Relato da minha circunspecta passagem do ano. Num lugar bonito, mas num lodge algo manhoso, circunstância a que voltarei, chamando as coisas pelos nomes.
Continuemos, a noite escaldava, oleada pelos
odores que a transpiração reata, na espessa monotonia tropical. A algaraviada
das cigarras - um piar de ave nocturna trazia um pé de aniz à noite –
sobrepunha-se à batida de distantes ritmos electrónicos, vinda da praia, quando
dois assobios e um colar de onomatopeias fenderam a proximidade. Resolvi
levantar-me – estávamos sozinhos no lodge, há mais de duas horas que haviam
rebentado os últimos foguetes de celebração da passagem do ano e que os jeeps e
motos de areia na estrada pareciam ter sossegado.
Fui ao alpendre e vi o guarda a levantar um sacho
na berma da piscina. Desferia um golpe sobre uma sombra coleante. Percebi que a
cobra nos visitara no paraíso perdido que nos fora vendido ao telefone. Era
bicho para um metro e picos. Observei ao guarda:
- Coitado, quem resiste, numa noite de fim de ano,
a meio metro de água verde, pútrida, e cacheada de batráquios?
Ele encolheu os ombros em changana e eu
anui:
Boa noite.
Voltei à cama.
A minha mulher perguntou ansiosa:
Que era?
Uma víbora que nos visitou.
Brincas?
Não, o guarda acabou de matá-la. Vinha à
picanha, na piscina.
Só nos faltava esta. Pagámos o preço duma
casa com piscina e ao fim de uma semana só temos sapos, mosquitos e uma
víbora... já viste que podia meter-se no quarto das miúdas?
Essa hipótese gorou-se, conversa com o
Altíssimo...
Vais lá ver se elas estão bem.
Depois...- pisquei-lhe o olho mais lúbrico -
voltaram-me os apetites.
Estás danadinho…– há um raiar dourado nas mulheres
indianas, pelo menos quando sorriem e umas escleróticas muito brancas acendem
um candelabro.
Serenei-a:
É do fim de ano... em Janeiro prometo acalmar-me.
Replicou decidida:
Vê lá as miudas, depois conto-te uma historia
para tu adormeceres...
Voltei a sair do quarto, atravessei a kitchnet
aberta que confinava com o alpendre e empurrei a porta devagarinho, mas não
evitei que ela caísse de costas sobre os beliches.
Pai, censurou a Luna, tinhas de ser tu...
Estás acordada?
Acordaste-me, com a porta...
Mau, fui eu ou a porta?
Foste tu, que empurraste a porta...
A porta devia abrir-se sobre os gonzos...
Não gozes, pai, esta porta é a fingir, não
tem gonzos... Pai... – gritou alarmada.
Que é?
Entraram dois mosquitos.
Vou já dar cabo deles.
Emarinhei em gestos circenses pelos beliches até
acordar a outra, que afinal ferrava pouco, e ter matado cinco mosquitos. Um
deles de bojo mais cheio que a caverna de Ali Babá. Depois para as adormecer
tive de lhes contar uma longa história. Quando voltei ao quarto ela dormia. Era
a história da minha vida. Tornei ao alpendre e sentei-me na mesa comprida,
munido de cerveja. Rebentou um petardo isolado, com estrelinhas azuis e prata.
Eis um procastinador, como eu, pensei e fiz-lhe uma saúde. O guarda, sentado à
borda da piscina, esfolava a cobra com uma faca de mato.
As outras casas do lodge estavam mergulhadas na
escuridão. Estaria toda a gente na praia, tal como a nossa filha mais velha,
uma adolescente de 17 anos, e as suas quatro amigas, onde milhares de pessoas
pulavam ao som de uma batida house, que se assemelhava ao alastramento do
deserto nos tímpanos. Negras à cata de brancos, boers à cata de negras, ou
fingindo entre si que está tudo bem. Os moçambicanos imaginando que uma praia
em meia lua pode ser Veneza. Ponta do Ouro, a que se chega depois de uma picada
de três horas por um batatal que naufragaria navios de alto bordo.
A mole embalava-se numa euforia conquistada a um
ano que se despedia com muitas apreensões: a guerra civil retomara, a inflação
estava descontrolada, as manifestações de racismo haviam-se tornado
quotidianas, os raptos a quem não fosse bantu sucediam-se... ( - esperem,
afinal, uma moto de areia peida-se quantas vezes em cada cem metros?). A gente
do lodge - cinco casas em torno de uma piscina que precisava de uma operação de
respiração boca a boca, quereria esquecer a banhada que nos calhara a todos em
sorte: havia a mesma concordância, entre as condicões que nos foram
apresentadas à chegada e as das fotos que se viam no site do lodge, à que
existe entre um melro careca e uma avestruz. Da piscina népias, era um pântano
onde zuniam esquadrões de mosquitos vindas de um estágio em Guantanamano, as
duas suites e o quarto que nos foram prometidos resumiam-se a dois quartitos
com o forro do telhado exposto e sem portas na casa de banho que convergiam
para um corredor mais largo onde se arrumava uma kitchnet de pouca serventia
porque a geleira estava avariada, as fichas eléctricas eram de três buracos (à
sul-africana), e não havia adaptadores. As suites, que tinham dois
contraplacados desencaixados a fazer de portas, eram servidas por um jogo de
lencóis (éramos nove, supostamente a ser distribuidos por três quartos) e as
almofadas, foi-nos anunciado à chegada, tinham sido roubadas; uma das sanitas
não funcionava e a outra rapidamente comecou a verter águas por baixo. Também
não havia talheres suficientes e metade de nós comia com colheres. A duas das
casas faltou subitamente a energia e depois de averiguadas as causas
constatou-se que o crédito no credilec havia acabado, tendo sido os hóspedes
quem tiveram de carregar o sistema. No meio dos impropérios sucessivos e lubrificados
por muito álcool, seis criancas clamavam três vezes ao dia pelo direito à
piscina e depois de mais um telefonema proverbial para o dono era garantido que
no máximo nas três horas seguintes o problema estaria resolvido, cansaco que se
tornou rotina. As empregadas chegavam pela manhã e ciciavam, Tudo bom, e você
aí? Tudo isto pela módica quantia de 250 euros diários.
Coube-me ir ao pão. Estaria a padaria aberta no
dia 1? A manhã escamava o sol, em brutais incidências sobre o mais exíguo
quadriculado de pele. Lomba e lomba, num passo plangente, enquanto as motas de
areia se sucediam como escaravelhos montados em petardos. Depois a descida, e o
troço com o canavial que rogava, como nós, por brisa. À direita, em
cordas bambas, dispunham-se as capulanas e as t-shirts com cores berrantes e os
motivos locais: os mesmos crocodilos, máscaras, palmeiras e tambores que se
encontram no continente inteiro. Há sempre quem compre mais um colar de
missangas. Soslaios, carapinhas pintadas de gema de ovo, um pintas passeia a
auto-estima do seu piercing ao canto da boca, Boss, boss... chama o de óculos
em barda, dos joelhos ao peito lembra um elmo de lentes e hastes. Um chapeiro
pára a viatura e explica o estado de navegação no batatal a outro condutor
amigo: a estrada tá um doce. Espraiar de legumes e frutas em bancas de
madeira enferrujada. Após curva e contracurva em irregulares degraus de
concreto, entro na padaria.
O tipo da caixa, inusitadamente, agarra-me na mão
com as suas unhas pintadas. Bate-me as pestanas. Um panilas, interrogo. Sai-lhe
uma voz em compactado veludo:
Do you mean?
I’m a simple man... mas fala-me em português...
Ah, mas parece holandês... olho verde...
Atalho seco:
É o olho a pau com o troco...
Retrai-se, largando-me a mão:
Nunca o vi por aqui... – muda o tempo verbal
– tás onde?
Respondo-lhe à maneira:
Na rua da polícia, perto do farolinho...
E tás contente com o lugar?
Resolvo entrar no jogo. Ponho um ar contristado:
Olhe, nem por isso...
Por menos cinquenta dólares, arranjo casa com ar
condicionado e piscina... Nice, nice...
Hum... para nove pessoas?
Tem uma cara de espanto que desmancha num meneio:
Nove? Que horror!!
Meninas são cinco, à beira dos dezoito.
Bate-me com a mão no ombro, afectado, e mete-se
comigo:
... a simple man! Não é?
Five catorzinhas... – sublinho com a mão
aberta.
Que horror! – muda rapidamente de tom
– E as meninas acampam? Piscina, ar condicionado e tenda... e menos
cinquenta dólares. Que te parece? Nice, nice...
No regresso, rindo-me com a parvoíce da conversa,
enfileiro no passo indolente do tipo que vai à minha frente, com um estojo de
viola nas costas e uma crista no cabelo à índio iroquês. Tem uma voz lamentosa
de quem nasceu para cantar blues e diz ao telefone:
Brada, tou mal, o job saiu furado... já cantei em
três bares e pagam-me 250 rands, cada um diz que a cena tá mal, tem crise e
muita despesa, e que no outro bar me podem dar mais... e nenhum deles deu
dormida como dizias, ando a dormir na praia, como é que combinaste esta cena,
meu?
Uma hora depois desço com a minha mulher para a
praia. Ao passar pela Florestinha, um bar-discoteca, conta-me ela:
Ontem, houve tiros aqui...
Tiros?
Sim... Havia uns bêbados que não queriam dispersar
e a polícia disparou...
Não foi aqui que veio a tua filha... e as amigas?
Foi... os polícias também estavam embriagados.
Portanto, com umas balas perdidas, a coisa podia
ter ser sido bonita...
Não percebes nada... – quis-me ela sossegar
com a ironia – em África a polícia só dispara para o ar...
Desembocámos na praia e suspendemos a respiração:
a praia é uma mosca a ziguezagear enlouquecida dentro duma garrafa. Duzentos
metros para a esquerda, para a direita, em frente até à água, cada metro
quadrado aninha uma dúzia de garrafas. Quantas delas partidas, ocultas por uma
fina camada de areia?
Tens a certeza que queres ir para a praia?
– inquiro.
Hum... Lá para a frente há-de estar melhor...
Tens a certeza?
Tenho.
As certezas da minha mulher aplainam-me sempre as
dúvidas. Coisas de vir de um outro continente, onde o Ganges refrigera todo o
tipo de fés. Pisamos leve, entrecortadamente, a palma dos pés entre garrafas,
na métrica irregular com que o albatroz de Baudelaire aprendeu, nas tábuas da
proa, a dançar o tango. O sol, reflectido nas cobras de vidro que enxameam o
chão, espanca os olhos. E então veio-me:
Neste país, esgarçado entre o sol e o mar, nada
flui...