Pela manhã, à porta do local onde
trabalho, à minha espera, sempre está o mesmo gato listado, de um olho só.
Mesmo quando chego muito cedo, o gato cinzento ali está especado apenas num
olho, com ares de burguês abandonado, a quem só falta o monóculo. Fita-me como
quem diz “eu estou-te a ver” ou parece dizer “eu quero que me vejas”.
Chego aí pelas oito horas, o gato
mia, como quem diz, “bom dia!”. O que é certo, é que a manhã fica mais quente.
Por fim, chego ao trabalho onde mia o tal gato afoito, burocrata, conhecedor dos
meandros e das rotinas. Nunca chega tarde e não faz mais nada, ali está sentado,
parece dizer, “eu te saúdo, tu que vais trabalhar” ou “eu te vigio, pobre
escravo”.
Durante o dia, ali fica o bicho com
seu olho único, esquálido, de unhas de fome, fazendo contas silenciosas, de uma matemática ágil e imperturbável. Cofia o bigode e podia distender a cauda
inúmeras vezes durante o dia, como quem deixa subentendido, não haver qualquer
preocupação relevante.
Posso afirmar que era um gato elegante,
para além da distinção que todos os gatos parecem transportar. Era displicente
ou mais precisamente era na aparência displicente, pois apanhei-o fortuitamente
encenando poses.
Lançava-me da sua altivez
olhares de compaixão, perante a minha a minha humana fadiga, à tarde depois do
trabalho, ia-me embora, nas minhas costas sentia o seu olho de gato cravado e
seu o rabo acenava um “adeus” relaxado, parecendo dizer, “por hoje, cumpriste o
teu dever”.
Um destes dias, quando cheguei ao
trabalho fiquei perdido. O gato não apareceu, faltava ali aquele vulto, aquele
aristocrático bom dia. Uma tristeza invadiu-me todo o dia. É verdade que há algumas
coisas que só damos valor, quando lhe sentimos a falta.
No entanto nunca lhe tinha
dirigido palavra, após vinte anos de casa tinham despedido “o gato”, não tinha
grande margem de progressão e era imperativo que se cortassem nas “gorduras”.
Agora o olho único de uma câmara
de vídeo vigilância e a sua discrição eficiente era mais do que suficiente e a
sua simpatia automática do “sorria, está a ser filmado”, reservava-nos a
eternidade virtual.