Conto-lhes a breve história
de uma das minhas primeiras perdas. Qualquer inverossimilhança deve ser
atribuída ao espanto comum às crianças daquela idade, em que as coisas diante
dos olhos parecem um pouco maiores e mais interessantes que em seus estados
naturais. É por isso que, não raro, com o passar dos anos, os adultos vão
progressivamente perdendo a habilidade de ver os detalhes, as rendilhas, e têm
que arranjar-se como podem com lentes ópticas. Enfim, a questão é que naquele tempo eu morava
a uma rua calçada com paralelepípedos, desses já encerados pelo uso. Perigo em
dia de chuva, caíamos muito, mãe pedia cautela, joelhos viviam ralados de
inventar de descer o morro sem saída sobre folhas de papelão. Era no mesmo
morro sem saída que havia essa arvorezinha. Dava umas flores irrelevantes,
porque não se pareciam com as que todas nós meninas desenhávamos,
coloridíssimas. Não tinha pétalas arredondadas, ou miolinho pra ser pintado de
amarelo – o propósito do miolo era justamente ser pintado de amarelo. Ao invés,
essa flor calhou de ter uma existência estranha e arrepiada, se espalhava pra
todos os lados numas filandras de um branco encardido, que mudava a um
inesperado rosa purpúreo na extremidade.
Tinha a época de a
árvore florescer. Mas essa época vinha sempre ao acaso, nunca era ansiada feito
o tempo das mangas. Certo dia olhávamos pro morro, lá estava a árvore apinhada
daquelas flores. “Ah”, dizíamos, desinteressados. E íamos cuidar da vida. A
árvore se esvaindo naquela abundância à beira de nossas brincadeiras de rua,
por anos. Pouco ligávamos.
Foi então que houve
uma tarde muito particular. Sentamos-nos em um círculo de crianças e nos
pusemos a discutir nossos assuntos de extrema importância. Íamos bem assim até
que nos interrompeu o sobressalto
inesperado de uma amiga sentada à minha frente, que abriu a boca para dizer
algo e não conseguiu. Diante de nosso silêncio, logrou soltar uma exclamação
sem forma e apontar por sobre nossas cabeças. Quando pude me virar só enxerguei
a pequena árvore com aquelas suas mesmas dezenas de flores. Mas algo era
novidade no entorno daqueles instantes, como se o céu mesmo tivesse assumido um
azul mais profundo de anunciações, e corresse por ali um vento causador de
arrepios na gente. De repente entendi que uma das flores bem no centro da copa
da árvore havia acabado de se abrir por completo e eu não havia visto. Era
diferente das outras, até menos encardida – provavelmente de tão pouco de mundo
ainda que a aborrecia. Estava embriagada de sol, túrgida de ilusões precoces.
Achei-a bonita, fiquei triste por dias de uma pena profunda. Passei a perder
muitas coisas pequenas depois disso: lápis, borrachas, chaves, moedas,
minutos. Nunca me recuperei.
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(foto: ilustração botânica em Curtis's Botanical Magazine (1846))
4 comentários:
Viver é, um a um, ver desabarem os "para sempres".
GK
Quando me vejo saudosa da sua escrita única e delicada, venho aqui saborear.
Quando me vejo saudosa da sua escrita única e delicada, venho aqui saborear.
Legal que tenha voltado. Continue postando, adoro o seu blog!
Beijo.
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