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quinta-feira, 22 de setembro de 2022

The Commons in an Age of Uncertainty: Decolonizing Nature





Resenha: The Commons in an Age of Uncertainty: Decolonizing Nature, Economy, and Society

Leticia Costa de Oliveira Santos

OBENG-ODOOM, F. The Commons in an Age of Uncertainty: Decolonizing Nature, Economy, and Society. Toronto: Buffalo: London: University of Toronto Press, 2020. 264 p

Abstract

In the book Commons in an Age of Uncertainty: decolonizing nature, economy and society (2020), Franklin Obeng-Odoom proposes a commons based system. His so-called Radical Alternative stands in relation to the dialectic between two fields of readings on the commons grouped as Conventional Wisdom and Left Western Consensus. He denotes that both readings are limited from a decolonial critique. The key to his Radical Alternative is on the centrality of land, autonomy, and justice from the Global South. It presents land in an approximated sense to territory/territoriality, as used in Latin America, and territorializes the political discussion of the commons. He also develops the understanding of universal justice on land and contributes to discussions on contemporary commons, as he affirms the contemporaneity of forms of relationship with the land and persistent material and cultural exchanges on the African continent.

Keywords:
Commons; Decoloniality; Socioenvironmental Justice; Political Ecology; Land

Resumen

En el libro Commons in an Age of Uncertainty: descolonizing nature, economy and society (2020), Franklin Obeng-Odoom propone un sistema basado en los comunes (commons based system). Su llamada Alternativa Radical se construye con relación a la dialéctica entre dos campos de lecturas sobre los comunes agrupados como Sabiduría Convencional y Consenso de la Izquierda Occidental. Indica que ambas lecturas, desde una crítica decolonial, son limitadas. La llave de su Alternativa Radical está en la centralidad de la tierra, la autonomía y la justicia desde el Sur Global. Presenta la tierra con un sentido cercano al de territorio / territorialidad, como se usa en América Latina, y territorializa la discusión política de los comunes. También desarrolla la comprensión de la justicia universal por la tierra y contribuye a las discusiones sobre los bienes comunes contemporáneos al afirmar la contemporaneidad de las formas de relación con la tierra y los intercambios materiales y culturales persistentes en el continente africano.

Palabras-clave:
Comunes; Decolonialidade; Justicia Socioambiental; Ecología Política; Land

Resumo

No livro Commons in an Age of Uncertainty: decolonizing nature, economy and society (2020), Franklin Obeng-Odoom propõe um sistema baseado em comuns (commons based system). Sua chamada Alternativa Radical constrói-se em relação à dialética entre dois campos de leituras sobre os comuns agrupados como Sabedoria Convencional e Consenso da Esquerda Ocidental. Ele indica que ambas as leituras, a partir de uma crítica decolonial, são limitadas. A chave de sua Alternativa Radical está na centralidade da terra, na autonomia, e na justiça a partir do Sul Global. Apresenta a terra com um sentido próximo ao de território/ territorialidade, como acionado na América Latina, e territorializa a discussão política dos comuns. Também desenvolve o entendimento de justiça universal sobre a terra e contribui para as discussões sobre comuns contemporâneos ao afirmar a contemporaneidade das formas de relação com a terra e trocas materiais e culturais persistentes no continente africano.

Palavras-chave:
Comuns; Decolonialidade; Justiça Socioambiental; Ecologia Política; Land

Introduction

Que explicações divergentes existem para as crises socioecológicas no Sul Global? Quais são as consequências de privatizar a natureza tendo em vista a diversidade social do Sul Global? Os comuns são barreiras ou uma forma de viabilizar progresso e prosperidade? Franklin Obeng-Odoom no livro Commons in an Age of Uncertainty: decolonizing nature, economy and society (2020) se debruça sobre estas questões. O autor, que vem da Economia Política, é mais categórico que alguns autores que debatem os comuns como um remanescente ou como experimentações coexistentes com o sistema capitalista: ele efetivamente propõe a instauração de um sistema baseado em comuns (commons based system).

Para apresentar esta proposta, sistematiza as leituras sobre os comuns em dois campos - o da Sabedoria Convencional (expressão que toma emprestada de J. K. Galbraith) e do Consenso da Esquerda Ocidental, situando em relação a eles sua Alternativa Radical. Ele considera ambos limitados a partir de uma perspectiva decolonial, referindo-se não apenas ao tipo de solução que apontam, mas pela própria maneira como enquadram os “problemas de comuns”.

O que apresenta como Sabedoria Convencional é principalmente representado pelo embate entre Garret Hardin e Elinor Ostrom e suas tradições analíticas. O autor indica que, embora controversas, ambas as leituras estão logicamente próximas situando a crise socioecológica dentro dos arranjos, com ênfase na agência individual, sem uma reflexão atenta sobre justiça, poder e atravessamento de escalas. Em última instância não há, para o autor, uma mudança paradigmática entre um e outro.

Em contraponto, o Consenso da Esquerda Ocidental agrupa posicionamentos advindos das leituras marxistas e neomarxistas dos comuns. Nesta chave os comuns, ou seja, tudo que é coletivizado, são apresentados paradoxalmente como uma potencial solução para o neoliberalismo, ou como base de sustentação para o avanço do capitalismo, pois é potencialmente cooptado. Para Obeng-Odoom esta confusão é alimentada pela pressuposição da inevitabilidade do capitalismo na trajetória de transformações político-econômicas e, portanto, uma crítica rasa a sua historicidade e espacialidade. Ele também indica que falta rigor em considerar que “tudo” pode ser comuns e que há uma leitura estreita (e eurocêntrica) de comuns como regimes de propriedade.

A crítica que faz às duas formas de olhar para os comuns advém de uma lente de decolonialidade. Defende que pensar a partir do Sul Global deve ser uma abordagem metodológica para investigação. O que talvez seja a mais importante contribuição deste livro está na forma de conduzir a pesquisa tendo a decolonialidade como método, o que se reflete no enquadramento do problema, e na definição das fontes dos dados e dos critérios de análise.

Em relação às fontes e ao material citado, Obeng-Odoom pauta-se majoritariamente em estudos conduzidos em países africanos, com destaque para Gana e África do Sul, e estudos conduzidos pelo próprio autor. Ele se utiliza ainda de relatos de campo, tradição oral, e decisões judiciais, que afirma que costumam ser descartados como fontes. Destaca que esta escolha metodológica tem uma implicação na política de produção de conhecimento, uma vez que não são abundantes dados de coletas sistemáticas para estudos no continente africano.

Refletindo o problema de investigação, ele indica que o tipo de enquadramento que parte do Norte Global implica em soluções que também vêm do norte - soluções estas que passam por caminhos supostamente incontornáveis para o progresso, como o mercado, a propriedade e a comoditização da natureza. Destacando a insuficiência de análises sobre os comuns no sul que efetivamente partem do sul, ele observa que o Sul Global é usualmente apontado como a fonte das incertezas, dos conflitos e das fragilidades ambientais e institucionais, cabendo na chave explicativa das tragédias dos comuns. Tal enquadramento enviesado pressupõe o Sul Global como detentor de uma natureza prístina e populações humanas isoladas que em dado momento passam a sofrer impactos por motivações puramente econômicas, negligenciando a co-dependência de aspectos socioecológicos. Esse olhar é anistórico, pois ignora a herança da colonialidade na formação da economia política e territorial do Sul Global e da África em particular, além de relevar a persistência das interações através de escalas no sistema global no qual o sul seria central e não periférico.

Ele propõe uma revisão histórica dos comuns. Entende que não há uma deliberada negligência com relação à história dos cercamentos (enclosures), mas as leituras históricas se dão usualmente a partir das lentes marxistas, dos cercamentos ingleses que marcam a transição do feudalismo para o capitalismo. Esta seria uma perspectiva limitada, que não olha para a formação da propriedade privada sobre a terra em outros lugares que não a Europa (tampouco para o surgimento do dinheiro, das dívidas, etc.), que ele destaca como fundamental para que se entenda a dinâmica das terras, a apropriação e o rentismo, a relação com a natureza e as relações sociais.

No corpo principal de argumentação do livro o autor olha para as contribuições da Sabedoria Convencional e do Consenso da Esquerda Ocidental em relação a quatro entradas (cidade, tecnologia, petróleo e água). Ele identifica o que considera as falhas destes campos, a partir de cuja dialética estabelece o marco de sua Alternativa Radical.

Para Obeng-Odoom as soluções a partir da Sabedoria Convencional dão-se em defesa da “terceira via”, pautada na ação coletiva, nas soluções das pessoas organizadas e na recusa da centralidade do poder do Estado. Embora defendam a capacidade das comunidades de gerir os recursos, terminam por fomentar soluções de mercado (privatização, taxas, etc.), partindo de lógicas de escolha racional, aumento de eficiência e em defesa de uma “soberania consumidora” para garantir a prosperidade e o acesso aos recursos (como a suposta ampliação do acesso à água pela venda de água engarrafada), sem uma preocupação com a justiça. Além disto, pautam-se na tecnologia, tendo uma leitura triunfalista do avanço tecnológico e da inovação.

Para o autor, a divergência mais significativa do Consenso da Esquerda Ocidental está em sua centralidade da justiça, que não tem espaço na Sabedoria Convencional. O Consenso da Esquerda Ocidental opõe-se às soluções de mercado; no entanto, embora seja crítico da leitura triunfalista da tecnologia, defende sua apropriação (como dos meios de produção) para uma “nova economia”, sem uma crítica mais profunda sobre esta trajetória de transições econômicas e tecnológicas. Faz particular crítica ao vazio dos discursos ambientalistas e de decrescimento que não dão conta dos impactos socioambientais, por exemplo, de uma transição abrupta para matrizes energéticas renováveis que não atacam questões de justiça, expulsão da terra, perda de empregos, em função de demandas oriundas do norte global, para quem a África deve atender como usina do mundo. É uma visão que solidariza com os interesses locais, mas ainda assume uma postura paternalista, tal qual a Sabedoria Convencional, em esforço de “Salvar a África dos Africanos”.

As duas leituras têm valores distintos, mas comunalidades arraigadas. Para além das insuficiências das leituras, ele entende que as próprias soluções podem ser parte do problema, pois agravam a desigualdade social e os impactos ambientais. Ambas enquadram os problemas como uma necessidade de controle e eficiência, pela pressuposição de tragédias: escassez de recursos e crescimento descontrolado. Ambas antagonizam o Estado, depositam muita confiança na inovação tecnológica, (e impactos decorrentes, por exemplo, da extração de matéria prima para a produção de artefatos até especulação mediada pela tecnologia), negligenciam a terra. Embora minem a autodeterminação dos povos, apresentam um olhar romantizado para as soluções locais cujas limitações estruturais são questionáveis, bem como a precariedade, o risco à vida e à saúde (tais como a produção das favelas ou a atividade de coleta de material reciclável).

Obeng-Odoom propõe que se olhe criticamente para os processos que formaram as atuais condições sociais na África com destaque para a herança de sistemas de planejamento, as justificativas científicas que produziram cidades segregadas (que persistiram mesmo com o fim da colonização), para a supressão de formas autóctones de relações de troca, e para a imposição de formas de se relacionar com a terra, de padrões de produção, propriedade e consumo que não se compatibilizam com relações sociais existentes ou almejadas. Ressalta o posicionamento da África como fonte de energia e matéria-prima do mundo e a imposição de mercados e relações de propriedade ditos formais que, por exclusão, definiram a informalidade. Neste sentido, a chave de sua Alternativa Radical está na centralidade da terra, na autonomia, e na justiça a partir do Sul Global.

Ao longo do livro, Obeng-Odoom reitera que ao pensar em comuns, está olhando para terra (land). De certo modo, territorializa a discussão política dos comuns ao enfatizar a renda, despossessão, a especulação, a fonte material de recursos e os vínculos de vida para além de pensar os comuns (ou o comum) como ação política apenas. Ele destaca a centralidade da terra para a vida na África - assim como em outros lugares do Sul Global - e chama a atenção para o “sentido africanista de terra”. Embora pouco dialogue com autores latino-americanos, suas leituras aproximam-se do sentido de território e territorialidade para autores como Escobar (2010) e Haesbaert (2014). Terra aqui tem um significado particular: não é suporte para a natureza, mas é a natureza em si, bem como inseparável da economia e da identidade de africanos e de pessoas negras pelo mundo. Terra é apresentada como um conceito totalizante, que contempla o que é vivo e não vivo. É, além disto, sagrada, reverenciada e protegida; é produzida, embora isto não justifique sua apropriação.

Neste sentido, ele trabalha com um entendimento particular de justiça, de direito universal à terra, mesmo que nela não trabalhem - o que vale inclusive para quem vem de fora, como estrangeiros. Nas concepções africanistas, terras comuns não são terras sem dono, mas que pertencem à comunidade. Por sua vez, pertencer à comunidade não significa estar fechado a quem vem de fora, que podem negociar com os que já estão. Sendo assim, ele posiciona seu entendimento de comuns afastado de autores que entendem que o acesso ao recurso é garantido apenas aos que o produzem.

Isto é coerente com uma ideia de abundância (CAJIGAS-ROTUNDO, 2007), em que a preocupação com o “aproveitadores”, que permeia os pensamentos principalmente da Sabedoria Convencional, mas também do Consenso da Esquerda Ocidental, não cabe. A ameaça para os comuns são os aproveitadores invisíveis, como os proprietários de terra ausentes, de modo que a solução seria a distribuição da terra de forma equitativa e atenta às demandas locais. Neste sentido, ele também tira o excesso de apego da agência em relação à estrutura - que acredita ter tomado mesmo as leituras derivadas do marxismo.

Ainda nesta esteira, os comuns - ou a terra - não poderiam ser analisados como um tipo de propriedade (ou de relação de propriedade), pois precedem sua existência. Esta seria uma forma eurocêntrica de pensar os comuns, que observa as transições de regime de propriedade e a tendência da terra a tornar-se commodity - o que para Obeng-Odoom não caberia no sentido africanista de terra, já que não pode ser capitalizada, pois não é substituível. Entender conflitos de terra como conflitos sobre a apropriação de uma commodity poderia provocar que se ignore outras camadas de relação da sociedade com a terra que vão além da exploração econômica. Ignoram ainda as instituições locais, os mercados existentes, a economia da dádiva, os sistemas de partilha de terra e trabalho, os sistemas de recompensa, a solidariedade e uma miríade de formas de troca material e cultural persistentes no continente africano, e o próprio sentido de comuns.

Finalmente, sua Alternativa Radical supõe a promoção de uma mudança estrutural, também através dos Estados (não isolados dentro do continente), tendo a autonomia como componente fundamental. Tal qual pensadores latino-americanos da Ecologia Política, como Escobar (2016) e Souza (2019), sugere a construção de instituições pautadas nos entendimentos locais de justiça e relação com a terra, com menos ênfase em crescimento econômico e mais ênfase em distribuição e soberania. Em suma, defende que qualquer solução deve vir de garantia - e não da retirada - da autonomia e da autodeterminação do Sul Global. Ao indicar que se olhe para os comuns na África, está tratando formas presentes, necessariamente contemporâneas, não de formas “primitivas” ou “pré-modernas”. Ele se aproxima de um importante debate sobre o que são os comuns contemporâneos, que não se limitam aos comuns “tecnológicos”, “culturais” ou “urbanos”, mas que os contemplam, e são absolutamente vinculados ao território. Fala a partir do Sul Global não como um representante deste universo (destaca sempre sua posicionalidade africana), mas como uma fonte de contribuição global que expande um horizonte de possibilidades de futuros.

Agradecimentos

Agradeço ao autor, Prof. Franklin Obeng-Odoom e à University Toronto Press pela cessão do exemplar do livro para a revisão.

Franklin Obeng-Odoom, PhD., Universidade de Helsinki, Finlândia

Referências bibliográficas
CAJIGAS-ROTUNDO, Juan Camilo. La Biocolonialidad del Poder : Amazonía, biodiversidad y ecocapitalismo. In: CASTRO-GÓMEZ, Santiago; GROSFOGUEL, Ramón (org.). El giro decolonial : reflexiones para una diversidad epistémica más allá del capitalismo global. Encuentros. ed. Bogotá: Siglo del Hombre Editores; Universidad Central, Instituto de Estudios Sociales Contemporáneos y Pontificia Universidad Javeriana, Instituto Pensar, 2007. p. 169-194.
ESCOBAR, Arturo. Autonomía y diseño: la realización de lo comunal. Primera edición en castellano ed. Popayán, Colombia: Editorial Universidad del Cauca, 2016. 280 p.
ESCOBAR, Arturo. Territorios de diferencia: lugar, movimientos, vida, redes. 1. ed. Bogotá: Envión Editores, 2010. 386p.
SOUZA, Marcelo Lopes De. Ambientes e territórios: uma introdução à Ecologia Política. 1a edição ed. Rio de Janeiro: Difel, 2019.350 p.
HAESBAERT, Rogério. Viver no Limite : território e multi/transterritorialidade em tempos de in-segurança e contenção. 1. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2014. 320 p.
OBENG-ODOOM, F. The Commons in an Age of Uncertainty: Decolonizing Nature, Economy, and Society. Toronto; Buffalo; London : University of Toronto Press, 2020. 264 p.

terça-feira, 28 de junho de 2022

Cidades sitiadas: O novo urbanismo militar




Mobilidades militares nas cidades contemporâneas

Frank Andrew Davies

GRAHAM, Stephen. Cidades sitiadas: O novo urbanismo militar. São Paulo: Boitempo, 2016




Lançado no Brasil em 2016 pela Boitempo, o livro Cidades sitiadas: O novo urbanismo militar, do inglês Stephen Graham, dialoga diretamente com a escalada de atenção e investimentos em segurança nas grandes cidades do mundo. Em nosso país, mudanças no perfil socioeconômico da população e compromissos com uma agenda de grandes eventos internacionais alçaram o tema a problema social de primeira ordem nas últimas décadas, mobilizando práticas, recursos e imaginações que, por sua vez, culminaram em diferentes experiências de gestão urbana. A “pacificação” promovida por programas estaduais que preconizavam a presença ostensiva de policiais militares em favelas e territórios de pobreza talvez seja a face mais visível dessas estratégias. Contudo, outras ações governamentais e não governamentais foram mobilizadas a fim de lidar com o fenômeno da criminalidade e da “desordem urbana”: parcerias público-privadas para incremento do controle urbano de bairros centrais e valorizados, consolidação de milícias e grupos paramilitares e a própria reorganização e expansão do Primeiro Comando Capital (PCC) pelas periferias do país estão entre as dinâmicas que têm movimentado nossas rotinas sob toque de guerra.



Cidades sitiadas, entretanto, se dedica a outro contexto, ainda que sob o mesmo pano de fundo: a “Guerra ao Terror”, promovida a partir dos anos 2000 pelos EUA com apoio de países parceiros, oferece ao autor a possibilidade de analisar em perspectiva o avanço de discursos, políticas e tecnologias de monitoramento e vigilância de populações nas grandes cidades do mundo. Evitando nacionalismos metodológicos, a pesquisa de Graham inova ao dar ênfase a fluxos que operam na produção dessa forma de governo, que alcança escala global a partir de circuito variados, com origens, destinos, condições locais e agentes de mediação sui generis. Mais do que explicar o fenômeno do “urbanismo militar” por homogeneizações e simplificações analíticas, essa obra convida pesquisadores a explorarem os aspectos particulares ajustados às variadas situações urbanas.



O livro conta com dez capítulos, e na edição brasileira conta ainda com uma apresentação feita pelo geógrafo Marcelo Lopes de Souza, que contextualiza a obra no contexto nacional. Na perspectiva de Souza, nos últimos anos a “militarização da questão urbana” tem atravessado distintos cenários contemporâneos, e por isso tem ocupado espaço importante em debates e produções científicas. Contudo, para além de uma tendência internacional, o livro de Graham contribui ao identificar como tal processo tem se dado no chamado Norte Global, em especial por intercâmbios e circuitos que envolvem EUA, Israel e Reino Unido. Aos leitores brasileiros, Souza adverte para uma diferença essencial que constitui a maior parte do Sul Global: diferentemente do Norte, onde o objeto dessas práticas são as minorias étnicas, por aqui o alvo é o próprio povo, logo, a maioria.



Ainda que essa diferença fundamental não seja explorada no texto de Graham, sua obra permite compreender que o uso de conceitos como “Norte” e “Sul” eventualmente provoca borrões sobre os trânsitos que comunicam essas realidades. Recorrendo à analogia do “efeito bumerangue” utilizada por Michel Foucault ao descrever técnicas de gestão aplicadas em colônias e depois replicadas nas metrópoles, o autor inglês ressalta que “o novo urbanismo militar se alimenta de experiências com estilos de objetivos e tecnologia em zonas de guerra coloniais, como Gaza ou Bagdá, ou operações de segurança em eventos esportivos ou cúpulas políticas internacionais” (GRAHAM, 2016, p. 30). Nesse sentido, para Graham o “bumerangue” que movimenta o “novo urbanismo militar” sob diferentes cenários é mais complexo, ainda que organizado por “prósperos mercados de segurança nacional ao redor do mundo” (Idem). Além de serviços e técnicas de identificação, rastreamento e policiamento, o autor constata que valores morais e até uma visão própria de mundo tem acompanhado e pautado esses investimentos. A militarização das cidades, portanto, seria fenômeno espacial, político e também cultural, na medida em que reforça lógicas colonizadoras e beligerantes de ordenamento e suspeição sobre a diversidade dos modos de viver e ocupar os espaços urbanos.



Os três primeiros capítulos apresentam e fazem síntese do que o autor entende por “novo urbanismo militar”, definindo suas características. No texto que abre o livro, Graham explica como, no advento da Guerra Fria, a ameaça iminente de destruição urbana conduziu a distintas medidas de mitigação: investidas nos subúrbios como local de moradia para a classe média (possibilitada pelo rodoviarismo e baixo custo dos combustíveis) e a verticalização de edifícios foram algumas das ações que reconfiguraram as cidades sob eventual mira de bombas e disparos. Na era pós-Guerra Fria, entretanto, conflitos dos mais variados tipos têm eclodido e se revelado marcadamente urbanos, de modo que “a guerra volta à cidade” sob novo contexto e roupagem, desafiando e reposicionando limites antes estabelecidos entre segurança pública e nacional. A dissolução do “binarismo westfaliano”, este mesmo binarismo que sedimenta a própria ideia moderna de Estado nacional, tem se dado sob efeitos de uma nova modalidade de guerra. Como conjunto de práticas e representações, o urbanismo militar dissolve distinções entre civis e militares, presumindo um mundo em que os primeiros não existem (Idem, ibid., p. 67).



O segundo capítulo analisa produções discursivas e estéticas que em linhas gerais têm orquestrado esse novo urbanismo. Graham chama atenção para a dinâmica criação e difusão de imaginações urbanas sob essa lógica, que não provém de uma única origem. Em vez disso haveria uma relação entre “espelhos maniqueístas” que, por um lado, sentimentalizam espaços e grupos sociais, e, por outro, desumanizam e desconsideram formas de existência. Um exemplo são os grupos terroristas responsáveis por atentados, facilmente entendidos enquanto antiurbanos; entretanto, sob o espelho desses grupos está parte considerável da direita americana que apoia a Guerra ao Terror, mas que não por isso toma os contextos urbanos com mais apreço. Ao preferir o conforto dos subúrbios e tomar a “nação” sob termos próprios, conservadores têm de igual modo vertido as grandes cidades em território inimigo.



O avanço da militarização das cidades, portanto, tem levado ao acirramento de conflitos externos e internos, impulsionando sentimentos de ódio e intolerância racial. Sob a égide desse processo, a construção imaginativa do “outro” nos espaços urbanos tem se “orientalizado” sob o risco do terrorismo, comprometendo representações alternativas sobre as cidades e seus moradores.



O terceiro capítulo do livro é dedicado a conceituar o fenômeno do novo urbanismo militar, marcando continuidades e rupturas frente a militarização, tomada pelo autor como processo mais longo que se sustenta em divisões sociais e na demonização de inimigos e locais inimigos. Além disso, comenta Graham, “a militarização também envolve a normalização dos paradigmas militares de pensamento, ação e política” (Idem, ibid., p. 122), o que nas formas do “novo urbanismo” tem se dado sob modos próprios. Tendências têm constituído essas dinâmicas, e algumas delas já foram trabalhadas nos capítulos anteriores, entretanto o autor é enfático ao apontar a principal característica do novo urbanismo militar: “a reorganização radical da geografia e da experiência de fronteiras e limites” (Idem, ibid., p. 155).



Nesse sentido, o que é definido na obra por urbanismo se aproxima à ideia de regimes de circulação de populações e de figuração de espaços urbanos, ao passo que destaca no contexto contemporâneo a condição militar que rege pressupostos e regras de controle dos sistemas urbanos. Graham tematiza a cidade, portanto, tomando a mobilidade como objeto de investigação e analisando as chaves de acesso que operam na vida cotidiana. Entende, em afinidade com outros autores, que a circulação de pessoas, objetos e informações marca essencialmente os dias de hoje, e por isso as investidas científicas devem se atentar às “interdependências fluidas”, em vez de estabelecer esferas separadas a esses fenômenos (SHELLER e URRY, 2006).



Nesse livro, as mobilidades que ganham relevo são as que afetam as cidades pela produção e reprodução de fronteiras, que no limite conduzem às situações de guerra. Por essa perspectiva, é possível aproximar os esforços investigativos de Cidades sitiadas à discussão das mobilidades, de modo mais atido às “mobilidades militares” que circunscrevem não apenas o contingente de profissionais e materiais das Forças Armadas e demais forças de segurança, mas o conjunto de prestadores de serviço, operadores indiretos, volumes de dados e equipamentos que acompanham os agentes e suas formas de atuação nos espaços urbanos (WOODWARD e JENKINGS, 2014).



O quarto capítulo da obra se debruça sobre as “fronteiras onipresentes” do novo urbanismo militar, reforçando o argumento de que se trata de outra forma de fazer guerra, em um contexto em que antigas fronteiras se dissipam para dar lugar a novos modos de diferenciação e acesso. A “securitização” do conflito urbano, expressa na adesão maciça de técnicas de monitoramento e vigilância, reconfiguram a vida citadina pelo incremento dos enclaves fortificados de luxo e o controle mais ostensivo sobre zonas de pobreza por meio de novas tecnologias de segurança e estratégias de policiamento. O consequente aumento da fragmentação da cidade resulta das dinâmicas tomadas sob pretexto da segurança que, em linhas gerais, desdobram efeitos sobre os direitos e a própria representação do espaço urbano. Considera o autor: “dessa forma, tanto as cidades quanto a cidadania se tornam progressivamente reorganizadas com base nas ideias de mobilidades, direitos e acesso provisórios - em vez de absolutos” (GRAHAM, 2016, p. 211).



Se no contexto pós-Guerra Fria as divisas nacionais têm se tornado mais fluidas, Graham destaca o estabelecimento de novas fronteiras dentro da própria nação, em particular nas cidades. Tais fronteiras não apenas determinam formas de acesso e circulação nos espaços, mas quem são os que merecem ser tomados por “inimigos” nessa guerra. Nesse sentido, a securitização como modalidade de conflito urbano aprofunda visões calcadas na diferenciação social, emulando as ferramentas do poder soberano.



Entre o quinto e o nono capítulo o argumento do livro desvia das explicações gerais acerca do tema e passa a explorar as dimensões empíricas do novo urbanismo propalado pela Guerra ao Terror. Promovida por uma aliança internacional entre mercados e governos de Israel, EUA e países europeus, os conflitos em curso no Oriente Médio têm se aproveitado de técnicas de gestão da população palestina na Faixa de Gaza, a partir daí se espraiando às grandes cidades contemporâneas onde participam da construção das “fronteiras onipresentes”. Nessa parte da obra Graham trata de apresentar e analisar alguns dos “bumerangues” que mobilizam essa nova forma de ordenamentos urbano, o que envolve novas tecnologias mas também antigos modo de pensar as cidades e a ideia de pátria que nesses contextos são atualizados.



O capítulo “Sonho de um robô da guerra” explora imagens e projetos de uma vigilância informatizada que seria imparcial, produtora de mortes por desvios de um padrão técnico pretensamente definido; “Arquipélago de parque temático” aborda os simulacros que constituem esse novo urbanismo: cidades do Sul Global são emuladas em treinamentos militares, seja em videogames - que dispersam da caserna à vida civil, facilitando o trabalho de recrutamento entre a população jovem - ou em instalações físicas feitas nas bases, onde tropas aprendem a operar sobre um espaço genérico “onde Bagdá está em toda parte” (Idem, ibid., p. 261). Ao mesmo tempo o sentido de pátria (“homeland”) também é simulado nas áreas militares em território estrangeiro, onde vilas residenciais se aproximam da estética suburbana americana. Mobilidades militares, portanto, dinamizam formas de representar o espaço por meio de processos de desterritorialização e reterritorialização, o que envolve o lugar do inimigo mas também o espaço da casa pelo qual se deve combater.



O sétimo capítulo, “Lições de urbicídio”, se detém às relações imiscuídas entre EUA e Israel para o desenvolvimento de uma expertise de guerra, que retroalimenta serviços e lógicas de segurança das cidades. Na perspectiva do autor, estaria nessa aproximação o vetor de maior dispersão do novo urbanismo militar para o mundo, e “Desligando as cidades”, o oitavo capítulo, apresenta a versão mais radical da guerra securocrática, calcada na destruição de sistemas de infraestrutura das cidades inimigas. Chamada de desmodernização urbana ou modernização reversa, essa orientação militar tem sido a tônica dos últimos conflitos empreendidos no Oriente Médio e revela a crueldade dessa lógica de guerra, que imagina ao mesmo tempo que produz a diferença em relação ao “outro”. Segundo Graham, a representação de países como “subdesenvolvidos” e de certas populações como bárbaras sustenta a prática que produz ela mesma o “subdesenvolvimento” e a condição de barbárie por meio da destruição das cidades. O penúltimo capítulo trata em especial de um rebatimento do urbanismo militar para a metrópole, em especial os EUA e a disseminação da cultura do “carro de ataque urbano”, os SUVs. A coincidência entre o aumento de vendas desse modelo de automóvel e o advento da Guerra ao Terror é entendida pelo autor como um dos indícios da disseminação de valores particulares sobre a cidade e a relação que os indivíduos têm estabelecido com o espaço: ao reduzir o contato com o mundo externo, os SUVs compõem uma fantasia de controle e de encapsulamento da realidade. Assim o automóvel pode ser pensado sob essa perspectiva como uma dessas “fronteiras onipresentes” do novo urbanismo militar.



O último capítulo do livro se dedica às contrageografias. Apresentando diferentes iniciativas que têm desafiado e interrompido as lógicas e os circuitos desse novo modo de urbanismo, Graham conclui que “essas experiências oferecem lições importantes para contestar a militarização urbana” (Idem, ibid., p. 444). Obras de arte, produções cartográficas e reapropriações de tecnologias de controle estão entre os exemplos explorados no encerramento da obra que, em comum, produzem novas narrativas e formas de representação da realidade denunciando os efeitos do urbanismo militar. Mais importante para o autor, contudo, é que essas contrageografias não se sustentam em novos cosmopolitismos e ideais universais de democracia, preferindo em vez disso “atuar contra o silenciamento habitual dos ‘outros’ não ocidentais” (Idem, ibid., p. 470) e construindo com essas populações os sonhos de novos mundos e cidades.



Lançado há uma década, Cidades sitiadas se mantém referência nos debates sobre as cidades contemporâneas. No bojo da profusão de mobilizações interurbanas contra as políticas de segregação espacial e genocídio racial e étnico, o livro de Graham evoca a necessidade por compreender as conexões internacionais que produzem e sedimentam populações e territórios como periféricos, atrasados e indignos da cidade e cidadania. A obra, nesse sentido, estimula novas imaginações e fornece instrumentais analíticos ao pesquisador arguto por desvendar as formas e os aspectos que têm territorializado as mobilidades militares.

Referências
GRAHAM, Stephen. Cidades sitiadas: O novo urbanismo militar. São Paulo: Boitempo, 2016.
SHELLER, Mimi; URRY, John. “The New Mobilities Paradigm”. Environment and Planning, vol. 2, n. 38, pp. 207-226, 2006.
WOODWARD, Rachel; JENKINGS, K. Neil. “Soldier”. In: ADEY, Peter et al. (orgs). The Routledge Handbook of Mobilities. Londres: Routledge, 2014.

Entre rios e impérios: a navegação fluvial na América do Sul









RELAÇÕES INTERCULTURAIS NAS ROTAS DAS MONÇÕES

Maria Aparecida de Menezes BorregoJean Gomes de Souza
Resenha de: CARVALHO, Francismar Alex Lopes de. . Entre rios e impérios: a navegação fluvial na América do Sul. São Paulo: Editora Unifesp, 2019.




Eruto da dissertação de mestrado de Francismar Alex Lopes de Carvalho, defendida na Universidade Estadual de Maringá em 2006, Entre rios e impérios analisa, com abordagem renovada, as relações interculturais entre as populações envolvidas nas rotas das monções. Confrontada com o texto que lhe deu origem, a redação do livro, publicado em 2019 pela Editora Unifesp, apresenta a incorporação de reflexões, documentos e referências bibliográficas acumulados ao longo dos anos.



A obra está dividida em 3 partes e 10 capítulos. Na primeira, Itinerários do Extremo Oeste, Carvalho, hoje professor de História da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), focaliza os caminhos fluviais e terrestres que levavam à fronteira oeste da América portuguesa desde o século XVII, com destaque para as ações dos grupos nativos no controle das rotas. Na segunda, Os práticos da navegação fluvial, ressalta o protagonismo dos mareantes mamelucos no movimento monçoeiro. Na última, Os senhores dos rios, problematiza as guerras e alianças entre as populações indígenas e os adventícios na disputa pelo domínio do rio Paraguai, sobretudo durante a primeira metade do Setecentos, encerrando com a discussão sobre a nova correlação de forças estabelecida a partir da instalação dos fortes fronteiriços no contexto dos tratados de limites.



Concentradas entre as décadas de 1720 e 1830, as expedições fluviais se realizaram entre Araritaguaba (atual Porto Feliz, São Paulo) e Cuiabá (Mato Grosso) percorrendo variados caminhos para o abastecimento das populações, fundação de vilas, povoamento do território, busca de metais preciosos, demarcação de fronteiras e explorações científicas. Após descobertas auríferas nos barrancos do rio Coxipó, em 1718, a via fluvial de acesso regular ao extremo oeste se desenvolvia pelos rios Tietê, Paraná, Pardo, varadouro de Camapuã, Coxim, Taquari, Paraguai, Porrudos e Cuiabá.



Embora as monções se configurem como um tema tradicional da historiografia colonial, elas não deixaram de ser revisitadas ao longo do século XX e inícios do XXI. Inicialmente alvo das pesquisas de Cesário Motta Júnior, Afonso d’Escragnolle Taunay, e Sérgio Buarque de Holanda,5 desde meados dos anos 1990, estudos com perspectivas renovadas se têm dedicado à temática monçoeira com enfoques e objetos diferentes. Assumindo a especificidade das expedições frente às bandeiras e focando nos motivos que levaram as populações para as minas do Cuiabá e do Mato Grosso, autores como Maria de Fátima Gomes Costa, Glória Kok, Silvana Godoy e Tiago Kramer de Oliveira chamaram a atenção para o protagonismo de distintos atores sociais na navegação fluvial e na ocupação territorial por mais de um século.6



Mobilizando os conceitos de territorialidade e territorialização da Antropologia contatualista, de cultura, trabalhado por Fredrick Barth e Edward P. Thompson, e de hibridação cultural, desenvolvido por Néstor Canclini, Francismar Carvalho avança no conhecimento sobre as monções. Por meio da ampliação do universo documental consultado em arquivos brasileiros, sul-americanos e europeus e pela disponibilidade de fontes digitalizadas online, lança novos olhares sobre as dinâmicas da navegação fluvial na América do sul ao longo do século XVIII.



No que diz respeito aos caminhos terrestres e fluviais para as minas de Cuiabá, Carvalho demonstra que a rota ordinária das monções, ao contrário de ter sido escolhida por ter a fazenda de Camapuã como pouso no meio da jornada, como aludira Sérgio Buarque de Holanda, foi o único itinerário que restara aos adventícios, já que os demais estavam controlados pelos nativos. Por esse viés, a ocupação territorial é vista não só como resultado da ação do colonizador, mas também como produto das concessões dos Guaykuru e Kayapó, que impuseram trajetos determinados aos colonos e provocaram a militarização dos comboios monçoeiros e das sesmarias ao longo dos caminhos.



Reiterando as análises de Silvana Godoy sobre o papel fundamental dos mamelucos para o sucesso das viagens fluviais, o historiador reforça que eram eles a força de trabalho permanente na mareagem, mesmo em face do afluxo de africanos escravizados, contrariando as colocações de Glória Kok sobre a participação efetiva dos últimos como remeiros. Também diverge da autora quanto ao grau de dependência dos conhecimentos indígenas na condução das embarcações.



Segundo o autor, as longas distâncias a serem percorridas, os acidentes geográficos a serem transpostos, as embarcações maiores, os volumes avultados das cargas e a quantidade de viajantes embarcados em direção a Cuiabá correspondiam a uma nova realidade vivenciada pelas populações ao longo do século XVIII. Para enfrentá-la, pilotos, proeiros, remeiros e guias aprimoraram as técnicas utilizadas primitivamente pelos indígenas. Para ele foi o surgimento de novas práticas de navegação, frutos do intercâmbio cultural com os nativos - e não simplesmente sua continuidade - que viabilizaram o projeto colonizador.



A partir da narração de inúmeras situações de encontros e confrontos, Carvalho elege indígenas e mamelucos como os personagens cruciais para a navegação fluvial da bacia platina, com quem os colonizadores tiveram que negociar pautas culturais díspares ao longo do Setecentos. Ter o domínio dos rios visava não só à ocupação do território luso-brasileiro e ao abastecimento das populações no extremo oeste, mas também às trocas mercantis entre a capitania de São Paulo, que abarcava as minas de Cuiabá, do Mato Grosso e de Goiás até 1748, e as colônias espanholas, sobretudo as regiões de Assunção e do Chaco. Imprecisos na legislação, os limites das fronteiras entre as Américas ibéricas também eram permeáveis nas práticas cotidianas em razão das relações interétnicas.



Quanto às diferenças em relação à dissertação de mestrado que originou a obra, o pesquisador incorporou documentos consultados e análises empreendidas na tese de doutorado defendida em 2012 e publicada após dois anos sob o título de Lealdades negociadas,7 principalmente na terceira parte do livro, na qual avança para a segunda metade do século XVIII. Ainda que a estrutura do trabalho se mantenha, o autor atualizou a bibliografia e conceitos e reescreveu o texto, modernizando a grafia dos documentos e traduzindo-os. Substituiu, por exemplo, “monções” por “navegação fluvial”, “práticos do sertão” por “práticos da navegação fluvial” e reduziu a discussão sobre a desclassificação social originalmente proposta por Caio Prado Júnior para determinados segmentos sociais alheios à plantation escravista.8



Se na monografia de mestrado os mamelucos da navegação fluvial foram tomados como desclassificados, no livro a estigmatização é minimizada em favor das ações de resistência cultural dos mareantes, mesmo em face da desintegração do movimento das monções. Esses personagens passam então a ser caracterizados de forma afirmativa como práticos da navegação. No contexto abarcado pela obra, entende-se como “práticos”, homens experimentados, versados, peritos em algo. Era, pois, o contato direto que esses indivíduos tinham com determinada realidade que os caracterizava assim. Durante a colonização ibérica das Américas, essas pessoas atuaram como mediadores entre o Novo e o Velho Mundo. Longe da figura do intelectual enclausurado em seu gabinete, comunicavam aquilo que haviam apreendido com a experiência.



Malgrado a incorporação de novos estudos desenvolvidos entre 2006 e 2019, Carvalho pouco se valeu de pesquisas que lhe teriam fornecido subsídios para o aprofundamento das investigações acerca dos segmentos sociais envolvidos com as monções, sobretudo os práticos da navegação e os agentes mercantis. Silvana Godoy, por exemplo, mobilizara inventários e testamentos, processos cíveis, listas nominativas e ordenanças dos habitantes de vilas da capitania de São Paulo guardados no Arquivo Público do Estado de São Paulo e no Arquivo do Museu Republicano Convenção de Itu. Tais tipologias documentais teriam oferecido informações acerca do perfil socioprofissional dos mareantes e dos comerciantes estabelecidos em Itu e Araritaguaba. O autor poderia, igualmente, ter lançado mão dos trabalhos de André Ferrand de Almeida, Mário Clemente Ferreira e Tiago Kramer de Oliveira, para perscrutar a atuação de comerciantes nas minas de Cuiabá e do Mato Grosso. 9



Apesar de ter tido acesso a arquivos portugueses, como a Biblioteca Pública de Évora, o autor optou por citar algumas fontes documentais ali depositadas a partir da edição realizada por terceiros. Ao iniciar o seu trabalho mencionando a letra miúda do padre Diogo Soares presente no códice onde se encontram registradas as Notícias Práticas das minas de Cuiabá e Goiás na capitania de São Paulo, revela o contato direto que teve com esse conjunto documental. Entretanto, para o desenvolvimento de suas análises, se fiou na edição proposta por Afonso Taunay para Relatos monçoeiros, reproduzida em História das bandeiras paulistas a partir de sua segunda edição. O problema é que, quando comparadas aos manuscritos, as narrativas publicadas contam com adições, omissões e substituições de palavras.10



As críticas, entretanto, em nada maculam as refinadas e inovadoras análises do historiador. A grande contribuição da obra de Francismar Carvalho é dar protagonismo às ações de indígenas e de mareantes mamelucos nas monções. Os primeiros com relação às resistências, aos condicionamentos das viagens, ao comércio e às alianças. Os segundos, com relação ao domínio das técnicas de mareagem, à hierarquia de trabalhos e às estratégias narrativas de resistência que foram preservadas nos relatos monçoeiros. Ao privilegiar as ações dos sujeitos eleitos, o autor acaba por reconhecer a “dignidade das suas práticas culturais, saberes e experiências, malgrado a posição subalterna em que se encontravam”.11



Uma última observação. O título dado à resenha é praticamente idêntico ao subtítulo da dissertação de mestrado, que infelizmente foi eliminado da obra publicada. Por tratar-se de um estudo sobre as relações interculturais nas rotas das monções, o livro certamente interessará aos estudiosos das artes de navegar, da expansão das fronteiras e da ocupação territorial da América portuguesa. Mas não só. Aqueles que prezam as problemáticas atinentes aos intercâmbios interétnicos, à preservação do patrimônio imaterial, à história ambiental e ao protagonismo de grupos subalternos da sociedade nele encontrarão farto material para discussão e reflexão.

Bibliografia
ALMEIDA, Andre Ferrand de. A viagem de Jose Goncalves da Fonseca e a cartografia do rio Madeira (1749-1752). Anais do Museu Paulista, Sao Paulo, v. 17, n. 2, p. 215-235, 2009. doi: https://doi.org/10.1590/S0101-47142009000200011.
CARVALHO, Francismar Alex Lopes de. Entre rios e imperios: a navegacao fluvial na America do Sul. Sao Paulo: Editora Unifesp, 2019.
CARVALHO, Francismar Alex Lopes de. Lealdades negociadas: povos indigenas e a expansao dos imperios ibericos nas regioes centrais da America do Sul (segunda metade do seculo XVIII). Sao Paulo: Alameda, 2014.
COSTA, Maria de Fatima. Historia de um pais inexistente: Pantanal entre os seculos XVI e XVIII. Sao Paulo: Estacao Liberdade, 1999.
FERREIRA, Mario Clemente. Colonos e Estado na revelacao do espaco e na formacao territorial de Mato Grosso no Seculo XVIII: notas de uma investigacao. Actas do Congresso Internacional Espaco Atlantico de Antigo Regime: poderes e sociedades. Lisboa, 2005.
GODOY, Silvana Alves de. Itu e Araritaguaba na rota das moncoes (1718 a 1838). Dissertacao (Mestrado) - Mestrado em Historia Economica, Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Economia, Campinas, 2002.
HOLANDA, Sergio Buarque de. Caminhos e fronteiras. 4. ed. Sao Paulo: Companhia das Letras, 2017.
HOLANDA, Sergio Buarque de. Moncoes. Organizacao: Laura de Mello e Andre Sekkel Cerqueira. 4. ed. Sao Paulo: Companhia das Letras, 2014.
KOK, Gloria. O sertao itinerante: expedicoes da capitania de Sao Paulo no seculo XVIII. Sao Paulo: Hucitec/FAPESP, 2004.
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OLIVEIRA, Tiago Kramer. O capital mercantil no centro da America do Sul e as fronteiras do comercio na America colonial (primeira metade do seculo XVIII). Revista de Indias, v. 75, n. 265, p. 681-710, 2015. doi: https://doi.org/10.3989/revindias.2015.021.
PRADO JUNIOR, Caio. Formacao do Brasil Contemporaneo: colonia. 23ª ed. Sao Paulo: Brasiliense, 1997.
SOUZA, Jean Gomes de. Um texto setecentista em três seculos: os conteudos, as formas e os significados da Noticia Primeira Practica, de Joao Antonio Cabral Camello (XVIII-XX). Anais do Museu Paulista, Sao Paulo, v. 28, p. 1-43, 2020. doi: https://doi.org/10.1590/1982-02672020v28d3e41.
TAUNAY, Afonso. Relatos moncoeiros. Sao Paulo: Livraria Martins Editora, 1953.


5
MOTTA JR., Cesário. Porto-Feliz e as monções para Cuyabá. Almanach Litterario de São Paulo para o anno de 1884 publicado por José Maria Lisboa; TAUNAY, Afonso. Relatos monçoeiros. São Paulo: Livraria Martins Editora, 1953; HOLANDA, Sérgio Buarque de. Monções. Organização: Laura de Mello e André Sekkel Cerqueira. 4. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2014; Idem. Caminhos e fronteiras. 4. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.
6
COSTA, Mária de Fátima. História de um país inexistente: Pantanal entre os séculos XVI e XVIII. São Paulo: Estação Liberdade, 1999; KOK, Glória. O sertão itinerante: expedições da capitania de São Paulo no século XVIII. São Paulo: Hucitec/FAPESP, 2004; GODOY, Silvana Alves de. Itu e Araritaguaba na rota das monções (1718 a 1838). Dissertação (Mestrado) - Mestrado em História Econômica, Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Economia, Campinas, 2002; OLIVEIRA, Tiago Kramer de. O capital mercantil no centro da América do Sul e as fronteiras do comércio na América colonial (primeira metade do século XVIII). Revista de Indias, 75(265), 681-710, 2015. https://doi.org/10.3989/revindias.2015.021.
7
CARVALHO, Francismar Alex Lopes de. Lealdades negociadas: povos indígenas e a expansão dos impérios ibéricos nas regiões centrais da América do Sul (segunda metade do século XVIII). São Paulo: Alameda, 2014.
8
PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil Contemporâneo: colônia. 23ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1997.
9
ALMEIDA, André Ferrand de. A viagem de José Gonçalves da Fonseca e a cartografia do rio Madeira (1749-1752). Anais do Museu Paulista, São Paulo, v. 17, n. 2, p. 215-235, 2009. doi: https://doi.org/10.1590/S0101-47142009000200011; FERREIRA, Mario Clemente. Colonos e Estado na revelação do espaço e na formação territorial de Mato Grosso no Século XVIII: notas de uma investigação. Actas do Congresso Internacional Espaço Atlântico de Antigo Regime: poderes e sociedades. Lisboa, 2005.
10
SOUZA, Jean Gomes de. Um texto setecentista em três séculos: os conteúdos, as formas e os significados da Noticia Primeira Practica, de João Antonio Cabral Camello (XVIII-XX). Anais do Museu Paulista, São Paulo, v. 28, p. 1-43, 2020. doi: https://doi.org/10.1590/1982-02672020v28d3e41.
11
CARVALHO, Francismar Alex Lopes de. Entre rios e… Op. cit., p. 223, grifo do autor.
Revista Almanack

segunda-feira, 21 de março de 2022

O programa científico do Antropoceno







Ricardo SoaresWilson Machado

ZALASIEWICZ, J.. The Anthropocene as a Geological Time Unit: A Guide to the Scientific Evidence and Current Debate. Cambridge: Cambridge University Press, 2019. 361p

No ano 2000, o Prêmio Nobel de Química Paul Crutzen e o liminologista Eugene Stoermer publicaram na Newsletter do International Geosphere-Biosphere Programme (IGBP) a hipótese na qual a atual Época geológica do planeta Terra, o Holoceno, havia se encerrado e em seu lugar se iniciara o que viria a ser reconhecido como o “Antropoceno” (Crutzen; Stoermer, 2000). Dessa forma, conceituaram a nova unidade cronoestatigráfica como resultado direto das mudanças ambientais globais proporcionadas pelas ações da humanidade a partir da Revolução Industrial, iniciada no século XVIII com o advento da máquina a vapor de James Watt. Logo, teve início a formalização que a humanidade teria se convertido em uma força geológica poderosa e capaz de alterar irreversivelmente o futuro do planeta.

Mesmo que o Antropoceno apresente certo caráter polêmico e não seja ainda um consenso absoluto nas geociências, nem tampouco nas ciências humanas, devido a grande repercussão na comunidade científica internacional e a um aumento exponencial do interesse na discussão sobre a validade ontológica e epistemológica (Crutzen, 2002), a Subcomissão de Estratigrafia do Quaternário (órgão da União Internacional de Ciências Geológicas - IUGS) considerou que o conceito possuía “mérito estratigráfico” o suficiente para a sua formalização e criou, em 2009, o Grupo de Trabalho do Antropoceno (GTA), cuja finalidade é avaliar se o atual cenário de exploração científica poderia se constituir no reconhecimento de um novo paradigma, e se esta Época poderia formalmente fazer parte da Escala de Tempo Geológica internacional (Silva; Arbilla, 2018; Silva et al., 2020).



Como pode ser observada na Figura 1, após a obtenção de um consenso de, no mínimo, 60% dos membros do GTA a proposta do Antropoceno deverá ser posta à aprovação da Subcomissão de Estratigrafia do Quaternário. Caso aceite os argumentos científicos apresentados, essa subcomissão fará a recomendação à Comissão de Estratigrafia para que, caso também aprove o conjunto de evidências e argumentos científicos apresentados nas etapas anteriores, consolide a proposta para a aprovação pelo Comitê Executivo da IUGS. Esse Comitê será o responsável por atualizar a Escala Geológica de Tempo, constando o Antropoceno como a Época mais recente na história da Terra. Era previsto, inicialmente, que a Subcomissão de Estratigrafia do Quaternário apresentaria a sua decisão durante ao 36ª Congresso Geológico Mundial que seria realizado em março de 2020. Infelizmente, em razão da pandemia do Covid-19, esse congresso teve que ser adiado para novembro de 2020, fazendo que todo o processo de ratificação do reconhecimento formal do Antropoceno como Época geológica continue em andamento (Figura 1).






Figura 1
Processo de avaliação formal para o reconhecimento oficial da proposta do Antropoceno como Época geológica.






O conjunto de dados obtidos e hipóteses levantadas ao longo de uma década pelo GTA têm sido apresentado de maneira crítica e coerente em uma grande variedade de livros e artigos científicos internacionais, assim como foram expostos no 35o Congresso Geológico Internacional, em 2016 (Silva et al., 2018), sendo posteriormente compilados e sumarizados no livro The Anthropocene as a Geological Time Unit: A Guide to the Scientific Evidence and Current Debate, editdo pelos pesquisadores Jan Zalsiewicz, Colin Waters, Mark Williams e Colin Summerhayes (Alasiewicz et al., 2019).



O livro se divide em sete capítulos e conta com a contribuição de 38 dos mais renomados cientistas internacionais atuantes na teoria do Antropoceno. Contudo, embora se observe um grande esforço em proporcionar uma leitura acessível, pelo caráter multidisciplinar e bastante específico do tema, pode se constituir num grande desafio a leitores não familiarizados com a linguagem científica em geral, e com conceitos geológicos em particular.



O primeiro capítulo, “História e desenvolvimento do Antropoceno como um conceito estratigráfico”, expõe como a hipótese do Antropoceno despertou profundo interesse da comunidade científica internacional, principalmente quando foi mais bem elaborada e divulgada na renomada revista Nature (Crutzen, 2002).



Os autores destacam que as ciências naturais foram aquelas que, informalmente, mais utilizaram o Antropoceno para abordar diferentes assuntos inerentes ao Sistema Terra tais como, mudanças climáticas globais, extinção das espécies, acidificação dos oceanos, alteração dos ciclos biogeoquímicos, acumulação de tecnofósseis entre outros (Silva; Arbilla, 2018). Além disso, enfatiza-se constantemente que o objetivo do livro é descrever o Antropoceno somente de um ponto de vista geológico, mas sem adotar um caráter excludente ou polarizante entre diferentes ramos da Ciência, como pode ser observado em “[...] esta definição não exclui outras diferentes interpretações do Antropoceno que apareceram nos anos recentes entre outras comunidades acadêmicas, particularmente nas ciências humanas” (p.1), mas sem tergiversar em seu rígido caráter científico ”[Antropoceno] não tem significância particular ou caráter simbólico [...] é um fenômeno geológico de um planeta profundamente impactado pelos seres humanos” (p.15).



No segundo capítulo, “Assinaturas estratigráficas do Antropoceno”, são apresentadas as evidências científicas que baseiam o Antropoceno, com especial ênfase no uso dos distintos marcadores estratigráficos estocados em diferentes compartimentos ambientais, que são elegíveis a serem reconhecidos como o registro geológico definitivo (golden spike) do início da ação antropogênica sincrônica e global do Antropoceno. As Terras Pretas de Índio (TPI) da Região Amazônica são destacadas como possíveis golden spikes, mesmo apresentando características pedológicas que as definam apenas como interessante marcador da presença antrópica da Bacía Amazônica (Soares et al., 2018).



O terceiro capítulo, intitulado “A assinatura bioestratigráfica do Antropoceno”, apresenta como os fósseis podem fornecer informações fundamentais nas alterações das composições das espécies durante as mudanças sofridas no Sistema Terra ao longo das Eras geológicas. As evidências apontam que a humanidade poderá, e com razão, ser responsabilizada pela atual sexta extinção em massa de diferentes espécies ao redor do globo.



Ao longo do quarto capítulo, “A tecnosfera e seu registro estratigráfico”, os autores apresentam a relação desse novo nicho de construção humana com o Antropoceno, com especial ênfase nos artefatos que podem servir de registros geocronológicos das atividades antrópicas no Sistema Terra. Contudo, ao considerarem os diferentes candidatos à tecnofósseis, os autores se limitaram, injustificadamente, a descrever quase que exclusivamente os plásticos, pois “[Plásticos] providenciam um registro físico distintivo da evolução da tecnosfera durante o século XX e início do século XXI” (p.155). Embora o plástico possua uma indiscutível importância e seja emblemático como potencial tecnofóssil, não se deveria omitir ou diminuir a importância do concreto, do alumínio elementar ou dos materiais eletroeletrônicos que apresentam a mesma tendência de produção massiva a partir da década de 1950, em um período histórico, informalmente, reconhecido como “A Grande Aceleração” (Silva et al., 2020).



O quinto capítulo, “Quimioestratigrafia do Antropoceno”, elucida como a combinação da geoquímica com a estratigrafia pode ser usada para avaliar a variação das substâncias químicas através dos tempos, assim como “[...] definir padrões de alteração da composição química ao longo do tempo que podem fornecer marcadores para o Antropoceno como nova Época geológica” (p.158). Todavia, ao contrário do capítulo anterior, os autores se preocuparam em expor adequadamente os diferentes possíveis marcadores do início do Antropoceno e a tendência sugerida, timidamente, é que seja escolhido futuramente o fallout dos radionuclídeos gerados pelas detonações atmosféricas das armas nucleares, no período da guerra fria, como o marcador mais preciso dessa nova Época geológica.



Embora tenha sido propositalmente omitido pelos autores, caso realmente os radionuclídeos espalhados ao redor do planeta pelas explosões nucleares atmosféricas sejam futuramente escolhidos como definitivos Golden Spikes, isso poderá acarretar em severas e significativas implicações aos estudos das ciências humanas e sociais sobre o tema, que teriam que passar a considerar, também, a contribuição do Socialismo (socialismo real, socialismo com características chinesas etc.), além do sistema capitalista para o surgimento da Época do Antropoceno no Sistema Terra ao longo do século XX.



De forma correta, é constantemente enfatizado na obra que o Antropoceno não deve ser simplesmente confundido ou ter seu estatuto científico reduzido ao mero aumento das concentrações dos gases de efeito estufa (GEE), de origem antrópica, e que estão remodelando e afetando o atual estado de equilíbrio termodinâmico do planeta. Contudo, no sexto capítulo, “Mudanças climáticas e o Antropoceno”, os autores elucidam a questão das mudanças climáticas globais com um enfoque paleoclimático, descrevendo o estado da arte dos mecanismos e processos biogeoquímicos naturais, desde o início da formação da atmosfera primitiva do planeta até a projeção de cenários futuros com seus respectivos impactos ambientais negativos ao equilíbrio térmico do Sistema Terra (derretimento de geleiras, aumento do nível do mar, acidificação dos oceanos etc.). Surpreendentemente, os autores, ao abordarem esse capítulo, não levaram em consideração que as mudanças climáticas globais constituem um dos principais Limites Planetários (espaço operacional seguro) para o desenvolvimento da Humanidade com respeito ao funcionamento do Sistema Terra (Silva; Arbilla, 2018).



Finalmente, o capítulo “O limite estratigráfico do Antropoceno” serve de epílogo, sumariza e critica as diversas propostas de origem sugeridas pela comunidade científica internacional: “PaleoAntropoceno”, “Antropoceno precoce”, hipótese “Orbis Spike”, “Revolução Industrial”, “Grande Aceleração” entre outras. Além disso, os autores reforçam que, independentemente da hipótese a ser reconhecida, o GTA trabalha somente com o “[...] ‘Antropoceno geológico’ essencialmente como originalmente pretendido, e não a outras interpretações” (p.286).



Em 2019, foi divulgado que 88% dos membros do GTA ratificou a proposta que o Antropoceno fosse formalmente reconhecido como uma nova unidade cronoestatigráfica com início a partir da década de 1950, cabendo à Subcomissão de Estratigrafia do Quaternário decidir se apresentaria essa proposta à União Internacional de Ciências Geológicas no 36o Congresso Geológico Internacional, a ser realizado em 2020, na cidade de Nova Délhi - Índia (Silva et al., 2020), como dito anteriormente. Contudo, devido à grave pandemia de Covid-19, até fevereiro de 2020 nem a Comissão de Estratigrafia, nem o Comitê Executivo da IUGS iniciaram as suas respectivas etapas de análise para a oficialização do Antropoceno como Época geológica. Logo, esse livro que representa o esforço de mais de dez anos de coleta de dados e evidências científicas deveria possuir um caráter mais conclusivo de como e quando se iniciou o Antropoceno, e não ser uma mera tentativa de resposta àqueles que criticam, acertadamente, que o GTA não dispunha de um corpus teórico robusto e baseado suficientemente no peso das evidências de forma que atenda ao rigor do método científico.



O livro The Anthropocene as a Geological Time Unit: A Guide to the Scientific Evidence and Current Debate representa uma contribuição imprescindível para a compreensão científica da evolução epistemológica sistemática da teoria relativa ao Antropoceno e, como dito antes, embora possa se constituir como desafiador ao público leigo torna-se primordial àqueles que queiram estar familiarizados com os debates mais recentes a respeito da “Época da Humanidade”.

Referências

CRUTZEN, P. J. Geology of mankind. Nature, v.415, n.3, p.23, 2002.
CRUTZEN, P. J.; STOERMER, E. F. The Anthropocene. IGBP Global Change Newsletter, n.41, p.17-18, 2000.
SILVA, C. M.; ARBILLA, G. Antropoceno: os desafios de um novo mundo. Revista Virtual de Química, v.10, n.6, p.1619-47, 2018.
SILVA, C. et al. A nova Idade Meghalayan: o que isso significa para a Época do Antropoceno? Revista Virtual de Química, v.10, n.6, p.1648-58, 2018.
SILVA, C. M. et al.. Radionuclídeos como marcadores de um novo tempo: o Antropoceno. Química Nova, v.43, n.4, p.506-14, 2020.
SOARES, R. et al. O Papel das Terras Pretas de Índio no Antropoceno. Revista Virtual de Química, v.10, n.6, p.1659-92, 2018.
ZALASIEWICZ, J. et al. (Ed.) The Anthropocene as a Geological Time Unit: A Guide to the Scientific Evidence and Current Debate. Cambridge: Cambridge University Press. 2019. 361p.
Revista Estudos Avançados

segunda-feira, 4 de outubro de 2021

Seja como for. Entrevistas, retratos e documentos




SCHWARZ, R. Seja como for. Entrevistas, retratos e documentos. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2019. 448p

Roberto schwarz não é um intelectual usual, daqueles que nadam no sentido da corrente. Bem ao contrário. No limite, a sua trajetória pode ser vista como a explicitação de um modelo de trabalho intelectual que, dos anos 1960 até os dias de hoje, foi sendo cada vez mais colocado em questão. Pode-se mesmo dizer que a reflexão schwarziana foi ganhando intensidade em medida inversamente proporcional ao declínio (no Brasil e no mundo) da figura do intelectual crítico irredutível às posições estabelecidas, mas antenado com o debate público do seu presente - figura com a qual ele sempre se identificou.

Abarcando mais de cinco décadas de atividade, seu novo livro, Seja como for, dá um testemunho significativo desse itinerário singular, seja por meio da exposição do seu próprio pensamento, sejam por meio de comentários ou retratos de intelectuais com quem manteve alguma interlocução. Nesse que é o seu nono livro de crítica (afora dois de poesia e uma peça de teatro), Schwarz se faz presente em toda a sua plenitude espiritual. O livro compila materiais preciosos, alguns dos quais até então relegados ao segundo plano, a despeito da importância que têm na decifração de nuances do pensamento do autor comumente desprezadas pelas leituras impressionistas, que não apreendem senão o sentido literal do texto.

Pode-se destacar, por exemplo, a entrevista concedida a Maria Rita Kehl e Fernando Haddad, publicada na revista Teoria e Debate em 1994, ou a longa entrevista a Eva Corredor, também de 1994, em que Schwarz coloca nos seus devidos termos o papel de Lukács na sua atividade crítica: mais do que modelo normativo de análise, o esquema lukacsiano do Realismo (com maiúscula) atuava como ponto de partida diferenciador, ou seja, como aquilo que não pode ser num país da periferia do capitalismo como o Brasil. Ou ainda a entrevista a Louzada Filho e Gildo Marçal Brandão, publicada originalmente na revista Encontros com a Civilização Brasileira, em 1979.

Sem falar no relatório da polícia política da ditadura militar sobre o ensaio “Cultura e política”, ou na carta inédita em que conta ao mestre Antonio Candido as peripécias da sua defesa de doutorado em Paris, com um dos membros avaliadores tendo se recusado a avalizar a tese, acusando-o de apresentar um trabalho incompreensível - algo semelhante ao que havia se passado com Walter Benjamin na Alemanha, em 1925, salvo o desfecho diferente, já que, no caso de Schwarz, o obstinado avaliador acabou por se retirar da banca, que enfim aprovou o trabalho.

Pela dispersão temática, Seja como for não é leitura fácil. Schwarz quase sempre fala por meio dos outros, pensando através da cabeça alheia - ao quadrado, por assim dizer (Querido, 2019b). À procura de alguma unidade, o quebra-cabeças precisa ser permanentemente remontado pelo leitor. Esse caráter fragmentado é, porém, sintomático do modelo de atividade crítica acalentado pelo próprio autor. À exceção de sua tese de doutorado (que pouco segue os manuais acadêmicos, aliás), e do segundo estudo sobre Machado de Assis (Um mestre na periferia do capitalismo), os livros de Schwarz são todos compilações de ensaios específicos, em torno de um tema ou de autor determinado. Foi por meio dessa crítica em pílulas que Schwarz foi galgando a sua posição no cenário intelectual brasileiro.

Uma inflexão decisiva na trajetória do autor se deu no final dos anos 1960. Schwarz havia se formado em ciências sociais no final da década de 1950, na mesma turma de Michael Löwy (a quem já havia conhecido nas redes de sociabilidade judaica), Francisco Weffort e Heleieth Saffioti. Na mesma época, participou do chamado Seminário d’O Capital, junto a jovens professores como F. H. Cardoso, O. Ianni e José Artur Giannotti. Estimulado por Candido, fez o mestrado em Teoria Literária, em Yale, nos Estados Unidos, entre 1961 e 1963, para depois trabalhar como professor assistente na cadeira de Teoria Literária e Literatura Comparada na USP.

É nesse contexto que publica o seu primeiro livro de ensaios, A sereia e o desconfiado, em 1965 - em 1959 havia publicado o livro de poesias, Pássaro na gaveta, pela Massao Ohno, editora dos escritores marginais e da boemia paulistana. Em 1969, em meio à radicalização da repressão resultante da proclamação do AI-5 em dezembro de 1968, decide se exilar na França, saindo do país pela fronteira com o Uruguai. Além de professor, o jovem crítico era um dos editores da revista Teoria e Prática, cujo último número havia sido confiscado pela polícia.

A experiência do exílio em Paris no itinerário de Schwarz não pode ser subestimada, como se faz amiúde, inclusive (parcialmente) pelo próprio autor, que prefere apontar o rol das suas influências intelectuais, entre elas a de seus professores da USP nos anos 1950 (cf. p.ex.: p.102). Ora, mais importante do que enumerar as influências recebidas é compreender a gênese social dessas incorporações, assim como a maneira como elas são traduzidas à luz do objeto em questão. Nesse sentido, ainda que desde a virada para os anos 1960 Schwarz já tenha tomado contato com os autores com o auxílio dos quais armaria o seu modelo crítico (Lukács, Brecht, Benjamin, Adorno, de um lado, e Candido, F. H. Cardoso e F. Novais, de outro), seria apenas no exílio francês, a partir de 1969, que ele os mobilizaria para a elucidação de um problema especificamente seu, qual seja: o da relação entre formas literárias (ou culturais) e matéria histórico-social num país da periferia do capitalismo como o Brasil.

Basta comparar, por exemplo, os ensaios compilados em A sereia e o desconfiado com os de O pai de família e outros estudos (1978), ou, mais ainda, com a tese de doutorado defendida na França em 1976, e publicada em livro no ano seguinte, no Brasil, com o título Ao vencedor as batatas. Enquanto nos ensaios do primeiro livro, escritos antes do golpe de 1964, o jovem crítico buscava aferir a coerência formal de um autor ou de uma obra à luz de uma concepção normativa (de matriz lukacsiana) do que deveria ser, genericamente, um bom romance ou uma boa obra de arte, nos trabalhos subsequentes, concebidos no exílio - e sob o impacto de uma ditadura militar que se mostrara mais economicamente modernizadora e mais duradoura do que parecia -, o objetivo foi pensar as formas (literárias ou culturais) como materializações da experiência histórica brasileira.

Do plano mais abstrato das ideologias se passa então à consideração materialista da relação entre forma e substrato histórico-social, tarefa para a qual a noção adorniana de forma objetiva se mostrava mais operacional do que a visão normativamente carregada do romance realista explicitada no modelo lukacsiano. A análise da literatura ou da cultura implicava agora a elaboração simultânea de uma visão sobre o processo histórico-social brasileiro. “Toda forma é forma de alguma coisa” (p.157). Por meio da crítica literária, e da análise dos romances de Machado de Assis em particular, é uma nova interpretação do Brasil que se desdobra. Nesse sentido, é possível dizer que o Brasil emerge de fato, na reflexão schwarziana, durante o exílio francês. Judeu-austríaco de origem, o crítico precisou voltar ao velho continente, espremido pelas contingências políticas do presente, para redescobrir (agora conceitualmente, por assim dizer) o Brasil.

A chave dessa interpretação do Brasil pode ser localizada no modo como Schwarz analisa a aclimatação das ideias modernas pelas elites brasileiras do século XIX, com ressonâncias nos rumos posteriores da modernidade no país. A primeira vez que esse tópico veio à tona foi no conhecido ensaio “As ideias fora do lugar”, de 1972, que figuraria como capítulo introdutório da tese de doutorado. Para Schwarz, as ideias modernas pareciam fora do lugar, no Brasil, em função do descolamento entre o receituário doutrinário propalado e a estrutura social do país. E pareciam fora do lugar não por algum problema congênito das ideias liberal-modernas em si, mas sim pelo fato de que essas ideias não impactavam de modo efetivo a vida da maior parte da população, que ficava apartada da modernidade proclamada.

Sob esse ponto de vista, diga-se de passagem, o casamento atual entre liberalismo econômico e reacionarismo societal deixa de ser visto como um ponto fora da curva para ser tratado, antes, como a expressão mais radical e, portanto, mais perversa, de uma tradição histórica - materializada no modo de ser de nossas elites - que remonta às origens da inserção do Brasil na modernidade emergente.



Além de nacional, trata-se de uma questão de classe. Era do interesse das classes dominantes absorver e imitar as ideologias modernas ao mesmo tempo em que se mantinham intactas a vida social no “Brasil real”. Inversamente, é do interesse das classes dominadas “se aferrar à problemática local e fazer com que ela apareça” (p.39). No plano intelectual, viria daí o “lado forte do nacionalismo”, ou seja, dessa disposição “em apanhar as experiências e contradições brasileiras tais quais elas se apresentam aqui, e não através de uma categorização elaborada noutra parte” (p.38, 39).

Na entrevista concedida à revista Movimento, em 1976, e reproduzida no livro, Schwarz reconhece que “as próprias ideologias libertárias”, dentre elas o marxismo, “são com frequência uma ideia fora do lugar, é só deixam de sê-lo quando se reconstroem a partir de contradições locais” (p.24). Desde que purgada de suas ilusões provincianas, a posição nacionalista poderia contribuir, portanto, para que a crítica marxista se reconstrua a partir da problemática nacional, rompendo com todo universalismo abstrato. Assim, tal crítica estaria em condições de superar a dicotomia outrora esquadrinhada no ensaio “Nacional por subtração” (1986) - a saber: aquela entre nacionalismo (autoritário) e cosmopolitismo (liberal), ou entre localismo e globalismo -, traduzindo as categorias “universais” à luz da problemática local, ao mesmo tempo em que vê nesta um momento do desenvolvimento desigual e combinado do capitalismo.

Nesse processo, a crítica amplia o seu escopo, ganhando novas perspectivas, ligadas ao ponto de vista da periferia - não sendo nem localista, pois não dispensa a mirada universalizante, nem cosmopolita, já que a conceituação se subordina à matéria local, e não o contrário. A crítica é periférica porque reconhece o primado do objeto, quer dizer, o primado da matéria social brasileira. Mas ela é universal porque interpela a totalidade do sistema a partir não apenas de uma posição social, senão também de uma posição geopolítica específica, na qual as ideologias europeias funcionam em outro diapasão.

A explicitação desse ponto de vista crítico da periferia, de alcance global, é talvez a principal contribuição intelectual de Roberto Schwarz. Não por acaso, esse é um tópico recorrente em Seja como for, em especial nas entrevistas e retratos redigidos a partir da virada para os anos 1990. Desde então, ao tema da universalidade do ponto de vista periférico se soma aquele da sua atualidade, em meio ao processo de desagregação mais ou menos generalizada das sociedades nacionais não apenas na periferia, o que nada teria de surpreendente, mas também no centro do capitalismo. Daí a atualidade da perspectiva periférica: o que é novidade e exceção para alguns países do centro sempre fora regra geral naqueles da periferia.

A dependência material se transmuta em vantagem cognitiva, e é por isso que não seria exagero, hoje, situar Schwarz entre as grandes figuras intelectuais do mundo nos últimos 30 ou 40 anos. Especialmente quando se tem em conta o eclipse contemporâneo do tipo de intelectual crítico que ele representa. Muito embora tenha cumprido todos os requisitos da carreira acadêmica, tendo se tornado professor titular na Unicamp, Schwarz jamais abandonou um modelo de crítica (ensaística) infenso à especialização universitária - um modelo de crítica muitas vezes censurado por seu elitismo, à medida que a sua mise-en-scène dependeria quase que exclusivamente do cabedal de referências culturais do próprio crítico, arbitrariamente livre para dizer o que quiser e, o que é pior, como quiser.

Parafraseando Russel Jacoby (1990), Schwarz estaria entre os “últimos intelectuais” que ainda resistem em meio à atmosfera cindida entre as amarras acadêmicas e o recuo identitário. Defende a independência intelectual, mas não como álibi de uma posição olímpica diante do mundo, e sim como escudo contra as pressões do engajamento pragmático, materializado na ascensão do outrora intelectual de esquerda Fernando Henrique Cardoso à presidência da República em 1995. Esse resguardo de autonomia, que exige alta voltagem do crítico, seria a única maneira, segundo Schwarz, de se alcançar a possibilidade de uma totalização conceitual antissistêmica, na qual a experiência histórica da periferia é tomada como momento sintomático da cena global contemporânea.

Já não caberia mais ao intelectual brasileiro “salvar o país”, e tampouco abandoná-lo, mas sim pensá-lo especificando o seu lugar na ordem global, empresa para a qual apenas o horizonte das classes subalternas poderia dar guarita. Aí está um dos paradoxos da negatividade periférica schwarziana: a crítica deve ser independente e empenhada ao mesmo tempo, a primeira característica tornando-se condição de possibilidade da segunda (cf. Querido, 2019a). Ora, como solucionar na prática intelectual essa difícil equação a não ser pelo recurso duvidoso à genialidade e ao senso de compromisso do próprio crítico?

Em entrevista de 1987, republicada em Seja como for, Schwarz afirma:

Todo autor que se preza, quando pega a caneta, quer indicar entre outras coisas a hora histórica. Isso vale tanto para o ficcionista, como para o poeta, como para o crítico. A luta pela identificação e pela definição do que seja o atual está no centro da arte moderna. Acontece que a hora histórica não é convencional como a hora do relógio. Nem por isso ela é arbitrária. Mas é fato que a resposta, por mais estudada e fundamentada que seja, sempre contém algo de engajamento, algo de aposta no futuro, sem o que a crítica de arte é anódina. (p.48)

Explicitar esse paradoxo - o do intelectual independente sem concessões, mas engajado no destino das classes subalternas - é um dos muitos méritos de Schwarz, esse espírito ígneo cujo brilho se faz tanto mais presente conforme avança o ofuscamento bárbaro que se produz no Brasil (e no mundo) contemporâneo.

Referências

JACOBY, R. Os últimos intelectuais: a cultura americana na era da academia. Trad. Magda Lopes. São Paulo: Trajetória Cultural; Edusp, 1990.
QUERIDO, F. M. Nacional por negação: ensaio e “crítica independente” no último Roberto Schwarz. Revista do IEB (USP), São Paulo, n.74, p.233-49, 2019a.
_______. Pensamento ao quadrado: Roberto Schwarz e o Brasil. Lua Nova, São Paulo, n.107, p.235-61, 2019b.
SCHWARZ, R. Seja como for. Entrevistas, retratos e documentos. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2019. 448p.
Revista Estudos Avançados