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Friday, October 25, 2024

ODISSEIA MAIOR

  em 4 episódios, na RTP1.

 

Tinha 14 anos quando li Fernão de Magalhães. O homem e sua ação (Biografia) 1938, de Stefan Zweig.
Ainda hoje considero esta obra o livro de aventuras maior que li. 
 
A Peregrinação de Fernão Mendes Pinto, escrita 400 anos antes pelo grande aventureiro, ressente-se de algumas dúvidas,  nunca claramente esclarecidas, sobre a veracidade de alguns episódios relatados pelo protagonista.
 
São incomparáveis porque se, por um lado, as acções relatadas nestas duas grandes odisseias  foram quase contemporâneas, por outro, foi grande a distância entre os momentos em que foram escritas. 

--- 26/10/24 
A propósito...

Há 13 anos, anotei neste caderno de apontamentos um caso - Cábulas & Cª. - com, entre outro outros maus cábulas, o Psioca, distribuidor de um segredo.

Hoje, lembrei-me do Psioca a propósito da Odisseia de Fernão de Magalhães.

O Psioca habitava em casa de um tio que, segundo se dizia, era despachante oficial na alfândega local, que não tinha filhos e, presumivelmente, adoptara o Psioca. 
Nunca soube nem procurei saber se aquele nome Psioca era herança do tio; o que todos sabíamos é que o tio do Psioca era um coleccionador de livros antigos, primeiras edições …, um bibliófilo.
Também nunca soube se o Psioca se interessava pela colecção do tio.
O que todos sabíamos era que o Psioca tinha uma capacidade de memorização de textos muito fora do comum. 
Tanta, que o professor de História, desconfiado com as suas respostas em pontos escritos, quase ipsis verbis com o texto do livro único, o chamava de vez em quando ao estrado para interrogatório, e confirmava-se perante a turma que o Psioca um dia daria um magnífico actor. Com um senão que, para a carreira artística, não seria obstáculo: o Psioca reproduzia o que lia mas ficava bloqueado quando o professor, depois de muito insistentemente ter ensinado a turma que, mais do que o relato dos factos, importavam as causas que os determinaram e as consequências deles resultantes. 
Convenhamos que o professor parecia esquecer-se que estava perante uma turma de alunos na banda dos treze, catorze anos, e o Psioca decorava mas só muito por acaso entendia o que dizia. 
Há muitos casos assim.

Havia na sala uma estante, armário de pinho, um dois por dois, com prateleiras onde habitavam solitários cinco ou seis livros. 
Um dia, pôs-se o prof a olhar por largo instante para a estante, e turma à espera de ver o que dali saía.
- Temos ali aquela estante, vamos tratar de arranjar mais livros e passar a considerá-la a nossa biblioteca; trouxe esta porca de barro para recolha de moedas; à medida que a porca encher, compraremos livros para a biblioteca; mas a biblioteca também não se importa que tragam livros que ninguém costume ler lá em casa. 
A porca recolheu pouco, mas as estantes ficaram cheias em menos de duas semanas: havia de tudo, mas sobretudo exemplares antigos e mal tratados do Mundo de Aventuras e do Cavaleiro Andante, que foram deitadas na base da biblioteca lhe para baixar o centro de gravidade e evitar que tanta sabedoria doada viesse a tombar em cima de alguém em caso de ocasional encontrão.
O Psioca, só à sua conta, encheu uma prateleira. O teu tio sabe disto? Disto, de quê? Não, o tio não sabia, nem saberia, mais livro, menos livro lá em casa, ninguém daria por isso.

Aquela biblioteca sem espaço para mais doações era um orgulho para a turma. Talvez para não diminuir a dimensão de tanto orgulho ou porque quanto mais livros pela frente menor era a vontade de os ler, nem a chamada de atenção de que os livros estavam na estante para serem retirados e lidos, mobilizou a turma para a leitura.
 
Estávamos em vésperas de férias de Natal e, para não ficarem mal vistos pelo prof, a maior parte levou um livro para ler durante as férias. 
Eu levei “Fernão de Magalhães - biografia de Stefane Zweig”, uma primeira edição da obra em português, adquirida num alfarrabista do Largo Trindade Coelho, em Lisboa. 
Seguramente, retirada pelo Psioca da colecção do despachante oficial, sr. Psioca, que tinha metido o recibo no meio do livro.


Friday, October 18, 2024

A LITERATURA CONTINUA PELAS RUAS DA AMARGURA

 
 
É um bom livro?
Talvez.
É uma boa obra literária?
Talvez.
Merecedora do Nobel da Literatura em 2024?
Se é o caso, a literatura continua pelas ruas da amargura.


Sunday, June 09, 2024

BRANCO OU TINTO

Valeu o meu apontamento de ontem - O QUE VALE O MEU VOTO? - um comentário, pertinente, que, no entanto, não responde à questão em causa.

"... O voto de cada um de nós vale efectivamente uma quota numericamente  insignificante, mas isso é a essência dos regimes democráticos, onde ninguém, por mais poderoso que seja do ponto de vista político, económico ou religioso, tem um voto com maior significado do  que qualquer um dos outros votos !!!!  Omitir esta verdade, seja a que pretexto for, é como que um convite à abstenção do acto eleitoral !"

Votar é um direito cívico, não é uma obrigação.
Dizendo isto, de modo algum desvalorizo a essência primordial da democracia da liberdade de pensamento e da sua expressão.
O que me repugna é a feira, o leilão, com que, por motivação maior da emoção, a exaltação desvalorize a decisão de voto tomada conscientemente.
Culpa dos partidos e dos média que tendem a arrastar muitos eleitores pela paródia das arruadas para os lados dos seus interesses próprios e não do país.
Foi, e continua a ser, a complacência da democracia com os seus inimigos, que sufragou maiorias intencionalmente autocráticas, a caminho de ditaduras, que eliminaram democracias. 
Hitler foi o monstro que foi porque a democracia estava debilitada pela derrota alemã em 14-18 e os alemães, emocionalmente, engoliram as promessas propagadas a partir das cervejarias de Munique, pelo radicalismo de um fulano, austríaco, candidato frustrado a artista de belas-artes.
Aconteceu há cerca de 100 anos. Está a começar a acontecer agora.

Já votei hoje. 
Serve o meu voto para alguma coisa?
Não sou tão tolo para pensar que sim.
 
---







A propósito de eleições europeias, encontrei no meu arquivo de recortes de imprensa alguns comentários sobre o livro de Saramago, publicado há vinte anos - Ensaio sobre a Lucidez - um ano em que Saramago integrou a lista de candidatos da CDU ao Parlamento Europeu "em lugar não ilegível, simplesmente como uma expressão de fidelidade ao PCP ", segundo o secretário-geral do partido nessa altura.   

     
  


 (cartoon de Vasco)

"Mau tempo para votar, queixou-se o presidente da mesa da assembleia eleitoral número catorze depois de fechar com violência o guarda-chuva empapado ..." 
 
Assim começa e prossegue em rame-rame tipicamente saramaguiano "Ensaio sobre a Lucidez" (2004) até chegar onde quer chegar: o temporal não afastou os votantes, a abstenção foi baixa, mas houve oitenta e três por cento de votos em branco, um resultado que exprimia a perda da credibilidade da população nas instituições, nos partidos políticos, da esquerda da direita e do meio e a indignação pelo descalabro praticado por políticos de partidos diferentes, mas de atuações iguais, usufruindo de privilégios que ofendiam a população. 
 
O livro, estruturalmente mal amanhado mas ideologicamente muito direccionado, constituía para a maioria dos críticos o ataque mais evidente à democracia em toda a obra de Saramago, e isso incomodou os fiéis do partido, que logo defenderam que, se por um lado,  oitenta e três por cento tinham votado em branco, por rejeição massiva dos partidos da direita, da esquerda e do meio, por outro lado, dezassete por cento tinham votado no único partido isento de todos os pecados imputáveis ao sistema. E se assim fosse, os dezassete por cento do eleitorado elegeria em 2004, vinte e sete, isto é, a totalidade dos candidatos ao Parlamento Europeu.
Na realidade só elegeu um.
 
Era uma parábola? Era uma anedota?
Fosse o que fosse, Saramago parecia ter descoberto a forma de implodir a democracia "se o voto em branco passasse a dez por cento", afirmava ele em entrevista ao Expresso em Abril de 2004, "isso era o terramoto de 1755 sem vítimas e sem estragos".
Hoje, provavelmente, estaria do lado de Putin, contra a União Europeia. 
Tem candidato sucessor em lugar elegível: perdeu Beja, pode ganhar Bruxelas. Como negócio, nada mau para o candidato.  

Friday, September 15, 2023

A ESTUPIDEZ HUMANA É INFINITA

Acerca da infinitude do Universo, aguardam-se melhores provas.
 
 


Terça-feira - O Presidente da Câmara Municipal do Porto ordena a remoção da Estátua de Francisco Simões - Amores de Camilo - a instâncias de abaixo-assinado de 37 ilustres. O presidente Moreira também concordava que a obra era feia e que, por essa razão, devia ser removida.

Quarta-feira - Rui Moreira reverte decisão de remoção da estátua de Camilo.  


Já agora, que está com a mão na massa, por que não manda o Presidente Moreira remover o Monumento aos Heróis da Guerra Peninsular, na Rotunda da Boavista, que coloca no cimo de um pedestal mais alto que a Torre dos Clérigos um leão (britânico) a derrotar uma águia (francesa), sem nenhuma alusão ao povo portuense?

Hum!, dizem-me os portistas a quem coloco a questão: - Aquilo não é um leão britânico nem uma águia francesa mas uma das raras vitórias do Sporting sobre o Benfica ...
- E o F C do Porto, o Dragão, por onde anda?
- Pois é, precisamente, por isso que aquela coisa já devia ter ido abaixo há muito tempo.


Sunday, November 22, 2020

50 ROSTOS PARA UM CÂNONE

Agustina Bessa-Luís, Alexandre Herculano, Alexandre O’Neill, Almada Negreiros, Almeida Garrett, Antero de Quental, António José da Silva, António Nobre, António Vieira, Aquilino Ribeiro, Bernardim Ribeiro, Bocage, Camilo Castelo Branco, Camilo Pessanha, Carlos de Oliveira, Cesário Verde, Dom Duarte, Eça de Queirós, Fernando Pessoa, Fernão Lopes, Fernão Mendes Pinto, Fiama Hasse Pais Brandão, Florbela Espanca, Frei Luís de Sousa, Gil Vicente, Gomes Leal, Herberto Helder, Irene Lisboa, João de Deus, Jorge de Sena, José Régio, José Rodrigues Miguéis, José Saramago, Júlio Dinis, Luís de Camões, Luiza Neto Jorge, Maria Judite de Carvalho, Mário Cesariny, Mário de Sá-Carneiro, Miguel Torga, Oliveira Martins, Raul Brandão, Ruben A., Ruy Belo, Sá de Miranda, Teixeira de Pascoaes, As Três Marias, Vitorino Nemésio.


Apresentação : AQUI

Sugere-se avançar o cursor no YouTube para não aguardar cerca de 25 minutos.

Wednesday, May 29, 2019

O PROFESSOR E O LOUCO


                                              ****

"Londres, século XIX. Há mais de duas décadas que vários estudiosos da Universidade de Oxford tentam criar um dicionário que, para além de definições rigorosas dos termos, englobe também a história e evolução da língua inglesa. Em 1879, James Murray, um escocês de cultura vasta e espírito inquiridor, torna-se responsável pela finalização do empreendimento. Para concretizar a tarefa, que a todos já parece impossível, Murray tem uma ideia: pedir a voluntários que compilem e lhes enviem palavras dos vários livros que leiam. É assim que William Chester Minor, um cirurgião norte-americano há anos hospitalizado numa instituição psiquiátrica para criminosos, se junta a Murray. Esta parceria durará anos e resultará numa profunda admiração e amizade entre dois homens muito diferentes mas igualmente geniais." 
c/p aqui

Saturday, May 26, 2018

ROTH


Philip Roth merecia o Nobel.

Este ano o Nobel da literatura não foi atribuído em consequência de um escândalo sexual, vd. aqui que envolve o marido de um dos membros da Academia Sueca. Para o ano haverá dois prémios Nobeis.

Nenhum deles será atribuído a Roth, falecido há quatro dias.
Pelas ridículas razões que estiveram na origem da não atribuição do Nobel este ano.
O mais provável, contudo, é que, se não tivessem existido essas ridículas razões, haveria ridículas explicações para a Academia Sueca,  na sequência do ocorrido nos últimos anos, atribuir o Nobel a autores sem reconhecido mérito para o merecer.
Terá a literatura mundial descido a um nível tão baixo ou o olhar dos académicos suecos, de tão frouxos, são incapazes de avaliar quem se situa bem acima dessa mediocridade?


Sunday, October 29, 2017

KAZUO ISHIGURO



"Este livro não sai da cabeça, recusa-se a ir embora, força o leitor a voltar a ele ... excepcional." - Neil Gaiman, The New York Times.

A publicidade na portada de um livro coloca-me sempre de pé atrás.

Há dias, soube-se que a Kazuo Ishiguro foi atribuído o Nobel de Literatura deste ano. Das suas obras editadas em português só se encontrava disponível nas livrarias, no dia do anúncio da Academia Sueca, a última, "O Gigante Enterrado", publicado em 2015, escrito dez anos após a publicação da anterior. 

O que levou a Academia Sueca a esperar doze anos para atribuir o Nobel a um autor que ganhara o Booker Prize em 1989 com "Remains of the Day", adaptado a cinema quatro anos depois?
Muitos outros autores vencedores do Booker nunca foram nem serão distinguidos com o Nobel, mas este prémio máximo da literatura foi atribuído dois anos depois da publicação do último romance de um conjunto de sete, além de quatro roteiros para cinema, televisão e teatro. 
Foi decisiva, para a distinção Nobel, a publicação de "O Gigante Enterrado"

Se foi, deve continuar o Comité Nobel para a atribuição do Prémio de Literatura confuso, ou a procurar confundir-nos, com os seus critérios de avaliação do mérito dos autores galardoados nos últimos anos. 
Li "O Gigante Enterrado", não porque o livro me tivesse forçado a voltar a ele, mas porque percorri com alguma persistência as 405 páginas da edição portuguesa simplesmente com o objectivo de tentar descortinar nele o mérito que é suposto possuir. E não cheguei lá. 
Com menos trezentas páginas, esta novela, que é um conto sobre a amnésia colectiva mergulhado nas lendas dos tempos do rei Artur, arrastaria durante menos tempo os protagonistas da história e a paciência do leitor. 
O mesmo poder-se-à  dizer do "Ensaio Sobre a  Cegueira", mas Saramago lembrou-se primeiro de ficcionar o comportamento social em situação de ausência de visão.  

Wednesday, December 28, 2016

HISTÓRIA FRICCIONADA

“Pode sempre detectar-se um tolo: é o homem que diz conhecer qual é o candidato que vai ganhar uma determinada eleição. Porém, uma eleição é algo de vivo, poderá até dizer-se que não existe seja o que for mais vigorosamente vivo, com milhares e milhares de cérebros, pernas, olhos, pensamentos e desejos, que podem ziguezaguear, voltar-se e tomar direcções que ninguém previra, muitas vezes só pelo gozo de provar que os sabichões estavam enganados. Foi uma das coisas que aprendi no dia passado no Campo de Marte”. - aqui

Interessante, sem dúvida. 

Não sei, no entanto, se consistente com as fontes em que o autor encheu o pote com que cozinhou a sua novela.
A ficção sustentada em personalidades e factos históricos é apelativa, alcança lugares cimeiros nos rankings dos best sellers. Resumindo, num chavão comum "é o que está a dar". O sr. José Rodrigues dos Santos é, por agora, entre nós, o exemplo mais bem-sucedido na capacidade de engrolar a história. Ainda não alcançou a projecção mundial e os proveitos de um Dan Brown mas continua afanosamente a trabalhar para isso.
Não me agrada a História ficcionada porque nem é ficção nem é História mas uma forma de fazer fortuna distorcendo, porque inventando, uma história onde o leitor desprevenido é levado a absorver como realidade aquilo que não passa de ficção. 


Perguntar-me-á: Mas, por exemplo, Shakespeare não recorreu à História para construir a mais grandiosa obra da literatura ocidental? Recorreu, e não tão raramente traiu, mas a sua genialidade é tanta que são quase irrelevantes para o leitor ou expectador os nomes dos personagens. Podiam ser outros e não se perturbava a essência da obra. Para além disso, a literatura como a arte, ou é original ou não é arte nem literatura. Um fulano que hoje pinte como Degas pintava pode ser bem-sucedido (e muitos são) se o fizer como falsário. Se for suficientemente habilidoso mas honesto, assumindo a sua autoria, não venderá as obras que produza pelo preço que lhe custam as telas e as tintas. 

O último período do seu texto é exemplar desta forma insinuante de revisitar o passado e moldá-lo às recentes falhas estrondosas das previsões sobre o Brexit ou a eleição de Trump. 
Tirão, se escreveu o que Harris cita, deve ter, momentaneamente, esquecido que as votações na Roma Antiga dependiam mais da força das armas e do poder do dinheiro que da vontade manipulada pelas redes sociais da actualidade. 

Monday, October 17, 2016

CLARIVIDENTE OU CABOTINO

A Academia Sueca desiste de contactar Bob Dylon, laureado este ano com o Nobel da Literatura, após várias tentativas a que o cantor autor respondeu com o silêncio.
Um comportamento que pode ser prenúncio da recusa do prémio.
Seria a terceira, depois de Boris Paternak, por imposição do regime soviético, e Jean-Paul Sartre por questões de princípio de não aceitar prémios.

Se Bob Dylon recusar, recusa porquê?
Por clarividência?
Por cabotinismo?

Thursday, October 29, 2015

UCRÂNIA, ANOS TRINTA DA COLECTIVIZAÇÃO


"Que recordação temos nós de Béria? Da Lubianka? A minha mãe ficou calada ... Uma vez recordou como num verão, depois das férias, ela e o meu pai regressavam da Crimeia. Atravessavam a Ucrânia. Isto foi nos anos trinta da colectivização ... Na Ucrânia havia uma grande fome, golodomor em ucraniano. Morreram milhões ...morriam aldeias inteiras ... Não havia quem enterrasse os mortos ... matavam os ucranianos porque eles não queriam entrar para os kolkhoses. Matavam-nos à fome. Agora sei isso. Em tempos tinha havido a fortaleza de Zaporojié, o povo lembrava-se da liberdade ... A terra ali é tal que espetamos uma estaca e cresce uma árvore. E morriam à fome ... como gado.Tiraram-lhe tudo, até à última migalha. Cercavam-nos de tropas, como num campo de concentração. Agora sei isso ...Tenho uma amiga ucraniana no trabalho que ouvia a avó contar ... Como na aldeia deles uma mãe matou o seu próprio filho com um machado para o cozer e dar de comer aos outros. O seu próprio filho ... Tudo isso aconteceu ...Receavam deixar as crianças saírem de casa. Apanhavam as crianças, como os gatos e os cães. Escavavam na horta, apanhavam minhocas e comiam-nas. Quem podia, arrastava-se até à cidade, até aos comboios. Esperavam que alguém lhes atirasse uma côdea de pão... Os soldados expulsavam-nos a pontapé, à coronhada ... os comboios passavam a toda a velocidade. Os condutores fechavam as janelas, cerravam as cortinas. E ninguém perguntava nada a ninguém. Chegavam a Moscovo: traziam vinho, fruta, orgulhavam-se do seu bronzeado e recordavam o mar. (Silêncio.) Eu gostava de Estaline ... Amei-o durante muito tempo. Amava-o mesmo quando começaram a escrever que ele era pequeno, ruivo, e tinha uma mão seca. Que havia morto a mulher. Mesmo quando o destronaram e retiraram do mausoléu. Eu amava-o na mesma."

Margarita Pogrebítskaia, médica, 57 anos
O FIM DO HOMEM SOVIÉTICO / Svetlana Aleksievitch/ Nobel da Literatura 2015

Monday, October 19, 2015

RENASCIMENTO SOVIÉTICO



"Cresceu na sociedade o interesse pela União Soviética. Pelo culto de Estaline. Metade dos jovens dos dezanove aos trinta anos consideram Estaline  "o maior dirigente político". Num país em que Estaline liquidou tantas pessoas como Hitler, um novo culto de Estaline?! Tudo o que é sovético está outra vez na moda. Por exemplo, os cafés "soviéticos" - com nomes soviéticos e pratos soviéticos. Surgiram os bombons "soviéticos" e o salame "soviético" - com o cheiro e o sabor nossos conhecidos desde a infância. E, é claro, a vodka "soviética". Na televisão há dezenas de transmissões e na Internet dezenas de sites nostálgicos "soviéticos". Podem fazer-se visitas turísticas aos campos estalinistas - em Solovka, em Magadan. O anúncio promete que para mais completa sensação fornecem um fato de campo e uma picareta. Mostram os barracões restaurados. E no final organizam uma pescaria...
Renascem ideias antiquadas sobre o Grande Império, sobre a "mão de ferro", sobre "a via russa especial" ... Reapareceu o hino soviético, há o Konsomol, mas chama-se simplesmente "Nachi" (os "Nossos"), há o partido do poder, que copia o Partido Comunista. O Presidente tem um poder como o do secretário-geral. Absoluto. Em vez do marxismo-leninismo, a religião ortodoxa."

O FIM DO HOMEM SOVIÉTICO - UM TEMPO DE DESENCANTO 
Stevlana Aleksievitch



                                  The Stalin Monument (The Hague)(2006)
                                                       Komar and Melamid

Friday, October 09, 2015

O SEM FIM DO HOMEM SOVIÉTICO

A Academia Sueca decidiu atribuir este ano o Nobel da Literatura a Svetlana Aleksievich, notabilizada  pela sua obra de investigação jornalística.

Dificilmente escapará esta atribuição a ser, como não raras vezes o foi no passado, conotada com  motivações  políticas. Desde logo por uma parte muito significativa da população russa, que, segundo Svetlana Aleksievich venera Putin como venerou Stalin. A Rússia não dispensa um czar.

Numa altura em que as relações entre o ocidente e a Rússia voltaram a confrontar-se em várias linhas vermelhas, o Nobel deste ano, independentemente do mérito literário da obra da escritora bielorrussa, recorda-nos as atribulações de escritores distinguidos com o Nobel durante o perído soviético. Boris Pasternak, Nobel da Literatura em 1958, não foi autorizado por razões políticas a receber o prémio; a Alexander Soljenítsin, Nobel em 1970, foi retirada a nacionalidade russa e expulso do país em 1974. 

Svetlana Aleksievich, nascida em 1948, entrevistou testemunhas dos mais dramáticos acontecimentos no seu país, a Segunda Grande Guerra, a guerra entre soviéticos e afegãos, a queda da União Soviética, o desastre de Chernobyl, e com esses testemunhos compôs a sua obra. Condenada pelo regime de Lukashenko, saiu da Bielorússia em 2000, passado a viver em Paris, Gotemburgo e Berlim. Voltou a Minsk, a sua cidade natal, em 2011.



"Há nesta obra de Svetlana Aleksievich, Prémio Nobel da Literatura deste ano, sobretudo uma análise sobre o perfil do homem russo". "Todos nos convencemos que, com a queda do império soviético, haveria da parte do povo um sentimento satisfação pela conquista da liberdade, pelo fim de um regime ditatorial, e o que ela reflete neste livro, através de centenas de testemunhos, é que não foi isso que aconteceu".
"Houve, antes, um grande desencanto no povo russo, e uma espécie de saudade dos tempos gloriosos em que a Rússia era de facto um grande império universal, e isso explica - como ela mostra perfeitamente -, o recrudescimento, entre os jovens, de um grande culto de Estaline, e de uma grande ambição de que a Rússia pudesse voltar a ser o espaço geográfico determinante no mundo" o que "explica muito o que está hoje a acontecer com [Vladimir] Putin".

 Manuel Alberto Valente, editor, Porto Editora

Thursday, September 17, 2015

POVO INDEPENDENTE

Os islandeses serão provavelmente, o povo mais cioso da sua independência. Poucos, cerca de 330 mil, mas orgulhosos da sua capacidade para ultrapassar as barreiras que a natureza ou os homens lhe colocaram pela frente. Deles se pode dizer que sempre se governaram porque nunca se deixaram governar. 

Na transição do primeiro para o segundo milénio já os godi, os representantes das comunidades, se reuniam em assembleia legislativa, anualmente no mesmo local, integrado hoje num parque nacional, para discutir e aprovar as leis que regiam as relações sociais em todo o território. 

Uma vez, a sua capacidade para consensualizar o modo de regular os seus interesses colectivos atingiu quase o ponto de ruptura quando o rei da vizinha Noruega, senhor de uma força naval considerável, entendeu que era tempo de os relapsos pagãos da Islândia abandonarem os seus ritos pagãos e as suas sagas e abraçarem a mensagem da Bíblia cristã.  

Por essa altura, já muitos habitantes da ilha, por uma razão ou outra, adoravam o crucificado. Reunidos os godi, o consenso tardou mas foi conseguido: Aceitaram o baptismo mas, quem quisesse, poderia continuar a adorar quem bem entendesse desde que o fizesse em privado; e, como prova irrefutável da sua conversão logo ali se fizeram baptizar e aclamaram o rei da Noruega como seu rei.
Este, no entanto, viria a morrer pouco depois numa batalha com outros vizinhos nórdicos sem nunca ter posto os pés na ilha ao lado. 

A mesma história repetir-se-ia ao longo dos séculos: sempre reinados por outros e sempre independentes. 

Halldór Laxness , Nobel da Literatura em 1955, é o gigante maior de um povo que se habitou a contar sagas nas longas noites árticas desde os começos da colonização do território no séc. IX.  Escreveu dezenas de obras, "Povo Independente" é uma novela épica deste povo geograficamente isolado mas culturalmente avançado. 
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"Povo Independente" encontra-se traduzido em dezenas de línguas.  Em Portugal foi editado pela "Cavalo de Ferro"com o título "Gente independente".

Saturday, August 15, 2015

LÁPIDES PARTIDAS

A "Livraria Bertrand" do Chiado é, mais do que uma livraria, uma instituição que já deveria ter sido reconhecida de interesse público, não vá um vendaval de interesses financeiros fechar aquele espaço durante o tempo suficiente para o reabrir como McDonald´s, loja de telemóveis ou outra actividade pop. Segundo o que pode ler-se aqui, "em Abril de 2010, a Bertrand ganha o Guinness World Records para «os mais antigos livreiros em actividade» e a livraria Bertrand do Chiado, em Lisboa, ganha o World Guinness Record para «a mais antiga livraria em actividade». 

Ainda que a motivação deste apontamento seja outra, anote-se que o charme de uma outra livraria, no Porto, - Livraria Lello - é tanto que os actuais proprietários se viram obrigados a moderar o número de visitantes estabelecendo que  "a partir de 23 julho de 2015 a entrada na livraria custa três euros, que são descontados na compra de livros". 

Passámos esta tarde pelo Chiado, e os nossos mais novos, habituados a alguns rituais adquiridos em anos anteriores, entraram na livraria, e nós fomos atrás deles. Fiquei-me pela primeira sala, aquela onde do lado direito foi em tempos criado o "Cantinho do Aquilino", uma singela homenagem registada em placa discreta afixada numa estante. 

- Diga-me sff., que foi feito daquela placa que sinalizava a ligação de décadas entre Aquilino Ribeiro e a Bertrand e se encontrava ali naquele canto?
- Foi retirada. Foram feitas algumas obras de recuperação e limpeza ... e limparam a placa ... Está guardada, algures.

Sinais dos tempos. 
No "Cantinho do Aquilino" já não existem sequer livros à venda do escritor.
No seu cantinho, mora agora ao seu lado Eusébio da Silva Ferreira. 


Sunday, April 26, 2015

O ASSASSINATO DA FRANÇA

“As elites estão a assassinar a França”, afirma Michel Houellebecq  numa entrevista publicada hoje aqui. Dito por qualquer outro francês, e a maioria dos franceses dirá o mesmo, aliás como a maioria dos portugueses, dos espanhóis, etc., a respeito dos seus países, a afirmação seria anódina, de tão batida. 

Dita por Houellebecq, titula a entrevista a um escritor que, para além dos méritos que lhe possam ser reconhecidos, e serão muitos, merece agora  protecção policial permanente desde a publicação de "Submisão", ocorrida, vantajosamente para ele, quase em simultâneo com o massacre de Charlie Hebdo. Aliás, o livro e a entrevista recolhem, com humor perverso, o sentimento generalizado de uma larga maioria de franceses, e não só, que vêm na progressão islâmica motivo mais que suficiente para se barricarem em posições extremistas de direita. 

Michel Houellebecq satiriza o incómodo e a inabilidade ocidental perante um avanço que não sabe conter e muito menos combater. As elites, submergidas pela vaga invasora, limitam-se a esperar pela oportunidade de colaborar com o invasor e assassinar a França. 

Premonitório ou provocador, a Houellebecq qualquer dos atributos convém. "Soumission" não é um romance; é um manifesto político romanceado. A capa da edição portuguesa é muito elucidativa da intenção do texto.
Quem não gosta do estilo são os putativos intrusos.
 ---
correl. - Sobre Huellbecq

Saturday, January 10, 2015

MUDANDO DE ASSUNTO

Porque não se deve perder o que melhor se produz, e esteja ao nosso alcance, li um dos dois livros de Gonçalo M Tavares publicados no mesmo dia, em meados do mês passado: "Uma menina perdida no século à procura do pai". Este livro e o outro que não li ainda, "Os velhos também querem viver",  foram comentados aqui, no Público. A RTP entrevistou o autor - vd. aqui - na altura do lançamento simultâneo das duas obras, a primeira em Lisboa, a segunda em Coimbra. 

Gonçalo M Tavares é um escritor que, apesar de ter começado a publicar apenas há cerca de quinze anos, recebeu os aplausos generalizados, alguns vibrantemente entusiásticos, de escritores como José Saramago, Vasco Graça Moura, António Lobo Antunes, Eduardo Lourenço, entre outros, portugueses e estrangeiros. A sua obra está já traduzida em dezenas de países. 

«Há um antes e um depois de Gonçalo M. Tavares.»José Saramago «Estou convencido de que dentro de cem anos ainda haverá teses de doutoramento sobre passagens e fragmentos de "Uma Viagem à Índia".»Vasco Graça Moura «De onde vem este talento tão só consigo mesmo, por mais referências que jogue? Esta frieza a quente,»Maria Velho da Costa «Eu acho que há um caso de genialidade, que é o Gonçalo M. Tavares.»Mário de Carvalho «Porque é que havemos de pôr as coisas em termos de Nobel?! Talvez fosse preferível pensar-se "Poderão ser grandes escritores ou não?" (...) o mais cotado parece-me, sem dúvida o Gonçalo M. Tavares. Sem dúvida.»António Lobo Antunes «Gonçalo M. Tavares é um escritor diferente de tudo o que lemos até hoje. Ele tem o dom — como Flann O’Brien, Kafka ou Beckett — de mostrar a forma como a lógica pode servir eficazmente tanto a loucura como a razão.» The New Yorker 

Apesar de tantos testemunhos pessoais e evidências editoriais à volta, depois de ter lido "Jerusalém", "Uma viagem à Índia", entre outras obras deste escritor,  não me apercebi em  "Uma menina está perdida no seu século à procura de pai" daquele golpe de asa que o elevaram já às alturas da genialidade.

Na entrevista da RTP, Gonçalo M Tavares começa por considerar que a extensão do título - "Uma menina está perdida no seu século à procura de pai" - é já um percurso. A menina, duplamente fragilizada por sofrer Trissomia 21 e não saber do pai,  não está perdida no espaço, está perdida no tempo. E, envolto nesse tempo em que a menina está perdida, Gonçalo M. Tavares imerge numa narrativa onírica, surrealista, que cada um entenda como quiser.

É pouco.