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quarta-feira, 16 de novembro de 2016

400 contra1: Uma História do Comando Vermelho


Assim nasceu o crime organizado

A história da gênese do Comando Vermelho nos anos 70 em um presídio no Rio mostra a força do coletivo carcerário

Caco Souza,

Minha incursão no tema do filme 400 contra 1 se deu há oito anos, quando li 400 contra1: Uma História do Comando Vermelho, de William da Silva Lima, livro em que ele discorre sobre sua trajetória no mundo do crime. Achei instigante acompanhar o relato de um detento que teve sua primeira prisão, por furto, aos 17 anos e, entre fugas e recapturas, passou mais de três décadas encarcerado por assalto a banco. Somado a isso William, o "Professor", integrava um grupo de detentos que conviveu com presos políticos no Instituto Penal Cândido Mendes (Ilha Grande - RJ) nos anos 70.

Foi nessa época que ele liderou o movimento que instaurou um sistema de organização dentro da prisão, na época conhecido como "Falange Vermelha". Segundo as palavras de William "era uma forma de comportamento" face a um brutal sistema carcerário e impunha certas regras de convivência entre os detentos: não aos assaltos, não aos estupros e uma busca incessante pela liberdade.

O tema era polêmico, assim como o que William afirmava no livro: a controversa convivência entre os presos políticos e os presos "proletários" durante a ditadura brasileira.

Meu primeiro contato com William foi no presídio Bangu III. Anos depois, fruto do aprofundamento de minha pesquisa sobre as origens do Comando Vermelho, realizei dois documentários: Senhora Liberdade (2004) e Resistir (2006). Minha intenção era dar "voz" à sua versão dos fatos. Foi instigante acompanhar uma perspectiva que ia na contracorrente daquilo comumente divulgado sobre o Comando Vermelho e de sua suposta origem como fruto do "aprendizado" das técnicas de guerrilha dos presos políticos.

A pesquisa para esses documentários (com a colaboração da historiadora Ana Carolina Maciel) englobou documentos em arquivos, reportagens e obras de autores como Carlos Amorim e Júlio Ludemir. Confrontei esse material com o depoimento de William, que se impunha como a visão de alguém atrás dos muros.

Inspirado pela perspectiva de abordar os primórdios do Comando Vermelho e tendo como mote o relato de William iniciei o projeto do longa ficcional 400 contra 1. Sem a pretensão de esgotar um tema tabu, concentrei a trama nos anos 70, quando a noção de um coletivo carcerário, tão difundida no discurso de William, tomou forma dentro das muralhas do presídio Cândido Mendes.

Minha intenção não foi "contar" de forma asséptica e linear a origem do Comando Vermelho. Meu filme é uma trama ficcional (baseada em fatos reais) sobre o surgimento do CV. Procurei retratar esse episódio sem heroísmos e maniqueísmos. Nos dias atuais, o crime organizado desencadeia os mais diversos sentimentos na sociedade. Não falar sobre esse assunto não significa que ele deixe de existir. Abordar não significa fazer sua apologia ou glamourização.

O grande tema que perpassa o filme é o de um grupo de criminosos que percebeu a força do coletivo carcerário, se organizou e semeou o que ficou conhecido como o crime organizado brasileiro. William da Silva Lima tinha uma história para contar e eu quis contar. Tanto a versão de William quanto a minha implicam escolhas. Meu filme é uma ficção e como tal não intenta trazer um relato isento, até porque não há isenção possível em nenhuma forma de manifestação artística. Numa batalha sem vencedores o meu protagonista é um anti-herói.

CACO SOUZA É CINEASTA. SEU DOCUMENTÁRIO RESISTIR GANHOU O PRÊMIO ESTÍMULO DA SECRETARIA DE ESTADO DE CULTURA DE SÃO PAULO. O LONGA 400 CONTRA 1, QUE ESTÁ EM CARTAZ, É SEU PROJETO MAIS AMBICIOSO

Jornal o Estado de S. Paulo

terça-feira, 15 de abril de 2014

Em busca de Gabrielle

 


Em busca de Gabrielle
A historiadora Stella Maris resenha o livro 'Em busca de Gabrielle' de Vavy Borges

Stella Maris

Em busca de Gabrielle se encontra no cruzamento que envolve a recuperação das biografias e a história de gênero. A biografada alcançou alguma notoriedade no círculo das elites carioca e paulistana, mas não exerceu atividades de grande impacto público. Gabrielle Leuzinger Masset (1874-1940) era descendente de suíços e franceses, casou-se duas vezes, sendo o primeiro marido um riquíssimo capitalista alemão. Milionária pela sua herança, sem possuir herdeiros naturais, uma vez viúva viajou por vários países, lutando com denodo para preservar a fortuna que quiseram lhe tirar. Esta luta rendeu-lhe os estigmas de excêntrica e demente.

Quem biografar

O livro prende o leitor, e não se trata de uma biografia dessas que ressaltam apenas os fatos pitorescos como chamariz para a leitura. Ao biógrafo convencional talvez seja suficiente eleger uma vida que apresente alguns aspectos “picantes” e desperte empatia. Para um historiador que se aventura nesta empreitada, uma infinidade de dúvidas se colocam de antemão: quem biografar? Por quê? Qual a relevância histórica da personagem?

O fato é que para o “historiador-biógrafo”, uma vida não basta, sendo

necessário analisar os diferentes acontecimentos e as visões sobre ela por intermédio das fontes. Este traço permeia todo o livro de Vavy Pacheco, que se utiliza de grande variedade de documentos, como fotos, jornais, crônicas de costumes, relatos de viagem, laudos médicos, processos e veredictos judiciais, testamentos, diários, cartas e bilhetes. Trata-se, aliás, de trabalho exemplar quanto ao uso dos arquivos privados.

A simpatia pessoal da autora em relação à biografada é contida pelo dever do ofício, mas isso não implica neutralidade. Depois de dar a conhecer tantas Gabrielles quantas os documentos foram capazes de mostrar, termina o livro com apreciações particulares e intitula seu último capítulo como “Minha Gabrielle”. Ainda assim, o hábito do ofício persiste e além de não resvalar em considerações subjetivistas, segue usando as fontes, neste caso os laudos psiquiátricos e veredictos judiciais, que lhe permitem uma discussão interessante sobre os limites entre a loucura e a razão, tema que costura todo o livro. Volta e meia mostra como a memória de Gabrielle foi forjada em torno da questão da loucura, fato não raro entre as mulheres ricas acusadas de “desvios de comportamento”.

O fato de ser uma biografia que emprega procedimentos metodológicos específicos da pesquisa histórica acadêmica não torna o texto pesado e sem surpresas. Colabora para isso a arte do bem narrar. Somos levados a espontâneas interjeições de espanto diante de episódios da vida de Gabrielle, a quem vemos desfilar por lugares cujas fisionomias foram alteradas com o tempo, mas que conseguimos visualizar e revisitar como que numa viagem ao passado.

Em primeira pessoa

A visão sobre Gabrielle aqui é diferente daquela que a julga como “a louca, rica e lendária tia da família”, pois a autora fala a partir de um lugar cujo alcance pressupõe uma trajetória de anos de estudos críticos sobre biografias e reflexões sobre as “escritas de si”; lugar de quem conquista autoridade para falar, e com critério fala apenas o que pode. Se o critério, a busca da justa medida e o esforço investigativo tendem a encobrir as percepções pessoais da biógrafa em relação à biografada trata-se, por outro lado, de um livro que tem por marca a pessoalidade: é escrito em primeira pessoa; personagens de sua família e de seu marido – como a própria Gabrielle – são lembradas; suas tarefas investigativas são descritas. Dados os tantos momentos em que se faz presente, é uma proeza conseguir retirar de si o destaque para fazer preponderar um senso de objetividade garantido pela pesquisa.

A despeito da pessoalidade, é a “historiadora” quem fala/escreve e, apesar disso, o leitor comum se sentirá tão à vontade como o acadêmico. Para isso corroboram a presença de um tom didático e da leveza na narrativa. A nada fácil tarefa de tratar de temas complexos de maneira simples é marca mais antiga em sua trajetória: em 1980 publicou O que é história, da conhecida “Coleção Primeiros Passos” (Brasiliense). Em outros trabalhos acadêmicos, dedicou-se à história paulista na passagem da Primeira República para o Estado Novo, sob o enfoque da história política.

A trajetória de uma produção que passa da ênfase na história política stricto senso aos enfoques da biografia e de gênero, às reflexões sobre o indivíduo e o âmbito privado, à fronteira com a psicanálise, à construção da memória e às escritas de si nos leva a pensar numa mudança. Talvez seja por isso que ela própria afirme ter demorado a realizar o trabalho sobre a “tia Gabriela”. Ficamos com a impressão de que a autora descobriu “a tempo” a possibilidade de fazer esta pesquisa e dar o tratamento escolhido.

Não só “a tempo” de que a imagem da biografada não se perdesse no tempo, mas de incorporar uma perspectiva diferente da até então adotada. Entretanto, nem tudo são mudanças, e não parece ser fruto do acaso sua preocupação em explorar os interesses da biografada pela política, manifestados – explica - “em seu sentido mais amplo (não o político-partidário)”.

Este e outros lados de Gabrielle são examinados nesta biografia. Ciente e partícipe das discussões sobre os novos desafios na realização de biografias, a autora não concebe a vida como uma trajetória unilinear onde as contradições e ambiguidades aparecem como desvios em um destino pré-concebido. São diversas as Gabrielles que estão em jogo: a forjada pela própria biografada, que adotou diferentes nomes; a projetada pelos familiares, que construíram sua memória como louca; a analisada pela autora, que mostrou suas várias facetas.

História complexa e desdobrada, mas tecida com impecável rigor. Sem pisar em falso, não faz afirmações gratuitas nem resvala para o anedotário familiar. E não seria difícil, pelo tema e material que tinha em mãos, construir uma colcha de picuinhas e curiosidades.

 Revista de História da Biblioteca Nacional

domingo, 8 de dezembro de 2013

Barba ensopada de sangue

Barbas de molho

Leia resenha sobre "Barba ensopada de sangue", quarto romance de Daniel Galera


Karl Erik Schøllhammer
Não há grande novidade em dizer que o escritor Daniel Galera (1979) é uma das grandes esperanças jovens na literatura brasileira contemporânea. Seus romances e contos foram todos promissores, no sentido pleno da palavra. Exemplos competentes de uma narrativa em formação e indicadores de uma força ficcional cuja maturidade ainda era difícil de determinar. De certa maneira, Galera foi vítima do próprio talento, pois escreve tão bem que aquilo que em outros escritores seria um resultado altamente satisfatório em seu caso parecia aquém de suas reais possibilidades. Seu surgimento na cena literária é parte da estória de um grupo de escritores de Porto Alegre que começou a publicar na rede em revistas virtuais. Fundou e participou do projeto editorial Livros do Mal, em colaboração com Daniel Pellizzari e Guilherme Pilla, onde publicou seus primeiros livros Dentes guardados (2001) e Até o dia em que o cão morreu (2003), romance adaptado pro cinema por Beto Brant com o título Cão sem dono (2007). Estreou na Companhia das Letras, em 2006, com Mãos de Cavalo, que teve uma excelente recepção crítica, e participou do polêmico projeto Amores Expressos com o romance premiado Cordilheira (2008) situado em Buenos Aires.
Desde os primeiros livros se percebia que Galera era dotado de uma capacidade artesanal na ficção com bons enredos e um estilo fluente, ainda que fechado num universo demasiado juvenil e numa cultura pop tratada sem muita distância. Por todos esses motivos foi com muita curiosidade e expectativa que iniciei a leitura do romance Barba ensopada de sangue (Cia das Letras), lançado com a promessa de ser um salto qualitativo na carreira de Galera – talvez seu primeiro grande romance e pelo menos, a julgar pelo tamanho de 422 páginas, a realização mais ambiciosa até agora. No blog da editora não faltam comentários sobre a importância desse livro que Galera levou quatro anos para escrever e a nova exposição internacional que seu lançamento garantirá ao autor e à editora, obviamente.
Vamos ao livro. Desde as primeiras páginas o enredo cativa. Já conhecia o início do romance pelo trecho publicado recentemente na seleção da revista Granta dos 20 melhores escritores jovens brasileiros, e na segunda leitura continua instigante. O jovem protagonista da história, um triatleta formado em Educação Física e professor de natação de Porto Alegre, tem um encontro revelador com o pai na véspera do suicídio deste. Contrariado, promete matar seu cachorro Beta, e escuta com interesse o relato do pai sobre o avô, um homem intenso, de paixões violentas e contraditórias, que ao ficar viúvo foge para uma aldeia de pescadores em Santa Catarina onde desaparece aparentemente assassinado pela comunidade num ato primitivo de sacrifício coletivo. A história do protagonista então se desenvolve em paralelo com a história do avô. Ele adota o cão do pai e viaja para Garopaba, no litoral de Santa Catarina, onde se estabelece num apartamento à beira-mar e consegue um emprego na academia local enquanto busca informações sobre o desaparecimento misterioso do avô — assunto ainda sensível e perigoso na pequena cidade. Há neste sentido um enredo forte na narrativa que segura o leitor habilmente e que se desenvolve sem obviedades para um desenlace bastante surpreendente que foge ao imperativo do gran finale e que obviamente não pretendo contar aqui.
Essa capacidade narrativa também era patente nos romances anteriores, como em Mãos de Cavalo em que uma viagem do narrador para escalar o Cerro Bonete na Bolívia numa espécie de fuga da banalidade cotidiana de repente se desdobra numa revisitação do passado à procura de um evento de violência que determinou sua vida adulta. Homens introspectivos, calados, fortes e enigmáticos “à gaúcha”, com dificuldades afetivas apesar de grande popularidade entre as mulheres, são os heróis prediletos de Galera. Mesmo em Cordilheira em que a personagem principal é Anita, jovem escritora brasileira em Buenos Aires, o eixo da história está no personagem portenho por quem se apaixona e que a introduz numa seita oculta de escritores.
Mas o leitor dificilmente deixa de simpatizar com o personagem, que, levado por princípios intransigentes, beirando a psicopatologia, vai em direção aos extremos prometidos pela escalação gradativa da história com agilidade de trama policial. No início de Cordilheira o autor deixa uma referencia metaliterária ao conto “O Sul” de Jorge Luis Borges, sobre um homem da capital que numa viagem às pampas se envolve num duelo de facas fatal, aparentemente preso por uma chamada enigmática do destino. A narrativa de Galera consegue resguardar seu próprio segredo, não cai na tentação de desatar todos os nós ou de arrematar todas as pontas soltas, e assim se salva da banalidade escamoteada pelos enredos detetivescos. Mas sua qualidade não se reduz a isso.

Realismo íntimo
Barba Ensopada de Sangue não é propriamente um “page-turner” cheio de ação que garante a progressão através de capítulos curtos com ganchos apelativos. A história progride num ritmo gostosamente tranquilo, sem abrir mão de uma densidade particular no estofo da história que seduz sobretudo pela motivação convincente dos pormenores na construção narrativa dos ambientes. Galera cria um realismo peculiar e sensível pela densidade que consegue dar ao cotidiano sem excessos de gordura descritiva. É uma espécie de “realismo íntimo” em que a intimidade não provém dos sentimentos nem das meditações psíquicas e diálogos interiores do protagonista senão da precisão descritiva dos cenários escolhidos e da empatia que sempre expressa com os humores do personagem. Galera lança mão aqui de um dispositivo muito feliz ao inventar uma doença neurológica — prosopagnosia — para o protagonista, moléstia que o impede de reconhecer os traços faciais de outras pessoas e até de si mesmo. Assim cria-se certa elipse na narrativa em que a cegueira relativa do personagem contrasta com a clareza dos ambientes descritos. Não sabemos bem com quem ele interage e uma provável ameaça se instala pela dificuldade de interpretar os gestos alheios. O invisível se introduz no visível sem abrir mão da transparência descritiva e introduz nela uma ambiguidade que corrobora com o clima de tensão no desenrolar da história.
Percebe-se com facilidade a vizinhança literária de Galera com a narrativa contemporânea de língua inglesa, uma indubitável referência para o autor. Como tradutor, Galera trabalhou com clássicos modernos como John Cheever, Hunter S. Thompson e Robert Crumb além de ter vertido as vozes atuais de Zadie Smith, Jonathan Safran Foer e Irvine Welsh em português. É nessa paisagem, por exemplo nos romances de Paul Auster e de Haruki Murakami, que encontraremos personagens como o deste livro: um homem do nosso tempo, catapultado por um evento de crise — o suicídio do pai, a traição do irmão, a separação da mulher amada — e então levado a procurar explicações num labirinto de acontecimentos não sempre decifráveis.
O que é interessante na narrativa de Galera é sua capacidade de criar uma visão convincente da realidade brasileira sem nenhum resquício dos eternos resgates de uma identidade histórica ou cultural e sem as tentações pitorescas e exóticas. Estamos no sul, em Santa Catarina e sem dúvida no contexto contemporâneo com características históricas claras e conflitos socioculturais rapidamente identificados. Criar personagens vivos em ambientes e enredos convincentes é a força fabuladora de Galera. Se estamos diante um romance à altura de seu tempo capaz de refletir a complexidade de seu momento talvez nem seja uma pergunta pertinente. É uma boa história e um romance excelente? Com certeza! Se vai ser o romance da década e de sua geração? Ainda não.
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Karl Erick Shollhammer é professor de literatura na PUC/Rio e autor de Ficção brasileira contemporânea (Civilização Brasileira, 2001)
Barba Ensopada de Sangue
Daniel Galera
Companhia das Letras
422 págs.
R$ 39
 Revista Cult

Confissões de um jovem romancista

Umberto Eco

Em "Confissões de um jovem romancista", autor escreve sobre a construção de seus próprios romances


 
MAURÍCIO SANTANA DIAS

Que não se esperem grandes novidades do novo livro de Umberto Eco. A despeito do título sugestivo, Confissões de um jovem romancista não é uma autobiografia do “bruxo de Bolonha” nem uma reescritura paródica de Agostinho, Rousseau, Musset ou De Quincey – muito menos de Joyce. De fato, o pequeno volume reúne quatro conferências proferidas na Universidade Harvard em 2009, nas quais o autor comenta a própria obra – sobretudo a de ficção – e em parte retoma o que seus leitores já conheciam de livros como Seis passeios pelos bosques da ficção, Pós-escrito a  “O nome da rosa” ou Sobre a literatura.
Raramente um escritor é um bom analista da própria obra. Quase sempre há uma espécie de miopia ou de névoa que se interpõe entre o criador e a criatura, precisamente porque o autor quer fazer seu objeto coincidir com sua própria imagem. Felizmente não é este o caso de Umberto Eco, que a todo o momento faz questão de afirmar que ele, como “autor empírico”, tem pouco a dizer sobre sua obra: “os chamados escritores ‘criativos’ [...] nunca devem oferecer interpretações à própria obra”, diz numa de suas formulações categóricas. Isso porque, da perspectiva do semiólogo Eco, é sobretudo ao leitor – não o “leitor empírico” (eu, você, os clientes de uma livraria), mas o “leitor modelo”, capaz de decodificar a “intenção do texto” – que cabe a palavra final sobre uma obra literária. Mas há o reverso da medalha: Eco não se faz ilusões sobre seus textos porque está convencido de que eles são apenas “um mecanismo concebido para suscitar interpretações”, ou melhor, um “mecanismo concebido a fim de produzir seu leitor-modelo”.
Pode parecer complicado, mas no fim das contas essas afirmações podem ser resumidas numa palavra: truísmo, também conhecido por tautologia. Isso quer dizer que a leitura de Confissões é enfadonha ou pouco proveitosa? Longe disso. O gosto de Eco pelos jogos de raciocínio e pela enciclopédia infinita é capaz de levar seus leitores a vertigens ilimitadas – e, a propósito, o livro se encerra com uma brilhante reflexão sobre a vertigem das listas.

Pesquisador e romancista
Mas comecemos, ou continuemos, pelo início. Logo nas primeiras páginas da apresentação, Eco relata um episódio que remete a meados dos anos 1950, quando defendeu sua tese sobre a estética de Tomás de Aquino (1957). Um dos arguidores o recriminou em tom amistoso de que sua tese se apresentava como uma espécie de “romance policial”. Eco não nos diz qual foi sua resposta naquela ocasião, mas o senhor de hoje sentencia: “Toda obra científica deve ser uma espécie de thriller – o relato de uma busca por algum Santo Graal”.
A partir de então, ele rememora como escreveu ou construiu seu primeiro e mais famoso romance, O nome da rosa: “Quando decidi escrever o romance, foi como se abrisse um grande armário no qual, durante décadas, vinha depositando meus arquivos medievais. Todo aquele material estava ali aos meus pés e eu só tive de selecionar o que precisava”. Alguém poderia objetar que essa metáfora seria mais adequada para definir o “instinto de almoxarife”, como já o acusou um de seus críticos mais contumazes, do que o bom romancista, cujo trabalho costuma implicar procedimentos mais criativos. Mas o fato é que Umberto Eco, autor empírico, não vê tanta distinção – pelo menos no plano do método – entre o trabalho do pesquisador acadêmico (que, como já vimos, deve sempre compor um thriller) e o do romancista, que antes de escrever sempre faz pesquisas minuciosas, a fim de ter o maior controle possível sobre seu objeto. Afinal “a genialidade é composta de 10% de inspiração e 90% de transpiração”, diz Eco citando Thomas Edison (no caso de Edison, a proporção era de 1% para 99%).
Não sem deixar transparecer um certo orgulho, Eco confessa que, para cada um de seus romances – com O cemitério de Praga já são seis, escritos em média a cada seis anos –, ele se prepara longamente: “Coleciono documentos, visito lugares e desenho mapas; tomo nota de plantas de edifícios, ou às vezes de um navio [...] e esboço o rosto dos personagens” etc. Estaria Eco reeditando os procedimentos experimentais defendidos por Zola há quase um século e meio? Consciente dessa possível associação, ele se antecipa e retruca antes que o acusem de naturalista plagiário: “Fiz o que fiz não porque queria imitar o realismo de Émile Zola, mas (conforme afirmei) porque, ao narrar, gosto de ter em minha frente a cena sobre a qual escrevo”.
Pensando bem, talvez essa paixão pelo excesso descritivo, pela minúcia, pela enumeração e, ao mesmo tempo, a necessidade de manter sob controle permanente uma massa gigantesca de informações sejam a principal marca de Umberto Eco, para o bem e para o mal. Nele há sempre o flerte com o absoluto, uma tensão para o infinito, mas a partir de uma perspectiva cética – e não há nada mais pós-moderno que isso.
A propósito do “pós-moderno”, em Confissões o autor de Baudolino aproveita para mais uma vez acertar contas com esse já desgastado conceito. Admite ser um praticante do “duplo código”, ou seja, escrever ao mesmo tempo para o mais sofisticado e o mais naïf dos leitores com igual proveito (os “leitores ingênuos”, no máximo, “perderam uma piscadela adicional”), recorrendo abundantemente à “ironia intertextual” e à “metanarratividade”. Mas alto lá, diz Eco: “Não sou o que certos departamentos acadêmicos americanos depreciativamente denominam um ‘textualista’ – alguém que acredita (como alguns desconstrutivistas) que não há fatos, apenas interpretações, isto é, textos”. E, neste ponto, não há o que objetar. Um de seus cavalos de batalha desde A obra aberta (1962) sempre foi explorar a tensão dialética entre os direitos do texto e os direitos do leitor. Daí as recorrentes postulações de que “a coerência interna de um texto controla os incontroláveis impulsos do leitor”, ou que “entre a história misteriosa de uma criação textual e a deriva incontrolável de suas leituras futuras, o texto enquanto tal ainda representa uma presença reconfortante, um ponto ao qual podemos nos agarrar”.
No entanto a capacidade de distinguir entre fato e ficção, entre “OFEs” (Objetos Fisicamente Existentes) e construtos puramente ficcionais, já dá sinais de vacilar. “Recentemente li que, segundo uma pesquisa, um quinto dos adolescentes britânicos crê que Winston Churchill, Gandhi e Dickens são personagens de ficção, enquanto Sherlock Holmes e Eleanor Rigby seriam reais”, diz Eco perplexo e quase resignado.

Umberto Eco e sua preciosa biblioteca: “coleciono documentos, visito lugares e desenho mapas”
Enumeração caótica
Em meio a tanta vertigem, não se pode negar que há nele essa obsessão pelo ponto fixo (o “pêndulo”), o ponto arquimediano. Por isso o “texto” não subsiste no ar ou nas nuvens, mas está solidamente enraizado no mundo, submetido a leis internas de verossimilhança, balizado por “restrições” (contraintes, diriam os teóricos do Oulipo) que tanto o autor quanto o leitor devem respeitar, a menos que se trate de uma peça deliberada e absolutamente nonsense. Mesmo que um romance nasça de duas imagens incongruentes – como o “pêndulo” e a “trombeta” –, o trabalho do escritor deverá se concentrar na construção de uma ponte que leve de um para o outro: e o resultado dessa complicada operação é O pêndulo de Foucault, diz o escritor.
Defendendo com agudeza e engenho seus pontos de vista, polemizando com bom humor, revelando alguns segredos (como o de que Cesare Pavese foi uma espécie de modelo para o personagem Jacopo Belbo), ao final do livro Umberto Eco chega finalmente a questionar os limites de sua própria criatividade, ao evocar dois autores para ele paradigmáticos: Borges e Calvino. A confissão se dá quando ele aborda um dos procedimentos centrais da poesia moderna, a “enumeração caótica”. Após ter distinguido o que para ele seriam as diferenças fundamentais entre o poeta e o romancista, Eco diz: “Pergunto-me se já elaborei uma lista verdadeiramente caótica. Como resposta, devo dizer que só os poetas criam listas caóticas genuínas. Romancistas são obrigados a representar algo que ocorre num determinado espaço e tempo, e, quando fazem isso, sempre projetam um tipo de moldura dentro da qual qualquer elemento incongruente é de certa forma ‘colado’ a todos os outros”.
Em outras palavras, é como se o romancista, ao contrário do poeta, estivesse submetido a uma racionalidade que de algum modo limitasse sua capacidade criativa. Aí está um ponto polêmico e questionável, que mereceria novos desdobramentos.
Surpreendentemente, nas últimas páginas do livro, Eco faz algumas digressões que recuperam Marx e indiretamente o associam à WWW, tingindo sua fala de um certo pessimismo. Ele lembra que, no início do Capital, Marx afirma que “a riqueza das sociedades em que prevalece o modo de produção capitalista se apresenta como um imenso acúmulo de mercadorias”; e, na outra ponta, chega à conclusão de que “a WWW é de fato a mãe de todas as listas [...] o único empecilho é que não sabemos que elementos se referem a dados do mundo real e quais, não. Não há mais distinção entre verdade e erro” (grifo meu).
E assim voltamos aos adolescentes britânicos.
Maurício Santana Dias
é professor de Literatura Italiana na Universidade de São Paulo, tradutor e ensaísta

Revista Cult

sábado, 30 de julho de 2011

A Box of Darkness

Viúva relata em livro choque ao descobrir 'vida secreta gay' do marido
Sally Ryder Brady conta jornada 'agridoce' em livro de memórias de seu casamento de 46 anos.

Ao mesmo tempo em que lidava com a dor de ter se tornado viúva, após um casamento de 46 anos, a americana Sally Ryder Brady se viu, em 2008, diante de outro desafio: o que fazer com a constatação de que seu marido era homossexual?

Esse é o tema do recém-lançado livro A Box of Darkness (St Martin's Press), em que Sally tenta mostrar como tentou fazer as pazes, na viuvez, com as "duas vidas" de seu marido, Upton.

Em uma delas, Upton era carinhoso, bom pai, divertido, inteligente, erudito, um editor bem-sucedido. Na outra vida, era introspectivo, violento, homofóbico, com tendências ao alcoolismo - e gay.

Em seu site, a autora diz que a jornada "agridoce" pela qual passou ao redescobrir seu marido atesta "os desafios e os prazeres universais do amor duradouro".

A constatação da homossexualidade ocorreu pouco após a morte de Upton, de causas naturais, em 2008, quando Sally encontrou uma pilha de revistas de nudez masculina em meio aos pertences do marido.

"Respirei fundo diversas vezes, sentindo-me de repente sem oxigênio e um pouco doente", recorda ela em seu livro.

A cena a levou de volta a 1970, quando, após uma noite de bebedeira, Upton admitiu para Sally ter tido relações homossexuais com um velho amigo. Ele atribuiu o ocorrido ao álcool e à "negligência" da esposa, que não estaria lhe dando atenção suficiente.

Pouco depois de fazer a confissão, Upton encerrou a conversa. E nunca mais o casal tocou no assunto.

'Será que eu sabia?'

Com a descoberta das revistas pornográficas, a questão voltou a atormentar Sally.

"Quero jogá-las (as revistas) fora, mas, como um advogado ou detetive coletando provas, coloco-as de volta na gaveta. Rendo-me a uma enxurrada de tristeza - primeiro, a tristeza de autopiedade de uma amante enganada; então, a tristeza pelo sexo que compartilhamos tão pouco nos últimos 15 anos; finalmente, tristeza por Upton e pelo grande fardo de seu segredo. Como eu posso não ter sabido que ele era gay? Ou será que eu sabia?"

Sally conversou com os quatro filhos, com amigos e com a terapeuta de Upton e constatou que pouco se sabia dessa "vida secreta" do marido e ele havia mantido sua homossexualidade em uma existência isolada.

"Não (eram) dois Uptons, mas duas realidades, dois mundos que ele deve ter lutado durante toda a sua vida para manter separado. (...) Posso passar o resto da minha vida tentando entendê-lo. Mas quem pode realmente saber o que passa no coração de outra pessoa? O que sei é que Upton me escolheu e que me amou. Acho que isso é suficiente", conclui a autora em sua obra.

O livro recebeu críticas distintas. Uma resenha no Washington Post desdenhou o fato de "sentirmos como se tivéssemos assistido uma esposa arrastar seu marido (aos holofotes) e dar-lhe o tratamento que ele deve ter merecido. Exceto pelo fato de que ele está morto".

Já texto do New York Times pondera que "ainda que nós, como leitores, fiquemos perturbados pela certeza de que Upton ficaria aterrorizado pela versão pública de sua história, é mérito (de Sally) o fato de que sentimos tanta compaixão pelo sofrimento dele quanto pelo dela". BBC Brasil - Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito da BBC.
Jornal O Estado de São Paulo

Open City


Solidão com vista para a metrópole
Nascido nos EUA mas criado na Nigéria, Teju Cole, de 36 anos, fala de seu elogiado romance de estreia, Open City - que o levou a ser comparado a Albert Camus -, no qual lança um olhar de desilusão sobre a Nova York pós-11 de Setembro
Francisco Quinteiro Pires
NOVA YORK

Julius é obrigado a fazer uma escolha todos os dias. Ele decide, sobretudo quando caminha sem rumo por Nova York, quem gostaria de ser. "Andar pelas ruas é uma lembrança de liberdade", acredita. A sua decisão, porém, é difícil. Julius não sabe o que deseja ser, e talvez a cidade onde mora não seja um lugar favorável para reinventar uma identidade. Nova York é uma cidade aberta, produtora incessante de possibilidades que escondem uma armadilha: a fartura de caminhos leva à paralisia do indivíduo.

Teju Cole é americano, nascido no Estado de Michigan, mas criado em Lagos, na Nigéria. Mora nos Estados Unidos desde 1992. Tem 36 anos, é escritor e criador de Julius, protagonista de Open City, o seu elogiado romance de estreia. Cole confunde nesse livro a própria perspectiva com a do personagem. "Julius é a parte nebulosa e sensível da minha alma", diz. "Ou talvez ele seja a alma coletiva de Nova York. Ele está ferido e também fere. Gosta das pessoas, mas se aparta delas. É um homem do pós-11 de Setembro que luta para descobrir como eventos recentes e antigos continuam a ecoar no presente."

O romance retrata Nova York como uma cidade subjugada. "O título Open City soa positivo porque a palavra open (aberto) sugere significados positivos", comenta. "Open city pode significar, porém, a cidade que um exército invasor ocupou durante uma guerra e preservou da destruição em troca de rendição. Bruxelas, Paris, Roma e Atenas foram cidades abertas durante a 2.ª Guerra Mundial. Sem dúvida, o termo tem conotações diabólicas."

Nova York, segundo o personagem Julius, é uma cidade traumatizada pelos ataques ao World Trade Center em 11 de Setembro de 2001. Ela inspira pesadelos. O protagonista confunde com pessoas entrando em catacumbas os nova-iorquinos que descem as escadas da estação de metrô. O seu olhar tem a influência do passado - ele observa os edifícios de Wall Street, centro financeiro da cidade, e recorda que foram erguidos por fortunas acumuladas com a venda de escravos durante o século 18. Esse é o contexto em que se desenrola a narrativa de Open City, pelo qual Teju Cole foi comparado aos escritores W.G. Sebald, Albert Camus e Joseph O"Neill.

A revista The New Yorker dedicou cinco páginas de crítica ao romance, considerado original e penetrante. Segundo James Wood, o autor da resenha e do livro Como Funciona a Ficção (Cosac Naify), "Cole criou um romance o mais próximo possível que se pode chegar de um diário, com espaço para reflexão, autobiografia, entorpecimento e repetição. Essa realização é extremamente difícil, muitos romancistas consagrados perderiam a mão, ao contrário de Cole que, misteriosamente, maravilhosamente, não desanda". Para Colm Tóibín, autor de Brooklyn (Companhia das Letras), "Open City é uma meditação sobre história e cultura, identidade e solidão, é um romance para saborear e guardar como um tesouro". Em entrevista à Time, Wole Soyinka, ganhador do prêmio Nobel de 1986, recomendou Open City como leitura de verão. A obra já tem traduções encomendadas para o alemão, o francês e o espanhol. Não há ainda previsão de lançamento no Brasil.

Nigeriano de ascendência alemã, Julius se mudou para Nova York para fazer residência médica. O enredo, porém, segundo o autor, não foi criado para abordar os problemas da imigração. "O personagem é só um imigrante envolvido com as próprias experiências", diz Cole. "Ele não representa um grupo." Julius conduz no hospital uma pesquisa sobre idosos com distúrbios emocionais. O romance começa no outono e termina um ano depois, enquanto o inverno cinza se aproxima, metáfora para a desilusão do protagonista. "Eu entendo a melancolia do Julius", diz o escritor. "Tinha de entendê-la, pois do contrário não seria capaz de escrever com convicção. Em certos dias, eu e Julius temos a mesma visão de Nova York."

De duas a três vezes por semana, Julius vaga sem objetivo pela cidade. Assim, ele pretende fugir da vida previsível representada pelo trabalho no hospital, onde as relações com pacientes e colegas se tornaram mecânicas. Para ele, cada região de Nova York é "nutrida por um tipo diferente de substância" - sendo Manhattan "a mais estranha das ilhas", e não a mais incrível. O personagem, porém, não consegue extrair nada dessa constatação. O que ele observa, e oferece ao leitor como fato constante até a última página, é a solidão absoluta dos moradores de Nova York. "Eu vejo, no entanto, mais beleza e elegância na cidade do que o meu personagem."

Teju Cole mora no Brooklyn e, ao contrário de Julius, visita os outros boroughs da cidade: Manhattan, Queens, The Bronx e Staten Island. A sua perspectiva, admite o escritor, é mais ampla do ponto de vista histórico-cultural se comparada com a do narrador, para quem o passado é um "grande espaço vazio". Nesse universo, talvez inexistente segundo o personagem, "as pessoas e os acontecimentos estão flutuando à deriva". A Nigéria, a sua terra natal, encontra-se nesse lugar onde boiam as memórias esquecidas.

O coração vazio de Julius precisa das ruas cheias da cidade para processar o esquecimento do passado e a incapacidade de acessar o presente. As várias faces dos habitantes de Nova York o oprimem porque remetem à solidão. A descrição dos lugares em Open City é realista, mas o desdobramento dos fatos depende de uma dinâmica absurda. "Open City é um trabalho de ficção, mas eu quis escrevê-lo o mais próximo da realidade", diz Cole. "Essa opção significa incluir algo do ritmo e da inércia do cotidiano. Para conceber o livro, além de ler muito sobre Nova York, realizei longas caminhadas e descrevi em detalhes o que observei."

Os encontros do médico com outros personagens são fortuitos. Cole inventou territórios sociais que Julius se sente impelido a cruzar. No que o médico se transforma depois das perambulações pela metrópole multicultural é difícil saber; o que o protagonista traz sob a superfície está bem guardado. Esses segredos se mantêm inacessíveis mesmo nas situações mais dramáticas. É o caso do término do namoro com Nádege, que havia se mudado para São Francisco meses antes. O fim da relação foi comunicado sem surpresas por telefone.

Teju Cole se preocupa em enquadrar os tempos da tragédia, que representam uma ruptura emocional e temporal na trajetória do indivíduo, mas evita descrevê-los em tom melodramático ou sensacional. "Recentemente, enquanto editava algumas das minhas fotos, percebi que existem fortes conexões entre o meu jeito de fotografar e o meu estilo de escrita. Há uma tendência de capturar o momento decisivo na vida cotidiana", afirma Cole, que é fotógrafo e especialista em história da arte holandesa.

A observação precisa e a paciência na descrição parecem ser a herança do escritor para Julius. "Consigo ter uma visão mais ampla em fotografia, ajustando a profundidade do campo: o que está perto e o que está longe entram assim em foco", ressalta o ficcionista. "Quando escrevo, coloco os seres humanos sob uma perspectiva histórica abrangente, o hoje pode ser o mesmo período de 100 anos atrás."

Depois de explorar as raízes de Nova York, Julius passa a investigar as próprias. De repente, o médico viaja para Bruxelas, capital da Bélgica, onde teria a chance - implausível - de contactar a avó alemã. A mãe e a avó sobreviveram ao nazismo. No lugar dos familiares, porém, ele encontra Farouq, marroquino que trabalha num cybercafe e deseja ser o próximo Edward Said (1935-2003), ensaísta que criticou a definição ocidental do Oriente. Farouq afirma que a sua tese sobre o mundo árabe foi rejeitada pela universidade por ter sido apresentada uma semana após o 11 de Setembro.

"Escrever sobre Nova York e Bruxelas me deu a oportunidade de pensar sobre dois lugares frequentemente comparados, por estarem em luta com o presente e o passado de maneira similar." Nenhuma das duas sugere esperança, segundo o enredo de Open City. Tema da próxima obra do escritor americano, Lagos, na Nigéria, talvez desperte a mesma desilusão. Cole admite estabelecer padrões ao observar o comportamento humano. Se ele mantiver esse hábito no atual projeto, vai mostrar a anomia de Lagos, a capital econômica de uma nação afundada em pobreza, que poderia ser considerada mais uma cidade aberta.
Jornal O Estado de S.Paulo