Showing posts sorted by relevance for query esta � para o CN. Sort by date Show all posts
Showing posts sorted by relevance for query esta � para o CN. Sort by date Show all posts

Sunday, January 01, 2006

Re: Anarquismo de esquerda e os bens infinitos versus bens finitos(I)

Ao contrário do que eu esperava, alguém ligou ao meu post sobre o arame farpado - o CN da Causa Liberal respondeu com o post "Anarquismo de esquerda e os bens infinitos versus bens finitos":

"O capitalismo nao tem problema algum com a propriedade colectiva. As empresas, associaçoes, condomínios, os grandes centros comerciais, constituem comunidades de diferentes entidades (clientes, fornecedores, accionistas, proprietários, lojistas, etc) que partilham propriedade."

"No anarquismo de esquerda, refere-se com frequência a partilha de um bem (o campo) a ser utilizado por vários (os criadores)."

"Um bem, quando se encontra numa "oferta" tal que nas condiçoes do momento pode ser considerado "infinito" (aliás esta é no limite a único definiçao válida de "bem público" mas isso é outra discussao, aliás intra-liberal) nao carece de definiçao de direitos de propriedade. Aliás, ninguém tem incentivo para o reivindicar."

(...)

"Assim, o anarquismo de esquerda "vive" de:"

"1. Dar exemplos que sao possiveis se todos estiverem de acordo e nenhuma das partes reivindicar o seu direito ao "primeiro uso/primeira posse" o que é perfeitamente possivel, mas necessáriamente sempre numa comunidade pequena e homogénea, e num espaço geográfico a que terá de chamar no seu todo, a "sua" propriedade (para que terceiros nao a disputem ou ponham em causa o seu entendimento "alternativo"). Um Paradoxo portanto."

"(Em boa verdade, esse entendimento tem de transformar-se numa associaçao ou outra forma de propriedade colectiva que reivindique essa posse, porque se nao o fizer, podem terceiros fazê-lo.)"

"2. Dar exemplos usando como falácia uma situaçao concreta de um bem infinito: o "campo" de inicio abundante. Ou seja, é verdade que esses arranjos existem e existiram, mas apenas duram enquanto existir esse abundância relativa."

Em primeiro lugar, eu não me considero um "anarquista": eu gosto de muitas coisas no anarquismo, mas também de algumas coisas no "comunismo de conselhos", no trotskismo, no georgismo, na social-democracia clássica, etc. (no outro lado da fronteira esquerda-direita, também gosto de alguma coisa no distributismo). Mas, como dessas ideologias todas, a que eu gosto mais é capaz de ser o anarquismo (socialista), esta nota é capaz de ser picuinhice minha.

Em segundo lugar, uma empresa ou um centro comercial não são necessariamente "propriedade colectiva" - a empresa ou o centro comercial pode ter só um dono.

Agora, o mais importante: será que o anarquismo de esquerda "vive de exemplos" que só são possíveis se "todos as partes estiverem de acordo e nenhum reivindicar o seu direito de propriedade" ou se "o bem existente for infinito (situação em que ninguém tem incentivo para reclamar a propriedade)"?

Já agora, noto que, mesmo que os bens sejam infinitos (ou quase), pode haver incentivos para alguém reclamar a sua propriedade: mesmo que, numa pastagem ou numa praia, o número de utilizadores não seja suficientemente alto para se incomodarem uns aos outros, se alguém se proclamar dono da pastagem ou da praia pode usar esse título para cobrar alguma coisa aos outros utilizadores. Um exemplo extremo é a "propriedade intelectual" - trata-se de um "bem infinito", mas o que mais há por aí são individuos e empresas a "reclamarem direitos de propriedade" intelectual.

Quanto à questão do anarquismo de esquerda dar exemplos que só se aplicam a bens infinitos, basta ler, p.ex., a "Conquista do Pão", de Kropotkine, para encontrar exemplos para os dois tipos de bens:

"Vejam uma comuna de camponeses, seja onde for, mesmo na França, onde os jacobinos, todavia, tudo têm feito para acabar com os usos comunais. Se a comuna possui, por exemplo, uma mata, enquanto a lenha miúda não faltar todos têm o direito de a quimar à vontade, sem outra fiscalização que não seja a opinião pública dos seus vizinhos. Quanto à lenha grossa ou madeira, como toda é pouca, proceder-se-á ao racionamento"

"Sucede o mesmo com os prados comunais. Enquanto há bastante para a comuna, ninguém verifica o que as vacas de cada casal comeram, nem o número de vacas que cada qual tem nos prados. Só se recorre à partilha, isto é, à ração proporcional, quando os prados são insuficientes. em tuda a Suiça, e em muitas comunas da França ou da Alemanha - como de resto onde que haja prados, pratica-se este sistema"

(...)

"Numa palavra. Uso livre do que se possui em abundância! Racionamento do que tem que ser medido e feito em quinhões!"

Parece-me que Kropotkine claramente reconhece que há bens finitos e infinitos, e diz que têm que ser tratados de maneira diferente: uso livre para os infinitos, racionamento para os finitos . E, no Anarchist FAQ, há uma secção dedicada à a questão de como resolver conflitos acerca de que uso dar aos bens (o que implica reconhecer a sua escassez).

A respeito do ponto dos tais sistemas comunitários de propriedade só serem possíveis se todos estiverem de acordo, não percebo bem se o argumento do CN é "normativo" ou "positivo". Penso que é "normativo", ou seja, acho que o CN está a dizer que é "imoral" haver um sistema de propriedade colectiva que não se baseie no consentimento unánime de todos os membros da comunidade. Porque, se fôr "positivo", é fácil ver que um sistema de propriedade colectiva pode funcionar, mesmo que algum membro do "colectivo" preferisse ser proprietário privado (e nem é necessário usar nenhuma violência contra alguém que se proclame "proprietário privado" - é só, pura e simplesmente, ignorar essa proclamação).

Friday, June 08, 2012

Re: Re: (...) Desemprego

Esta resposta de Priscila Rêgo a este post do CN fez-me lembrar este meu texto para o Le Monde Diplomatique, nomeadamente esta passagem:

Mas o que permite que empresas falidas se tornem viáveis quando geridas pelos próprios trabalhadores? No fim de contas, a mudança de um gestor não muda as «leis» da economia, ainda mais quando o contexto social global se manteve. Logo, poderia argumentar-se que uma empresa que era inviável com uma gestão continuaria a ser inviável com outra. Algumas explicações são possíveis para o sucesso dessas empresas.

 Suponho, em primeiro lugar, que numa empresa controlada pelos próprios trabalhadores estes estão dispostos a fazer sacrifícios temporários que dificilmente estariam dispostos a fazer para um patrão. Por exemplo, quando passam reportagens na televisão sobre empresas (definitiva ou temporariamente) ocupadas pelos seus trabalhadores (até em Portugal se vêem de vez em quando casos desses), é frequente vermos os tais trabalhadores trabalhando turnos seguidos, muito mais que as horas legais ou contratuais, e passando meses sem receber ordenado até viabilizarem a empresa. No caso argentino, durante essa fase das ocupações, muita gente dependeu dos contributos de vizinhos e associações cívicas. Esse comportamento é perfeitamente lógico e racional – numa empresa capitalista, os trabalhadores têm muito menos razão para fazer sacrifícios presentes pelo futuro da empresa; feitas as contas, que garantia têm de que quem vai auferir desses benefícios futuros serão eles e não apenas o patrão?
Lendo os motivos que PR dá para ser preferível a uma empresa despedir trabalhadores do que cortar salários, dá-me a ideia que alguns deles efectivamente são específicos da empresa organizada na relação patrão-empregado:
a) Baixar salários pode ter um custo motivacional. Se isto for verdade, é melhor tentar poupar 1000€ com um despedimento do que uma redução salarial across-the-board que permita a mesma poupança. Assim, mantém-se o nível motivacional dos que trabalham e concentra-se o desconforto nos elementos que já não contam para o processo produtivo (os desempregados).  
Imaginemos que, em vez de ser um gestor a decidir "despeço 10% dos trabalhadores ou corto os salários em 10%?", era um plenário de trabalhadores a tomar essa decisão - "mandamos 10% de nós para a rua ou reduzimos o nosso salário em 10%?".  Suspeito que aí o factor "desmotivação" não iria funcionar da mesma maneira - concordo que um trabalhador que manteve o emprego sem ter uma redução de ordenado se sentirá mais motivado para trabalhar do que um que manteve o emprego mas teve que aceitar uma redução de ordenado; mas, se for um grupo de pessoas a quem seja dada a escolha "continuamos todos mas ganhando menos ou corremos com uns quantos mas os que ficam continuam a ganhar o mesmo?", suspeito que, se optarem pela primeira opção, não se sentirão depois menos motivados para trabalhar do que se tivessem optando pela segunda. E, mais importante ainda, cada trabalhador individual, no momento de votar "redução de vencimento ou despedimentos?" provavelmente não irá pensar "É melhor votar na opção «despedimentos», porque se ganhar a opção «redução de vencimento» os meus colegas podem se desmotivar e ficar menos produtivos", já que sabe que, se a opção «redução de vencimento» ganhar é porque a maioria preferiu assim, logo não irá esperar que os outros trabalhadores se sintam desmotivados por ter ganho a opção que eles próprios preferiram.

E, claro, há a diferença que, neste caso, a desmotivação dos que iriam ser despedidos conta, já que esses também participam na votação; aliás, se, no momento da votação, não se souber quais os trabalhadores que iriam ser despedidos se fosse essa a opção, é expectável (assumindo que as pessoas são avessas ao risco) que cada trabalhador prefira ter 100% de hipóteses de ter uma redução de 10% no ordenado, do que ter 10% de hipóteses de ter uma redução de 100%.
c) A negociação salarial não é feita em leilão. No curto prazo, os salários resultam de 'bluffs' ["tenho uma proposta da concorrência, quer cobrir?"], jogos de aparências e golpes de sorte. Devido a esta assimetria informacional, um gestor pode ter receio de que um apelo à redução de salários seja lido não como uma forma de manter postos de trabalho mas como um desejo de alterar a divisão de lucros entre o trabalho e o capital.
No caso de uma empresa controlada por um colectivo de trabalhadores, também este problema é menos provável - se alguém propor "vamos reduzir todos o nosso rendimento em 10% para tentar salvar a fábrica" há menos razão para os outros suporem que ele se quer é "encher", já que em principio o rendimento de quem faz a proposta também vai baixar; e mesmo que a proposta venha de elementos com funções de gestão, desperta menos suspeição do que numa empresa "capitalista" - afinal, mesmo que essa redução de vencimentos sirva para a empresa ter mais lucros, esses lucros adicionais irão para o capital da empresa, logo continuarão sob o controlo dos trabalhadores (só haverá razão para os trabalhadores suspeitarem de propostas de redução dos ordenados se suspeitarem que os gestores estão a desviar património da empresa para as suas contas pessoais).

Confesso que não faço ideia se cooperativas, empresas ocupadas, etc. são mais (ou menos) dadas a baixar formalmente os seus salários do que as empresas tradicionais; mas a experiência (referida no artigo do LMD; já agora, ver o comentário do Luis Pedro a este meu post de 2006) parece indicar que são mais dadas a fazer coisas (alargar jornadas de trabalho; passar meses sem receber, etc.) que na prática funcionam como redução reais dos salários.

Suspeito é que, mesmo que a tese "as cooperativas de trabalhadores/empresas em autogestão conseguem mais facilmente manter postos de trabalho durante as recessões porque podem mais facilmente baixar os salários efectivos" seja verdadeira, não deve haver muita gente (seja em que secção for do espectro político) a se entusiasmar com ela...

Tuesday, June 01, 2010

Ainda a "ética argumentativa"

[Respondendo ao Rui Botelho Rodrigues e ao Carlos Novais]

"Primeiro, esse computador, não sendo seu, é certamente de alguém. Esse alguém certamente lhe cedeu (de uma forma ou outra) o seu uso, e logo – tal como uma pessoa que arrenda uma casa – o Miguel tem controlo exclusivo sobre o recurso no decorrer da argumentação. Mas mais importante: não será seu o corpo que usa para argumentar? Não será necessário que o Miguel tenha controlo sobre o próprio corpo para produzir um argumento?."

"Defender esta norma por argumentação exige que quem argumenta exerça controlo total, não-momentâneo, sobre o seu corpo, já que a sua existência depende da não-apropriação por parte de outros do corpo que argumenta quando não está a argumentar" (RBR)
 Mas mantém-se que Argumentar com o seu próprio corpo implica controlo absoluto sobre o seu corpo senão não existe Argumento (CN)
Não necessito de ter controlo total e/ou permanente do meu corpo para poder argumentar (e repito que o próprio facto de nós estarmos aqui a argumentar prova isso).
Primeiro, esse computador, não sendo seu, é certamente de alguém. Esse alguém certamente lhe cedeu (de uma forma ou outra) o seu uso, e logo – tal como uma pessoa que arrenda uma casa – o Miguel tem controlo exclusivo sobre o recurso no decorrer da argumentação.
Mas não tenho poder absoluto e permanente sobre esse computador (tal como um escravo cujo dono lhe diga "Desde que cumpras a tua quota de produção e não te danifiques, podes fazer o que quiseres nas tuas horas vagas" não tem controlo absoluto sob o seu corpo).
Esse é o que chamo argumento da constatação da força. Por esse argumento poderíamos dizer que os escravos não tinham direitos naturais porque se constata que já existiam proprietários e não têm a força ou capacidade para o contrariar. (CN)
Bem, se o argumento contra a escravatura fosse "a escravatura vai contra a lei natural porque alguém não consegue fazer determinada coisa se for escravo", o facto que, no mundo real, os escravos podem fazer isso deitaria abaixo o argumento.

O que eu me parece é que na "ética argumentativa" há uma certa confusão entre os conceitos de propriedade e de posse.

Se o argumento é que para argumentar eu preciso de deter a posse, isto é, o controlo físico, do meu corpo, isso é verdade, mas não é lá muito relevante: afinal, penso que nenhuma ideologia à face da terra pretende abolir o conceito de posse (imagino que até na Coreia do Norte as pessoas tenham as "suas" casas, os "seus" instrumentos de trabalhos, etc., mesmo que não sejam os seus proprietários).

Mas se o argumento for de que para argumentar é necessário ter a propriedade do próprio corpo (isto é, o direito absoluto, permanente, irrevogável e eventualmente transferível de decidir o que fazer - ou o que não fazer - com esse corpo), penso que a simples observação do mundo real demonstra que isso não é necessário para a argumentação.

A menos que enfraqueçamos um pouco a definição de "propriedade", no sentido de considerarmos qualquer direito especifico de um individuo sobre um dado bem como uma forma de "propriedade" (p.ex., um inquilino - privado ou de um bairro social - terá uma espécie de propriedade sobre a "sua" casa), mesmo que limitada ou transitória; mas, se for assim, então qualquer sistema socio-económico respeita a "propriedade" (de novo, imagino que na Coreia do Norte as pessoas tenham a "sua" casa, ou pelo menos o "seu" quarto), logo isso deixa de servir como um argumento a favor do anarco-capitalismo (já que, de acordo com essa definição alargada de propriedade, quase todas as sociedades existentes reconhecem a propriedade, com maiores ou menores limitações).

Pondo a coisa de outra maneira  - a tese que "Para poder argumentar eu preciso de ter a [X] do meu corpo, e o respeito pela [X] implica o anarco-capitalismo como o sistema mais de acordo com o direito natural" só faz sentido se o significado de "X" mudar a meio da frase (uma variante do que alguém - suponho que um ancap - chamou a "falácia da sandes de fiambre") - se "X" significar algo como "controlo absoluto e permanente", a primeira parte é falsa; se "X" significar apenas "algum controlo, mesmo que temporário e/ou sujeito a limites por um poder superior, incluindo a revogação", então a segunda parte será falsa.

Sunday, June 22, 2008

Liberais e aquecimento global (II)

André Azevedo Alves escreve "admitindo que há mesmo aquecimento global, o que se deve fazer? Provavelmente muito pouco (ou nada) do que defendem os eco-alarmistas".

Bem, isso pergunto eu, se existir mesmo aquecimento global "antropogénico", o que é que os liberais (insurgentes*, blasfemos, o Carlos Novais, etc.) acham (i.e., o que é que cada um acha) que se deve fazer a esse respeito?

Em principio, nenhum irá responder algo como "talvez nada, já que os custos de combater o aquecimento global podem ultrapassar os custos do aquecimento global", já que essa resposta é do mais colectivista que há: no fundo, seria dizerem que não há mal em violar alguns direitos de propriedade (creio que uma mudança climática provocada pelo aquecimento global pode ser considerada uma "invasão" das propriedades que sejam afectadas por isso), se tal contribuir para o bem geral.

Ou melhor, a resposta do "talvez nada" poderá fazer sentido se acompanhada por "indemnizações por perdas e danos" a quem seja afectado pelo aquecimento global, mas, nesse caso, qual é que acham que devia ser o valor da indemnização? O valor do prejuízo? O dobro do valor do prejuízo? Eu levanto a questão do dobro porque, sobretudo entre os anarco-capitalistas, é muitas vezes defendida a ideia dos roubos serem punidos restituindo o dobro do valor; ora, se se considera justo que a vítima de um roubo receba o dobro do valor roubado, penso que será também justo que a vitima de um dano patrimonial receba o dobro do valor do dano.

Uma nota a respeito do cap-and-trade: o CN citou Rothbard no que me parece uma critica ao cap-and-trade; mas será que, se realmente existir aquecimento global antropogenico, o cap-and-trade até não seria das soluções mais "rothbardianas" (independentemente do que Rothbard himself achasse)?

Porque digo isto - se realmente existir aquecimento global motivado pelas emissões antropogenicas de CO2, isso quer dizer que a atmosfera passou a ser um recurso escasso, logo, para os anarco-capitalistas, seria a altura de estabelecer direitos de propriedade sobre ela; e, pelo principio do homesteading, a maneira de estabelecer direitos de propriedade seria "quem emitiu 1 tonelada/ano de CO2 tem direito a emitir 1 tonelada/ano; quem emitiu meia tonelada/ano tem direito a emitir meia tonelada/ano; etc"; logo, o resultado seria algo muito parecido com o cap-and-trade combinada com a "clausula do avô" (isto é, atribuir os direitos de poluição de acordo com o histórico de poluição) - a única diferença é que, em vez de ser um cap-and-trade para reduzir emissões, seria um cap-and-trade para não aumentar emissões. Noto que eu sou totalmente contra uma distribuição de direitos de emissão dessa maneira (estou apenas dizendo que me parece um dos sistemas mais em acordo com os pressupostos que os rothbardianos costumam defender).

Mas, deixando de lado esta divagação, regresso à minha pergunta: o que é que os liberais acham que deve ser feito acerco do aquecimento global, caso este exista?

E, já agora, uma questão para o "agitador" e para o Tárique: como seria combatido o aquecimento global no socialismo anarquista? Imaginemos que uma federação voluntária de comunas livres e autogeridas decidia estabelecer uma espécie de "protocolo de Kyoto" e atribuir a cada comuna uma dada quota de emissões de CO2; mas, suponhamos que uma dessas comunas recusava-se a aceitar essa quota, abandonava a federação (afinal, é uma federação voluntária de comunas livres e autogeridas) e punha-se a poluir muito mais do que as outras haviam combinado; o que fazer num caso destes?

*Nota: o AAAlves já escreveu algo sobre isso; vou ler e amanhõ ou depois talvez escreva qualquer coisa

Thursday, February 21, 2008

Aquisição de propriedade sobre bens em "estado de natureza"


Neste seu post, Carlos Novais levanta algumas questões/temas para discussão, nomeadamente esta "como adquirir propriedade honestamente que está no estado da natureza (pela ocupação e uso? ou pela permissão/concessão de terceiros?)".

Eu há tempos que pensava em escrever algo sobre uma das vertentes dessa questão - há umas semanas estive a tentar fotografar os corvos-marinhos (pelo menos, acho que são corvos-marinhos) das margens do Arade; será que num sistema liberal "extremo" isso seria possível? E num sistema anarquista tradicional (i.e., "de esquerda")?

A questão é a seguinte - a visão tradicional dos liberais sobre a aquisição de bens que não são de ninguém é "a propriedade adquire-se misturando o seu trabalho com esses bens em estado de natureza" (mas refira-se que o CN fala apenas em "ocupação e uso", não em "misturar trabalho").

Ora, se usarmos o critério do "misturar trabalho", como ficam as pessoas que gostam da natureza em estado selvagem?

Imagine-se que eu gosto de passear nas margens de um rio a fotografar as aves e outra pessoa quer construir lá uma urbanização. Vamos supor que o rio não tem dono. Em principio, penso que fotografar aves não conta como "misturar trabalho", logo eu não podia reclamar a propriedade sobre o rio ou as margens, logo não podia impedir o outro de construir lá a urbanização. Já ele, ao construir a urbanização, estaria a misturar o seu trabalho, logo poderia reclamar a propriedade das margens do rio.

Outro exemplo: na minha infância, eu adorava, na maré vazia, ir brincar nas poças de agua que se formavam nas rochas na Praia da Rocha (nomeadamente, ir apanhar camarões). Para aí há um quarto de século, foi despejada uma enorme carga de areia para aumentar a praia e a zona das poças foi subterrada.

Ora (assumindo que, previamente, a praia não teria dono), como seria resolvido o conflito de interesses entre os utilizadores da praia que preferissem as poças de água e os que preferissem aumentar o areal? De novo, temos a mesma situação - penso que passear entre as rochas, observar os peixes e as anémonas-do-mar, etc., não conta como "misturar trabalho" (já não tenho tanta certeza no caso de apanhar camarões), logo seria difícil aos "apreciadores de poças e rochas" reclamar a propriedade da praia, e limitar a arenização (esta palavra não existe, pois não?); pelo contrário, meter mais areia na praia é "misturar trabalho", pelo que alguém que chegasse à praia (sem dono) com uns camiões de areia poderia despejá-los à vontade e assumir a propriedade do novo areal.

Ou seja, a regra do "misturar trabalho" dá vantagem aos que preferem usufruir de ambientes "transformados" face a quem prefere ambientes "naturais".

Uma situação intermédia poderá ser o caso dos caçadores, pescadores e apanhadores de marisco - estes efectivamente pode-se dizer que, com o seu trabalho, transformam o meio (antes tínhamos um rochedo com percebes, e depois passamos a ter um rochedo limpo), logo talvez possa-se considerar que "misturam trabalho" (era a tal questão dos camarões) e que terão direito à propriedade dos seu locais habituais de caça/pesca.

Mesmo assim, parece-me ambíguo - penso que o argumento "lockeano" para a aquisição de propriedade misturando trabalho é de garantir ao individuo a propriedade dos frutos do seu trabalho: ora, o fruto do trabalho de um pescador é os peixes que apanha, não é o "mar subtraido dos peixes que ele apanhou", logo não me parece tão linear que, de acordo com essa teoria, o pescador tenha direitos de propriedade sobre o mar onde pesca (quem diz "o pescador", diz "o conjunto dos pescadores de determinada aldeia"). E já vi em sites anarco-capitalistas quem negasse direitos de propriedade sobre a terra aos índios norte-americanos, com o argumento que estes só caçavam e não cultivavam a terra (e quem retorquisse que não, que os índios eram os legítimos proprietários).

Qualquer resposta parece-me problemática - se admitirmos que a caça, a pesca, e actividades similares não geram direitos de propriedade sobre os recursos naturais, é claramente injusto para as pessoas/povos que se dedicam a essas actividades, e até pode ser economicamente ineficiente (poderíamos ter situações em que a caça fosse mais produtiva que a agricultura, mas em que os habitantes prefeririam dedicar-se à agricultura como forma de adquirir direitos de propriedade). Mas, por outro lado, porque razão o facto de eu, a dada altura, ter apanhado conquilhas numa praia me há de dar o direito de propriedade sobre essa praia, e nomeadamente o direito a cobrar a quem queira ir também apanhar conquilhas lá? A minha apanha original de conquilhas não acrescentou valor nenhum à praia (muito pelo contrário - passaram a haver menos conquilhas lá).

Agora, como eu já disse, também é verdade que o CN só falou em "ocupação e uso", não em "misturar trabalho". Efectivamente, a "ocupação e uso" tem uma maior margem de significados - até se pode considerar que fotografar corvos-marinhos é uma forma de ocupação e uso, logo poderá, em certos casos, ser uma forma de adquirir direitos de propriedade. Mas, sinceramente, também não me parece muito lógico que eu possa chegar a um terreno sem dono, dar lá um passeio, tirar umas fotografias e depois dizer "Agora isto é tudo meu!" (claro que há sempre a alternativa de considerar que um dado uso precisa de ser continuado durante um dado período de tempo para conceder direitos de "aquisição original", e que esse período varia conforme o tipo de uso).

Uma solução é estabelecer que esses casos "bicudos" devem ser decididos pelas comunidades locais, ao nível mais pequeno possível (suspeito que a posição do CN será algo parecido com isso). Mas isso, no fundo, não é reconhecer uma espécie de "micro-comunismo em última instancia", em que a legitimidade da propriedade, mesmo privada, deriva do seu reconhecimento pela comunidade?

E, se estes casos são problemáticos para a direita liberal (pelo menos, para a mais preocupada com uma aquisição original justa), também (ou mais) me parecem para a esquerda anarquista: afinal, se se defende a ocupação de casas abandonadas ou de terrenos não-cultivados não se poderá estará a abrir a porta para que alguém se possa instalar numa reserva natural e construir lá uma casa com sete quartos?

Friday, June 07, 2013

Re: dicionário elementar

N'O Insurgente, Rui Albuquerque apresenta uma espécie de dicionário expondo a forma como várias correntes políticas vêem cada conceito. Em "Estado", RA considera que este é visto pelos anarquistas de esquerda como:

o estado é um instrumento de opressão, que é necessário extinguir pela violência. A propriedade privada é a origem de todas as desigualdades humanas e é para a preservar que o estado existe. Logo, o caminho da extinção do estado é o da abolição da propriedade privada
Parece-me que aqui o RA mistura um pouco a visão anarquista (social) do Estado com a marxista - tudo o que vem a seguir de "violência." é a visão marxista do Estado, não a anarquista. A esse respeito, recomendo a RA a leitura de "Resposta de um anarquista aos últimos moicanos do marxismo e do leninismo, assim como aos inúmeros pintainhos da democracia", de Júlio Carrapato. As primeiras páginas do livro são exactamente a desmontar a tese marxista (que RA atribui aqui ao anarquismo) de que o principal é a distribuição da propriedade, contra-argumentado Carrapato que a questão fundamental é a da autoridade, nomeadamente citando Daherendorf (que argumentava que a propriedade implica autoridade, mas que há outras autoridades além das derivadas da propriedade) e também referindo que as listas de "mais ricos do mundo" estão cheios de reis, rainhas, xeques, sultões, etc (o que demonstraria que muitas vezes é a partir do controlo do Estado que se geram os privilégios económicos, em vez de - como sustentam os marxistas - serem os privilegiados a criar o Estado para defender uma riqueza previamente existente). Aliás, toda a critica anarquista ao socialismo de Estado marxista gira à volta da ideia de que não adianta suprimir a propriedade privada se se mantiver a distinção entre dirigentes e dirigidos, o que penso demonstrar que os anarquistas de esquerda não acham que "propriedade privada é a origem de todas as desigualdades humanas".

Há mais uns detalhes, mas admito que não são muito relevantes - nem todos os anarquistas de esquerda advogam o derrube do Estado "pela violência": provavelmente o anarquismo até será a área política onde há mais defensores do pacifismo radical, recusando todas as formas de violência (e, nesse caso, pretendendo derrubar o poder do Estado pelo método da desobediência civil não violenta: as pessoas simplesmente recusarem-se a obedecer às ordem do Estado, e este cair por si ao se tornar incapaz de governar); também nem toda a esquerda anarquista é contra a propriedade privada - algumas facções defendem uma sociedade de pequenos proprietários em que cada um seja uma espécie de micro-empresário (mas, como escrevi atrás, esta parte já são detalhes - de facto o anarquista de esquerda típico é provavelmente contra a propriedade privada e está disposto a usar a violência contra o Estado e o Capital).

Diga-se que a sua defnição da visão anarco-capitalista do Estado também me parece muito discutível (ou ainda pior):
Para os anarquistas de direita, o estado existe? Não, não existe. Ele é apenas um sonho mau saído de cabeças minarquistas, que, quando acordarmos, não existirá mais. Entretanto, se recairmos no pesadelo, bastará fechar os olhos com força e invocar o princípio da não agressão para que tudo se componha.
 Não sei o Carlos Novais, o Rui Botelho Rodrigues ou o Pedro Bandeira se identificarão com esta descrição de como supostamente eles verão o Estado (embora o CN nos comentários até pareça ter simpatizado com essa descrição de definição do estado).

Já agora, até face à sua definição da visão conservadora do Estado eu tenho reservas. Porquê? Porque, pelo menos segundo o Robert Nisbet a essência do conservadorismo é a defesa dos agrupamentos sociais intermédios (família, comunidade local, etc.) contra os excessos tanto do "estatismo" como do "individualismo" (pelo menos o seu livro sobre o conservadorismo anda todo à volta disso); ora, como na sua descrição da visão conservadora do Estado, RA consegue só usar as palavras "Estado" e "indivíduos" e em momento algum "corpos intermédios", "poderes intermédios", "famílias", "grupos sociais", "estamentos", "comunidades" ou algo com um significado parecido, não me parece que pelo menos a sua forma de descrever a visão conservadora do Estado seja a forma que um conservador tradicional usaria (mas admito que seja apenas uma diferença semântica e que, usando palavras diferentes, o conteúdo talvez seja o mesmo).

Ainda sobre este assunto, em tempo o American Conservative tinha um interessante artigo de Daniel McCarthy explicando a forma como as várias correntes políticas viam a relação entre o Estado e a Sociedade; o artigo (penso que de Fevereiro de 2010) já não está disponível, mas pelo que me lembro a ideia era a seguinte:

Em primeiro lugar, haveria uma discórdia entre os que acham que a sociedade a) é dominada por uma luta entre "privilegiados" e "explorados" ; b) é um lugar fundamentalmente pacifico, com alguns conflitos ocasionais; ou c) é um lugar de luta potencial de todos contra todos.

Dentro do primeiro grupo, haverá um subdivisão entre os que acham que o  Estado é sempre o instrumento dos privilegiados (devendo por isso ser abolido) e os que acham que o Estado tanto pode ser o instrumento dos privilegiados como dos explorados (devendo os representantes dos explorados twntar conquistar o poder político); a primeira posição corresponderá ao anarquismo tradicional, a segundo à esquerda moderada e ao "liberalismo" americano (eu dã-me a ideia que haveria um terceiro sub-grupo, correspondente ao marxismo, mas já não me lembro como McCarthy o definia).

O segundo grupo corresponderá ao liberalismo clássico, considerando que o Estado não é necessário para muita coisa - na maior parte dos assuntos a cooperação voluntária funciona.

Dentro do terceiro grupo, haverá 3 sub-grupos: os que defendem que é necessário um Estado todo-poderoso para manter a ordem social (os fascistas); os que defendem um Estado autoritário, em que as decisão do governante não são para ser discutidas ou postas em causa, mas em que os grupos sociais (províncias, municípios, associações profissionais, universidades, etc.) têm autonomia para gerir os seus assuntos internos (o tradicionalismo europeu, sendo apresentado o exemplo de Charles Maurras); e os defensores de um Estado constitucional liberal em que o conflitos entre os vários indivíduos e grupos seja contido/regulado através do equilíbrio dos poderes e do pluralismo político (a versão liberal do conservadorismo, de que Nisbet é apresentado como exemplo) - ao que me lembro, uma das conclusões de McCarthy era de que os liberais tradicionais e os conservadores-liberais, apesar de terem uma visão diferente do funcionamento da sociedade, acabam por defender modelos políticos parecidos.

Monday, September 21, 2009

Irving Kristol, os neoconservadores e a "nova esquerda"

Morreu Irving Kristol, o ex-trotskista/ex-shachtmanista fundador do neo-conservadorismo. Sobre ele o anarco-capitalista Thomas Knapp escreve:
In the end Irving Kristol could rightfully claim to have out-done his bête noire, Stalin, by serving as the gravedigger of not one, but two revolutions.

First he helped lead America's Trotskyites out of the wilderness of the revolutionary communist left and into the Democratic, and then Republican, parties as the "neoconservative" movement.

Later, that movement plunged an ice axe into the skull of whatever residual revolutionary libertarian impulse may have remained alive in American conservatism by the Age of Nixon.
Mas não é exactamente sobre Kristol que quero escrever, mas sim sobre a história de um movimento que começou como uma seita dentro de uma seita e que acabou por ser talvez (por vias indirectas) o mais importante movimento politico dos últimos 50 anos.

No final dos anos 30, pouco depois do movimento trotskista aparecer entrou em crise à volta de uma questão: Trotsky defendia que era a URSS um "Estado operário degenerado" - a posse colectiva dos meios de produção faria dela um "Estado operário", mas era "degenerado" devido ao Estado e à economia não serem geridos democraticamente pelos trabalhadores mas pela burocracia estatal e partidária; a essa posição opuseram-se, entre outros, Bruno Rizzi e James Burnham, que consideravam que não havia nada de "Estado operário" na URSS, já que os burocratas controlavam os meios de produção e decidiam o que fazer com o produto social, logo seriam os verdadeiros proprietários da economia (sobre esta polémica, ver este post). Assim, para estes, a URSS seria um regime "colectivista burocrático". Inclusivamente, Rizzi e Burnham consideravam que a URSS, os regimes fascistas e o New Deal de Roosevelt eram todos parte do mesmo fenómeno - a substituição dos capitalistas pelos gestores não-proprietários (tanto públicos como privados) como classe dominante da economia.

A teoria do "colectivismo burocrático" chegou a ter expressão literária, nos romances de George Orwell "O Triunfo dos Porcos" e "1984" (neste último, há um livro dentro do livro, nomeado exactamente "O Livro", modelado a partir d'A Revolução Traída de Trotsky, mas expondo a tese que a "Oceania" - e também a "Eurasia" e a "Estasia" - seria "colectivista oligárquica").

Em termos práticos, a grande diferença era o que fazer face a uma guerra entre a URSS e um pais "imperialista" - Trotsky defendia que se devia apoiar a URSS, já que, apesar de tudo, ainda era um "Estado operário". Pelo contrário, Burnham e o dirigente do Socialist Workers Party norte-americano Max Shachtman consideravam que não, porque já não havia nada de "progressista" na URSS "colectivista burocrática".

Em Novembro de 1939 a URSS invade a Finlândia e rebenta um debate dentro do SWP basicamente, sobre se a URSS é a "boa" ou a "má" no conflito (isto é uma visão simplista, mas na prática a discussão era esta). Em Abril de 1940 o SWP adopta a posição de Trotsky e do lider do partido James P. Cannon ("defesa da URSS") e a facção Shachtman-Burnham cinde, criando o Workers Party. No mês seguinte, Burnham abandona o WP e o marxismo, vindo anos mais tarde a acabar na conservadora National Review (entrando numa área que talvez o Carlos Novais domine melhor, parece-me que a atitude face a Burnham é uma das poucas clivagens dentro da "direita paleo" dos EUA, com os paleoconservadores a admirá-lo e os paleolibertários a considerá-lo o primeiro neoconservador).

O Workers Party de Shachtman (a que Irving Kristol este ligado durante uns tempos) adoptou, como seria de esperar, a teoria que a URSS (e os regimes similares surgidos após a II Guerra Mundial) era "colectivista burocrática" (embora uma facção argumentasse que era "capitalista de estado"; essa facção - dirigida por C.L.R. James e Raya Dunayevskaya - não teve grande importância nos EUA mas influenciou bastante o grupo francês Socialisme ou Barbarie, que por sua vez influenciou um grupo de estudantes meio marxistas, meio anarquistas dinamizado pelos irmãos Cohn-Bendit).

Em 1949, o WP tornou-se a Independent Socialist League e a dada altura aderiu ao Partido Socialista (uma pequena facção recusou a adesão e, após umas quantas cisões, deu origem à International Socialist Organization, que suponho seja o principal grupo de extrema-esquerda nos EUA actualmente). Dentro do Partido Socialista, o que sobrou da ISL passou a ser a maior defensora da cooperação/integração com o Partido Democrata (e, em larga medida, tomaram o controle do partido). Entretanto, os shachtmanistas tomaram também o controle da "League for Industrial Democracy"

Nos anos 60 a guerra do Vietnam e todo o espírito do tempo faz o movimento schachtmanista tomar caminhos à partida inesperados.

As primeiras divisões começam dentro da "League for Industrial Democracy" - em 1962, a sua ala juvenil (os Students for a Democratic Society) entra em choque com a direcção da LID e do movimento schachtmainista, que considera os SDS muito brandos com o comunismo e a URSS (face a essas acusações, um dos dirigentes dos SDS respondeu "a maneira da nossa direcção não ser infiltrada pelos Comunistas não é fazermos proclamações anti-Comunistas, é não termos direcção central!")

Em cisão com as suas organizações-mães os SDS lançam-se, primeiro, na defesa da "democracia participativa" e na tentativa de "auto-organizar" os habitantes dos guetos, tentando criar o que em Portugal chamariamos "Comissões de Moradores"; mais tarde (em larga medida porque a organização dos pobres não deu muito fruto...) na agitação nos campi universitários, nomeadamente contra a guerra do Vietnam. Em pouco tempo os SDS tornam-se uma organização "famosa" e a sua militância explode, criando núcleos em grande parte das universidades norte-americanas e organizando protestos pelas mais diversas razões (contra a guerra, contra a intervenção das autoridades académicas na vida privada dos alunos, pela participação dos alunos na gestão das universidades, etc.), no que foi provavelmente o maior episódio de contestação estudantil na história dos EUA.

Como tudo o que sobe tem que descer, em 1969, pouco depois de terem atingido a sua maior influência, os SDS dividem-se em várias facções, dando origem, quer à organização terrorista Weather Underground, quer a grande parte dos partidos maoístas norte-americanos. Actualmente os dirigentes dos SDS de meados dos anos 60 (antes do movimento ter sido tomado por maoístas e estalinistas) estão a tentar reconstruir a organização, agora chamada Movement for a Democratic Society (como se imagina, muitos desses ex-dirigentes já não são estudantes...), e com uma orientação talvez mais anarquista do que marxista.

Entretanto, Schachtman e os seus apoiantes (agora sem a secção juvenil da LID...) foram-se afastando cada vez mais do resto da esquerda norte-americana face à questão do Vietnam - ao contrário da maior parte das outras organizações não defenderam a retirada das tropas norte-americanas e (agora organizados dentro do Partido Democrata) nas eleições presidenciais de 1972 apoiaram, nas primárias, Henry Jackson (o candidato democrata mais favorável à guerra do Vietnam, e que penso teve o falecido Kristol como assessor, ou algo parecido) e não apoiaram McGovern contra Nixon na eleição nacional (ao mesmo tempo, nos sindicatos deram o seu apoio aos lideres pró-guerra da AFL-CIO).

Após a morte de Schachtman, o seu grupo (agora chamado Social Democrats USA) passou na prática a funcionar como a ala mais à direita do Partido Democrata, pelo menos em questóes de politica externa, com uma linha fortemente anti-URSS e pró-Israel e muitos dos seus militantes e afins acabaram passando para o Partido Republicano (Jeanne Kirkpatrick, Paul Wolfowitz, etc.), onde passaram a ser também a ala mais "dura" em politica externa (pelos vistos, os apoiantes de Schchtman, quando entram numa organização, seja ela o Partido Socialista, o Democrata ou o Republicano, em breve conseguem se tornar a sua ala mais à direita), sendo uma parte importante do movimento neo-conservador.

Pode parecer estranho que os neo-conservadores venham, afinal, da mesma raiz que os estudantes radicais dos anos 60, mas se pesquisarmos bem, há traços comuns - o discurso neo-conservador contra a "elite cultural" ou contra aquilo a que Kristol chamou a "nova classe" (cientistas, sociólogos, educadores, etc.) é basicamente o velho discurso dos dissidentes trotskistas dos anos 30 contra a "classe burocrática", os tais gestores e dirigentes não-proprietários; e o discurso dos SDS e dos estudantes radicais contra a "tecnocracia", pela "democracia participativa", mesmo a atitude cultural contra o "homem da organização", e a desconfiança face à autoridade dos professores e reitores nas universidades, etc. é também esse discurso. No fundo, talvez a grande diferença seja que os neo-conservadores tenham escolhido como inimigo a "classe burocrática" oriunda das ciências sociais e afins (os sociólogos, psicólogos, pedagogos, etc.) e os radicais a "classe burocrática" oriunda das ciências "duras" ou da gestão (tecnocratas, gestores, etc.) - vagamente a esse respeito (das várias "Novas classes") recomendo o texto de Kevin Carson, Liberalism and Social Control: The New Class' Will to Power.

Bem, e qual é o interesse desta conversa toda sobre obscuras cisões dos anos 30 e não tão obscuras cisões dos anos 60? É o seguinte: a esquerda moderna (em todo o mundo ocidental) é muito influenciada (talvez mais nas atitudes culturais do nos programas concretos) pela herança dos movimentos juvenis dos anos 60 (no quais o S.D.S. norte-americano teve um papel muito importante, até pelo exemplo que deu aos colegas europeus); a direita moderna (também em todo o mundo ocidental) foi muito marcada pelas politicas de G. W. Bush, que por sua vez foi muito marcado pelos neo-conservadores; como tanto o neo-conservadorismo como os S.D.S surgiram a partir do complexo Workers Party/Independent Socialist League/League for Industrial Democracy/Social Democrats USA, o que concluimos?

Talvez que todo o pensamento politico moderno do mundo ocidental é devedor de uma discussão ocorrida entre os intelectuais trotskistas de Nova York acerca da invasão soviética da Finlândia...

Adenda:
já agora, recomendo a leitura de Irving Kristol, RIP, de Justin Raimundo, que o CN linka ali em cima

Friday, May 23, 2008

Ordem Espontânea

Jim Henley, em The Art of the Possible, cita RadGeek:
First, the concept of spontaneous order, as it is employed in libertarian writing, is systematically ambiguous, depending on whether one is using spontaneous to mean not planned ahead of time, or whether one is using it to mean voluntary. Thus, the term spontaneous order may be used to refer strictly to voluntary orders — that is, forms of social coordination which emerge from the free actions of many different people, as opposed to coordination that arises from some people being forced to do what other people tell them to do. Or it may be used to refer to undesigned orders — that is, forms of social coordination which emerges from the actions of many different people, who are not acting from a conscious desire to bring about that form of social coordination, as opposed to coordination that people consciously act to bring about. It’s important to see that these two meanings are distinct: a voluntary order may be designed (if everyone is freely choosing to follow a set plan), and an undesigned order may be involuntary (if it emerges as an unintended consequence of coercive actions that were committed in order to achieve a different goal). While Hayek himself was fairly consistent and explicit in using spontaneous order to refer to undesigned orders, many libertarian writers since Hayek have used it to mean voluntary orders, or orders that are both voluntary and undesigned, or have simply equivocated between the two different meanings of the term from one statement to the next.
[o post em si de "RadGeek" não me interessa muito - é esta passagem que me desperta a atenção]

Há algum tempo que eu pensava em escrever algo sobre isto (e fiz uma pequena abordagem ao tema neste comentário no Portugal Contemporâneo e nos comentários a este post do CN na Causa Liberal).

Acho que o "liberalismo-conservadorismo" assenta muito nesta confusão, que associa "liberdade" com "ordem social não planeada", mas são duas coisas distintas. Podemos ter:

Ordens espontâneas e voluntárias. Exemplos: a língua e ortografia inglesas; a linguagem SMS; talvez a "lei mercantil".

Neste caso, trata-se de instituições que não são impostas (a maior centro difusor da língua inglesa actualmente é um país que nem sequer tem o inglês - ou outra qualquer - como língua oficial) e que evoluem de forma não-planeada.

Ordens espontâneas e impostas. Exemplos: o mapa da Europa; a "common law" inglesa; a autoridade dos pais sobre os filhos menores.

Estas instituições desenvolveram-se de forma não planeada, mas coerciva: as fronteiras europeias são o resultado de uma série de acidentes históricos, durante séculos e, ao mesmo tempo foram impostas e são mantidas pela força; a "common law" baseia-se nos precedentes (e não num código legal com 500 artigos) e é feita cumprir pela autoridade do Estado; a autoridade paternal também deve ter aparecido de forma espontânea e, em ultima instância, também é mantida pela força (se um menor fugir de casa, a policia pode ir buscá-lo).

Grande parte dos chamados "hábitos bárbaros" - escravatura, canibalismo não-consentido, crimes de honra, excisão feminina, casamentos à força, "direito de pernada" (se alguma vez tiver existido), sacrifício das raparigas da aldeia no vulcão (idem), etc. - pertencem a esta categoria.

E, se considerarmos o Estado como uma instituição espontânea, pertencerá também a esta categoria.

Ordens construidas e voluntárias
. Exemplos: os standards da Internet; a terminologia cientifica (grande parte); as regras do futebol federado; o esperanto; moedas locais como o "hour".

Aqui temos normas, instituições, etc. que são criadas de propósito (não emergem por acaso) mas que ninguém (isto é, além das pessoas que as criam voluntariamente) é obrigado a seguir: os standards da net são definidos por organizações como o W3C, mas ninguém é obrigado a usar esses standards; muita terminologia cientifica é decidida por organizações internacionais de cientistas (penso que os anidridos carbónico e sulfúrico não passaram a dióxido de carbono e trióxido de enxofre nem o OH2 passou a H2O por "evolução natural e espontânea", mas porque a sociedade internacional de química assim decidiu), mas acho que essas organizações não têm poder para obrigar terceiros a usar a sua nomenclatura; as regras do futebol são decididas pelas federações, mas ninguém é obrigado a seguir essas regras num jogo na praia; o esperanto é uma língua totalmente construida, mas ninguém é obrigado a usá-la (muito pelo contrário - houve muitas perseguições aos esperantistas); as "moedas locais", LETS e afins (e as suas regras de funcionamento) são criados de forma intencional e planeada, mas o seu uso é voluntário.

Creio que as "ordens construidas voluntárias" tendem a ser mais bem sucedidas em situações em que há economias de rede, isto é, em que cada individuo tem interesse em fazer o mesmo que os outros - usar a mesma terminologia, software compatível, a mesma moeda, etc. (isso não quer dizer que sejam necessariamente bem-sucedidas nessas situações: veja-se o fracasso do esperanto); como há interesse de cada um em fazer o que os outros fazem, as decisões de uma associações voluntária que sejam aceites pela maioria dos envolvidos acabam por ser seguidas por quase toda a gente; e, ao contrário das "ordens espontâneas voluntárias", tem menos problemas de "dependência de caminho" (situações em que grande parte dos indivíduos até quereriam adoptar uma nova regra, mas nenhum faz isso... porque os outros também não fazem).

[Acho que a maior parte dos exemplos de "livre entendimento" dados por Kropotkine n'A Conquista do Pão pertencem a esta categoria]

Ordens construidas e coercivas. Exemplos: papel-moeda estatal; ortografia portuguesa (tanto a de 1911 como a do Acordo Ortográfico)

Aqui temos um plano racionalmente construido e imposto pela força.

Reparo agora que gastei muito mais espaço a expor as ordens "espontânea coerciva" e "construida voluntária" do que as "espontânea voluntária" e "construida coerciva"; possivelmente porque haveria pouco a dizer destas últimas, já que a dicotomia "ordem espontânea voluntária" vs "ordem construida coerciva" já foi discutida "n" vezes, e, de qualquer forma, o objectivo deste post é, exactamente, criticar essa dicotomia (propondo uma tetratomia no seu lugar).

Pois, mas qual é o interesse desta divagação "filosófica"? Além de, pura e simplesmente, me ter apetecido, acho que há uma grande tendência para misturar a questão "espontâneo vs. construido" com a questão "voluntário vs. coercivo"; nomeadamente (limitando-me à blogosfera), dá-me a impressão que nas posições de Luis Pedro Machado sobre o acordo ortográfico, de João Miranda sobre a hora de verão ou do CN (entre muitos) sobre o padrão-ouro há algo dessa tendência para associar "construido" a "coercivo" e "espontâneo" a "livre" (quando, em minha opinião, é tão coercivo o estado impor os "construidos" Acordo Ortográfico, a hora de verão ou o papel-moeda como é/seria impor a ortografia de 1911, uma hora que não mudasse ou o padrão-ouro).

Friday, February 02, 2007

Re: A neutralidade do Estado perante os Direitos Naturais

Carlos Novais na Causa Liberal:

"Tenho lido comentários do Miguel Madeira sobre como o Estado não devia (em abstracto se assumirmos em completo a neutralidade do Estado perante julgamentos morais) defender os direito de propriedade porque isso em si constitui a defesa de um julgamento moral e positivo sobre direitos de uma parte da população."

"Mas o direito de propriedade não nasce de alguma coisa a que chamemos Estado. Nasce da argumentação ética na sua defesa em termos filosóficos, na capacidade prática da sua defesa por parte de quem se julga como legitímo apropriador de tais direitos e também na utilidade da sua existência."

Mesmo que aceitemos o segundo parágrafo de CN, em nada afecta a minha afirmação que o Estado intervir para proteger direitos de propriedade significa tomar partido na disputa moral entre os que acham esses direitos de propriedade legítimos e os que os acham ilegítimos (e nesta categoria não estão só os que discordam dos direitos de propriedade em abstracto; estou também a incluir os que concordam com os direitos de propriedade, mas que discordam da legitimidade de um dado proprietário concreto).

Como já disse, o estado expulsar okupas é tomar partido pelos que defendem que o direito de propriedade não se extingue após "X" tempo de abandono face aos que defendem que se extingue.

Note-se que esta questão surgiu no contexto do post de João Miranda, "O minarquismo de Vital Moreira", em que este argumentava que Vital Moreira, se defendia "a ideia de que o estado não deve proteger os valores de uma determinada facção contra outra facção da sociedade", então deveria "defender a extinção do salário mínimo, do SNS, do Ministério da Educação e da Segurança Social pública". Mas, como o "estado mínimo" dos liberais também defende - como pretendi demonstrar - os valores de uma parte da sociedade contra outra, não há contradição no pensamento de Vital Moreira (ou melhor, há contradição, mas haveria de qualquer maneira - o post de JM só faria sentido se fosse "O anarquismo de Vital Moreira").

Ou melhor, se o argumento de João Miranda fosse que Vital Moreira deveria defender que o Estado deixasse de fornecer serviços públicos e passasse a dar dinheiro para as pessoas gastarem como bem entendessem (em saúde, em educação, em heroína, em donativos à Opus Dei, a não fazer nada vivendo do subsidio, etc.), até poderia ter uma certa lógica - afinal, se se partir do pressuposto que "o estado não deve impor concepções morais", a hipótese "Estado que dá dinheiro" parece menos má que a hipótese "Estado que fornece serviços"; já se a alternativa for "Estado que redistribui riqueza" versus "Estado que protege a riqueza dos actuais proprietários", parece-me que ambas representam a tomada de partido por uma dada concepção moral.

Wednesday, March 11, 2009

Depois da Revolução Laranja

E andarem a atiçar um país dividido entre a russofilia e o pro-ocidentalismo interesseiro...

Miguel Monjardino conclui: A Ucrânia à beira do precipício.

Lembro-me que o José Manuel Fernandes tem um edital em que dizia ter dio o Dia mais importante da Europa, ou coisa do género.

# posted by CN : 11/30/2005:

Geopolitica

...essa ciência estatista obscura que traçará o caminho até à última Guerra Mundial.

Com esta mania jacobina de querer levar o bem ao mundo e estender o intervencionismo revolucionário a todos os cantos do mundo, a Rússia já aprovou restrições a todas as ONGs, porque alega compreensivelmente entre outras coisas, do dedo da CIA e outros, nas revoluções com as cores do arco-íris (laranja, rosa, purpura, etc) nos processos políticos de todos os países que a rodeiam, com o intuito de colocar a NATO em todos os jardins à porta de sua casa. A história não aconselha nada a tal, tirar partido da debilidade momentânea de grandes nações para ir ocupando o seu espaço natural, como também se percebe que não é nada aconselhável (nem sequer legitimo) que processos de normalização política sejam influenciados externamente. O outro efeito é já ter colocado a Rússia e a China numa posição de aliados estratégicos. O que o comunismo não conseguiu o intervencionismo dos Estados "capitalistas" alcançou.

PS: parece que já ouço o ingénuo, juvenil, bem intencionado e perigoso pensamento sobre como tudo isso é para levar a (social) democracia ao mundo...

Russia slams US, Nato influence in Central Asia

Tuesday, September 30, 2008

Questão sobre direitos de propriedade

[Esta é uma daquelas questões para o CN]

Há dias, aparecia na televisão uma senhora do Calvário dizendo que a culpa das cheias era dos prédios novos que tinham sido construídos (ou coisa parecida). Há uns tempos, também havia quem dissesse que umas inundações no Estrumal tinham sido agravadas pelos prédios que tinham sido construídos por cima do monte (bem visíveis na fotografia).

Vamos admitir que este cenário é verdadeiro: que as novas construções, ao reduzirem a área de infiltração de água, estão a agravar as inundações (a chuva que antes era absorvida pelos terrenos, ou se acumulava em poças, agora desce como um rio a toda a velocidade pelos arruamentos). Nessa situação (repito, assumindo que o fenómeno está efectivamente a verificar-se), poderá considerar-se que os proprietários dos terrenos recentemente urbanizados estarão a "agredir" os direitos de propriedade dos que vêm as suas casas inundadas?

É que esta situação parece-me um pouco mais complexa que a da poluição, p.ex. (aqui, os eventuais agressores não estão a produzir o "agente incomodativo", como acontece com as fábricas ou com as sardinhadas; "apenas" deixaram de o reter na sua propriedade, como costumavam fazer).