito boas razões de gestão política e económica, por vezes impostas por lutas sociais e distúrbios bem mais graves e continuados do que estes de 2008 e 2010.
No entanto, se as medidas desse tipo surgem como incontornáveis e da mais elementar justiça face à situação da maioria da população urbana, elas constituem apenas paliativos socio-económicos. Diminuem a febre ou as dores, mas não curam.
Com toda a modéstia de quem fala de um país que não é o seu, permitam-me sugerir que há duas outras mudanças necessárias se, a partir do quadro presente, se quiser quebrar o processo de repetição de greves que já se iniciou e garantir a paz social.
Por um lado (e para além do efectivo “mudar da agulha” dos capitais e políticas económicas para as actividades produtivas, de que já se fala), resolver as razões económicas da violência popular passará por repensar e alterar o modelo de distribuição da riqueza, tornando-o menos chocantemente assimétrico e concentrando políticas redistributivas nos bens e serviços de primeira necessidade.
Por outro, também a questão política é crucial, quer em termos de práticas, quer de imagem. Superar a visão popular de que se governa sem considerar o povo e engordando à custa da sua fome não implica apenas a tomada de medidas que a contradigam. Implica também que essas medidas não sejam tomadas “para o povo” mas em diálogo “com o povo” e implica ainda que uma cultura política de consulta e participação (afinal, muito “tradicionalmente” africana e muito “tradicionalmente” frelimista, noutros tempos) seja instaurada, alimentada e estimulada.
Sem essas duas mudanças, temo bem, os já marcados fossos entre governantes e governados, e entre os pobres e os restantes, não cessarão de aumentar.
E, não se vendo, a partir do “caniço”, formas de canalizar eficientemente as suas queixas e reclamações, estas continuarão, ciclicamente, a ser expressas na rua.
PS: A distinção entre "para o povo" e "com o povo", que de forma eloquente e sintética expressa o que penso acerca do assunto, foi por mim ouvida numa intervenção pública de Carlos Serra. aqui fica a devida vénia.
quarta-feira, 1 de setembro de 2010
Novos motins em Maputo e Maria Antonieta na costa do Índico
Maputo acordou hoje em "greve" - a expressão que, desde Fevereiro de 2008, é por lá usada para referir revoltas que bloqueiam as ruas com pneus a arder e pedradas a carros e outros símbolos de propriedade, a que a polícia responde a tiro.
Pelas informações que vão chegando, a dinâmica está a ser muito semelhante a esses motins de 5 de Fevereiro de 2008, cuja descrição e análise - que na altura escrevi em directo de Maputo - podem ver neste conjunto de posts.
Na altura, a justificação imediata que mobilizou as pessoas teve a ver com o aumento abrupto dos "chapas", as carrinhas de 9 lugares recondicionadas para transportarem 19, que são o meio de transporte a que têm acesso as camadas populares.
Desta vez, trata-se de uma sucessão de aumentos de bens de primeira necessidade, cujo corolário é uma anunciada forte subida do preço do pão.
Tal como em 2008, contudo, penso que a principal motivação das pessoas não é apenas os aumentos em si próprios (aspecto que nem por isso se torna menos relevante, e é uma machadada na sua tentativa de sobrevivência sempre precária), mas o sentimento de que eles são decididos pelo poder político sem consideração pelas necessidades e dificuldades da população.
E dificilmente algo poderá reforçar mais esse sentimento do que declarações como as de um representante governativo, esta manhã na rádio, aconselhando os ouvintes que se queixavam do aumento do pão a substituírem-no por outros produtos, «como a batata doce».
No entanto - e tal como acontece com os linchamentos urbanos em Moçambique - penso que aquilo que está em causa, para quem participa, não são tanto cada um dos problemas e ameaças concretas e identificáveis com que se confrontam (o pequeno ladrão, o aumento de cada bem essencial), mas uma situação generalizada de incerteza quanto ao futuro e à própria subsistência, num quadro em que sentem que ninguém os ouve, que não têm qualquer controlo sobre o seu futuro e que, quer eles quer as suas dificuldades, são considerados irrelevantes pelos poderosos que decidem.
Mas que não se leiam estes acontecimentos, apressadamente, como uma revolta para pôr em causa o governo da Frelimo - mesmo se este passou, ao longo das décadas e fundamentalmente com as mesmas pessoas, de um projecto socializante e paternalista para a aplicação de políticas ultra-liberais.
Por um lado, apesar de uma franca e crescente simpatia popular pelo MDM de Deviz Simango, Maputo é um forte bastião eleitoral da Frelimo e a maioria das pessoas que se estão a manifestar nas ruas terão votado nela no ano passado.
Por outro, as pessoas dos bairros populares (a esmagadora maioria) têm uma visão dos direitos e deveres dos governantes e governados que é diferente daquela que nós (e as elites políticas moçambicanas) costumamos atribuir à democracia representativa.
Conforme aprofundei aqui, essa visão mais "tradicional" e "africana" do poder não pressupõe que, uma vez legitimado um governo, as decisões que tome sejam legítimas, desde que legais e tomadas dentro do seu quadro de competências reconhecidas.
A sua visão do "contrato social" sustenta-se, pelo contrário, em dois pilares aparentemente contraditórios, mas que deverão estar minimamente equilibrados: pressupõem, por um lado, que só em casos extremos deverá ser posto em causa o poder instituído; mas pressupõem, também e em contrapartida, que quem ocupe esse poder tem a obrigação de salvaguardar um mínimo de bem-estar e de dignidade das pessoas que governa. Pode (e tem o direito de) «comer mais», mas não de «comer sozinho» e à custa da fome dos outros.
Isto quer dizer que, por muito que um determinado poder instituído seja considerado legítimo, cada uma das suas decisões é objecto de escrutínio - e podem ser consideradas ilegítimas e merecedoras de protesto e resistência, sem que isso ponha em causa a legitimidade do próprio poder.
Continua a admirar-me como é que algo tão evidente e estrutural ao pensamento e comportamento político da população "comum" continua a ser ignorado (quanto mais a ser levado em conta) pelas elites políticas locais.
Vou continuar a acompanhar, à distância, estes acontecimentos.
Sugiro que quem também esteja interessado em saber em cima da hora o que se está a passar vá regularmente ao blog do meu colega Carlos Serra, em permanente actualização.
*****
Entradas mais recentes nesse blog:
«Adenda 18 às 12: 28: comentário que me foi enviado via email: "Falei com os polícias da PRM e da PIR que estavam na praça da OMM e prolongamentos da Vladimir Lenine: afirmaram que não receberam meios anti-motim, nem balas de borracha nem gás lacrimogéneo. Um absurdo! Quando uma mulditão avança, só lhes resta recuar e disparar com balas reais. Um deles disse-me que também é pai e que, terminada a jornada laboral, tem que regressar a casa depois de apanhar o chapa mais caro, encontrar o pão e o arroz também mais caros, pagar a luz e a água tambem mais caras. Triste..."
Adenda 19 às 12:37: um outro email que me foi enviado: "Só na praça da OMM 2 mortos, no prolongamento da Vladimir Lenine 2 feridos (um em muito mau estado). Vários carros e lojas vandalizadas ao longo do Prolongamento. Muito ódio germinado. Os polícias estão desesperados."»
PS: Em Maputo é 1 hora mais tarde que em Lisboa.
terça-feira, 11 de maio de 2010
Pecados e Crimes
Enquanto (segundo me vieram jocosamente informar) o Papa se dirige, por entre um arraial de segurança, para o Terreiro do Paço, parei o trabalho que estava a fazer, ao lembrar-me de uma leitura na revista Pública deste domingo.
Nela, eram apresentadas pitorescas informações acerca das alegres debochices de diversos Papas, desde o século X ao dealbar do século XVI.
Para além de ir sendo implícita e explicitamente explorado o contraste entre tamanha rebaldaria e a situação actual, o autor da recolha - um «historiador dos Papas e dos cristãos» de aspecto very british mas que se chama Laboa Gallego - acaba por avançar com um conjunto de frases que permitem perceber porque é que este artigo foi publicado nesta data:
«Antigamente, as pessoas aceitavam que a Igreja fosse, ao mesmo tempo, santa e pecadora. (...) Nós, pelo contrário, adoptámos uma postura boa na teoria, mas impraticável: víamos os sacerdotes todos como santos. (...) Mas isso não é verdade. Somos todos pecadores! (...) Depois do que passámos, vamos passar a ser muito mais humildes. (...) Temos que aceitar, não digo com tranquilidade, mas sim com humildade, as debilidades dos cristãos, dos clérigos e da Igreja.»
É, de facto, neste plano que o Vaticano e várias hierarquias da Igreja católica têm tentado colocar a questão, tanto da pedofilia quanto do seu longo e sistemático encobrimento.
E, curiosamente, parece que tem resultado - pelo menos entre os media e os opinadores de serviço nacionais.
Se não quanto aos próprios actos de pedofilia, pelo menos quanto ao seu encobrimento - reduzido a uma questão moral e de inversão de prioridades de valores, entre o sofrimento e reparação das vítimas e a proteção da imagem da instituição.
A pedofilia e o seu encobrimento não deixam de ser, certamente, questões morais, de valores e até (para quem partilhe essa noção religiosa) de pecado.
Mas, entretanto, a pedofilia e a violação de menores são também, nos países onde ocorreram no seio de instituições católicas, crimes.
E, na ordem jurídica desses mesmos países e de quase todos os restantes, encobrir um crime e conspirar para encobrir um crime são, também eles, crimes.
A Igreja Católica e os seus chefes têm toda a legitimidade para discutir moralidade e pecado, relativamente aos actos criminosos dos seus sacerdotes e ao seu encobrimento desses crimes.
Mas não têm, nem eles nem os poderes públicos seculares, legitimidade para assobiar para o lado e pretender esquecer que é de crimes que se trata.
Ninguém no seu perfeito juízo acredita, hoje, que toda a longa série de encobrimentos de crimes sexuais cometidos por sacerdotes sobre crianças à sua guarda - encobrimentos que chegaram, como não podia deixar de ser, à Congregação Para a Doutrina da Fé e aí foram incentivados - tivesse passado ao lado do conhecimento e concordância do poderoso senhor que então comandava essa Congregação e que agora desfila num carro branco e blindado, Avenida abaixo.
Ninguém no seu perfeito juízo acredita, repito, que aquele então Cardeal não fosse, afinal, o mesmo homem que sistematicamente usou com mão de ferro as suas prerrogativas de comandante da mais poderosa e central instituição ideológica da sua Igreja, mas um pobre banana a quem estas coisas passavam ao lado e a quem o seu próprio braço direito (de então e de agora) escondia instruções criminosas, dadas em nome da instituição que dirigia.
O cargo de líder de uma religião com implantação quase universal merece, necessariamente, todo o respeito institucional que essa posição implica.
Mas seria bom (não! imprescindível.) que, para lá da questão das promiscuidades entre Igreja e Estado a que temos assistido e assistiremos nos próximos dias, as autoridades portuguesas tivessem em mente um dado que não podem ignorar:
Com toda a probabilidade, o senhor que desce a Avenida de papamóvel é, para além de um Chefe de Estado e de um líder religioso, um criminoso.
E que o respeito pelas crenças religiosas, próprias ou alheias, não nos faça tentar ocultar esse facto, de nós próprios e dos nossos concidadãos.
Até por respeito por essas crenças.
sexta-feira, 15 de janeiro de 2010
Tardou uns dias, mas chegou
Com uma catástrofe de tão grande dimensão no Haiti (país ligado ao estereotipo do vodu, por sua vez ligado ao estereotipo de culto demoníaco), mais tarde ou mais cedo tinha que aparecer um qualquer tele-evangelista estado-unidense a atribuir a tragédia a um castigo divino.
Foi o que fez Pat Robertson, com a criatividade suplementar de culpar todo um país e as suas «sucessivas maldições» por um «pacto com o diabo», feito pelos escravos durante a sua revolta vitoriosa contra os franceses.
Parece que o homem tentou depois emendar a mão, mas as declarações iniciais (e a fraseologia utilizada) não deixam margem para dúvidas.
A maldade quase demoníaca (de tão desumana) presente em tais declarações não me parece resultar de mera estupidez.
Decorre de uma visão do mundo partilhada pela igreja católica há poucos séculos atrás, e que ainda por aí anda entre muito bom padre.
Decorre, afinal, de uma contradição essencial em todos os movimentos que se reclamaram do cristianismo: do facto de as mensagens de Cristo (contraditórias elas próprias, é verdade) serem bem pouco compatíveis com a terrível divindade do Antigo Testamento.
E com o facto de os sucessos evangelizadores massivos (sejam eles mediáticos ou não) estarem ligados, não a deturpações, mas a interpretações legítimas daquilo que de pior nos ficou daqueles escritos mais antigos.
Parece que é mais fácil mobilizar seguidores para uma divindade interveniente, punidora e milagreira e para a responsabilização do diabo pelas nossas maldades e incapacidades, do que para a auto-responsabilização e a bondade.
Torna-se depois fácil ver, na assustadora senhora cuja foto abre este post, uma adoradora do diabo, portadora do pecado original dos seus revoltosos antepassados.
Sobretudo, se a tirarmos do enquadramento e do contexto - em que ela se torna uma assustada pessoa semi-soterrada em escombros e rodeada de cadáveres, talvez de familiares.
Livre-nos Deus, se existir, dos bem intencionados apóstolos da justiça divina!
segunda-feira, 2 de novembro de 2009
O Rosa e o Laranja
Nos tempos de Stendhal, jovens provincianos que fossem ambiciosos, chico-espertos e fura-vidas como o protagonista de O Vermelho e o Negro tinham dois caminhos para, espezinhando aqui, traindo ali e sacaneando acolá, tentarem chegar àquilo que considerassem "subir na vida": a carreira militar e a carreira eclesiástica.
Nestes sombrios tempos de classes em vez de ordens, em que a tropa voltou a ter lepra e até a Opus Dei se arma em selectiva, o caminho escolhido pelos modernos gémeos do Julien Sorel é só um, embora com duas vias paralelas (que não obstante, veja-se o nosso primeiro, se podem cruzar antes do infinito): o Rosa e o Laranja.
Se o aspirante a grande homem teve a ventura de nascer periférico, integra desde bem cedo uma juventude partidária governante (mudando se naquela não estiver a dar) e vai treinando as suas potencialidades espezinhadoras, traidoras e sacaneadoras até chegar, com reduzida concorrência, ao pináculo distrital da coisa.
Jovem com horizontes mais largos do que o enriquecimento de clocher, numa Câmara assim como assim já ocupada por algum tubarão de aquário mas com dentes afiados, não faz concorrência a essa fauna. Antes lhe demonstra a sua modéstia e utilidade, acabando por entrar para o parlamento, num dos últimos lugares elegíveis lá do sítio.
Nova liga, novo jogo.
E lá busca este Heroi do Nosso Tempo gémeos cúmplices, contra inevitáveis gémeos inimigos, e algum patrono por conta de quem vá mordendo umas canelas (ou, de preferência, barrigas-da-perna) e calcando alguns cadáveres.
Se o patrono é bem escolhido, há boas hipóteses de que a coisa esteja lançada. E nem foi preciso perder tempo e concentração com essas mariquices dos estudos - que, para os mais formalistas, poderão sempre vir mais tarde a ser feitos, por fax, que dá muito mais jeito.
Entrementes, o capital de influências vai-se alargando e, se não for trucidado antes disso pelos seus semelhantes, a alternância democrática lá lhe abrirá um lugarzinho no governo - e, com um bocado de sorte e dentadas certeiras, sem ter que ser assessor antes de secretário de estado, ou secretário de estado antes de ministro.
A chatice é que essa mesma alternância (ou alguma calinada mais escandalosa) de lá o tirarão e que, normalmente, as capacidades que lá o meteram não chegam para lá voltar.
É galo, mas é a vida.
Resta capitalizar todo esse percurso e conhecimentos (pessoais).
Para os mais megalómanos, à frente de empresas mirambolantes ou com o lucro assegurado por favorecimentos estatais.
Para os mais modestos ou queimados, uns discretos lugares de gestores públicos, assegurados por cavalheirescos adversários ou por solidários correlegionários - que, as mais das vezes, se tornaram difíceis de diferenciar.
Mas há sempre a possibilidade de ter mais olhos que barriga, ou de não ter perdido os hábitos mixurucas dos velhos tempos de ascensão e ribalta.
E lá acaba o pobre Sorel da Merdaleja, apesar de todas as tentativas de adversários-e-correlegionários para olharem noutra direcção, por deixar apodrecer em público a galhinha dos ovos de ouro, ou por ser gravado pela bófia a pedir subornos para mexer uns cordelinhos.
E será que não há por aí nenhum Stendhal disponível, para fazer deste O Rosa e o Laranja um grande romance para as gerações vindouras?
sábado, 2 de maio de 2009
Vital Moreira foi em demanda da sua Marinha Grande...
Não vi a coisa.
Estava bem mais acima, descendo a avenida com a família, ao encontro do desfile. Só por um amigo, dirigente da CGTP, vim a saber na Alameda o que se passara.
Foi, claro está, feio e democraticamente inaceitável.
Mais ainda, contraproducente.
Mas foi, também, um preocupante sintoma da presente situação social e da angústia e desespero que ela suscita em quem mais a sofre.
Porque, parece-me, Vital Moreira e Vitalino Canas não têm razão naquilo a que atribuem o que aconteceu.
Para além de as organizações não serem donas dos actos de umas dezenas de pessoas que reajam de forma mais agressiva a presenças que lhes desagradem, não me parece, de todo, que Vital Moreira tenha sido insultado devido à sua longínqua condição de ex-comunista.
Parece-me que o cidadão Vital Moreira é, neste caso, irrelevante.
Parece-me até que, em geral e enquanto indivíduo, é irrelevante para a maioria das pessoas.
Poderá ter sido um brilhante obreiro da nossa Constituição de 1976 e ser, hoje, um aspirante a Vasco Graça Moura do socratismo, mas nada que suscite ódios pessoais, mesmo ao mais sectário dos velhos comunistas da Cintura Industrial que deus tenha.
Também não me parece que se tratasse de um ataque ao PS, enquanto tal.
Que se tratasse de um ataque ao governo, que é do PS, que por sua vez tem em Vital Moreira a sua cara em campanha eleitoral, já fará mais sentido.
Mas ao governo, não simplesmente por o ser, mas por gerir nacionalmente um emaranhado de crises (uma de origem internacional, outras nacionais), de uma forma que multiplica em grande velocidade os dramas pessoais e situações sociais desesperadas, e de uma forma que é vista popularmente como distribuidora de benesses aos responsáveis pela situação.
Só quem limite o seu sentido da realidade actual àquilo que chega aos ecrãs dos telejornais será incapaz de compreender o que representa, para cada uma das suas vítimas, o despedimento colectivo (envolvendo muitas vezes toda a família), salários em atraso ou o encerramento 'profilático' de empresas - sejam elas de sectores económicos 'arcaicos' ou 'de ponta'.
E que essas situações se multiplicam a um ritmo assustador, abrangendo dezenas de milhares de pessoas e localidades inteiras, ameaçando todos os que têm emprego.
Isto, a par da aparente recompensa aos bancos - e não só aos geridos de forma incompetente e criminosa, mas também àqueles que muito competentemente vão sugando, a cada um de nós, todo o dinheiro que conseguem.
Multiplicam-se as situações insustentáveis e, com elas, os sentimentos explosivos de revolta indiscriminada, que em nada precisam de estímulos politico-partidários para se expressarem.
É verdade que, após 35 anos em liberdade, é esperada numa manifestação de 1º de Maio urbanidade e tolerância na expressão desses sentimentos individuais de revolta.
Mesmo se, ainda não há tanto tempo assim, o Porto assistiu à morte de manifestantes por parte da Polícia, a mando do governo da altura.
Mas, sendo a situação presente aquela que é, das duas uma:
Ou Vital Moreira e a direcção do PS estão de tal forma alienados das terríveis condições enfrentadas por esse país fora que, candidamente, não foram capazes de antecipar a possibilidade de reacções individuais agressivas a uma sua presença, também eleitoral, numa manifestação onde é inevitável a cristalização do descontentamento e revolta com a situação actual;
Ou, então, Vital Moreira e a direcção do PS apercebem-se bem dessa evidência, e a deslocação ao Martim Moniz dos seus candidatos ao Parlamento Europeu jogou com essa possibilidade, que se veio a concretizar.
Não fazendo eu a Vital Moreira e à direcção do PS a injustiça de os considerar estúpidos, irresponsáveis ou alienados, acredito que se tratará da segunda hipótese.
E o tratamento que têm dado ao assunto reforça esta convicção.
Vital Moreira foi em demanda da sua chapada da Marinha Grande - como aquela que, há muitos anos, catapultou Mário Soares dos últimos lugares nas sondagens para o palácio de Belém.
E houve quem lhe fizesse a vontade.
terça-feira, 7 de abril de 2009
Alarmistas e papões
O aspecto mais terrível do trágico sismo ocorrido em Itália é algo que poderá acontecer em qualquer outro país, desde que esse país disponha dos meios técnicos necessários e de pessoas que saibam interpretar os seus dados:
Havia fortes indicações de que um grande sismo iria acontecer, mas as autoridades mandaram calar o cientista que deu o alarme, por estar a ser (precisamente) alarmista e a causar o pânico entre a população.
O "filme" é de facto tão comum que até já deu origem a um género cinematográfico hollywoodesco, que mete desde tubarões de 10 metros até vulcões e centrais nucleares.
Ou seja, é popularmente credível e esperado (bem mais que um tubarão com o tamanho do velho Jaws) que existam coca-bichinhos com capacidade para detectar grandes perigos iminentes, sejam eles animais, naturais ou tecnológicos, e que as autoridades que deveriam zelar pelo bem de todos os mandem calar, transformando a ameaça em catástrofe devido à falta de informação e preparação.
É comum, nesses filmes, a reacção oficial vir a reboque de interesses económicos mesquinhos ou imediatistas.
Mas não é forçoso que assim seja, nem nos guiões cinematográficos nem na realidade.
A habitual preocupação que o possível pânico público costuma suscitar às instâncias de poder basta para motivar essa reacção de negação e silenciamento.
Porque quem diz 'pânico' diz 'caos', diz incontrolabilidade das massas humanas que se é suposto ter sob controlo.
Talvez esteja aí a chave para compreender um paradoxo dos tempos actuais:
Um pouco por todo o mundo, as autoridades e os interesses económicos escudam-se na incerteza que rodeia a (im)previsibilidade das ameaças naturais e técnicas para, a bem da serenidade pública, desacreditarem ou silenciarem chamadas de atenção para elas; ao mesmo tempo, instigam o pânico em relação a outras ameaças, também elas imprevisíveis, mas mais directamente humanas.
O problema não começou, sequer, com o despertar dos USA para o terrorismo como algo que lhes pode bater à porta.
Já bem antes disso, a leitura da realidade que estava na moda era a tal de "civilização do risco", assustando-nos com um mundo mais inseguro e perigoso do que nunca, mas alegrando-nos por haver quem tenha os instrumentos racionais e técnicos para domar tanta ameaça.
Curiosamente, pouca gente ouvi questionar porque deveríamos nós sentir que vivemos no mais arriscado dos mundos, tendo em conta que (apesar da polulação de novos riscos tecnológicos ou tecnologicamente induzidos) vivemos bastante mais tempo, com muito maior capacidade de responder a doenças e muito menos hipóteses de morrermos à fome, ou de sermos vítimas de violência indiscriminada ou acidentes letais, do que os nossos bisavós ou os nossos contemporâneos de outras paragens.
Talvez esse quase inexistente questionamento tenha a ver com a importância que para nós assume a crença de que podemos dominar o mundo.
Talvez seja por esse susto com os riscos ser politicamente valioso, já que reforça a nossa dependência dos especialistas e dos governantes, e os reforça a eles através da chancela de cientificidade que passa a estar colada às suas protectoras acções e decisões. Talvez...
Mas, num quadro como este, o especialista é bem-vindo se traz a ordem à (bem real) incerteza e ao caos - que, se não é bem real, se afirma como a realidade que existiria caso não existissem também, por um lado, o especialista com meios técnicos para dizer como controlá-lo e, por outro, o reconfortante governante que dá o braço ao especialista para nos proteger.
Se pelo contrário (e com base na sua expertise) o tal de especialista decide ser mensageiro da desgraça iminente, não traz ao poder nem controlo nem legitimidade.
Traz a desagradável evidência da falta de controlo técnico e político sobre a incerteza, a par da ameaça de falta de controlo sobre a população.
Tenha ou não razão (coisa que a incerteza do que está em causa só deixará saber a posteriori) é um alarmista. É alguém que joga com as mesmas regras, mas que só traz, no imediato, desvantagens para os principais jogadores, à luz do seu objectivo de jogo.
É claro que poderia contribuir para reforçar a posição deles (e, já agora, para salvar muitas vidas e bens), ao permitir-lhes demonstrarem uma grande capacidade de gestão da desgraça incerta. Mas ver isso, a partir de uma posição de poder, pode implicar para muitos uma racionalidade e capacidade de análise que seriam sobrehumanas.
Temos, por outro lado, os papões.
E esse mais recente enfatizar das ameaças humanas corporizadas no terrorista estranho (mas que pode estar no meio de nós) é, temo bem, um jogo com objectivos bem mais prosaicos e conciencializados.
É, afinal, espalhar o medo de uma ameaça invisível e de que só poderemos ser protegidos a partir de um controlo centralizado mas geral para, num muito clássico processo de hegemonia, aceitarmos ser controlados muito para além do que aceitaríamos, a bem da nossa segurança.
E pelos vistos resulta.
Talvez, então, o tal paradoxo não seja assim tão paradoxal.
Talvez a instigação do medo tenha, afinal, uma mesma razão última e um mesmo limite: o reforço e legitimação do poder; e o monopólio de estimular e controlar o medo - que não pode transformar-se, pelo contrário, num instrumento de perda de controlo sobre os outros.
*****
Entretanto, Silvio Berlusconi pede aos sobreviventes que encarem a situação como «um fim-de-semana no parque de campismo».
Qual Alberto João, qual quê... Este gajo não existe!
sábado, 7 de março de 2009
Já não se pode mandar um político «p'ró caralho»...
Pudicamente, as legendas televisivas - que se tornaram necessárias por a gravação de som ser má - apenas diziam «Vai p'ró c.......», enquanto os jornais se referem a «um palavrão».
Mais pudicamente ainda, foram de pronto pedidas desculpas (embora não ao representante popular enviado para penianas paragens) e, facto que julgo ser único e de duvidosa legalidade, retirada a frase das actas da AR, onde fica registado tudo o que se diz no hemiciclo, por muito irrelevante ou bronco que seja.
Quem se dê ao trabalho de reler essas actas (como eu fiz em relação a um período relativamente curto da nossa história recente) divertir-se-á perdidamente, ao encontrar os insultos mais escabrosos e ao constatar o profundo conhecimento (e por vezes utilização criativa) que os representantes da nação demonstravam ter do vernáculo português.
É verdade que o uso parlamentar dos palavrões nunca chegou, pelo menos na época que li, ao humor refinado daquela troca de palavras entre a saudosa Natália Correia e um deputado que, na primeira discussão de uma lei de despenalização do aborto, defendeu que o sexo só se deve destinar à reprodução. Perguntou-lhe a poetisa: «Então, Vossa Excelência só uma vez fez truca-truca». «Não - respondeu o homem - Eu tenho dois filhos». «Então, Vossa Excelência fez truca-truca, truca-truca».
É verdade, também, que este homicídio sócio-intelectual teria muito menos piada se a senhora tivesse dito «foder», em vez de «truca-truca».
Mas até nas utilizações insultuosas de palavrões se descobre pontualmente, lá nas actas da AR, uma boa dose de humor. Tal como se descobre (os nomes ficam registados) que o vernáculo parlamentar é transclassista, transpartidário e abrange desde pessoas que pouco estudaram até professores catedráticos.
O que, convenhamos, não deixa de ter o seu interesse histórico para as gerações vindouras...
Tão pouco estão ausentes do hemiciclo piadas brejeiras quase infantis. Como quando o seu então presidente Mota Amaral, apesar da imagem puritana e quase ascética que projecta, não evitou acrescentar, ao colocar à discussão ou votação um qualquer artigo 69, «Sessenta e nove… curioso número».
Perante estes hábitos e antecedentes, o actual sarrabulho politico-mediático e esta auto-censura a posteriori justificam, portanto, que pensemos um pouco no assunto.
Esta boa gente da população parlamentar passou, de repente, a ser recrutada entre os linguisticamente mais contidos membros das várias classes e camadas sociais?
Passaram a ser-lhes exigidos – e aos jornalistas – elaborados cursos de boas maneiras para terem acesso às suas funções?
É por isso que um parlamentar «Vai p’ró caralho» se tornou genuinamente insuportável para os seus ouvidos e sentido de sociabilidade?
Ou será que, enquanto representantes da nação, passaram a temer que a nação não se sinta representada por quem profere tais impropérios?
Ou será, ainda e pelo contrário, que passaram a considerar que comportamentos como aquele que está a ser tão discutido são demasiado “populares” para representantes do povo - implicando essa ideia que deverão projectar, enquanto grupo e independentemente das suas filiações partidárias (pelo menos desde que “respeitáveis”), uma imagem de esclarecidas elites intelectuais e morais, segundo os critérios dominantes que imaginam ser os das elites sociais?
Não constando que a primeira hipótese seja verdadeira, passemos às restantes.
A segunda hipótese lógica (por muito louvável que fosse à luz dos princípios de uma democracia representativa) também não tem muito por onde se agarrar.
Se os palavrões e esta forma peculiar de reagir/argumentar contra aquilo que se considere ser um ataque pessoal podem ser popularmente considerados “de tasca”, não só há cada vez menos tascas e as que existem perdem cada vez mais a sua importância enquanto espaços significantes de sociabilidade e cultura, como esse rótulo tasqueiro não corresponde à realidade.
Gritada ou sussurrada entre dentes, trata-se de uma frase/reacção argumentativa em que 97,5% dos portugueses se reconhecem nos sítios mais diversos (desde o lar doce lar até ao emprego e ao chefe), apenas com o senão de 53,5% deles ficarem surpreendidos por não se seguir a isso uma cena de chapada ou, de preferência, um muito nacional «agarrem-me, se não eu vou-me a ele(a)».
Para mais, essa vasta maioria terá tendência a gozar com os restantes 2,5% que não conseguem recorrer ao vernáculo sequer quando martelam um dedo e que se arrepiam quando outros o fazem.
Pode ser, então, que a coisa tenha a ver com a terceira hipótese. Relembrando, com a tentativa de um grupo heterogéneo, com acesso a instâncias de decisão e poder mas que só em raros casos é formado pelos elementos mais brilhantes, “bem instalados” ou “bem formados” da sociedade, de legitimar a sua posição de proximidade ao poder apresentando-se como uma elite “bem formada” segundo os critérios dos “bem instalados” – o que, entre as camadas sociais intermédias (no vulgo pseudo-científico, “pequena-burguesia”) faz desconfiar também de que serão brilhantes.
Ou, numa linguagem menos precisa mas mais estimulante, um saco de diferentes gatos que se “armam aos cágados” a partir daquilo que imaginam que os cágados serão, para se justificarem, enquanto grupo, como os melhores (porque mais cagadais) representantes dos outros gatos.
A hipótese parece-me tão evidente que tenho até dificuldade em argumentá-la. Talvez isso possa ficar para a caixa de comentários.
No entanto, o assunto arrasta outras dúvidas e questões.
Será que estou a ser mauzinho e que a frase «vai p’ró caralho» é pior que tantas outras já utilizadas naquele local, por isso tendo suscitado, afinal, estas reacções?
Bem… eu li-a por várias vezes em comentários parlamentares do passado recente. Pode até dizer-se que é a mais tradicional e menos criativa das frases utilizadas em situações semelhantes – ou, até, quando os deputados sentem que foram insultadas as posições do seu partido, e não eles próprios.
E temos que concordar que, assim como assim (e embora a frase tenha algum travo homofóbico quando dita a homens, e marialva quando lançada a mulheres), sempre é menos desagradável do que atribuir profissões pouco respeitáveis às mães dos oponentes, ou mandá-los «para o raio que os parta» - o que, não contendo embora palavrões, é afinal o rogar de uma praga e um desejo de morte.
Claro que quem manda alguém «para o raio que o parta» raramente está a desejar a morte, ou à espera de que a sua praga se concretize. Está mais a, para além de desabafar um antagonismo e desagrado, mandar o outro desaparecer, dar uma volta, sumir-se. Tal como, afinal, quando o manda «p’ró caralho».
Vista a coisa por este prisma, trata-se de facto de sentimentos (e sua expressão) pouco consentâneos com a cultura democrática que deveriam perfilhar os representantes eleitos para uma instituição que se legitima, precisamente, pela democracia e consequente coexistência de diferenças.
Mas duvido muito que tenha sido este tipo de leitura semiológica da coisa que, emergindo subitamente, tenha levado a tanto burburinho.
Tanto mais que, em termos mais gerais e para mal dos pecados de deputados e governantes, a possibilidade de irem «para o raio que os parta» (ou, se preferirem, «p’ró caralho») é um aspecto fundamental da legitimidade dos cargos que ocupam. Embora, claro, sendo mandados para esses sítios (ou para a reforma, dourada ou não), pelos fantasmagóricos eleitores, e não directamente pelos seus opositores directos.
Ou seja, podemos jocosamente dizer que qualquer tentativa de impedir que se mande um deputado ou governante «p’ró caralho» é intrinsecamente antidemocrática – mesmo que seja outro deputado a fazê-lo, já que também ele é eleitor.
Mais a sério, podemos achar ridículo que novas preocupações de imaginada respeitabilidade façam de uma barrasquice parlamentar um assunto de primeira página e de diplomacia inter-partidária.
Mas não podemos aceitar que, para dar vazão a essas preocupações e às motivações que lhes estejam por detrás, se censurem as barrasquices das actas parlamentares.
Se acham a questão assim tão importante, mudem-se a vós próprios. Não tentem fazer desaparecer a história no próprio dia em que ocorre.
domingo, 21 de setembro de 2008
Portugal moçambicaniza-se (III)
A FORÇA DA MUDANÇA
Perguntava-me um leitor anónimo, certamente moçambicano, se era verdade que o actual slogan do PS, em Portugal, era mesmo "A Força da Mudança".
É verdade e (tinha eu escrito na caixa de comentários, até ver que a coisa estava a ficar demasiado comprida) isso tem uma história. Uma história nem sempre clara quando é olhada a partir de África e que talvez mereça ser relembrada aqui.
Nos países da Europa onde a social-democracia tem uma acção muito antiga (o que não é o caso de Portugal, onde tão pouco acontece aquilo que direi a seguir), ela era marcada até há uns tempos por uma tradição de regulação estatal da economia, tendo em vista alguma equidade social, a par de uma posição de liberalidade societal em termos da mudança dos costumes.
Quase caricaturando, era como que o seu código genético e identitário, por contraposição a um outro grande partido normalmente existente nesses países, que era por sua vez defensor de um maior conservadorismo social e dos costumes e de uma economia liberal.
Há muito que a questão tinha deixado de ser, para a social-democracia europeia, a via de superação do capitalismo (reforma ou revolução), que tinha levado à cisão entre a 2ª e a 3ª Internacionais.
A questão, desde pouco depois disso, passou a ser a gestão mais justa e equitativa do capitalismo. Se quisermos, e passe a metáfora, um "capitalismo de rosto humano".
Era essa a sua tentativa de prática, o seu legado e a sua imagem.
No entanto, com a teorização da chamada "Terceira Via" (de que o inglês Tony Blair se tornou o governante mais evidente), os partidos social-democratas sofreram uma "mutação genética" que os ajudou a aproximarem-se do poder em tempos de maré conservadora e, por sua vez, deixou os conservadores com um problema de falta de espaço político para resolverem, e deixou os países respectivos sem grandes partidos de esquerda.
Basicamente, os "novos" partidos social-democratas mantiveram posições progressistas na área dos costumes e relações societais, mas adoptaram uma política económica que, em vários aspectos, é mais liberal do que os conservadores se atreveram a fazer e exigir, pondo inclusivamente em causa instituições e pressupostos que se tinham tornado marcas civilizacionais da Europa Ocidental - devido, entre outros, á luta e acção das gerações anteriores de sociais-democratas.
É claro que, quando as mudanças políticas são tão fortes e nessa direcção, não adianta escamoteá-las. Mesmo se não fossem (que eram) argumentos eleitorais para cativar essa figura fantasmagórica do "eleitorado de centro", seria sempre necessário enfatizá-las e transmiti-las como uma corajosa mudança da sociedade, para que ela não entre em colapso.
Afinal, onde existiu ou existe, o "estado social" começou a ser morto por conservadores, mas são "terceira-viistas" com label social-democrata que avançam com o seu enterro.
Portugal nunca foi governado segundo uma política social-democrata "à europeia", nem alguma vez teve um estado social.
E a própria retórica e prática terceira-viista chegou à governação quando não era eleitoralmente necessária para que o PS a ocupasse. Foi mais uma questão de ser a esquerda da moda, "maningue moderna", por parte de um dirigente sem cultura de esquerda (social-democrata ou outra), chegado ao leme de um partido que estava desesperado por voltar ao poder. Foi a aplicação de uma receita que tinha resultado eleitoralmente noutros lados, não fosse dar-se o caso de Santana Lopes conseguir ressuscitar durante a campanha eleitoral.
Mas, quando depois as coisas não correm por aí além, mais necessário se torna apresentar a mudança de orientação política (em vários aspectos, Cavaco Silva governou, no seu tempo, "à esquerda" do actual governo) como uma necessidade e desígnio nacional, que corajosamente é prosseguida, se necessário contra tudo e contra todos, por quem "tem tomates" para isso.
Daí, agora, "A Força da Mudança".
O anónimo moçambicano que suscitou este post ter-se-à apercebido de alguns paralelos engraçados com o seu país.
Mas a situação parece-me muito diferente.
Quando a Frelimo aplicou o slogan d'A Força da Mudança, em 2005, a sua passagem de partido marxista-leninista para executor de políticas ultra-liberais já tinha sido paulatinamente feita desde o fim da guerra civil, 13 anos antes, pelo anterior Presidente da República.
Não era essa curva a 180º que se tornava necessário justificar, mas as mais-valias que iriam advir da substituição do presidente por uma figura à partida difícil de "vender": um político cuja imagem popular estava centrada no seu cargo de Ministro do Interior durante uma das épocas mais repressivas da história pós-independência.
Não será por acaso que (numa altura em que a Renamo não parecia ter ainda entrado num processo de suicídio colectivo ordenado pelo chefe), a Mudança anunciada era muito mais pôr "ordem na tasca", através do «combate ao espírito do deixa-andar», do que a visão do partido como motor de uma "revolução permanente", ligada ao «combate à pobreza absoluta».
Não só a «força da mudança» vinha de um "homem de combate", como vinha de um "homem de tomates" que iria pôr na ordem os interesses instalados, no seu próprio partido, que mantinham o país na desgraça.
Ou seja, aquilo que podia fazer os eleitores terem medo de Guebuza, e por isso afastarem-se dele, foi muito habilmente transformado na prova de que ele era o homem providencial, para aquilo que o país necessitava naquele momento.
É claro que estas coisas não resultam sempre, nem para sempre.
Duvido que o slogan agora adoptado por Sócrates não seja visto como ridículo, e já há largos tempos não se fala em Moçambique do «combate ao espírito do deixa-andar».
Mas talvez nem seja necessário.
Afinal, tudo indica que quer o PS quer a Frelimo vão voltar a ganhar, basicamente, por "falta de comparência" credível dos adversários directos.
(Ao fim e ao cabo, mais um paralelo, para além do discurso subliminar acerca de "tomates".)
Mas lá que é plágio, é.
Às tantas, ainda os publicitários que "venderam" à Frelimo o slogan de 2005 vão acabar por apresentar uma facturinha ao nosso primeiro.
quinta-feira, 18 de setembro de 2008
Uma boa notícia
Talvez porque (apesar do empenho norte-americano na secessão, bem demonstado pela escolha do especialista Philip Goldberg para embaixador), a posição unida e inequívoca dos países da região, num tom mais preocupado com a firmeza do que com a retórica incendiada, tornou irrelevantes as performances histriónicas e contraproducentes de Hugo Chavez acerca do assunto e, com seriedade e credibilidade, apresentou um quadro que talvez nunca tenha sido visto nas Américas:
Os países "a sul do Rio Grande", independentemente das diferentes orientações políticas dos seus governos, não favorecem nem toleram golpadas separatistas e instigações de guerra civil contra governos democraticamente legítimos, por muito que isso agrade ao Grande Irmão do Norte e por muito que esse agrado seja evidente.
Entretanto, as razões de queixa que têm sido apontadas pelos líderes separatistas, e que aqui são repetidas, vêm dar razão ao que deixei dito no meu primeiro post acerca da Bolívia.
Já que, mesmo com a diminuição percentual da sua parte do imposto petrolífero, as províncias separatistas recebem 5 vezes mais dinheiro do que recebiam antes da nacionalização (de que discordaram), e já que não haverá diminuição do grau de autonomia provincial, então o problema são os outros dois aspectos da Constituição que está a ser preparada e que eles referem:
A limitação do tamanho das fazendas e os direitos outorgados à população indígena, maioritária mas tratada como infra-cidadã desde a independência do país.
Por outras palavras a diminuição dos latifúndios e o fim da supremacia "branca".
A metáfora da "Bolívia pós-Mandela", neste momento de negociações com um fundo racial tão claro, começa a fazer cada vez mais sentido para mim.
Mas não para toda a gente. Ainda esta semana li um respeitado colega lá do Instituto a enfiar a martelo e despropósito, na sua habitual crónica jornalística, uma frase sobre como Evo Morales trata como não-cidadãos quem discorda dele.
Neste quadro e nesta sucessão de acontecimentos, confesso a minha surpresa.
Mas é bem verdade aquela frase que os alunos se chateiam de me ouvir repetir nas aulas. Independentemente do brilhantismo que possa caracterizar a inteligência de cada um de nós, «só vemos o que estamos preparados para ver».
sexta-feira, 5 de setembro de 2008
Motins e linchamentos
Estão à vossa disposição, com os nomes "Crónicas dos Motins" e "Poder, Morte e Linchamentos". Sirvam-se.
E, já agora, critiquem e comentem.
domingo, 4 de maio de 2008
Independência latifundiária
É muita chato ser um latifundiário das melhores famílias e, só porque os nossos antepassados massacraram menos indígenas do que nos países à volta, acordar um dia com um Presidente da República ameríndio.
Mais chato ainda se o gajo e o partido dele ganham eleições por maiorias absolutas, contra os hábitos civilizados e o poder do dinheiro.
Pior, se o gajo tem a mania da redistribuição mais justa da riqueza nacional.
Bute aí, então, exigir autonomias, quiçá independências. Com as costas quentes de países tutelares, necessariamente.
Quando, anos atrás, a Alemanha espicaçou a Eslovénia para a independência, deitou fogo aos balcãs e deu o pontapé de saída para a mais bárbara guerra civil ocorrida na Europa durante o último século.
Como irá ser agora, na Bolívia?
Ou será que, tal como antes no Ruanda e hoje em Darfur, a côr torna a questão menos importante?
Alguns dados, muito poucos, para compreender a situação - aqui.