Foto do blog: Mario Lamoglia
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sábado, 25 de fevereiro de 2012

Mantra


Fazer o bem, todos os dias, amém.

Sylvia Araujo

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

Pecadora e herege. Infeliz, nunca.

Quando você tem um problema dos grandes, as pessoas esperam te encontrar com a pele sem viço, com olheiras enormes, com dez quilos a menos e um monte de tristeza escorrendo pelos cantos dos olhos. Sorrir vira pecado. Cantar, então, se torna quase uma heresia. Parece que esperam que você cultive a dor e faça dela o seu jardim incolor, até que tudo se resolva - até que o problema não exista mais. Acontece que eu não vou fazer dos lamentos a minha música. Não vou deixar de amar, de dançar, de gargalhar, de aproveitar os mínimos momentos e ser feliz apesar de, ainda que. O problema não vai se transformar em fracasso, simplesmente porque eu não fui capaz de recomeçar, ou porque não tive a presença de espírito de zombar da cara dele, quando quis me derrubar - e desisti de seguir. O meu mundo não vai se espreguiçar cinza todas as manhãs e eu não vou me tornar um poço árido de rabugice e agressividade - não esperem por isso. Todos os dias, dou bom dia ao dia que levanta e vou. Pra que, quando no fim tudo enfim desanuvie, eu seja capaz de agradecer a mim mesma por ter conseguido mais uma vez e tenha alegrias  suficientes estocadas para superar os muitos mais, que infinitamente virão - até que a morte nos separe, amém.

Sylvia Araujo

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

O amanhã é mais bonito quando dói

Sentir é ultrapassar muros com asas imaginárias. É ter, bem dentro, um jardim inteiro e, nos olhos, os mares do mundo. É carregar consigo o cheiro das terras, o sopro do vento, as gotas de orvalho. E se deixar rodopiar pelo farfalhar delicado e fugaz de uma linda borboleta multicor. Sentir é viver, ser - embevecer-se. É mais do que muita gente poderia suportar. Mas pra quem dói - veja bem se não é assim - o renascer é como brotar sol, por detrás das enormes montanhas, em dia cinzento. É ter o azul se esparramando no peito bem devagarinho e nas pontas dos dedos guardar em segredo a doce magia de recomeçar.

Sylvia Araujo

quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

Até o nunca mais viver sem ti



Feriu-me irreversivelmente as retinas esse teu riso solto, branco, afiado - tão displicente, blasé. A pior das tuas armas, os dentes (sempre). E você bem sabe que assim, ligeiramente entortados, tão arte contemporânea - tão livres! - são sempre um forte agravo à minha condenação: querer-te imenso até o nunca mais viver sem ti. O golpe mais baixo - ainda mais baixo que a rebeldia dos dentes a fugir dos trilhos dessa tua boca bonita - é o tal meio-olhar de lado, também entortado, esse tanto-sarcasmo, meu deus! Essa santa transparência, aí, cor de mel que carregas; que me faz assim tão nua a mim, que ando bem vestida de medos nos últimos tempos; que ando incontáveis feridas abertas; que ando cega. (Vendou-me, o amor). E cega não enxergo as chagas, sou só planos: um dia, mistura homogênea-nós dois; um dia, um não saber inícios, nem fins - um dia nós.
Atados; eternos.
Um dia (a) sóis.

Sylvia Araujo

sexta-feira, 2 de dezembro de 2011



Que a minha falta de ausências nunca afete os meus afetos.

(é tudo sempre o tempo todo em mim)

Sylvia Araujo

Bisturi




O pudor castra(a)dor de ser.

Sylvia Araujo

terça-feira, 6 de setembro de 2011

A velha e a puta

Esticou o braço delgado para o ônibus e, ao mesmo tempo, em um improvável malabarismo, tentou encontrar as moedas perdidas no fundo da bolsa enorme de couro cru. Além do peso no ombro esquerdo, todos os dias ela carrega na outra mão uma pasta  cinzenta cor de chumbo que, pela sensação desconfortável de ardência na lombar, deve pesar, no mínimo, uns três quilos e meio. Clara é recém formada no curso de Letras da Universidade Católica e, além do trabalho em três escolas municipais, revisa e traduz textos em inglês. Sua vida, nos últimos tempos, tem sido levar papéis para todos os lados, o tempo todo.  Mas existe um porquê:  seu apartamento próprio de dois quartos na zona sul, de frente pro mar, estará quitado em dois anos, de acordo com os seus cálculos, graças ao seu esforço e à mesada gorda que o pai ausente deposita na sua conta poupança todo dia cinco.

Sentada no banco do meio, do lado do motorista, todos os dias repete o mesmo ritual. Apoia a pasta pesada no colo, abre a nécessaire bege, tira dela o pequeno espelho rosa em formato de coração e se olha nos olhos com complacência. Ajeita os fios loiros e finos na trança comprida meticulosamente repartida, passa pó compacto no rosto  branco com um pincel largo de cerdas curtas e espalha um batom quase imperceptível nos lábios rosados. Um suspiro. Dois. Guarda tudo na bolsa, puxa a meia calça na altura das coxas, ajeita a saia nos joelhos e a gola da blusa impecavelmente passada, esfrega a ponta dos dedos nas laterais dos sapatos lustrosos e abre um livro, que só é fechado na esquina de casa.

Nesse dia, no ponto seguinte, na altura da Voluntários, subiu  as escadas do ônibus, com  considerável dificuldade, uma senhora obesa de cabelos  curtos ensebados, trajando um jardim de maxiflores multicoloridas, do pescoço atarracado até o meio das canelas cabeludas. Depois de se arrastar lentamente pelo corredor estreito, desabou ao seu lado, ofegante. Lambendo os fios do bigode escuro lotado de gotículas de suor amarelado, perguntou, numa fala entrecortada e ríspida, se Clara poderia fazer o obséquio de ocupar menos espaço, para que ela pudesse caber também no banco. Solícita, Clara fechou o livro com o indicador marcando a página e, timidamente, se desculpou, tratando de espremer seu corpo franzino de miss entre a velha e a meia janela rachada imunda.

Sem agradecer, a mulher observou por alguns instantes a capa do livro em suas mãos de dedos finos e esmalte transparente e, com um olhar que fez a espinha da garota gelar e seu corpo tremer inteiro em um arrepio incontido, perguntou:

- Bukowski?
- É... - respondeu Clara, quase com medo.
- Gosta?
- Sim.
- Puta. - grunhiu a velha, entredentes.
- Como?
- Puta. Vagabunda, perdida, biscate, rameira.
- Desculpa? A senhora está me ofendendo? - perguntou, sem conseguir acreditar no que ouvia.
- Se lê Bukowski, e gosta, é puta. - cuspiu enraivecida a gorda, já se levantando para sentar duas cadeiras atrás.

Com as ofensas inesperadas rodopiando dentro da cabeça, Clara segurou o espelho de novo e se olhou demoradamente. Deixou que cada uma daquelas palavras preenchesse todo o espaço da boca e as repetiu para si mesma, uma a uma, observando, cautelosa, cada movimento labial no reflexo do coração rosado: Puta. Vagabunda. Perdida. Biscate. Rameira. E sorriu. Arrancou o elástico que prendia a ponta dos cabelos sedosos e soltou a trança perfeita com os dedos compridos. Limpou a boca insossa com as costas das mãos e tirou da nécessaire o batom vermelho, aquele que tinha comprado na revista da Avon mas nunca teve coragem de usar. Abriu os dois primeiros botões da camisa e encurtou a saia, dobrando o cós até que ela chegasse ao meio das coxas bem torneadas. Levantou do banco exalando um cheiro rascante de fêmea e, consciente do poder que carregava nos quadris, ao avistar a velha senhora piscou um dos olhos, a língua úmida desfilando abusada entre os lábios carmim, enquanto puxava a corda presa no teto. Em cima do salto, desceu e seguiu. Inteira puta. E magnanimamente feliz.

Sylvia Araujo

segunda-feira, 27 de junho de 2011

você
que tem medo e desejos
que sonha alto:

teu mundo lateja em mim.

Sylvia Araujo

quarta-feira, 1 de junho de 2011

Tua, inteiratua

Preciso
mergulhar profundo
na melodia doce
dos teus olhos
vastos.
E lamber
esse teu cheiro
vivo
de janela aberta,
(im)perfeito amor.

 
Sylvia Araujo

terça-feira, 15 de março de 2011

(Re)Para e Re-começa




Repara, amor, com cuidado, o som de veludo que ecoa das nuvens, quando escorregam as fofaspantufas no teto estrelado, escuta. Repara o halo azulado daquela com laço de fita e sente, ao longo da espinha, o calor que esparramam seus braços, enquanto rodopiam - imensos - de encontro ao dourado do sol. Repara, pequeno, o verdedoce gostoso dos dias, o poder da ínfima gota, a inteireza brilhante do extenuante caminho do broto, germina. Repara os dedos compridos da chuva que tamborila cantigas serenas, no embalo do teu justosono, acalenta. Repara, de olhos fechados, a imensidão do horizonte do mar - as negras ondas, a espuma farta, a luatoda em mergulho nu, submerge. Repara no roto, no feio, no sujo, no espelho - repara em si mesmo, alimenta. Repara o nada que vibra no fundo do peito, repara o vácuo, o liquefeito, revê.  Repara, meu filho, repara a vida que escapole da terra molhada e te acarinha - suave cetim. Percebe o sutil e inesgotável prazer que os rios têm em sempre recomeçar. E re-começa - todas as vastas manhãs.

Sylvia Araujo

segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Ousadia

Esfregam-se em meu olhar
todos os dias
infinitos olhos.
No fundo de todos eles
apenas um par
- e seu castanho-amendoado,
profundo mar -
que me olha
me estreita
molha
e espreita
que quase me cega
com seus tantos seres,
reféns-aprisionados
em duas íris só.

Dentro de mim,
dois olhos-chocolate.
Em você,
a bonita ousadia
de ser multidões
aqui.

(Tudo o que eu queria agora era poder sentir o cheiro do teu silêncio com a ponta dos dedos)


Sylvia Araujo

terça-feira, 16 de novembro de 2010

Cíclico



Brotei
gota.

De um fino
filete
em nascente
de cachoeira
descendo o rio
virei mar.
Beijada de sal
ensolarou
evaporei
renasci
nuvem.

Hoje
choro
tenra chuva
na busca
da essência
de ser pingo
pequeno
e límpido
novamente.

Re-começar
em ciclo
pra sempre
outra

- gota.

Sylvia Araujo

terça-feira, 19 de outubro de 2010

Mãos ao alto


Enquadrou o meliante. Depois da revista geral, um tête-a-tête. Assaltante que se preze não desvia o olhar, nem se rende fácil à intimidações. Ele era profissional. Chegou bem perto até as respirações se fundirem. O ar saindo de um e entrando no outro, num enfrentamento cíclico e asfixiante. Com a pulsação acelerada, puxou o gatilho. A bala perdida acertou em cheio e derrubou a seus pés o ladrão de corações. Ela pressionou o salto quinze de leve no vale de sua traqueia - enquanto ele acariciava com as mãos ásperas sua batata branca da perna - e sussurrou entredentes, com um sorriso de canto: perdeu!

Sylvia Araujo

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Oceano em brasa


Aquele mar aberto
no fundo dos olhos.
Aquele sem fim inteiro,
flamejante.
Aquele sempre
aquele nunca
 aquilo tudo escondido
e entregue.
Aquele verdeazulado que grita
sem dizer uma única palavra.
Aquilo tudo em mim:
um nada-tanto tatuado
a ferro quente
no corpo em brasa.



Sylvia Araujo

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Magia *


Suas mãos se assemelham a cansadas cordas de aço entrelaçadas. Quase sempre imóveis, só é possível vislumbrar as palmas - queimadas pelo calor das pedras - quando se rendem ao mímico diálogo com os pássaros pretos. Gestos ventados ao ar, os dedos desenham incompreensíveis contornos pouco acima da linha do horizonte, enquanto a boca seca cala.

Ela também é alada.

Seus cabelos, derramados ombros abaixo feito cachoeira prateada, têm como preocupação apenas seguir a inconstância do vento. Por vezes se embolam com as correntes ao longe e, de lisos, mimetizam em intermináveis vagas rebeldes. Eles vêm e vão, redemoinham e adormecem conforme a maré. Fios revoltos, não se distingue onde começa e termina seu corpo enquanto flutua.

Ela também é partida.

Sua pele é um conglomerado impreciso de retalhos que misturam rugas e cores aleatórias e marcadas. O corpo é delgado e frágil, e os ossos pontudos revelam por baixo do tecido duro e surrado uma silhueta friamente geométrica. Em postura triangular, mantém a espinha ereta e as pernas cruzadas - as rachadas plantas dos pés para cima. Com a cabeça voltada para o norte, tem os olhos sempre encobertos de névoa, mesmo nos tempos mais quentes, enquanto evapora.

Ela também tem segredos.

Sua vida segue sem que jamais tenha tentado transformar pura magia em meras palavras. Em seu mundo, letras são míseros rabiscos frente a imensidão gloriosa dos sentimentos que vibram. Ela não fala. Ela não escreve. Enquanto muitos a definem louca por inacessíveis e degradantes sinônimos, ela enxerga o vento e o beija.

Ela está muito além.

Sylvia Araujo



* Republicação

PS: Queridos, estou completamente atolada em textos inéditos e secretos rs e não estou tendo tempo para escrever posts fresquinhos e visitar vocês como gostaria. Um novo projeto está a caminho e logo-logo estarei de volta, firme, forte e presente, como sempre. Torçam por mim!

quarta-feira, 28 de julho de 2010

Ainda bem


Amanheceu verde - musgo fértil em ventre de pássaro brotado em horizonte. Antes de abrirem as janelas, lhe descortinou rebelde um sol redondo pelos olhos negros - os raios quentes lhe atravessando íntimos os poros abertos. Sorriu bem dentro, em céu da boca estrelado e dentes pequerruchos de marfim - as covinhas afoitas se debruçando enamoradas no parapeito das velhas rugas - e lentamente amareleceu. A brisa morna fez dançar de leve as cores vivas no varal, e veio delas em magia um cheiro adocicado e primaveril de campo em flor. Um gosto exuberante de tomilho lhe tomou de assalto a ponta da língua - sabor de lembrança que abraça apertado e não deixa partir. Permitiu então que brotasse em pura nascente uma lágrima bonita - perfeita em sua transparência arredondada - que lhe atravessou solene o rosto estreito, como quem mergulha de corpo inteiro em mar aberto, como quem assopra com toda a força dos pulmões um dente de leão - só pra ver a sua alma voar. Dia pleno, pediu ao marido-encantado que lhe escovasse com energia os brancos fios, pra sentir de olhos fechados mais uma vez o prazer do couro cabeludo se esparramando em cascata pelos lençóis trocados - a maciez de algodão a lhe afagar delicada os ombros cansados. Ao longe, uma melodia suave serenava - flautas transversas e violinos em dueto, conversavam poesia sobre rosas-chá. Falavam emocionados do brilho das estrelas e do coaxar dos sapos, como quem fala de champagne e caviar - ela embevecida, ouvia. Noite alta, pensando - o ar faltando e o amor sobrando no peito murcho - achou um bocado estranho tanta vida lhe assoberbar assim os minutos contados, fazendo toda essa batucada irrefreada no coração exausto. Então, em sussurro abraçado ao último suspiro - mastigando com calma todas as vezes em que pisou descalça a grama e dançou em par na chuva - agradeceu baixinho: ainda bem que em mim tudo sempre foi assim. E voou.

Sylvia Araujo

sexta-feira, 16 de julho de 2010

Lareira



Le mins (qui)na
Lê meus lábios
Lê meu corpo
Meus pelos
Meus braços
Lenha me
Na cabeceira dos dias
Abajur ligado
Me enluare
N(cr)ua.

Sylvia Araujo

terça-feira, 6 de julho de 2010

Semente


Ela vivia me dizendo que tinha asas - amarelas, enormes, emplumadas. Mas eu não botava fé. Nunca fui de acreditar em nada que meus dedos não pudessem sentir, ou meus olhos acompanhar. Se era mesmo alada, como é que não voava? Tanto céu por aí, dando sopa. Se fosse eu, dava rasantes por cima do verde do mar e escolhia as minhas estações preferidas, só mudando a direção do voo - norte-sul-além-azul. Um dia, lhe ofereci meu precipício mais alto - o maior dos buracos que trago no peito - só pra ver se ela se jogava lá de cima, corajosa, impetuosa, e flutuava. Mas nada. Ela me disse por trás de um sorriso, que saltar de cima de penhasco é suicídio, e quer mais é viver essa vida danada de boa e ser muito feliz. E disse ainda que as asas só funcionam mesmo na imaginação, quando a gente abre um livro, por exemplo, e vem dele um cheiro, um sentimento, que faz o coração ficar bobo e levantar do chão. Mas meu coração é pedra, eu disse a ela, pedra pesada não rola e nem sonha. E então, ela abriu a boca pequena e rosada e fez soprar lá de dentro aquele vento suave e morno de primavera em flor. E me fez brotar inteira - pétalas multicores me subindo aos montes pela cabeleira. Beija flores dóceis vinham me pousar nos olhos e tiravam levemente meu corpo do chão. Ela, bonita em seus montes de laços de fita, abriu suas asas compridas de sol e me levou pelas nuvens, bem longe dali. Lá, pertinho de onde a tristeza não mora e a beleza explode nos poros da gente, abri meus braços de penas e chovendo salgado, amanheci semente.

Sylvia Araujo

sábado, 5 de junho de 2010

Gota

Tela de Salvador Dalí

Sai despenteada e apressada. Primeiro a filha na escola, depois o filho na natação. A Ioga fica pra depois. Volta pra casa, coloca a roupa na máquina, lava a louça da pia. Vassoura na sala, pano nos quartos, desinfetante no banheiro. Hora de buscar o filho na natação. Passa o uniforme, dá banho, comida, penteia os cabelos, deixa na escola com um beijo e um eu te amo. No ponto de ônibus lembra que precisa estender a roupa. Volta mais uma vez, pendura a roupa na corda, coloca as panelas na geladeira e, no portão - no exato momento em que as chaves caem no chão - percebe que está de chinelos. Verdes limão. Com a maquiagem já derretida entra de novo e coloca os saltos. Olha no relógio, já deveria estar na reunião. Desiste do ônibus, pega um táxi. Chega atrasada, dá boa tarde, escuta, organiza, propõe, resolve, indica. Fica aflita. É muita coisa e não há tempo. Delega, entrega e sai correndo. Hora de buscar os filhos na escola. Pega um ônibus, vai em pé. Hora do rush, engarrafamento. Abre um livro e vinte páginas depois desce na esquina. O salto quebra - estava demorando. Tira os sapatos, joga na lixeira e vai descalça. Pega os filhos, um beijo em cada um mais dois eu te amo, como foi o dia. Duas mochilas, mais bolsa de compras, laptop e pasta de couro. Quase não dá, mas tem que dar. Prepara a janta, ajuda no dever de casa, dá banho, conta uma história de dragões e princesas pra agradar os gregos e os troianos que dividem o mesmo quarto. Mais um beijo em cada um, dois eu te amo e um boa noite, durmam com os anjos. Apaga a luz. Respira. Descalça, caminha sem pressa até a cozinha. Abre a garrafa lentamente e escuta atenta o barulho do líquido estalando os cubos de gelo no fundo do copo. E aquela gota - não a mesma, outra - amarelada, reluzente, abrindo caminho pelo corpo transparente do vidro, caramujando em rolamentos circenses quase chegando ao rótulo avermelhado; aquela gota inteira, insistente, que magicamente a transporta para outro lugar. O lugar das maravilhas que, de tão mínimas, se tornam quase invisíveis aos olhos do tempo que escorre. E ela agradece por mais esse micro-poema que orvalha diante do seu rosto cansado. Porque enquanto a gota - aquela, não outra - estiver serpenteando garrafa abaixo e seu coração se mantiver atento à ela, sua vida já valeu a pena. E o amanhã será sempre outro dia.

Sylvia Araujo

quarta-feira, 26 de maio de 2010

Des-ânsia


Amanheceu bonita. Dia quente rompendo no peito, um sol inteiro iluminando afobado a pele fina e clara do rosto. Do outro lado da janela um vento cortante bailando anunciante o longo inverno - em tempos de La Niña não há nada mais a se esperar além das loucuras cometidas pelas estações. Há quem diga que assim enlouquecemos junto. Nada mal quando pensar em loucura é quase como uma abolição da escravatura. No aconchego do lençol macio cheirando à alfazema, sacudiu os pensamentos e esticou as pernas. A cama amolecida pelas noites revelando a marca intacta do corpo rijo entregue aos sonhos. Aquelas tantas lembranças, que - no fim - acabam sempre virando memórias pra dentes. A tatuagem dos amores já cicatrizados na fronha florida já ardeu mais. Hoje revela. E ela sorri confiante, do mesmo lado que tantas vezes foi invadido pelos mares dos olhos. O sal deixou nódoas no tecido amarelo e não há Omo-qualquer-coisa capaz de removê-las. Melhor que fiquem ali, feito foto de obeso emagrecido em porta de geladeira. Pra manter a saúde, tomou por hábito comer os nomes pela manhã. Trinta e três mastigadas e os nutricionistas garantem uma perfeita digestão - é o que dizem. José. Anselmo. Antônio. Lauro. Pedro. Maurício. Renato. Fernando. Sem nenhum líquido gelado entre um e outro pra ajudar a empurrar as dores garganta abaixo - dá barriga, dizem também. Pra evitar que a gastrite vire úlcera, melhor seguir as recomendações médicas. E ainda misturá-las com mel. Essa história de viver azeda já lhe causou transtornos demais. E escassez de poesia. Antes evitar a recaída que deitar todos os dias com os espasmos dos sexos que já lhe fizeram flamejar as curvas. Melhor compreender que o amor é logo ali, e não nas palavras anoitecidas dos dias que despencaram sem vida com o surgir da lua das mortes anunciadas. E deixar-se rodopiar de mãos dadas com o sopro frio que invade a nesga da janela entreaberta, enregelando os amores idos - nunca na espera - mas coração sempre aberto pro que há de vir. Porque borboleta parece flor que o vento tirou pra dançar. E as suas asas - na des-ânsia dos sentimentos - floriram enfim multicores. E estão mais que nunca prontas pra bater. E amar.

Sylvia Araujo




PS: Esse texto nasceu depois de ter lido o verso lindo entregue pela Renata Luciana, num dos tantos delicados posts dela no Estado de Entrega. O link está voando feito florboleta bem ali, no finalzinho das letras. Juntinho com todas as cores do amor - que há sempre de vir.