Cantava, invisível. Da garganta oca escapulia um blues rasgado, a dor imensa a evaporar dos muitos vincos. Pés descalços, no meio-fio andava - a pele escura em cacos; os sonhos, poucos. Arrastava os curtos passos e cerrava firme os olhos, enquanto o grave gravitava fundo na caixa ecoante e rompia em fúria os poucos dentes-muros. Toda uma vida de ausências sacolejava dentro da pequena bolsa em remendos. Tantos desditos-incertos explodiam no fundo daqueles olhos tão secos. Nas mãos rachadas, os rabiscos de todos os ontens. Eu senti seu medo, seu desespero, seu desconforto - confesso: eu me afoguei. E entendi, depois dos intermináveis minutos em que estive ali, observando, inerte, que todos somos invisíveis uns dias, muitas, várias vezes. A diferença é que alguns de nós cantam - a melodia a marcar, canina, o breve território da existência - enquanto outros apenas seguem, exasperados com o próximo passo, incapazes de ouvir sequer os seus próprios lamentos.
Sylvia Araujo