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23.6.12

Quando a realidade supera a ficção

E no jantar hoje com os velhos amigos, lembrou-se de uma história vivida há uns seis anos pelo meu marido, história daquelas que todo mundo se recorda e passa adiante, mas dos detalhes ninguém lembrava, até que chegamos em casa e vi que, em prol da posteridade, tínhamos, alvíssaras, o registro escrito.
Fica então, para os leitores do blog, "O Caso Unibanco".


O motivo para ir ao banco já era péssimo: um cheque do condomínio havia voltado. Sim, porque sou síndico do prédio. E como o prédio é pequeno (só seis apartamentos), não há nem o benefício da isenção do pagamento do condomínio. Em suma, uma desgraça. E aquele era o primeiro cheque eu passara como síndico. Ou seja, grandes, enormes chances de os incompetentes do banco não terem trocado o cartão de assinatura, do síndico antigo para o novo. Por isso tudo, já cheguei na agência pronto para soltar os cachorros.
Mas mal passei a porta giratória, deparei com uma situação que em muito superava o maior escândalo que eu podia cogitar fazer em uma agência bancária. Uma senhora aos berros desacatava o gerente de uma forma inédita:
—Você é um engomadinho! Fica aí atrás dessa mesa, com seu terno e gravata, mas não passa de um engomadinho!
Tive que sentar para assistir ao espetáculo.
Aos poucos fui me inteirando. A tal senhora era dona de uma padaria ali perto, e havia ido à agência sacar um dinheiro. Mil e duzentos reais. Munida do cartão e da senha, foi ao caixa eletrônico. Mas o caixa eletrônico só permite saques até seiscentos reais. Mais do que isso, é preciso ir à boca do caixa. E foi o que ela fez. Mas quando chegou lá, a pessoa do caixa disse que ela não poderia sacar, porque o cartão não estava no nome dela. E mandou para o gerente. Que por sua vez disse que não havia nada a fazer. Só o titular da conta pode efetuar os saques na boca do caixa.
— Mas minha senhora, veja, o titular da conta é o senhor Carlos Alberto, que...
— O Carlos Alberto não manda nada! Quem manda sou eu! O dinheiro é meu! E eu quero sacar!
— Mas o titular precisa vir à agência, eu não posso fazer nada...
— Você é um engomadinho! Eu vou chamar o meu filho. E olha, o meu filho não é calmo assim como eu, não!
Nisso ela encontrou uma platéia, e passou a se dirigir aos espectadores:
— Eu quero tirar o meu dinheiro, e esse engomadinho não deixa. Esses bancos são todos uns ladrões.
E voltando as baterias para ele:
— Eu quero fechar a minha conta!
Aproveitei a brecha para, meio sem graça, falar com o gerente, o engomadinho. Que me fez uma cara meio que buscando solidariedade e disse:
— Olha, eu não vou poder te atender agora, como você está vendo. Mas quem vai resolver o teu caso é o Luís, aquele ali. Vai lá e fala com ele.
Então deixei meu lugar na platéia da dona da padaria e fui falar com o Luís. Que por sua vez estava atendendo uma senhora de idade, de aparência humilde, e ao mesmo tempo falava ao telefone e digitava coisas no computador. Fiquei em pé, ao lado, esperando.
Passaram-se, sem exagero, dez minutos. Do mais absoluto silêncio. Durante todo esse tempo, permaneci em pé, e, inacreditavelmente, o Luís não proferiu uma só palavra – nem com a senhora que estava sentada na frente dele, nem com sei lá quem que estava do outro lado da linha telefônica. A única coisa que ele fazia era digitar furiosamente o teclado do computador. A senhora também não disse nada. Tive que quebrar aquele clima:
— Luís?
Ele tira os olhos do monitor e me olha. Incrivelmente, parece me reconhecer. Mesmo assim, afasta um pouco o bocal do telefone (não que eu achasse que houvesse alguém do outro lado, mas enfim) e me diz:
— Vai demorar.
Aí não deu mais.
— Não, você vai ter que me atender agora. Escuta, o cheque que eu passei voltou.
— Ah, eu sei. Fui eu mesmo que mandei devolver.
— Mas por quê??
— A assinatura estava diferente.
— Como assim? Fui eu que assinei!
— Ah, é? Tudo bem. Vou liberar, é só pedir para que a pessoa reapresente o cheque.
Não sabia ele que, àquela altura, os operários da obra estavam no prédio, parados, aguardando o material de construção – que não chegou porque o cheque voltou!
— Não vai dar, Luís. Eu preciso que esse dinheiro entre na conta da loja, porque está atrasando a minha obra.
— Faz um DOC.
— Mas entra imediatamente na conta da outra pessoa?
— Bom, pode demorar até o fim do dia...
— Então não pode ser. Vou fazer pelo método lusitano. Saco o dinheiro aqui e deposito no Bradesco. E depois peço para me devolverem o cheque.
— Tá legal, pode ser. É só ir no caixa.
Olhei para a fila, apenas três pessoas. Beleza.
Enquanto me encaminhava para a fila, ainda ouvi o prosseguimento do ataque de fúria da dona da padaria.
— Porque nós temos um parente que é juiz federal! Então ninguém da minha família fica mais de um dia preso, seja lá por que motivo for! Você está entendendo?
Dois caixas para atendimento ao público. Uma mocinha atendia os clientes especiais. O outro, um rapazinho, atendia o resto dos mortais. A fila andou razoavelmente rápido até o cara que estava na minha frente, que foi atendido pelo rapazinho. Obviamente, o caso dele não era simples. Tinha que descontar um cheque. Mas antes o caixa precisava ligar para a pessoa, para confirmar que o cheque estava sendo descontado (!!).
— O nome dela é Isabela, você pode ligar para a escola em que ela trabalha. Pede pra falar com a Isabela, professora de inglês. Tá aqui o telefone.
Para minha surpresa, o caixa respondeu:
— Ok, vou ligar.
E foi!
Enquanto isso, a outra caixa, dos clientes especiais, com uma pilha monumental de contas a pagar.
Daqui a pouco volta o rapazinho:
— Olha, eu liguei pra lá, mas não tinha nenhuma Isabela professora de inglês. Disseram que tinha uma Isabela lá, mas professora de educação física.
— Não é possível. Eu tenho certeza que ela está lá, e é professora de inglês... Ah, já sei! É que tem outra Isabela que trabalha lá, e é professora de educação física. Faz o seguinte: liga de novo e fala que é a Isabela professora de inglês, que ela está lá, tenho certeza.
E o cara foi!!!
Neste ponto começam os rumores na fila, atrás de mim.
— É brincadeira, hein.
— Só um atendente para a fila, e ainda vai telefonar.
— Esses bancos são todos uns f-d-p...
Nisso vagou a caixa dos clientes especiais, e me chamou. Graças.
— Quero sacar mil e setecentos reais. Aqui o cartão.
— Ok. Por favor assine aqui.
Daqui a pouco volta ela:
— Olha, a assinatura não está batendo.
Nesse momento tive certeza de que os idiotas não haviam trocado os cartões de assinatura quando houve a mudança de síndico.
— Ah, não, de jeito nenhum. Pode falar aí com o Luís...
E o Luís já acenou para a moça, dizendo que estava tudo certo. E ela se rendeu e começou a contar o dinheiro.
Enquanto isso finalmente o outro caixa conseguiu falar com a Isabela-professora-de-inglês, que felizmente autorizou o saque do cheque. E o cara foi embora, e finalmente a fila ia andar e o cara que estava atrás de mim, já resmungando há tempos, seria atendido.
Não fosse pela senhora que se precipitou na frente dele, furando a fila, com uma pilha de contas de meio metro de altura.
Diante do olhar estupefato do cara da fila, ela não se dignou nem a olhar na cara dele. Simplesmente parou no caixa com suas mil contas, virou meio de lado e murmurou, entredentes:
— Sessentaecinco anos, sessentaecinco anos.
— Ah, não, a senhora não vai entrar na minha frente, não, com esse monte de contas.
— Meu filho, não cria caso. Sessentaecinco anos.
Mas ele resolveu criar caso.
— De jeito nenhum. A senhora tem direito de entrar na frente para pagar as suas contas. E eu duvido que essas contas todas aí sejam no seu nome. Quero ver, me mostra essas contas!
Muito surpresa, ela puxou uma conta e mostrou.
— E as outras, quero ver as outras contas! Não é possível que todas essas contas sejam suas.
Ela se enfezou.
— Eu não tenho que mostrar nada! Isso é o meu direito! Eu tenho sessentaecinco anos!
A esta altura, claro, uma outra platéia já se havia formado para assistir a mais esse espetacular embate. O mais atônito era o rapazinho do caixa, que não tinha a menor idéia de como proceder.
— Seu direito é pra pagar as suas contas. Não a de todos os seus parentes e vizinhos!
— Você não tem nada com isso, não se meta.
— Olha aqui, minha senhora, eu não gosto de fazer isso, não costumo fazer, mas a senhora está pedindo. Olha aqui. Eu... eu... eu sou deficiente físico!!!
E puxou a perna da calça, revelando uma perna mecânica, para delírio dos espectadores, que boaquiabertos só puderam dizer:
— Oh!
Dona Sessentaecinco anos baqueou. Por essa ela não esperava, realmente. Mas mesmo assim não se deu por vencida:
— E essas contas?! Deixa eu ver se essas contas são todas suas!
— Mas eu estou na fila normal!
Peguei meu dinheiro e saí correndo. Mas ainda deu tempo de ouvir o revide do engomadinho:
— Olha aqui, a senhora está me ofendendo! Está me chamando de engomadinho, me insultando, e eu estou aqui apenas fazendo o meu trabalho...
Saí de lá achando que encarar uma obra no condomínio como síndico era a melhor coisa do mundo.

15.6.08

Requentado -- mas bom

Como o blogue anda meio abandonado, e como hoje recebi a visita dos personagens dessa história (os noivos, a mãe e a irmã da noiva), resolvi resgatar esse texto que escrevi há quase dois anos, para mandar para minha tia, madrinha de batismo da noiva, que mora fora e por isso não pôde ir ao casamento.
Não tem nada melhor do que fazer esse tipo de relato. Lendo agora me lembrei de mil detalhes que já se haviam apagado da memória.
Os nomes foram todos modificados porque... sei lá por quê. Porque sim.
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O domingo 16 de julho de 2006 amanheceu com tempo bom, nuvens esparsas, temperatura agradável. Não cheguei a acordar completamente às 6 da manhã, quando Marido se despediu, a caminho do aeroporto -- tinha show em São Paulo naquele mesmo dia, à tarde. Levantei mesmo lá pelas dez horas, fiz um café e comi uns cream-crackers enquanto lia o jornal do dia.

O casamento, para o qual fui convidada para ser madrinha em março de 2005 (ou seja, com dezesseis longos meses de antecedência), estava marcado para as três da tarde. Eu, que já fui a um sem-número de casamentos, nunca tinha visto um nesse horário. Domingo três da tarde? Será que tem que almoçar antes de ir, ou vai ter almoço lá? Pensei em tomar uma sopa leve, para forrar o estômago. Mas a verdade é que entre tomar banho, ajeitar o cabelo, maquiagem e roupa, esqueci da sopa, e só fui lembrar que não tinha almoçado algumas horas depois.

Mesmo com os dezesseis meses de antecedência, não consegui me organizar para comprar uma roupa especial para o evento. Então fui mesmo com meu modelito amarelo-ouro que já compareceu a algumas dezenas de cerimônias de bodas. A única coisa que comprei foi uma meia-calça especial e muito interessante: sem dedos do pé, especial para usar com sandálias. Mas quando coloquei a meia-calça e calcei a sandália, achei estranhíssimo, porque apesar de ser cor da pele, meu pé estava de uma cor (com a meia), e os dedinhos do pé estavam de outra (sem a meia). Na verdade gastei uns bons minutos com esse dilema. Será que alguém vai reparar? Será que vou sentir frio sem a meia-calça? Acabei resolvendo que ninguém ia reparar nos meus dedos do pé mais claros, e fui assim mesmo.

Às 13h30 passaram para me apanhar. Valter, Regina e Yeda. E desde o primeiro momento, Yeda não parava de tecer comentários sobre todas as igrejas que passavam no caminho.
-- A minha igreja é aqui pertinho, na Muniz Barreto.
-- Aqui era a igreja que eu freqüentava uns anos atrás.
-- Uma vez aqui nessa igreja, em cima dessa ladeira, uma colega minha contou que quase foi assaltada num ônibus, mas veio conversando em inglês com o assaltante [?!] e ele até desistiu de roubar a bolsa dela.

Eu olho para Valter e falo baixinho:
-- Vai ser um longo dia, hoje.
Ele balança a cabeça em concordância.

A cerimônia estava marcada em um lugar chamado Garden Party, cujo endereço era Estrada do Cafundá, 2162, na Taquara. O endereço só podia ser um sinal.
O combinado era encontrarmos Helga, a amiga histórica de Regina, na Barra, em frente ao Makro, e a partir de então ela nos guiaria até o Cafundá. Assim que entramos na Barra, Av. das Américas, Regina pega o celular para ligar para Helga, e começa o diálogo, aos berros.
-- Helga! Já chegamos na Barra! ... Hein?! No Makro! O trânsito está muito bom! Viemos rápido! Uns dez minutos! Não, Valter não está correndo! Você já pode sair! ... Hein?! Já, já chegamos na Barra! ... No posto! Tá bem, tá bem, até!
Desliga o telefone e vira-se para Valter.
-- Olha, Helga já está saindo de casa, vamos encontrar com ela no posto de gasolina do Makro.
Valter:
-- Eu não sei chegar lá, você sabe?
Regina:
-- Sei.
Eu:
-- Não é na Ayrton Senna?
Regina:
-- É.
Valter:
-- Eu não sei chegar.
Yeda:
-- Na Ayrton Senna também tem uma igreja...
Eu:
-- Tem que pegar a pista da direita pra cair na Ayrton Senna.
Valter:
-- Agora?
Eu:
-- Não, pode ser mais pra frente um pouco.
Valter:
-- Então eu não entro aqui?
Eu:
-- Pode entrar, mas tem outras entradas mais à frente.
Valter:
-- Então eu entro aqui agora ou não?
Eu:
-- (suspiro) Entra, entra logo aqui.

Vai ser um longo, longo dia, penso comigo mesma.

Chegamos no posto de gasolina do Makro, e Helga não está lá. Mais alguns telefonemas aos berros, e ela chega ao posto, mas não nos vê. Acenamos, acenamos, mas só quando Valter chega na janela do carro dela é que ela percebe que estamos ali. Helga já tem uns 80 anos e ainda dirige seu Santana marrom. O que é louvável. Mas ao mesmo tempo temerário, muito temerário. Ela parte na frente e nós a seguimos.

Regina:
-- Eu devia ter ido no carro com ela.
Valter:
-- Por quê?
Regina:
-- Para dividir melhor, para ir com ela.
Yeda:
-- É, devia mesmo.
Regina:
-- Será que eu ligo pra celular?
Eu (perdendo a paciência):
-- Gente, não adianta agora ficar discutindo sobre o que poderia ter sido. Vamos logo, ou vamos nos atrasar.
Yeda:
-- Acho que vamos chegar em cima da hora.

Passamos pela Cidade de Deus, entramos na Taquara. Helga na frente, nós atrás. Num cruzamento, o inevitável acontece: ela passa e nós ficamos presos num sinal. Pânico no carro.

-- Estamos perdidos!
-- Não vamos chegar na hora!
-- Vou ligar para ela no celular. (tlec tlec tlec) (berros) Helga! Você sumiu! Ficamos no sinal! No sinal! Hein?! Onde?! À direita?! Tá, então espera! Até. (desliga) Ela está nos esperando em cima de uma calçada mais à frente.
Andamos, andamos e nada.
-- Não pegamos a rua certa!
-- Nos perdemos!
-- Helga sumiu!
-- E agora?! Nunca vamos achar o lugar!
-- Calma, gente, olha o carro da Helga ali.
-- Graças a Deus!!

Olho para o relógio, são 14h45.

Enfim chegamos à Estrada do Cafundá, que é um lugar horroroso. Pelos pontos de ônibus do caminho, Valter comenta:
-- Aí estão os personagens de Nelson Rodrigues, ao vivo. Todos eles.

E para nossa surpresa, surge o Garden Party, que é um lugar maravilhoso. Entramos de carro e passamos por vários jardins bonitos, riachos etc., até chegarmos a um estacionamento. De lá vinham funcionários do local buscar os convidados em carrinhos elétricos (parecidos com carrinhos de golfe, ou carrinhos da Disney) para levar até o local da cerimônia. Que era muito perto, mas ninguém dispensava o passeio no carrinho.

-- Olha lá o Zeca no carrinho!

Estacionamos, e finalmente pudemos cumprimentar a Helga, que a partir de então começou a falar de modo ininterrupto (sobre o caminho, sobre o carro, sobre o sinal, sobre o Garden Party, sobre a Taquara, sobre qualquer coisa). Subimos no carrinho e fomos ao local da cerimônia.

Num gramado que parecia um campinho de futebol, um pequeno altar com cadeiras brancas dispostas dos dois lados, para os convidados. Mais à frente, um enorme caramanchão, onde aconteceu a recepção. Ao sair do carrinho e dar dois passos, a sola do sapato (alegadamente novo) de Helga se descola quase totalmente. Fica uma "boca de jacaré" enorme e totalmente incômoda para andar. O que fazer? Não havia sapato reserva, nem super bonder à mão, tampouco agulha e linha.

Helga:
-- Se ao menos tivesse um elástico pra prender a sola no sapato...

Olho para Valter, que segura seus inseparáveis vários bloquinhos e livrinhos, presos com diversos elásticos pretos.

Eu (baixinho):
-- Você não vai ceder um único mísero elástico seu?
Valter (meio constrangido):
-- Não posso. Não esses elásticos, logo esses, que são muito bons e aqui estão cumprindo uma função muito importante.
Eu (menos baixinho):
-- Não acredito. Você não tem coração? Não tem um laivo de compaixão pelo próximo? Olha a situação da Helga. Você tem uma meia dúzia de elásticos aqui!
Valter (resignado):
-- (suspira) Aqui, Helga, veja se serve esse elástico aqui.
Helga (ilumina-se):
-- Ah, perfeito. Obrigada, meu filho, Deus lhe pague.
Regina (orgulhosa):
-- Que bom, né, Valter. Ter esses elásticos.

Depois do Zeca no carrinho, a primeira pessoa conhecida que vimos -- em parte graças aos seus quase dois metros de altura, com salto -- foi Luciana, espetacularmente linda num vestido longo estampado, cabelos com trancinhas presas num penteado todo sofisticado, maquiagem digna de revista de moda. Magra, alta e elegante, Luciana era a própria mulata-sensação. Em seguida falamos com o Zeca, que estava, como sempre, com aquela cara de Zeca, boa praça, bem humorado, sempre gentil e simpático. Mais e mais pessoas foram chegando e se acomodando nas cadeiras, e nós ficamos ali pelo caramanchão, até porque eu, como madrinha, sabia que não ficaria sentada com os demais convidados.

Mais tarde vimos o noivo, Edson, também com seus quase dois metros de altura, vestido numa roupa meio estranha. Não entendo nada de moda de casamento, mas pra mim aquele figurino parecia mais adequado a um ascensorista ou lanterninha de cinema do que a um noivo. Mas enfim, não me cabia fazer nenhum comentário sobre trajes, é claro.

Pouco depois aparece, causando furor, Hilda, a mãe da noiva. Mais uma com quase dois metros de altura -- e, diga-se, quase a mesma coisa de largura. Hilda surge imensa, num vestido todo preto -- mais uma novidade pra mim: uma mãe de noiva vestida de viúva-negra. E mais uma vez, não me cabia fazer nenhum comentário sobre trajes, é claro. Beijos e abraços emocionados, comentários sobre a noiva ("nervosa, nervosa"), e já são umas 15h20. Outros padrinhos e madrinhas já estão por ali também. Regina, Helga e Yeda vão tratar de arrumar bons lugares nas cadeiras brancas, debaixo do sol. Eu e Valter ficamos.

Avistei ao longe passar uma carruagem puxada por cavalos brancos. Tremi. Haveria algum limite razoável para aquilo tudo?

Às 15h30 todo mundo que tinha que chegar já tinha chegado. Menos o meu par-padrinho, Roberto. Temi pelo pior: ele simplesmente não dar as caras, confirmando as suspeitas de Regina levantadas muitos meses antes.

Luciana socorre:
-- Imagina, é claro que ele vem, ele esteve lá em casa ontem, saiu de lá nove da noite, pegou a roupa de padrinho, o cravo da lapela e tudo.
Eu:
-- Nesse caso, alguma coisa pode ter acontecido. Tem o celular dele?
Luciana:
-- Não.
Hilda também não tinha.
Liguei para Regina, que já estava na cadeirinha branca:
-- Roberto ainda não apareceu. Tem o celular dele?
Regina (já nervosa):
-- Não. Tenho o número de Didi.
Ligo para Didi, em Copacabana.
-- Oi, Didi, aqui é Anna, tudo bem?
Didi:
-- Não, minha filha, tudo péssimo, estou muito mal.
Penso comigo: Eu não tenho tempo pra isso agora.
-- Hmmm. Didi, estamos aqui no casamento da Flávia, e o Roberto ainda não chegou. Qual o nº do celular dele?
Didi (titubeante):
-- Ele não tem celular!
Eu (incrédula):
-- O quê?
Didi (num rompante):
-- Roberto não vai! Não esperem mais.
Eu (subindo o tom de voz):
-- Como assim não vem? Aconteceu alguma coisa com ele? Ele está aí, Didi?
Didi (gaguejando):
-- Ele foi à farmácia comprar remédio pra mim.
Eu (ainda tentando racionalizar):
-- Didi, você não está entendendo. O casamento ainda não começou porque estamos esperando o Roberto.
Didi (teatral):
-- Não esperem mais! Diga que siga o casamento! Que siga o casamento!! Minha filha, eu estou muito mal, e...
Desliguei o telefone. Havia coisas mais importantes a resolver.
-- Hilda, o Roberto não vem.
Hilda:
-- Não acredito. Ele esteve lá em casa ontem!
Eu:
-- Eu também não acredito. Mas enfim, ele não vem, e precisamos encontrar outra pessoa pra entrar comigo.
Zum-zum-zum generalizado.
Hilda:
-- Valter! Entra o Valter com a Anna!
Valter:
-- Eu?!
Hilda:
-- É, Valter, você mesmo. Fecha esse paletó, meu filho.
Valter (fechando o paletó):
-- E essa agora...
Eu (para a moça da produção do casamento):
-- Tem um cravo sobrando pra lapela?
Produtora (no walkie-talkie):
-- Precisamos de um cravo para padrinho! Atenção, substituição de padrinho!
Eu fico boba com o universo paralelo que é o mundo dos profissionais dos casamentos...
Valter (para a Produtora):
-- Posso deixar com você esses cadernos e livrinhos?
Produtora (sem prestar muita atenção, pegando os cadernos):
-- Claro, senhor, pode deixar.
Valter:
-- Olha, muito cuidado, viu? Isso é muito importante.
Produtora:
-- An-rã. Claro, claro.
E vai embora.
Volta Hilda:
-- Tá vendo, Valter? O que é o destino. Você foi padrinho no meu casamento, e agora vai ser no casamento da minha filha!
Eu (achando ótimo entrar com ele e não com o Roberto, por quem tenho zero simpatia):
-- Você foi padrinho da Hilda e do Zeca?
Valter:
-- Fui. E mais: eu entrei com a Hilda na igreja!
Eu:
-- Mentira!
Valter:
-- Foi. Entreguei a Hilda para o Zeca.

O pessoal da produção nos encaminha para o lugar de onde vamos entrar. Tudo organizadíssimo e muito profissional. Vão montando a fila na ordem de entrada.

-- Primeiro o noivo com a tia. Agora a mãe da noiva e o pai do noivo. Padrinhos: Anna e Roberto.
Valter:
-- Não é mais Roberto. Agora é Valter.
Rapaz da produção:
-- Ah, tá. Depois, Luciana e Pedro Jorge.
Valter:
-- É melhor você anotar no seu papel que não tem mais Roberto, se não vai esquecer.

E estamos todos na fila, prontos pra entrar, quando o noivo cai em prantos.
Hilda:
-- Um lenço! Alguém tem um lenço? Para o noivo!
Silêncio.
Hilda (nervosa):
-- Ninguém tem um lenço?!
Valter:
-- Eu tenho um lenço, mas...
Hilda:
-- Dá aqui logo esse lenço.
O noivo enxuga as lágrimas, se assoa, e guarda o lenço no bolso.
Começa a música. Entram Edson e a tia, Hilda e o pai do Edson.
O rapaz da produção chama:
-- Anna e Roberto!
Valter suspira. O rapaz continua:
-- Vocês entram, vão andando bem lentamente, e depois se coloquem do lado esquerdo do altar.
E assim fizemos. Sob os olhares incrédulos de Regina, Yeda e Helga. E ao som de Legião Urbana (meu Deus!).
Ficamos ao lado da Hilda, logo na primeira fila de frente para a "platéia". Havia o celebrante (pastor, padre, sei lá) e uma mesa com o livro onde eles assinariam o registro civil. Em cima da mesa, um jarro de flores (copos-de-leite). Em volta das flores, dezenas e mais dezenas de abelhas. Na mesma hora pensei que tinham que tirar aquele jarro dali, para que o casamento não começasse com uma tragédia. Notei que ao longo dos corredores onde estavam os convidados, havia enfeites com flores iguais. De modo que havia um montinho de abelhas sobre a cabeça dos convidados em cada fileira.
Edson tinha os olhos tão vermelhos de tanto chorar que temi por ele. Achei que talvez não agüentasse de emoção. Entraram padrinhos, padrinhos, e mais padrinhos. E aí -- não, não surgiu a carruagem puxada por cavalos brancos. Muito ao contrário, apareceu no gramado um carro!, um Fiat Palio Weekend preto!, de onde saíram a Flávia e o Zeca e as daminhas de honra, jogando pétalas de rosa no caminho.

A noiva vestia um modelito cor-de-rosa, tomara-que-caia, que definitivamente não favorecia sua silhueta um pouco roliça. Mas, pela terceira vez, não me cabia fazer nenhum comentário sobre trajes, é claro. Tinha também um aplique na cabeça, mais ou menos uma tiara de brilhantes, que não parecia muito confortável. E um véu branco e enooorme. Tudo muito estranho. E ela chorava. E como chorava! Chorava como eu nunca vi nenhuma noiva chorar antes. Já vi noivas emocionadas, segurando o choro, mas entrando e se esforçando para rir para os convidados. A Flávia, coitada, soluçava. A ponto de, no meio do caminho, o Zeca parar para enxugar as lágrimas dela. Caramba, com um noivo e uma noiva se casando aos prantos, o que será do futuro desse casal?

Para meu alívio, quando Zeca e Flávia chegaram ao altar, a eficiente wedding-coordination já havia removido a jarra com as flores e as abelhas assassinas. Que continuavam apenas por sobre as cabeças dos convidados. E rondando ali a área dos padrinhos também, pra falar a verdade.

A cerimônia começou de maneira inédita para mim: com a leitura do ato de registro civil ("número 126.836, folha 378, 93º cartório etc etc") que os habilitava para o casamento. Um pouco depois veio o momento tão célebre, mas que eu nunca, jamais tinha visto acontecer na prática. O celebrante perguntou:
-- Se alguém se opuser a esta união, fale agora ou cale-se para sempre!

E eu achando que isso era só em filme e novela. (Esse dia me mostrou que eu não conheço nada em matéria de casamento!)

Pra mim a fala do pastor foi muito longa e muito chata. Em momentos ele quis "ganhar a platéia" fazendo piadinhas que não me agradaram em nada. O melhor momento, na minha opinião, foi:
Celebrante:
-- Estou vendo que a Flávia está um pouco nervosa com a presença das abelhas...
Flávia:
-- Eu sou alérgica!!
Celebrante:
-- Não se preocupe, elas não vão fazer nada. Sabe, Flávia, a presença das abelhas é um ótimo sinal para um casamento. Porque um casamento é assim, tem momentos doces como o mel, e momentos de ferroadas.
Pfffffffff. Eu mereço!
Valter, ao meu lado, saca um caderninho e um lápis em determinados momentos da fala do pastor, para tomar notas. Isso mesmo. No altar.

O resto da cerimônia foi normal, nada digno de nota. Conselhos, orações, pode beijar a noiva, aplausos.
E de lá para a festa.
Que, diga-se, foi uma certa meia-bomba.
Valter recuperou, na primeira oportunidade, seus caderninhos e livros com a Produtora de eventos. Todos sãos e salvos, felizmente.
Sentamos todos numa mesa, e ficamos um tempo ocupados em falar mal de Roberto, espantados com o ponto a que chegou o processo de decadência e finalmente falência da pessoa. Falência moral, social, humana. Nenhuma consideração com os outros. Muito impressionante. (No dia seguinte da festa liguei para Hilda para dar os parabéns e dizer que tinha adorado tudo, e descobri que Roberto não havia nem mesmo se dignado a dar um telefonema para justificar a sua ausência -- ou pedir desculpas. Que coisa incrível. Eu, por mim, parei com aquela família.) Regina, muito envergonhada com a situação, defendia a teoria de que a maquiavélica namorada de Roberto é que não tinha deixado ele ir, porque não tinha sido convidada. Não faz sentido, pois se ele a tivesse levado ela obviamente não teria sido barrada. E mesmo que fosse por isso, uma pessoa que se deixa subjugar assim só merece o mais profundo desprezo. Não acredito nessa teoria, enfim.

Mas a festa começou, e eu morrendo de fome àquela altura, e só uns salgadinhos gordurentos passando. Uma mesa de frios linda ali, cheia de pães e queijos bonitos, mas ainda não devidamente "inaugurada". De modo que continuei faminta.
Os noivos apareceram depois, descendo uma rampa bem teatral, com luzes coloridas e fumaça, e sob anúncio de um locutor. Aplausos. Em seguida surgiu um telão onde passou um videoclip do casal [!!], com fotos de diversos momentos da vida deles. Nós, os padrinhos, tiramos fotos com os noivos.
Valter:
-- Esse casamento não teria acontecido se eu não tivesse vindo. Eu emprestei um elástico, um lenço, fui padrinho...

Quando as mesas de frios foram finalmente inauguradas, correu tanta gente que eu fiquei até com preguiça de entrar na fila. Esperei mais um pouco e depois fui, com Helga, fazer um pratinho.
Eu:
-- Puxa, Helga, que bom te ver aqui. Há tanto tempo que a gente não se encontrava! Como estão Marquinhos e Carlinhos?
Helga:
-- Marquinhos está bem, fazendo um ano de casado. Mas mora num apartamento muito ruim. Está tentando achar outro. O Carlos é promotor em S. João de Meriti. Acho que não vai casar.
Eu:
-- Hmmmm...
Helga:
-- Com o gênio que ele tem! Ele é muito difícil!
Eu:
-- !!!
Helga:
-- É, minha filha. Pior que o pai. Muito agressivo, sabe? Ele tem muitas amigas, mas com aquele gênio, nenhuma vai casar com ele.
Tentando esconder o meu espanto por ver uma avó detonando tão francamente o neto, que desde criança é obviamente gay, achei melhor mudar de assunto:
-- Olha, Helga, sempre lembro de você quando tomo vinho, nas taças lindas que você deu pra mim e pro Marido. São maravilhosas. Muito obrigada mais uma vez, tá?
Helga:
-- De nada, minha filha, é um prazer. Mas você sabe que o Carlos...
Eu (sem dar chance):
-- Olha, queijo brie! Eu adoro queijo brie! Você gosta, Helga?

Pouco depois os convidados se aventuraram para a pista de dança, que só tocava músicas de discoteca dos anos 70, mais velhas do que os noivos. Já passava das sete da noite daquele domingo longo, muito longo. Fazia frio. Nossa mesa era ao lado de uma fantástica mesa de chocolates -- que só seria devidamentre atacada depois do bolo. Até queria esperar, mas como não havia perspectiva de chegar logo o momento do bolo, resolvemos partir sem chocolates. Despedimos de Hilda e Zeca, deixamos beijos para os noivos. Na saída, ganhamos bem-casados. E havia uma lembrancinha, um vidrinho decorado com bonequinhos colados na tampa. Que, estranhamente, só eu ganhei. Regina e Helga, as assanhadas, foram lá, indignadas, buscar os seus brindes também. Para em seguida descobrirem que os vidrinhos eram cheios de camisinhas dentro. E devolveram correndo e morrendo de vergonha. Com peninha, eu guardei as camisinhas na bolsa e doei meu vidrinho com bonequinhos para Regina. Que adorou, é claro.

Helga nos guiou até um certo ponto, e depois seguiu para sua casa, ali na Taquara. Nós viajamos muitos quilômetros até chegarmos à Zona Sul, onde finalmente aportamos sãos e salvos.
Quer dizer, pelo menos até o próximo sábado, quando acontecerá a cerimônia budista de casamento de Flávia e Edson. É sério. Mas aí já não sei. Não tive 16 meses para me preparar para mais este evento. Acho que vou ter que viajar. Ou ficar doente. Ou não, se Regina pedir muito.
Aguarde os próximos relatos.