Foto do blog: Mario Lamoglia

terça-feira, 29 de novembro de 2011

Cantare


Cantava, invisível. Da garganta oca escapulia um blues rasgado, a dor imensa a evaporar dos muitos vincos. Pés descalços, no meio-fio andava - a pele escura em cacos; os sonhos, poucos. Arrastava os curtos passos e cerrava firme os olhos, enquanto o grave gravitava fundo na caixa ecoante e rompia em fúria os poucos dentes-muros. Toda uma vida de ausências sacolejava dentro da pequena bolsa em remendos. Tantos desditos-incertos explodiam no fundo daqueles olhos tão secos. Nas mãos rachadas, os rabiscos de todos os ontens. Eu senti seu medo, seu desespero, seu desconforto - confesso: eu me afoguei. E entendi, depois dos intermináveis minutos em que estive ali, observando, inerte, que todos somos invisíveis uns dias, muitas, várias vezes. A diferença é que alguns de nós cantam - a melodia a marcar, canina, o breve território da existência - enquanto outros apenas seguem, exasperados com o próximo passo, incapazes de ouvir sequer os seus próprios lamentos.

Sylvia Araujo

domingo, 27 de novembro de 2011

Carmim


Eu não sei. É que alguma coisa tá fora de ordem, tá fora de órbita, tá fora do rumo - sem prumo - me ajuda. Alguma coisa é muito longe assim, tão perto-dentro e eu não sei. Eu juro que não sei, me explica? Não, não tenho medo do escuro, é sério. Essa luz carmim, acesa o tempo todo, enfim, é só pra ver arder o muro alto - medir seu destamanho, enfrentar meu desconcerto. Você pode apagar o facho, se me envolver bem apertado nos teus braços, beijos: e eu te prometo nunca mais tentar fugir de mim.

Sylvia Araujo

sexta-feira, 25 de novembro de 2011

Crença, bença

Não. Não há cheiro, não. Há só um medo esparramado e morno que me diz das coisas que nunca me foram. É só um frio na espinha curva que sobe e desce, me tonteia, escapa. É caso sério esse amor tão grande. E ele ri quando respiro o não, cria covinhas se desacredito. Um riso livre, de fazer barulho, gargalhada pura de criança nua - a boca toda lambuzada - é mel. E eu lhe dou as mãos numa ciranda a sós, nos revelamos luas sem usar desfeitos. Ele sabe ser - o amor - maior! Eu pra sempre aprendo seu enlarguecer. Lá, no meu coração, danado faz ninho, caminho, soluço, maré-lua-cheia, me faz ser inteira. Longe ou bem perto, me oferece no cálice um sopro, um gozo danado de bom: nunca deixe de me acreditar. E vá.
Sylvia Araujo

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Ânsia


Chove
na rua
na carne
aqui dentro.

(e essa novembrância
a me arrebatar 
silente
feito 31
em final dos tempos)

Sylvia Araujo

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

(In)existência


Me impulsionam pelas matas densas pés descalços de curta vida. Pouco mais de trinta anos me embrulham frouxos o corpo sedento.  Sobre os dedos calosos, cortados, equilibra-se em patético malabarismo o expressivo peso da minha vontade - cambaleando, sigo. No início do caminho estreito, uma encruzilhada e um hoje-branco, estatelado em oferenda. Então, me deixo arrebatar pelo perfeito momento-presente eternizado em nesga de sol e aqueço. Esqueço os medos e esvazio dos meus tantos vãos. Sou agora só desejo escancarando os poros e esfregando pelo corpo inteiriço a felicidade suprema de estar exatamente naquele lugar. E estar quem estou. Da grama úmida, a certeza do incerto borbulha, amortecendo os passos. Sorrio. Inexisto na lembrança de uma veracidade inventada e desconstruo. Um suspiro rodopia altivo nas entranhas do nariz e me assopra curto recado do rio: siga. Frágil, pressinto aturdida o arrebatamento das águas negras- revoltas, mas os planos já estão desfeitos. Não há meias-voltas - me resta ir além. O rio que lateja em mim murmura: é pouco ainda, eu estou em toda parte. E quando irrompe inteiro nas veias, arrastando em enfurecida pororoca minhas tantas exatas exatidões, me faz rio. Inundada, so(u)rrio em incurável e irreversível deságue.

Sylvia Araujo