Mostrar mensagens com a etiqueta Antropocenas rápidas. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Antropocenas rápidas. Mostrar todas as mensagens

quinta-feira, 20 de outubro de 2011

Acerca da "insustentabilidade" do Estado Social




Há uns dias atrás, argumentava aqui que a unilateral decisão de alongar o horário laboral e não pagar os subsídios de férias e natal, associada à redução dos direitos de segurança social e à descapitalização dos serviços de saúde e educação, constitui uma brutal subversão do pacto social estabelecido na Europa desde a II Guerra Mundial, feita a coberto da “tecnocráticas” necessidades de combate à dívida pública.

E dizia que essa revanchista receita liberalona põe em causa a relativa paz social e segurança pública – que os apologistas de tais medidas dão como asseguradas e normais, mas que resultaram nas últimas décadas, precisamente, do grau de previsibilidade e segurança que o estado social e a negociação consequente dos termos de trabalho (aceites e implementados por governos de todas as cores, entre outras coisas com o intuito de assegurarem essa paz e segurança) garantiam à vida dos trabalhadores.

No debate do assunto, veio à tona uma ideia que parece deixar muito satisfeita alguma boa gente de esquerda, talvez por verem nela um sinal de amanhãs que cantam ou, pelo menos, de umas redentoras (não me perguntem de quê) pancadarias urbanas de toca-e-foge.

Trata-se da ideia de que o Estado Social (tal como os consensos daí resultantes) só foi e é possível com um crescimento económico sustentado e contínuo, característico da época em que foram implementados. E consequentemente que, sem esse crescimento (em fases de estagração, crise ou recessão), ele não é viável.

Ora não é por acaso que essa ideia (que também faz de conta que o crescimento sustentado só teria existido da II Guerra Mundial à chamada “primeira crise energética”) nasceu no seio da direita neo-liberal e é por ela propagandeada, mesmo se é também papagueada por pessoas real ou supostamente “de esquerda”, sobretudo se estão num governo.

Em primeiro lugar (e residirá aí o interesse mais imediato de quem a inventou), essa ideia justifica e legitima a destruição do Estado Social e de qualquer garantia de segurança de vida dos trabalhadores, pois essas coisas do acesso universal à saúde e à educação, a par da segurança na doença, no desemprego, na incapacidade e na velhice, são luxos faraónicos a que uma sociedade só se poderá dar se estiver sempre a abarrotar de cada vez mais riqueza.

Por outras palavras (que essa gente não usa), dizem-nos que, sempre que as taxas de lucro desçam abaixo das «legítimas expectativas» dos investidores, estes têm que ir sacar mais algum, quer seja àquela parte dos “gastos” com o trabalho que nós não chegamos a ver sob a forma de salário (a tal TSU e os nossos próprios descontos), quer a subvenções e benefícios estatais, tornados possíveis pelo desmantelamento desses custos “parasitários” para a economia que são a segurança social e a saúde e educação públicas. Claro que - passado o aperto da “crise”, da “recessão”, ou da “baixa competitividade” – esses sacanços vêm somar-se às anteriores «legítimas expectativas» de lucro entretanto criadas, justificando que o capital exija a sua continuidade.

Mas, se não nos dizem explicitamente isso, já nos dizem, repetem e (pelos vistos) têm algum sucesso a convencer-nos, que não apenas é inevitável «acabar a mama» desse «viver acima das possibilidades» sociais, mas também que, como crises há muitas e cada vez mais, essas veleidades de vida individual minimamente protegida pelo colectivo têm que ser esquecidas. Ou seja, dizem-nos que esses não são direitos, arduamente conquistados e impostos aos capitalistas; são luxos “contra-natura económica”.

Em segundo lugar, essa ideia de que o Estado Social não é viável fora de excepcionais condições de crescimento económico hipoteca a justiça social, não apenas no presente e num quadro de economia capitalista, mas em quaisquer alternativas.

Isto porque, já que os produtores e reprodutores dessa ideia assumem que o capitalismo é o sistema mais eficiente para criar crescimento económico sustentado (o que, com crises e tudo, até parece ser confirmado pela experiência histórica recente, embora tal não possa ser projectado sobre eventuais alternativas futuras ao capitalisto), e já que nem o próprio capitalismo desenvolvido “se pode dar a esses luxos”, essa perversa ideia diz-nos que, num modelo de sociedade alternativo ao capitalismo, ou não seriam sustentáveis a protecção social e o acesso à saúde e educação, ou só poderiam existir à custa da miséria nas restantes áreas da sociedade e da vida económica. Uma conclusão tétrica e injustificada, claro está, mas que é uma mera decorrência lógica da tal ideia que reproduziu.

Por fim, essa ideia de que o Estado Social só é possível em situação de crescimento económico acabaria de vez com qualquer veleidade de justiça social generalizada (fosse em que sistema económico fosse), caso tenhamos uma visão prospectiva e ecologicamente consciente do futuro.

Efectivamente, de acordo com essa visão cada vez mais justificada, o justo e necessário aumento do consumo nos países mais pobres, conjugado com as limitações planetárias à utilização sustentável de recursos e de energia, implicará, a prazo, que o consumo nos países mais ricos tenha que baixar e que assumir novos padrões. Nessas condições futuras, a ideia liberal que tenho vindo a criticar implicaria desistirmos para sempre daquilo que é assegurado pelos direitos sociais e o Estado-providência, pois o crescimento económico na Europa passaria a ser (por imposição da sustentabilidade do consumo à escala global) nulo ou mesmo negativo.

Posto isto, é claro que não há evidências empíricas que sustentem essa suposta relação absoluta entre crescimento económico continuado e a viabilidade do Estado Social. Aliás, a coisa mais aproximada a elementos de um “estado social” que foram implementadas nos EUA não ocorreram nas décadas da expansão económica pós-guerra, mas em resposta às duríssimas condições da recessão dos anos 30 (com o New Deal) e já bem depois “1ª crise energética”.

Na verdade, a ideia dessa relação automática requer, para fazer sentido, dois outros raciocínios e pressupostos complementares:

Requer, por um lado, o pressuposto de que (como afirmava a economia clássica pré-marxista e repete o mainstream económico actual), o lucro seja um extra relativamente ao custo de fabrico, que se obtém no mercado em função tanto da oferta e da procura quanto da legítima expectativa de uma determinada taxa de lucro, tendencialmente semelhante em todos os sectores éconómicos. E que portanto não seja, conforme defendeu Marx, uma parte do valor do trabalho incorporado na mercadoria que não é paga ao trabalhador (diríamos hoje que sob a forma de salário ou de prestações sociais), sendo apropriada pelo patrão e materializada em dinheiro com a venda do produto no mercado. Ou seja, que a taxa de lucro é um dado a priori, legítimo e por isso intocável (por exemplo, para financiar em grau mais elevado os serviços e prestações sociais do estado), sob pena de se cometer uma injustiça e se hipotecar a capacidade de reprodução da economia.

Acreditar que a viabilidade do estado social depende de um contínuo crescimento económico requer, por outro lado, o pressuposto de que os formatos dos direitos sociais (e do próprio “contrato social”) são e devem ser comandados pelas conjunturas económicas, em vez de dependerem de opções políticas e de correlações de poder – ou seja, que não há luta de classes entre diferentes interesses em jogo, e que a esfera do político se tem que submeter à ditadura da esfera do económico, segundo a forma como a economia (e o estado em que se encontre) for interpretada e avaliada pelas classes dirigentes.

É claro que os serviços (e segurança no futuro) que são garantidos pelo estado social constituem uma forma indirecta de distribuição de riqueza entre capital e trabalho. É claro que os interesses das partes são diferentes, e que o aumento da “fatia” de riqueza de uma delas se faz à custa da outra, esteja-se em crescimento ou em depressão económica. É claro que, por isso, os salários reais e os benefícios sociais não têm que seguir as flutuações das conjunturas económicas. Podem aumentar mesmo que a economia decresça, tal como podem ser degradados em tempos de crescimento económico (como em décadas passadas), ou (como agora) num grau muito maior do que o da degradação da economia. A questão é qual é a parte do trabalho e do capital na distribuição da riqueza, e isso não é um automatismo económico, mas uma opção política e o resultado de uma correlação de forças sociais.

Não obstante, ao aceitarmos e reproduzirmos a ideia de o estado social só é sustentável em situações de crescimento económico contínuo e sustentado, não é isso que vemos, mesmo que o saibamos. Para além de estarmos a ser roubados e a aceitar o roubo, stamos a aceitar implicitamente tudo aquilo que antes referi.

Este processo de hegemonia, em que engolimos e papagueamos as justificações que os dominantes apresentam para legitimar a dominação e roubo que sofremos, é sempre relevante e merecedor da nossa atenção e reflexão.

Mas, agora, mais do que alguma vez antes. Porque o que de mais importante está em causa não é a falta que nos faz o dinheiro que nos tiram e o tempo de trabalho que nos impõem. É a destruição do contrato social e do modelo de sociedade que conquistámos e pelo qual nos temos regido.

quarta-feira, 12 de outubro de 2011

Reflexões ociosas - 6

Há pouco, li Kolakowski sustentar, num quadro de crítica aos marxismos e à visão dos crimes stalinistas como uma sua adulteração casual, que «o mal, eu afirmo, não é contingente, não é ausência, ou deformação, ou a subversão da virtude, mas um facto obstinado e irremissível».

Parece-me que a questão está mal colocada. Talvez por Kolakowski ter sido tão estruturalmente judaico-cristão como os sacerdotes dos "marxismos" no poder.

Pela minha parte, diria que a relação entre "virtude" e "mal" é bem diferente dessa, e muitíssimo mais generalizada (e verificável) nos mais diversos contextos da vida política e social.

Diria, antes, que a busca e imposição pública da virtude e da pureza se torna inevitavelmente maléfica (para além de repressiva) nos seus métodos, práticas e consequências.

Um efeito perverso? Talvez. Mas sistemático e permanente.

quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Espiões, polícias e tumultos

Já está disponível online, aqui, o programa Discurso Directo onde debati o relatório de chefias do SIS e da PSP em que estas especulam sobre a proximidade dos «tumultos mais graves desde o PREC» e a necessidade de se prepararem para isso e de controlarem os "instigadores" e "cabecilhas".

Para quem não tenha tempo de visualizar o vídeo (ou para vos aguçar o apetite, ou a repulsa), aqui deixo uma síntese da minha apreciação inicial acerca da coisa.





- O que foi tornado público do relatório é suficientemente preocupante para que ele seja divulgado na íntegra. Por aquilo que é conhecido, trata-se de um documento que diz mais sobre quem o escreveu do que sobre a realidade que pretende analisar. Suscita, pelo menos, 5 constatações e ilacções relevantes:

- Que as chefias policiais e dos serviços de espionagem interna estão bem conscientes de que a situação social é tão violenta para as pessoas que pode suscitar reacções violentas.

- Que essas chefias (seja por deficiente capacidade de análise, seja por inércia e deformação profissional, seja por ambas) não situam o risco de tumultos nos cidadãos "comuns", precarizados, subitamente empobrecidos e marcados pela incerteza e indignação quanto ao seu futuro e subsistência, mas em conspirativos grupos de activistas. Não procuram o risco na situação social; procuram "inimigos internos".

- Que, devido a esse centramento no (e busca do) "inimigo interno", se justificam preocupações quanto a abusos sobre os direitos de cidadania, as garantias e liberdades democráticas dos cidadãos. É plausível que alguns desses abusos (designadamente escutas ilegais, violação de correspondência electrónica e infiltrações) já estejam a ser cometidos sobre os "suspeitos do costume", tal como aliás já aconteceu no passado com sindicatos e determinados partidos políticos.





- Que se reforça uma dúvida, já antes justificada, acerca daquilo que as chefias policiais e dos serviços secretos consideram ser a sua missão e razão de existência. Acham que é defender os cidadãos e a segurança pública, conforme é suposto e legalmente consignado? Ou acham que é defender o governo que estiver em funções e as políticas que aplique, inclusive da contestação dos cidadãos expressa por meios legais?

- Que se justifica cada vez mais a atenção crítica de todos os cidadãos relativamente ao medo que lhes é instigado. Não apenas o medo da repressão violenta de protestos, de que este documento e a mentalidade que lhe subjaz constituem ameaças (pouco) veladas. Mais importante do que isso, para que o medo e o discurso da insegurança não os façam aceitar como coisas normais e inevitáveis os abusos sobre os seus direitos, liberdades e garantias.

quinta-feira, 29 de setembro de 2011

É já só o que falta

É extraordinária a força que a hegemonia (não no sentido coimbrão de "supremacia", mas na acepção gramsciana de integração, pelos dominados, do discurso da ideologia dominante que justifica a sua dominação) tem vindo a demonstrar no país dos Galos de Barcelos.

Não contem a ninguém, mas começo a ter pesadelos recorrentes com rebanhos que se dirigem pelo seu pé para o matadouro, balindo rezinguices e comentando as vantagens dos choques eléctricos em comparação com a degola, ou o esventramento.
Nalgumas noites, a coisa dura mais um pouco até acordar. Então, carneiros muito subitamente emagrecidos desatam à cornada aos outros e entre si, para júbilo de outros marchantes, que se entusiasmam a tentar acertar uma cornada nos cães do pastor. O que, por sua vez, enche de júbilo uns terceiros, que nisso imaginam futuros radiosos.
E a marcha continua. Por entre o som incessante de balidos de resignação, de indignação, de justificação, de ira e de exortação.
Por vezes, ao acordar, procuro assarapantado certificar-me se não me terá, entretanto, crescido lã.

Entre tais terrores nocturnos e fotos de certeira ironia, como esta, vem-me por vezes um amargo à boca.
É que, por certeira que a ironia seja, faz-me também pesar a ameaça de outros pesadelos.

E passa-me pela cabeça: Se a tal de hegemonia continuar a funcionar tão bem, a que é que ainda assistiremos - por exemplo - num país da minha predilecção em que 50 a 60% do orçamento de estado é pago por governos da "Europa em crise", e em que todo esse dinheiro é apenas 25 a 30% do que por lá entra em "ajuda ao desenvolvimento"?

Que os seus governantes repetissem entre si a frase da foto, em jeito de prece, pouco me surpreenderia.
Mas... e se a coisa hegemonicamente se espalha?
Será que ainda vamos ver miúdos de calção rasgado a escreverem na terra, agora em português (já que a escrita das línguas locais só em altos estudos se aprende), «Por favor salvem os bancos»?

É já só o que falta.

quarta-feira, 28 de setembro de 2011

Nesta primeira sociedade na história em que se morre à fome havendo comida de sobra...


... a frase desta senhora (para quem tenha mais dificuldades com o inglês, diz «Um dia os pobres não terão mais nada para comer a não ser os ricos») talvez seja mais metafórica que factual.

Antes disso, terão ainda a possibilidade de "apreender" a comida a que os ricos e os menos pobres lhes vedam o acesso, por não terem dinheiro, e a riqueza dos ricos e dos menos pobres que eles, para a transformarem em acesso à comida.

É bastante plausível que por aí passe um futuro em que se continue a agravar o empobrecimento, precarização e incerteza de vida da grande maioria, a par de uma progressiva concentração de riqueza - cuja obscenidade se torna tão mais evidente e violenta quanto maior é o seu contraste com as dificuldades gerais.



Algo que as "elites" e as "classes médias-altas" de muitos países africanos aprenderam a ignorar no seu quotidiano (até aqueles dias em que pneus são queimados e os seus armazéns saqueados), e que os detentores do dinheiro e do poder na Europa tentam aprender a ignorar. Confiantes na ignorância, resignação e capacidade de sofrimento dos outros, confiantes na sua própria capacidade repressiva.

Voltarei ao assunto.




(A foto da senhora foi pilhada do 5 Dias)

quinta-feira, 15 de setembro de 2011

Curiosidades quotidianas

Ao mesmo tempo que, esta manhã, eu ia recolhendo a roupa que secara no estendal, uma senhora tratava de reparar uma avaria no seu estore, na casa em frente.

Os papeis de género já não são o que eram...

quarta-feira, 7 de setembro de 2011

Discutindo convulsões sociais

Após vários pedidos, aqui fica o link para o programa "Discurso Directo" de ontem, onde pude falar um pouco de relações entre crise e convulsões sociais:

http://www.tvi24.iol.pt/videos/pesquisa/Discurso+Directo/video/13478949/1

quinta-feira, 21 de julho de 2011

Roda de capoeira no ICS

Um óptimo final para um excelente seminário.

Os videos são da Marta, que faz questão de afirmar que eles aceleraram bem, mas ela ficou mais interessada em ver e bater palmas. «Se queriam ver tudo, tivessem lá estado», acrescenta.

terça-feira, 5 de julho de 2011

Elogio da Incomodidade

Deu entrada na gráfica o mais recente livro de Carlos Serra (figura mais que grada da sociologia e do bloguismo moçambicanos), que tive a inesperada honra de prefaciar.

O texto resultante é longo para um blog mas, para benefício dos eventuais interessados, aqui fica ele:

Este é um livro incómodo, escrito por um moçambicano incómodo.
O que, diria eu, é uma bênção para o leitor e para o país a que se referem as reflexões e análises que Carlos Serra aqui nos apresenta.
Permitam que me explique.
É muito cómodo, claro está, vivermos e olharmos para o mundo à nossa volta repetindo, a cada acontecimento desagradável ou perturbador com que nos cruzamos, algumas justificações prontas a usar, que parecem explicar de forma simples e tranquilizadora a superfície daquilo que vemos. Esta coisa aconteceu porque as pessoas são irracionais ou não sabem viver numa cidade, aquela ali porque se trata de algo natural ou porque sempre foi assim, aqueloutra porque interesses ocultos manipulam as pessoas, porque não se pode fazer melhor, ou porque «o moçambicano é assim mesmo». Justificações como estas têm ainda a cómoda vantagem de as ouvirmos ser repetidas por muitos outros à nossa volta, acabando por nos parecerem explicações de mero bom senso e uma confirmação do nosso próprio bom senso. Com um pouco de sorte, as justificações desse tipo até nos podem permitir ignorar os tais acontecimentos que nos perturbam, seja porque eles nos passam a parecer algo que faz parte da ordem natural do mundo, seja porque nos passam a parecer irrelevantes e fora da nossa responsabilidade. E podemos, comodamente, não pensar mais nisso - e menos ainda fazer alguma coisa.
Se somos cientistas sociais, o mais cómodo é, também, irmo-nos especializando naqueles temas que vão estando em destaque nas agendas de pesquisa internacionais, por aqui evidenciados através do súbito pulular de projectos financiáveis e de consultorias que, quantas vezes, têm até a cómoda gentileza de fornecerem já a conclusão desejada, subentendida ou explicitada no caderno de encargos. Entrados nesse cómodo terreno, é igualmente mais cómodo mantermo-nos nele, evitando incursões por assuntos arriscados, polémicos e conflituais que, para cúmulo, possam ser sensíveis e desagradáveis para os poderes instalados. Ou até, se necessário, dizer acerca desses tais temas difíceis aquilo que julgamos que alguma pessoa importante ficará satisfeita em ouvir-nos dizer.
Tudo isto é cómodo. Bem mais cómodo, certamente, do que pormo-nos a questionar, a analisar e a estudar questões como as que são abordadas neste livro.
Tudo isso é cómodo, dizia, mas tudo isso tem um preço.
No segundo quartel do século passado, o intelectual e activista italiano Antonio Gramsci foi cunhando, durante o seu encarceramento como prisioneiro político, a ideia de “hegemonia”. Ao longo das últimas décadas, temos ouvido muitos cientistas sociais e comentadores de todos os tipos encherem a boca com essa palavra, dando-lhe embora um sentido limitado e para o qual já existia uma outra expressão: “supremacia”. Um sentido limitado, quase um desperdício semântico, porque o sucessivo burilar da noção de hegemonia por parte de Gramsci - à medida que ia necessitando de a utilizar como ferramenta analítica - desembocou em algo bem mais relevante e útil, para olhar e pensar o mundo, do que uma palavra mais fina para designar “supremacia”. Hegemonia queria simultaneamente dizer, no final desse seu percurso, a reprodução e legitimação do domínio de um grupo com base no convencimento dos subalternos através de meios ideológicos e, por outro lado, a aceitação e integração pelos subalternos, na sua própria ideologia, da ideologia dos dominantes - que justifica e legitima a dominação de que estes gozam e de que os subalternos sofrem.
Digamos que é devido à hegemonia - nesses sentidos atribuídos por Gramsci - que são mulheres quem ensina as mulheres mais novas a submeterem-se aos homens, que ouvimos pessoas que não têm o suficiente para viver papaguearem que “sempre houve ricos e pobres”, que se atribua a riqueza à inteligência e empenho dos ricos e a pobreza à estupidez e preguiça dos pobres, ou que a ideia de “raça” e a diferenciação quotidiana em função dela ainda continuam a ser tão relevantes, em países há décadas libertados de regimes racistas.
Uma das consequências desse processo de hegemonia está lapidarmente expressa na frase de Steve Biko que o autor deste livro tem afixada no seu blog: «A mais potente arma nas mãos do opressor é a mente do oprimido.»
Outra consequência é especialmente importante num país como Moçambique, em que as pessoas estão submetidas a dois diferentes efeitos de hegemonia - por um lado, à pressão hegemónica dos países mais ricos e de matriz cultural euro-americana e, por outro, à pressão hegemónica dos grupos dominantes locais, decorra ela do poderio político, do económico ou da “tradição”. É que encarar os acontecimentos desagradáveis lançando mão, comodamente, dessas “ideias pronto-a-vestir” de que Carlos Serra também nos fala nas páginas deste livro, contribui para esconder as suas causas, para baralhar as suas lógicas, para desresponsabilizar os vários grupos dominantes - culpabilizando os dominados, o “exterior” ou a ordem natural do mundo. Contribui, afinal, para reproduzir e legitimar as relações de dominação e de desigualdade. E se, em vez disso, tentamos olhar para o lado e ignorar esses acontecimentos desagradáveis, o resultado é semelhante, pois o silêncio da sua fingida inexistência está já ocupado pelos hegemónicos lugares-comuns que, nesse caso, nos limitamos a não verbalizar.
Não deixa de ser verdade que os cientistas sociais e restantes intelectuais que olham para o lado e se continuam a dedicar apenas aos temas financiáveis das agendas internacionais, à medida que á sua volta ocorrem vagas de linchamentos, levantamentos populares, agravamentos das assimetrias sociais e das condições de vida da maioria, iniquidades praticadas em nome da tradição ou da modernidade, estão no seu direito de ficarem acantonados no seu cantinho. Como pessoas que são, estão de facto no direito de se centrarem naquilo que consideram ser os seus interesses, de buscarem assegurar o que consideram melhor para si e para os seus e de, para o fazerem, se resguardarem comodamente - seguindo apenas os caminhos sem riscos nem desafios já trilhados por quase todos os outros e evitando temas polémicos, politicamente sensíveis e que lhes possam trazer dissabores.
Mas, mais uma vez, isso tem os seus custos. Se as pessoas que tiveram oportunidade de aprender e de adquirir as ferramentas científicas que lhes permitem analisar as causas, dinâmicas e consequências dos fenómenos sociais para lá das aparências superficiais, dos lugares-comuns e das auto-justificações, não os utilizarem para analisar os problemas com que se confronta a sociedade, esses problemas não serão compreendidos para lá, precisamente, da superficialidade dos lugares-comuns. Ao não serem compreendidos, não poderão ser resolvidos nem minimizados de forma eficaz. Pior ainda, aquilo que é habitual quando os problemas não são combatidos, ou o são com base em preconceitos, é que eles se agravem e induzam outros, ainda mais complexos e graves.
É contra tais custos que se torna tão valiosa a capacidade de Carlos Serra nos incomodar.
Afirma-se frequentemente, com bastante leveza e razoável exagero, que os livros nos dizem mais acerca do seu autor do que sobre os temas abordados. Também no caso deste livro seria um abusivo exagero afirmá-lo. Mas não hesito em declarar que, na sua leitura acessível e diversidade temática, ele é um eloquente repositório da postura que Carlos Serra mantém na vida e nas ciências sociais.
Trata-se de um homem incomodado com as crescentes assimetrias sociais, com vidas concidadãs vividas no fio da navalha, com a violência (a do rio, mas também a das margens que o comprimem, conforme tantas vezes cita), com as justificações superficiais e desresponsabilizadoras, com a irrelevância a que são votados os mais desafortunados. Trata-se, suspeito-o, de um homem incomodado com o carácter incómodo que foram assumindo os valores de equidade e justiça social que nortearam a luta pela independência e nortearam a ideia daquilo que o país deveria vir a ser.
É também um homem que partilha a incómoda ideia de que os cientistas sociais têm responsabilidades perante a sociedade e que, para além dos temas das agendas importadas, deverão estudar e analisar aquilo que se passa diante dos seus olhos. Sobretudo se é de problemas, conflitos, tensões que se trata.
Mas é, ainda, um homem que não se limita a “achar que”, antes praticando aquilo que apregoa. Pratica-o em pesquisas académicas clássicas e pratica-o em directo, sem rede e de peito aberto à crítica e ao debate público que suscita, naquele seu blog que é carinhosamente crismado, por muitos dos seus leitores, como “Rádio Maputo”.
É, de facto, no Diário de um Sociólogo – espaço onde nasceram os textos deste livro - que milhares de leitores, moçambicanos e estrangeiros, melhor se sentem informados daquilo que se passa em Moçambique. Mas é também aí, e muitas vezes apenas aí, que os acontecimentos, fenómenos e problemas socialmente relevantes e incómodos (a par de mais alguns, que de outra forma se teriam tornado em não-questões, por efeito dos processos de naturalização e hegemonia), são levantados, abordados, analisados e escalpelizados, em interacção com os leitores.
A lista é impressionante e corresponde, afinal, ao índice deste livro. Permitam-me lembrar, contudo, que ela vai dos linchamentos às liturgias políticas, do Setembro de 2010 à condição dos cientistas sociais, das desigualdades económicas às representações do género e da africanidade, das violências sociais aos boatos e crenças significativos, da manipulação da história à marginalização da pobreza.
Ora as abordagens de Carlos Serra a temas e fenómenos como estes incomodam a paz podre do ”não vamos pensar nisso”. Não pensar e não falar porque, dizem uns, essas coisas são muito complicadas e só se pode discuti-las depois de amplas recolhas de dados, que não têm qualquer intenção de algum dia vir a fazer. Ou porque, contrapõem outros, tudo isso é já claro, bastando os tais lugares-comuns prontos a usar para que compreendamos o que se passa. Ou ainda porque, ameaçam terceiros, falar de fenómenos desagradáveis é lançar gasolina sobre o fogo - como se, conforme comentava com ironia o meu colega Emídio Gune, um médico estivesse a espalhar uma doença por dizer a um paciente que ele a tem. Ou finalmente porque, sussurram muitos, falar de fenómenos sensíveis pode desagradar a quem manda.
O nosso autor confrontou alguns desses raciocínios e atitudes, não atribuindo a outros deles a dignidade merecedora de resposta.
Independentemente de tais incomodadas críticas, é evidente que os efeitos do seu labor têm um valor social incalculável. Ao expor e abordar com seriedade analítica esses assuntos, Carlos Serra abana e faz ruir a cómoda possibilidade de os ignorarmos, ou de os encararmos á luz da displicência dos lugares-comuns, caso prezemos a nossa integridade intelectual e cidadã. Ao mesmo tempo demonstra, pelas próprias análises que faz, que tais questões podem ser abordadas de forma aprofundada, séria, e em respeito pelos critérios científicos.
Claro está que, onde há duas cabeças de cientistas sociais, haverá certamente duas sentenças, por vezes complementares, por vezes antagónicas. Também o leitor poderá concordar ou não com cada uma das análises e conclusões que se sucedem ao longo deste livro. Mas de duas coisas poderá estar certo: uma, da honestidade intelectual com que essas análises foram feitas; outra, de que mais vale haverem duas, cem ou mil sentenças acerca de um problema relevante do que não haver nenhuma, por nos termos resguardado na nossa comodidade e ninguém se ter dado ao trabalho de nos incomodar. Não sei, aliás, se o mais importante é concordar com o autor, ou ter sido por ele incomodado a pensar nesses assuntos e a fazê-lo com profundidade, seriedade e espírito crítico.
Daí decorre, afinal, um outro valioso efeito do trabalho de Carlos Serra e da incomodidade que ele suscita.
Com uma carreira docente que praticamente acompanha o Moçambique independente e que assistiu à formação e consolidação de um já numeroso conjunto de cientistas sociais de elevada qualificação e potencial, não se limitou a ensinar aos seus alunos autores que pudessem comodamente papaguear. Procurou instigar-lhes a autonomia e a capacidade crítica e analítica, aplicadas a questões socialmente relevantes, com os pés bem assentes na aprendizagem do terreno e em conhecimentos teóricos, entendidos como ferramentas do ofício de quem quer compreender, e não como receitas que substituem o processo de compreensão. Essa preocupação, tão bem expressa no capítulo 76 deste livro, «Riscos espreitando os jovens cientistas sociais moçambicanos», tem sido prosseguida, de forma eventualmente ainda mais intensa, na orientação dos jovens investigadores que foram colaborando nas suas pesquisas, no Centro de Estudos Africanos. Quero crer que essa incómoda acção de décadas sairá, em numerosos casos, vencedora dos cómodos riscos contra os quais o autor nos alerta. Mas estou certo de que, em cada novo sociólogo livre que venha enriquecer o seu país, abordando com profundidade e seriedade problemas relevantes da sociedade moçambicana, estará uma quota-parte da herança de incómoda acção e exemplo de Carlos Serra.
No entanto, ao sair das fronteiras da universidade e discutir com o público as suas “notas de reflexão e pesquisa”, como lhes chama, o nosso autor alargou a sua herança bem para lá do espaço académico. Alimentando incansavelmente o seu blog, sempre aberto ao debate, ele instiga muitos e muitas, jovens e menos jovens, com formação superior ou sem ela, a não se contentarem com a comodidade das desculpas fáceis e dos lugares-comuns, da desresponsabilização social e da resignação. Instiga-os a serem mais exigentes consigo próprios e com os outros. Instiga-os, afinal, a serem mais livres e cidadãos.
É caso para pedir: «Continua a incomodar-nos, Carlos!»

segunda-feira, 4 de julho de 2011

É hoje!

Uma hipótese que merece reflexão:

Será que as mulheres moçambicanas se dividem em dois mundos, o das modernas e com estudos, que dormem, e o das restantes, que se deitam depois de todos lá em casa e se levantam antes do sol?

Para além do exoticismo made in Maputo dessa reportagem no "meu" bairro do Xipamanine, há sempre, claro está, a questão de se tomarem as consequências por causas.
Mas - diz alguém que viveu e estudou gente que trabalha por turnos - não valerá a pena pensar se essas consequências circadianas não poderão ser, por sua vez, causa de consequências insuspeitadas?


(o alerta veio, claro, do Carlos Serra)

quarta-feira, 29 de junho de 2011

Identidades, peles e crianças racialmente daltónicas

À conta da resposta a um comentário neste post, acabei por me estender mais do que esperava, mas de uma forma que poderá interessar a alguns de vós.
Aqui fica:

«As classificações (das pessoas e de tudo o que nos rodeia) constroem-se e transmitem-se enfatizando algumas características daquilo que se classifica e não dando atenção a outras. Sem isso não se poderia dizer "cão" ou "pessoa", pois são todos diferentes.
Quando a classificação faz parte da construção de identidades, individuais ou colectivas, esse processo de enfatização de umas características e de "irrelevantização" de outras segue dois vectores necessários para se poder traçar a fronteira entre "nós" e os "outros", que serve de base a uma identidade: é necessário postular (de forma que se torne minimamente consensual) um conjunto de características "comuns" que sejam "nossas", e um conjunto de características "diferentes" que sejam dos outros.

As características seleccionadas podem ser muito distintas, conforme a fronteira identitária que se pretende traçar; mas tem sempre que haver uma enfatização de umas e um fechar dos olhos a outras e alguma aceitação colectiva da sua relevância, para que a identidade resultante possa ser partilhada.

O tom de pele é uma caractérística entre muitas outras de qualquer ser humano, e como tal pode ser enfatizada, subestimada ou ignorada, tanto no processo de classificação como no de percepção (se é que os podemos distinguir para lá de um nível meramente abstracto). Só se torna mais relevante, em termos cognitivos e representacionais, do que o tamanho do dedo grande do pé a partir do momento em que se torne pertinente para estabelecer uma diferenciação, e que a pessoa se aperceba de que essa característica diferenciadora é pertinente para os outros.
Por outras palavras, a diferença de tom de pele, por muito que pareça "meter-se pelos olhos dentro", tem que ser aprendida para que se lhe dê atenção.

Devido a isso e à vivência na minha própria casa, não tenho dúvidas em sustentar que as crianças são racialmente "daltónicas" até que estímulos exteriores (que podem, é verdade, ser muito precoces) as ensinem a ver a cor da pele, quando a olham.

Isto, apesar do turbilhão classificatório e identitário em que as crianças pequenas vivem.
Porque quando chamam (ou para que chamem) a outra "gorda", "feia" ou "preta", essas classificações têm que ter sido aprendidas a montante e ser objecto de negociação social.
Ser "gordo" é uma qualificação quantitativa e ser "feio" é qualitativa. Mas em ambas foi necessário aprender a relevância (quanto mais não seja, enquanto insulto) e ambas necessitam de suscitar consenso exterior, pois a sansão, ao chamar-se "gordo" ou "feio" a quem os interlocutores achem "magro" ou "bonito" é o ridículo.»

Género, sexualidade e práticas vaginais



Uma palestra que promete, na próxima 2ª feira.

sábado, 25 de junho de 2011

Toda a nudez será castigada

Amanhã, lá terá a minha filhosca que vestir um calçãozito. E eu.

Sim, que há prioridades civilizacionais, que diabo!

Está bem que podemos fazer e ver guerras e homicídios brutais ao jantar, empurrar países para a bancarrota para recapitalizar os "nossos" bancos, condenar milhões de pessoas ao desemprego e à miséria, matar outras tantas à fome, havendo comida.

Mas já
as descascadices são umas coisas obscenas que atentam contra o pudor...

(PS: 3º parágrafo acrescentado a pedido de uma pessoa que me é cara, temendo ela que, sem esse acrescento, a brutalidade da foto não falasse por ele.)

sábado, 14 de maio de 2011

Bolinhas televisivas

Está a passar na RTP 2 um filme identificado como para maiores de 16 anos - coisa, portanto, terrível para qualquer um com mais de 40 - que, apesar disso, foi antecedido do raro aviso acerca da possibilidade de chocar olhares mais sensíveis e vai passando com a bolinha ao canto do ecrã que, normalmente, deverá identificar películas próximas da pornografia hard core ou do bacanal de sangue. Embora mais as primeiras do que as segundas.

Do que se trata?
De um filme acerca de 5 desgraçados magalas franceses na I Guerra Mundial, condenados à morte por mutilação voluntária, e executados sob a forma de expulsão para a "terra de ninguém", até que os alemães os baleassem de forma suficiente para morrerem. E das demarches da namorada de um deles para clarificar e denunciara a coisa.

Bolinha vermelha, claro.
Se a nudez e uma sugestão de sexo dão bolinha, se uma reprodução de homicídios de tripas de fora ou de massacres e genocídios (desde que não sobre africanos, veja-se o "Hotel Ruanda") também dá, era o que faltava que não desse bolinha um homicídio estatal feito por filhos de boas famílias que, com muitos galões ou algumas estrelas nos ombros, fazem as provas escritas da coisa diluir-se na sua água do banho.

Tenho estado muito ausente desta ciosa dos blogs, nos últimos tempos.
Talvez pela pouca vontade de, não sendo opinador profissional, andar a opinar o que me parece tão evidente que pouca vontade dá de o fazer.

Mas esta bolinha e este aviso de possível massacre da sensibilidade dos tele-espectadores, coitadinhos (não vão eles chocar-se com um exemplozito da falta de santidade da autoridade e do estado), vale por uma demonstação do pantanal de excrementos que temos vindo a deixar construir no último par de décadas.
Que deu espaço, entre muita outra coisa, à nossa mui peculira transformação do "Vermelho e o Negro" no "Laranja e o Rosa", ou aos acontecimentos que mereceram comentários pertinentes nas últimas semanas.
Por vezes, pergunto-me se não serão bolinhas destas a expressão dos mais perigosos inimigos.

domingo, 3 de abril de 2011

Manif em Luanda, desta vez autorizada


Depois de há uns tempos ter sido reprimida antes de acontecer (fazendo com que, agora, só os mais corajosos dos mais corajosos se tenham atrevido a aparecer), lá foi ontem autorizada em Luanda uma manifestação de jovens "pela liberdade de expressão".


Os números de participantes variam, consoante as fontes, entre 50 e 300.


Mas não é isso o mais importante. O mais importante é terem lá estado aqueles que estiveram, dizendo que "Exercer cidadania não é crime".


Porque, como dizia o Steve Biko (re-inventando o velho Gramsci), "A arma mais poderosa nas mãos do opressor é a mente dos oprimidos".


domingo, 20 de março de 2011

Citações de café (32)

«Com esta crise, vocês deviam era mandar aquela gente de volta para a terra deles», sugeria solícito um belga "branco", referindo-se a um grupo de portugueses "negros" e "mulatos" sentados ao lado, no café da esquina.

quarta-feira, 16 de março de 2011

O nojo!



Que o professor jubilado Aníbal Cavaco Silva nunca tenha dito uma palavra contra a ditadura do "Estado Novo" e justifique isso por não ser um menino rico e não se poder dar a esses luxos, revela-nos um cobardolas como muitos milhares, capaz de esconder essa característica por detrás da desvalorização e insulto aos que não se calaram.

Que, para aceder a um emprego, tenha escrito preto no branco estar em consonância com o regime vigente (o tal da altura), até pode ter constituído uma mentira ou semi-verdade, reveladora da falta de espinha vertebral ou da sua capacidade de fazer a sua vidinha, fosse qual fosse o regime político em que vivesse.

Que o presidente da república (desculpem a ausência de maiúsculas mas, hoje, não as consigo escrever) Aníbal Cavaco Silva tenha chamado ao 10 de Junho "Dia da Raça", até poderia ter sido, com muito boa vontade da parte de quem ouvisse, um lapso de quem tão facilmente se adaptou aos tempos da outra senhora.

Mas que em 2011 exorte "os jovens" (essa vaga entidade que de novo se tornou politicamente apetecível) a empenharem-se «em missões e causas essenciais ao futuro do país com a mesma coragem, o mesmo desprendimento e a mesma determinação com que os jovens de há 50 anos assumiram a sua participação na guerra do Ultramar» vai para lá de qualquer imbecilidade, falta de cultura democrática ou de visão histórica.

É cuspir nos jovens de hoje, é cuspir nos jovens de ontem que foram obrigados a travar essas 3 guerras, é cuspir nos mortos e mutilados físicos e psicológicos que delas resultaram, é cuspir nos povos tiranizados pelo colonialismo e naqueles que contra ele se levantaram, é cuspir naqueles que derrubaram a ditadura tendo o fim dessas guerras como um dos seus três objectivos fundamentais, é cuspir no regime democrático que disso resultou e que este senhor é suposto presidir e representar.

Também por lá andou, como muitos? Sim. Mas isso não desculpa (tal como a sua declaração escrita de apoio à ditadura não o justifica) o branqueamento da história, desconfortável mas nossa, com base no próprio discurso fascista.

Este presidente não é apenas um erro de casting pela forma como se comportou antes de 1974 e pelas discordâncias políticas que com ele se tenham no presente.
De cada vez que abre a boca acerca do passado (ou de qualquer coisa que com ele esteja relacionada), fica mais claro que não foi apenas uma pessoa demasiado cobarde para criticar a ditadura, ou sequer demasiado conformista para se sentir desconfortável por viver nela.
Fica mais claro que é lá que estão as suas referências políticas e sociais profundas, e não no Portugal democrático em que, com todas as suas limitações, vivemos.

Nem vale a pena, suponho, lembrar as consequências que declarações como estas teriam em qualquer país democraticamente decente.
E, afinal, elas fazem com que saudar, no mesmo discurso, os «militares de etnia africana» pareça quase uma calinada irrelevante.

sexta-feira, 11 de março de 2011

"Os mercados", essa coisa racional...

Por altura da abertura da Bolsa de Lisboa, viam-se nas televisões imagens de um depósito de gás de uma refinaria japonesa a arder, em consequência do enorme abalo sísmico ocorrido pouco antes.

As acções da Galp sofreram uma quebra.

Que "os mercados" não rimam com sensibilidade é, suponho, um facto assumido e consensual.
Mas espero que menos pessoas fiquem a acreditar que rimam com racionalidade.