segunda-feira, 25 de novembro de 2024

50 X 12

 


“Ser Solidário”, José Mário Branco.
 

Estou aqui a comemorar o vinte e cinco de Novembro porque, antes de mais, sou dado a comemorações e, além disso, o vinte e cinco de Novembro é o tricentésimo vigésimo nono dia do ano do calendário gregoriano, o que significa que é um dia muito importante. Foi neste dia que nasceu Ana de Jesus e faleceu Pedro Primeiro de Alexandria, portanto não me venham cá com coisas: comemoremos. Acrescento que devíamos comemorar mais vinte e cincos, pois a soma de dois com cinco dá sete, e sete é um número mágico. São sete as cores do arco-íris, os dias da semana, as notas musicais, os mares e os continentes e muitas coisas mais de insofismável relevância na história da humanidade em particular e do mundo em geral. Escolhi o álbum “Ser Solidário”, de José Mário Branco, para comemorar este vinte e cinco de Novembro de dois mil e vinte e quatro, ano dos meus cinquenta anos, o dobro de vinte e cinco. É uma edição de que gosto muito, sobretudo porque além das canções tem um tema extra intitulado “FMI”, que, não por acaso, tem a duração de vinte e cinco minutos. Como vêem, o vinte e cinco é um número especial. O que seria de nós sem os vinte e cincos? Eu gosto de ver as pessoas aperaltadas para as comemorações, eles de fato e gravata, elas de fato cumprido e cabelo arranjado, devidamente maquilhadas, unhas a preceito, talvez com um blazer à medida e calças a condizer. Com saltos altos, não muito, o suficiente, quanto baste. Todos maravilhosamente penteados, excepto os carecas. Toda essa nuvem de perfumes à deriva no ar embriaga-me e deixa-me tonto de comemorações, dá-me logo para ir para a rua e apanhar um táxi a caminho do melhor restaurante onde, à mesa, poderei manifestar-me contra as injustiças do mundo degustando arroz de lavagante com um Château d’Yquem de 1811. Não faço por menos, é para meninos. Portanto, deixem-se de lamentações. Nenhum de nós tem culpa do estado a que isto chegou, se é que chegou a algum estado. Estamos bem, muito obrigado, vamos indo, tudo na boa, adiante. Temos de ser uns para os outros, comemorar, brindar ao bem que fazemos e nos fazem, ao sucesso e ao empreendedorismo e aos unicórnios e à luz que nos alumia nas horas adversas, quando nos falta, por exemplo, papel higiénico. Por mim, comemoremos o de Abril, o de Novembro, o de Dezembro, e de premeio venham daí as sopas dos pobres, os alojamentos locais, dezassete milhões para matar a fome com dezassete milhões de pólvora a derrear escolas e hospitais e teatros e outros castelos de areia. Sou solidário, comemoro, como, não calo, porque a mim ninguém me cala, eu grito a plenos pulmões: viva a democracia liberal que devolve pacientes por táxi e lhes cobra a conta, vivam a chaise-longue de Freud e as foices e os martelos recheados com doce de ovos, viva o amor com que nos fodemos uns aos outros, desculpem a linguagem, mas se é por bem, é por bem, viva o fado e o corridinho e as iluminações de Natal a preço de saldo e o cozido à portuguesa no centro de trabalho e a vida está difícil. Setecentos e cinquenta mil euros em luzinhas a piscar nas ruas da capital, em honra dos sem-abrigo disseminados pelos cantos onde dormem e defecam e comem. Que os seus olhos brilhem de comoção como os meus hoje brilham pelo vinte e cinco, o que me levará da Praça da Figueira aos Prazeres. Qual é a vossa, ó meus?

DOMESTICADORA DE GIRASSÓIS

 


Os 14 contos de Domesticadora de Girassóis, mais extensos do que é habitual neste autor, exploram universos fantasmagóricos com personagens que tentam equilibrar-se entre o real e o imaginário. O que há de anómalo e de paradoxal nas situações recriadas encontra na multiplicidade formal, que vai da ficção narrativa ao poético, da crónica ao drama, do relato autobiográfico à prosa ensaística e ao diário, vias de expressão para seres cuja existência está em permanente conflito com um mundo onde a separação entre caos e ordem perdeu qualquer sentido.

236 páginas
Maio de 2024
 

Venda directa – pedidos para: companhiadasilhas.lda@gmail.com
 
Também disponível 

na Snob: https://www.livrariasnob.pt/product/domesticadora-de-girassois ;





domingo, 24 de novembro de 2024

UM PAÍS QUE PULULA

 
Nos últimos dias li livros de Ana Freitas Reis, Inês Morão Dias, Maria Brás Ferreira e Susana Araújo. Cada qual com os seus defeitos e virtudes, são todos livros facilmente recomendáveis. De quatro autoras nascidas já depois do 25 de Abril de 1974. O país pula e avança.

UM MAL NUNCA VEM SÓ

 
Gouveia e Melo, Marques Mendes, Seguro, Passos Coelho... Um país transformado numa câmara de horrores. Para isto, prefiro o Tino das rãs.

DE MÁ CONDIÇÃO

 


Calhou assim, não foi propositado. Chegou-nos ontem, Dia Mundial da Árvore e da Poesia, este segundo volume da Colecção Insónia. O primeiro foi "A Dança das Feridas". Esperámos 13 anos por ele, eu, a Maria João Lopes Fernandes e o Pedro Serpa.
 
Tal como aconteceu no passado, também deste volume não farei apresentações públicas nem distribuição pelas livrarias. Trata-se de uma edição única, minha e da Maria João - autora das pinturas na capa e no interior, originais concebidos para este efeito -, que em nenhuma circunstância deverá ser objecto de qualquer reedição.
 
Quem tiver interesse num exemplar, poderá contactar-nos, a mim ou à Maria João, por Messenger (Facebook, Instagram) ou email. O meu email é fialho.henrique@gmail.com. O valor de capa, com portes incluídos, é 10€. São 78 poemas e 9 reproduções de pinturas da Maria João Lopes Fernandes. O design e a composição é do Pedro Serpa.
 
Em memória de minha mãe, Clarisse Maria Tavares Bento.
 
Saúde.

sábado, 23 de novembro de 2024

UM POEMA DE INÊS MORÃO DIAS

 


O difícil no poema
é o adjectivo
dizem uns
é o verbo
dizem outros
é a tentação de esvaziados
obscuros sangues toldarem
vícios de dizer
é a especificação desmedida de
obsessões irrisórias, fósforos
numerados
é o pudor do eu e do seu contrário
a apropriação da paisagem
é a decisão entre
impressionismo ou
engrenagem
ser pensante ou
comer uma sandes
as pontas dos dedos e um zumbido
ou o altifalante de uma
manifestação

o fácil é o mistério
dádiva superlativa

Inês Morão Dias, in Par de Olhos, Fresca, Poetria, Agosto de 2019, p. 45.

EQUÍVOCOS

 
Em conversa com Fernanda, a alfarrabista, fiquei a saber de um coleccionador que sofria muito por lhe faltar uma primeira edição de "Bichos". Ela lá soube de um exemplar em leilão e chegou-se à frente, para desespero dos herdeiros do comprador. Pagou 5 mil euros pelo volume. Morreu uma semana depois de ter o desejado livro nas mãos, porventura sem sequer o ter lido. Escutada a história, abri eu cordões à bolsa e arrematei umas odes de António Quadros também em primeira edição. Chegado a casa, apercebo-me de que aquele António Quadros não é o António Quadros. É António, é Quadros, mas é outro. A vida é assim, uma acumulação de equívocos.

sexta-feira, 22 de novembro de 2024

LOOP

 
Ligo a televisão e dou logo com uns facínoras a gabarem-se das armas que têm ao dispor para intimidar e destruir. São informações repetidas em loop, para que não restem dúvidas e o medo nos demova de respirar. É nesta alegria diária que estamos metidos, pelo que não vale a pena disfarçar a deformação, a degenerescência, os contornos aberrantes disso a que ainda se dá o nome de humanidade. A bondade é rara, não a desprezemos.

quinta-feira, 21 de novembro de 2024

COMÉDIA DE MÁRTIRES

 


Os mártires da liberdade...


...e a comédia dos enganos.

quarta-feira, 20 de novembro de 2024

ÉRAMOS JOVENS

 
"No nosso tempo é que era.", diz Cipriano.
"Éramos jovens.", diz Quitéria. 
"Agora é tudo uma tristeza.", continua Cipriano. 
"Agora os jovens não somos nós.", conclui Quitéria.

O NOSSO PRESENTE PÓS-HUMANO

 


Milhares de pessoas no Chiado para assistir ao momento em que se acenderam as luzes de Natal. 380 mil luzes vão iluminar o Natal onde não vai faltar animação para todos. Cinco maiores autarquias gastam mais de dois milhões com luzes de Natal. Árvore de 31 metros a imitar aparência de pinheiro natural é novidade...

ELES QUE SE MATEM

 
Eu quero que os senhores da guerra se fodam. Todos sem excepção. Povo: recusem, abandonem, abdiquem, rejeitem, impugnem, objectem, desobedeçam, desertem... Eles que se matem uns aos outros.

terça-feira, 19 de novembro de 2024

UM POEMA DE MARIA BRÁS FERREIRA

 


TRILHO E QUEDA

Uma mulher grávida passa nas ruas.
O ventre saído os pés na sombra de uma estrela cadente
imperceptível ainda.
O corpo inchado de suspeitas por
trucidar a extensão ao caminho rasurado
ao olhar dos vizinhos
a pele fecunda na memória de tuas mãos frias
atiçando-me fogo aos cabelos.

As mulheres grávidas passam sempre nas ruas
têm sempre tanto que fazer as mães grávidas.
Com elas desfaz-se o pó na via o conforto da espera
socorre o rosto protegido levanta o pó no ar.
As grávidas engolem o pó das vidas e passam nas vias
e são todas feitas de pó e trilho e queda
cadentes.

Somos sempre anteriores a nós e a luz dobra mal dobrada
a camisa para a mãe ter a atenção
delicada descosida a atenção física e insolúvel das mães.
Tudo de um certo modo incerto
pois as mães grávidas trazem a luz nos dedos
na cabeça a razão decorada
para logo a apagar um dia quando partem loucamente as mães
sem deixar escritas possíveis.
As mães partem um dia sempre inesperado
desordenado coxo magoado incompreensível.
E o nosso corpo cresce para os seus corpos de mãe escurecendo
o nosso corpo cresce para as ruas higienizadas que nos não cabem
na ausência da mãe tornada.

Na luz há contudo a precisão das mães
de serem sempre as mulheres grávidas a passar nas ruas
a falar de dentro cheias de afazeres despercebidos 
o queixo ponderado na azáfama difusa
a cor inerte dos frutos
na banca que a mãe concerta por trocar
a mão ao fruto que não queria afinal pegar.
Eles dão à falha o delírio pontuado da esperança
as mães trilho e queda
cadentes.

Depois é a beleza
as mães mesmo mães são elas a gravidez
das ruas de quando passaram certo dia
certamente as mães pacientes
quando foram mães e não sabiam e o pó levantou-se do chão
e os frutos inertes os mesmos de há séculos
refulgiram na banca nas mãos
semeadas, as mães.

Maria Brás Ferreira, in Rasura, Fresca, Poetria, Agosto de 2021, pp. 76-77.

NINGUÉM OS MANDA MORRER

 

2014: "A vida das pessoas não está melhor mas o país está muito melhor".

2024: “Há um país que pulula todos os dias, apesar dos problemas no INEM, que são graves e que nós estamos a resolver."

Luís Montenegro, in "Ninguém os Manda Morrer".

segunda-feira, 18 de novembro de 2024

50 X 11

 


“The Living Road”, Lhasa.
 
Lhasa (1972 – 2010) partiu demasiado cedo, com apenas 37 anos de vida. Criada entre o México e os EUA, amadurecida entre o Canadá e França, tinha música no sangue. Na árvore genealógica encontramos actrizes e actores, cantores, músicos, etc. Diz que na infância ouvia Victor Jara. O pai era mexicano. Não é de estranhar a natureza poliglota das suas canções, cantadas em espanhol, francês, inglês. Deixou-nos três álbuns: “La Llorona” (1997), “ The Living Road” (2003) e “Lhasa” (2009). E eu estou convencido de que os dois primeiros são obras-primas. É fácil comovermo-nos com esta música. Quando morreu, escrevi isto: «A voz de Lhasa é a respiração a cantar. Histórias de amor, sim, canções nocturnas, cantadas em cabarés, tabernas, nas ruas onde o povo dá voz à tradição. Tangos, blueswestern, valsa, folkvaudeville, bolero e porque não fado? Os sopros, as cordas e as percussões, a densidade dos arranjos, ruas desertas ladeadas por árvores gigantescas, uma mulher a dançar com a própria sombra, uma doçura, uma ternura imensa, a sensualidade desenhada a preto e branco com contornos que dispensam reflexões. Porque as reflexões levam-nos sempre aos locais de partida. É tão simples partir para apenas chegar. Ao mesmo tempo, é tão comovente.» Levava-a comigo para uma ilha deserta.

FRENTE DE BATALHA

 
Quitéria pergunta se não é possível enviar para a guerra, uma delas, seja qual for, o coronel Mendes Dias, o coronel José Henriques, o major-general Carlos Branco, o major-general Isidro Pereira, o major-general Raul Cunha, o major-general Arnaut Moreira, o major-general Agostinho Costa e demais batalhão de comentadores graduados das televisões nacionais? E se puderem levar com eles a inteligência artificial do Marques Mendes, do Paulo Portas, da Helena Ferro Gouveia, da Maria João Marques, entre outros mísseis de parco alcance, a gente agradece.

domingo, 17 de novembro de 2024

JOSEF, NORUEGUÊS, CIGANO

 

«Um dos livros mais bonitos que apareceram na Noruega nos últimos anos é sem dúvida o Livro das cabanas-abrigos (koie) termo que designa cabanas ou abrigos primitivos usados normalmente como sítio de pernoita temporária. Ainda hoje existem uma série delas que são propriedade pública e que podem ser usadas gratuitamente por turistas ou viandantes. Neste livro, uma edição luxuosa com belíssimas fotografias (da Gyldendal), o historiador-etnógrafo Thor Gotaas em parceria com M. N. Pettersen, traça a história das pequenas e rudimentares cabanas ao longo dos tempos; utilização que tiveram, e a sua localização geográfica. Como é hábito nos livros de Thor Gotaas, a propósito de um tópico ou assunto historiado, aparecem sempre histórias de indivíduos. É um dos encantos dos seus livros. A forma como resgata do esquecimento seres anónimos e já esquecidos reconstruindo-lhes a dignidade ao apresentá-los ao público.

É aqui que encontramos Josef e a sua história ao longo de 16 páginas. Quando a mãe de Josef morreu de parto, o rapaz, nascido em 1900, foi dado pelas organizações religiosas para adopção a uma família de acolhimento. Tinha sete anos. Cresceu, como qualquer adolescente, só que sob suspeição e vigilância das missões sempre suspeitosas das criançãs da sua etnia ("tinham no sangue" o nomadismo, a pouca vocação para o trabalho e a inquietude, quando não a propensão para a vigarice e criminalidade, segundo as crenças da época) e no final da adolescência já tinha sido marcado pela comunidade local como problemático. Quando não como delinquente. Jovem adulto, os seus crimes montavam já a ter roubado de uma barrica ou balde (em ajuntadilha com outro) uns arenques, ter escavacado um ancinho e ter feito um corte numa mochila. Tais delitos, mais o defeito de ser respondão e irreverente, foram suficientes para o enviar para a prisão no início dos anos vinte. E da prisão para o asilo, porque agora na prisão juntava-se ao anterior estigma dos zelotas religiosos a ciência dos zelotas da higiene racial. O diagnóstico médico dava-o como atrasado mental. E aí, no asilo, passou grande parte (segunda metade) da década de 1920, com tratos de animal irracional.

Libertado, voltou às imediações de Dokka, à paróquia de Østsinni, onde se tornou trabalhador florestal. Como era hábito na época, os trabalhadores viviam em pequenas cabanas provisórias, de reduzida dimensão, aquando dos cortes de madeira. Josef, não tendo a quem voltar e suspeitoso da sociedade (com boas razões, já que a sua etnia foi perseguida, as crianças retiradas aos pais, os adultos enviados para campos de trabalho, acabando a última humilhação na proibição de ter cavalos - quando ao longo de séculos tinham sido os melhores fornecedores de cuidados veterinários, a ponto de o exército não passar sem eles especialmente nos séculos XVII e XVIII) foi ficando. E encontrou nos pequenos abrigos a sua casa. Passou a viver isolado, de cabana em cabana, em espaços diminutos 10, 15 metros quadrados (coisa que pode ter as suas conveniências quando no inverno os termómetros passam dos 20 negativos) numa vida espartana, a partir de dado momento subsistindo de caça e pesca, visitado apenas por amigos fiéis de forma esporádica.

O que é curioso na história de um homem com este tipo de vida e neste tipo de isolamento em que passou a viver durante as décadas de 30, 40 e 50, é que Thor Gotaas o descreve, intitulando até com essa característica um sub-capítulo, como leitor voraz = cavalo de leitura = lesehest. Lia de tudo o que apanhava. Jornais, poesia, romances, monografias sobre natureza. Os seus autores preferidos, Hans Børli, o poeta norueguês que melhor cantou as florestas e Mikkjel Fønhus* romancista que tinha na natureza selvagem e nos cenários das florestas os seus temas favoritos. Viveu anónimo, mas imagino que os seus autores favoritos não teriam desdenhado saber que tinham um leitor assim (…). Olhando a história de Josef no livro de Gotaas, ilustrado pelas belíssimas fotografias que lhe tirou Arne Rignes, o título do subcapítulo (lesehest - cavalo de leitura) e os testemunhos de amigos fiéis que o descreveram como homem inteligente e sensível, dou comigo a pensar que os leitores ideais destas páginas teriam sido os zelotas da religião e da higiene racial que o classificaram de atrasado mental e que o privaram de liberdade durante quase uma década. Já é tarde. Mas servem de exemplo a outros. E aqui fica.»


Vítor Rodrigues (no Facebook)

sábado, 16 de novembro de 2024

50 X 10

 


“Alice”, Bernardo Sassetti.
 
O jazz português anda nas primeiras páginas pelas piores razões. Ou talvez não. É bom falar-se nestas coisas, não deixar a podridão no silêncio amargurado das vítimas. Quem esteja familiarizado com a história do jazz sabe que não é mundo para meninos. Prostituição, tráfico de droga, toxicodependência, violência, máfia, abusos, violações, prisões, crimes vários compõem o ramalhete. Os tempos são outros, dizem. É verdade, mas os vícios humanos são os mesmos. Que venham à tona as trafulhices, os assédios, as injustiças, a invídia, a lascívia e a luxúria e demais pecados mortais, é bem de que não podemos prescindir. Eu gosto de jazz. Do passado e do presente. A música é superior aos homens que a compõem, ainda que, por vezes, entre ambos haja uma espécie de confusão. Não conheci Bernardo Sassetti, não sei se era boa ou má pessoa. Desconfio que, como todas as pessoas, teria os seus vícios e as suas virtudes. E é nestas que a música repercute. Habituei-me a gostar de jazz português a ouvi-lo, a ele e ao Carlos Barreto, ao Alexandre Frazão (excelente trio), ao Mário Delgado, ao Bica, entre outros. Aí fica em primeiro plano “Alice”, banda sonora exemplar para o comovente filme de Marco Martins. Curiosamente, o protagonista do filme também foi há tempos acusado de violação. Não sei como ficou essa história, sei que vivemos num mundo sórdido e a música não tem culpa nenhuma disso. O cinema também não.

TORPE

 
Dizia ontem cá em casa o que agora partilho aqui. Este ano, a disposição natalícia está em níveis negativos como nunca antes esteve. O único Natal que se me apresenta admissível é na rua, enrolado numa bandeira da Palestina. Como celebrar o Natal com um genocídio a acontecer em directo? Como passar indiferente a tudo isto? É pior do que pornográfico, é obsceno ao mais alto nível. Centenas de milhares de euros em luzes e árvores e enfeites, com todo um povo ali ao lado a sobreviver entre escombros, condenado à morte por exércitos comandados por facínoras em quem ninguém tem mão. Torpe, tudo isto é torpe. Como ter ainda alguma esperança na humanidade?

sexta-feira, 15 de novembro de 2024

50 X 9

 



"Bob Dylan", Bob Dylan.

Os primeiros acordes que arranhei na guitarra foi a tentar tocar “Blowin’ in The Wind”, “The Times They Are A-Changin”, “Knockin’ on Heaven’s Door”. “All Along the Watchtower”, entre outras do Nobel da Literatura Bob Dylan. A sinusite e a rinite ajudavam à imitação do registo nasalado de Dylan, que, na verdade, não é tão nasalado quanto se pinta. Tem dias. Vi-o duas vezes ao vivo. A primeira foi para esquecer, valeu pela primeira parte de Laurie Anderson. Mas a segunda, mais recente, teve qualquer coisa de religioso. São canções que me têm acompanhado a vida inteira, pelo menos desde que me lembro de ter vida. A minha versão preferida de “House of The Rising’ Sun” continua a ser a do álbum de estreia, um conjunto de canções que dá bem conta da força da folk norte-americana. O blues, a country, a canção de protesto à la Woody Guthrie, mas também o gospel, são uma escola imprescindível que Dylan acolheu, transformou, promoveu, por vezes em contextos bastante adversos e polémicos. Não é consensual e ainda bem, detesto consensos. Eu sou fã incondicional, mesmo percebendo que aqui e acolá o oportunismo falou mais alto e traiu valores essenciais. Ainda assim, quem me tira “Like a Rolling Stone” tira-me parte da vida.

quinta-feira, 14 de novembro de 2024

UM POEMA DE ANA FREITAS REIS

 


ÓRFÃO

Não tenhas filhos, meu amor.
Essa coisa da família
foi uma antiga construção
para não matarmos.
A face sem pão,
achamos que somos, à luz da culpa,
melhores que as mães.
A civilização é o esgoto.

Ana Freitas Reis, in Guarda Nocturno, Fresca, Poetria, Dezembro de 2022, p. 30.

NOTÍCIAS FALSAS

 

Esta foi a notícia que nos deram:

Pentágono "não exclui" extraterrestres, Casa Branca diz que "não há sinal de aliens".

Esta é a notícia verdadeira:

Pentágono "não exclui" extraterrestres, Casa Branca "está cheia de aliens".

quarta-feira, 13 de novembro de 2024

BENEFÍCIOS DA PRIVATIZAÇÃO

 
Os CTT são uma dor de alma. Fui enviar livros para o Brasil, leitores do weblog que ainda vão encomendando. Todo um curso para enviar um envelope. Dantes, ia-se ao balcão e a coisa seguia. Agora, antes de chegar ao balcão temos de ir ao "site" e preencher uma série de "burrocracias" que dão direito a um código de barras mágico. Só com o código a encomenda pode seguir para correio extracomunitário. Perguntei como faziam com pessoas "desnéticas", gente com família espalhada pelo mundo. Cobram uma taxa. 4 euros e tal. Se isto não é uma roubalheira pegada, o que é?

VIVA O CAPITALISMO

 


O multimilionário fundador da marca de veículos eléctricos Tesla, da Space X e dono do Twitter gastou mais de 119 milhões de dólares na eleição de Trump. Negócios da democracia à americana.

terça-feira, 12 de novembro de 2024

50 X 8

 



“Ágætis byrjun”, Sigur Rós.

Comecei a ouvir os islandeses Sigur Rós em 1999, seduzido pelo belíssimo teledisco de “Svefn-g-englar”. Nunca mais os larguei. Dos oito álbuns da banda, faltam-me dois: o primeiro, “Von” (1997), e o último, “Átta” (2023). Vi-os, salvo erro, duas vezes ao vivo, uma em Lisboa, outra no Porto. Guardo o bilhete da ida ao Porto, em vésperas de fazer anos, por haver nele uma carga emocional que tem que ver com a boa companhia de um amigo entretanto ausentado. Foi uma bela noite, esse 19 de Novembro de 2005, ao som dos temas de “Ágætis byrjun” (1999) e “Takk...” (2005). Já lá vão quase 20 anos. Os Sigur Rós são a prova de que a língua não é barreira à percepção do lirismo contido na música. Mesmo que percebesse islandês, parte das canções são interpretadas num dialecto inventado que só eles sabem, feito de murmúrios, sílabas arrastadas, sussurros, um cantar etéreo que já conhecia e apreciava na obra de Wim Mertens. Regresso amiúde à música destes islandeses. Oferecem-me paisagens reconfortantes, fazem-me acreditar que a humanidade pode ser mais do que a vesânia dos líderes mundiais e a indolência extrema de meio mundo subserviente aos ditames desses possessos no poder.

segunda-feira, 11 de novembro de 2024

UM POEMA DE LUÍS CHACHO

 


MANIPULADORES

Portanto o texto, quero dizer,
é o que interessa.

Obra, a cilada prática da expressão
que atira a pergunta ao ar e foge depressa de ali recusando uma e só
resposta sintetizada. Sublinho a falta de motivo, o mais das vezes
a generalização do artista, obrigatoriamente atado
à moral da história e a políticas que
nunca interessam.

Na mão, a prazo, estes ventos indomáveis
zerando os símbolos para além das formas. Avançamos às
arrecuas, completamente sós, guiados pela menina
dos olhos. Os acidentes em si,
não causam mossa.

Já a habilidade de nos desviarmos
do ponteiro afiado dos relógios que nos acertam
em cheiro, é outra conversa. A arte, sabemos, vem sempre atrasada,
livre, desumana. Criando factos, nunca estamos verdadeiramente
sós. Mais mentirosos, sim, e com todos os dentes.

Não consigo ver um programa do princípio ao fim,
pois adormeço a meio. No país da vocação,
descobrimos, amiúde, a tendência para o conflito insosso ou
inconsequente. Com muita pontaria, os anéis caem no prego.
Vamos, a este respeito, acrescentar coisa nenhuma.

Vai à vida, paixão. Esta herança por contacto, sem camisa, hábito
contrário à norma vigente, eu ainda aceito. Marca um dia, vê lá,
para nos zangarmos a sério, acerca das partilhas desse cadáver simpático.
Sou todo ouvidos.

O que me diz respeito, um rato de laboratório, deu
positivo. Empanturremo-nos de retrovirais,
bebamos para os pés. Experimentemos a escuridão
à luz do dia, que à noitinha dá-se-nos a queda para o catre
a rilhar os dentes sobre o travesseiro. Não perco uma, 
às voltas sobre os elementos plásticos do preconceito.

Sabemos ser, encharcados em memento, funcionários.

Complicaram-se, as formas
sulcadas numa estância de areia. Os altos e baixos, 
de um falso problema. Vamos dentro, dar à forma sensível,
à família de sangue cruzado. Preto no branco,
declaramos nadas. É isto, uma família
que encerramos em quatro linhas de folha caduca.

A obra uma abstracção, como tudo na vida. Só por hoje,
música concreta, preguiçosamente melancólica.

Chibamo-nos, sem querer,
das fontes que nos alimentam.Passamos fome de
cão, dias seguidos da falta de inspiração,
ó mestre das obras feitas. Encontrei-a ainda há pouco vestida
de cicatrizes, e não é o que mais assusta.

É irrisório recordar que este discurso, sufocado por vazio
de mão cheia, frente ao mar de nada serve. Em vez
dos estados de sítio, alimentamos a melhor porcelana
com a lágrima lendária. No instinto, se deposita
toda a filosofia.

Não gosto de trabalhar,
nada me interessa mais do que a negação diária
dessa tradição de químicos. Batemos no ceguinho,
se preciso for. Espalhamos, por todo o lado,
os correspondentes do silêncio.

Quero imaginar-te como autêntico,
e é difícil. A obra, só por hoje, é a campanha absurda
contra o trânsito dos populistas. Ainda assim
do seu interesse, parece-me. Um abandono sobre o acaso,
a forma natural da vigília,
de olhos vendados.

Nunca nos foge o pé para a dança, com a verdade. Sentimos, à pele,
a deformação excessiva do esgar do palhaço e as mesmas dificuldades.

Nada disto é um perigo a sério às escolas. Ao fim e ao
cabo, só desta maneira. Em que nome falas?

Luís Chacho, in Alto dos Bonecos, Companhia das Ilhas, Março de 2024, pp. 88-90.

FRANK AUERBACH (1931-2024)

 


Frank Auerbach (1931 - 2024). Enviado pelos pais da Alemanha para a Grã-Bretanha, tornou-se conhecido no final da década de 1950 pela técnica de empastamento, sobrepondo imensas camadas de tinta. Alguns quadros são tão espessos que parecem esculturas. Os pais morreram num campo de concentração nazi.