tapiès
Um filme que o Virgílio de Lemos adoraria:
1
Com o habitual atraso que me dá “o exílio” vi esta noite L’Amour, de Michael Hanek. Um filme que hoje seria impossível de ser feito nos EUA e que, por reconhecimento dessa vergonha, só poderia ter ganho o Óscar do Melhor Filme Estrangeiro.
Há claramente um texto a fazer sobre as relações subterrâneas entre este filme e Viagem a Tókio, de Ozu, no que toca a uma idêntica visão do que seja a dignidade de “desaparecer” deixando que o fluxo da vida permaneça intacto - de que a música e a sua persistência pelas “bagatelas” (para glosar a sonata de Beethoven que “enche” o filme) que cada interpretação traz é aqui a metáfora.
Há vários momentos extraordinários neste filme sóbrio e justo, que me faz lembrar uma frase memorável de Camus: "sofrer não te dá direitos", mas quero referir-me a três:
- a cena inicial do concerto musical, onde Hanek nos mostra a plateia em vez do palco, com o casal de idosos protagonistas já anónimos no meio da mole humana, o que imediatamente nos diz que o drama a que vamos assistir é transitivo e há de desencadear-se em cada um de nós, no seu momento próprio;
- a cena que começa quando o marido num acto de vida esbofeteia a sua acamada mulher que, em querendo morrer, rejeita a água que ele carinhosamente lhe dá, e se desdobra numa sequência de pinturas bucólicas (as que pontuam nas paredes da casa) nos quais a figura humana se vai gradualmente diluindo na paisagem, até se tornar invisível ou rarefeita, como um efémero sinal entre dois infinitos: o da escarpa e o do mar do quadro final;
- a cena do pombo, quando Trintignant no afã de agarrar a vida e de a sentir pulsar entre as mãos, o abafa (com uma manta) como havia feito com a sua mulher (com a almofada) ao dar-lhe a morte (horror que neste filme é uma forma de dádiva), simetria ambígua em que se joga toda a complexidade do amor e da vida.
Três momentos fortes de um filme que merece os encómios de que vem laureado.
2
O Virgílio de Lemos, homem de naturaleza "leve", matérica, que nunca conheci pessoalmente (- ele em Nantes e eu em Maputo, a falta de taco nunca nos deixou cumprir a vontade profunda de nos conhecermos) mas com quem troquei centenas de emails, alguns divertidíssimos, para concretizarmos a antologia dele que preparámos juntos, A Invenção das Ilhas, era um homem que ria da metafísica para lhe opor os acenos da sensualidade e do riso, e gostava de uma boa irreverência. Por isso, ao arrepio já das solenidades, que ele odiaria, lhe dedico esta pequena narrativa que escrevi ontem:
A LIÇÃO DE HISTÓRIA
Depois de bater uma boa sorna, nada como acordar com a Sónia ao nosso lado a bater-nos uma punheta.
A Sónia tem seis dedos em cada mão, como de resto os teve el-rei dom Sebastião, e é vão querer saber se isso lhe dá uma tactibilidade especial ou se será da fantasia que a sua anomalia provoca em nós, o certo é que somos quatro a testemunhar o mesmo facto: "aprés" uma punheta batida pela Sónia ficam-nos a doer os colhões.
Eu tinha comprado uma rede, em Fortaleza, no Brasil, onde fiz uma exposição de fotografias cuja receptividade foi nula, e habituara-me a bater um choco todas as tardes depois do almoço, não mais do que uma hora para não ficar mole. Ontem, convidei a Sónia para almoçar, preparando-a para a sessão de nus que iríamos fazer no estúdio à tarde. E perguntou-me ela, como me vais pagar isso. Na brincadeira, olhando-lhe as mãos, respondi, com uma pívia. Para surpresa minha, isso provocou-lhe um sorriso mais aberto que a calvície do Yul Brynner. Adoro mostrar os meus dons, justificou.
Do vinho passámos à sonolência, na rede, até que ela, com a precisão de um metrónomo, uma hora depois, quis justificar a fama.
Nunca lhe serei suficientemente grato, ela foi buscar o ouro a 50 m de profundidade, ainda que me tivesse deixado o cavername a zunir. Confirmo o que dela me foi referido pelos três amigos comuns que desfrutaram duma idêntica experiência angular. A quem não acreditar que da associação duma boa sorna com a Sónia possa nascer um deleite que é em si mesmo uma arquitectura da dor, a tais cínicos, lembro o aviso de Jim Harrison: (também) a morte tem para nós a inverosimilhança que terá a realidade da nossa viagem à lua para uma zebra - a morte que, em nosso nome, já faz uma batida.
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sexta-feira, 13 de dezembro de 2013
segunda-feira, 15 de abril de 2013
EM DEFESA DA OPACIDADE
Magritte
“Os que escrevem com claridade têm leitores: os que escrevem obscuramente têm comentaristas”, escreveu Camus, e é uma daquelas fórmulas de boca cheia que se condena a si mesma ao ser repetida até diluir-se todo o sal que lhe cabia, a pouca razão que lhe assistia.
Camus é um escritor de quem sempre gostei, sempre que o releio não lhe encontro rugas, e adoro os seus cadernos, mas às vezes foge-lhe a mão para o design e escreve umas frases-efeito que condensam, como os slogans, a vontade que temos de não pensar, a nossa propensão a quedarmo-nos tão tranquilos como os mais sonhadores pântanos.
Eu não quero leitores, só quero comentadores. Por vários motivos e até ecológicos.
Faltava a Camus conhecer aquilo que Bruner, um dos renovadores da psicologia da percepção veio confirmar: somos incapazes de nos contentarmos em ver sem inventar, entre outras razões, porque sem inventar não vemos nada. Não existe uma boa leitura e compreensão das coisas sem inventarmos um pouco, i. é, sem acrescentarmos algo ao texto com que lidamos. O verbo da tauromaquia, lidar, parece-me o mais exacto para definir a nossa relação frutuosa com um texto, dado implicar-nos: não é possível face ao touro ficarmos sem reacção.
Mesmo para compreender algo, dizem-nos os estudos da psicologia cognitiva, temos de inventar, temos de integrar a informação recebida num mapa mais geral que é o da nossa interpretação do mundo, ou seja, temos de improvisar como no teatro ou face ao paquiderme na arena e nos redesenharmos nisso, a fim de percebermos intrinsecamente algo.
Decorre daqui que não existe leitura sem a inscrição do leitor, a sua imersão no texto que, afinal, “completa”. A identificação não é, por conseguinte, apenas plasmarmo-nos numa personagem ou num enunciado que nos é modelar mas também a sensação de que colaborámos para a construção do texto.
Só é passiva a nossa leitura quando o texto se encerrou em si, estabeleceu os seus limites e se apresenta como túmulo e até como póstumo.
Vou buscar dois exemplos que já coloquei num texto mas que, por servirem exemplarmente o que quero dizer, não me cansarei de repetir:
«Já dos versos do poeta renascentista espanhol Garcilaso de la Vega se dizia serem tão obscuros que havia que entrar neles com archotes, para entendê-los.
Na verdade, a poesia aponta o seu binóculo a um conteúdo comum para pesquisar uma nova escala e falar do desconhecido. Tentar dar uma forma inteligível ao desconhecido não terá naturalmente tradução simultânea para a linguagem coloquial. Aliás, apenas a comunicação publicitária é que faz uso de uma linguagem já testada. O que é que nos dá a comunicação publicitária? Flamengo, com embrulhos extraordinários, mas Flamengo.
Outra dificuldade se apresenta. A poesia do século XX, realiza uma segunda operação que cansa o leitor: o poema auto-reflecte sobre os seus processos criativos e a linguagem. No entanto, repare-se: o prédio do 33 não se ergueu sem andaimes. De igual modo, o poema não comunica sem montar os seus andaimes, a estratégia de como comunicar: daí que todos os poemas, apesar de veicularem um conteúdo, só respirem pela relação que estabelecem connosco, tentativamente.
Poemas que nos comuniquem a emoção causada pela morte de um filho, a beleza da namorada ou o desgaste do tempo são aos milhares, raros são os que nos transmitem também essa nova que é a experiência do poema e nos projectam como leitores para um outro lugar onde pressentimos, pela palpitação do verbo, uma superação do tempo e da contingência que provocou o poema.
A arte nasce da contingência (das coisas que acontecem à nossa volta, das alegrias, sarilhos, dramas e situações em que a vida nos atola) mas opera uma sublimação e não uma mera transcrição. O poeta surrealista Paul Eluard revela-nos o que é a sublimiçao ao definir o mecanismo do poeta deste modo: «o poeta quer falar da mulher que ama e fala de pássaros, quer falar da guerra: fala de amor, tão pouco conhece o poeta o título do seu poema senão após tê-lo escrito...».
Deduz-se obrigatoriamente daqui que não se fazem poemas sobre o sentimento, a guerra, a paz, a liberdade, as escolhas sexuais, mas com o sentimento, a guerra, a paz, a liberdade, o amor ou o ódio. Esses fluxos emocionais desembocam no poema como um feixe de energias e não como conteúdos em moldes pré-formatados. Aliás, o poeta distingue-se – diz o filósofo Rafael Argullol, e nós concordamos - por ser, não exactamente o homem mais sensível, mas antes aquele que atraído pela voragem do acontecimento consegue distanciar-se até poder articular em palavras que lhe sejam próprias.
Voltemos agora ao problema sobre a dificuldade de leitura dos poemas, ao seu hermetismo e ininteligibilidade. Talvez o problema radique noutro lado. Esperimentemos ler um trecho de um poema sofrível de José Miguel Silva, poeta de quem habitualmente até gosto. O poema chama-se Feios, Porcos e Maus, e diz assim:” Compram aos catorze a primeira gravata/ com as cores do partido que melhor os veste./ Aos quinte fazem por dar nas vistas no congresso/ das juventudes, seguem na caravana das bases,/ aclamam ou apupam segundo o mandato das chefias (...) Aos trinta e dois e bem o momento de começar/ a integrar as listas, de preferencia em lugar elegivel,/ pondo sempre a vileza em primeiro lugar. A partir/ do parlamento tudo pode acontecer: director/ da impresa municipal, coordenador, assessor de (….) No final, para os mais afortunados, pode haver nome de rua,/ com ou sem estátua, e flores, fanfarras de formol». Assim que acabamos a leitura, podemos voltar a cabeça no travesseiro e adormecer, absolutamente indiferentes à sorte do poema, que verteu o seu conteúdo sem estabelecer connosco uma relação. O poema deu-nos a sua mensagem, mas como num comunicado, no momento seguinte está esquecido. O poema não passa de uma “coisidade” exaltada.
Se, pelo contrário, lemos este trecho de Herberto Helder (que também tem poemas menos conseguidos): «Minha cabeça estremece com todo o esquecimento./ Eu procuro dizer como tudo é outra coisa. / Falo, penso./ Sonho sobre os tremendos ossos dos pés./ É sempre outra coisa, uma/ só coisa coberta de nomes./ E a morte passa de boca em boca/ com a leve saliva,/ com o terror que há sempre/ no fundo informulado de uma vida.» somos sensibilizados por uma significação radiosa, mas dupla, que nos escapa à primeira e obriga a reflectir e a passear com o poema nos escaninhos mais arejados do cérebro até conseguirmos que o tempo nos dê a resposta a cada uma das metáforas que nos intrigam no poema.
A inapreensão ou a incompletude da nossa leitura vai perfazendo um trajecto, onde nós e o poema fazemos «um», no perpétuo vaivém de uma relação. E como a nossa inteligência sofre da ilusão entranhada de que temos de ver «tudo claro» voltamos ao poema que nos intriga várias vezes, dando conta de que em cada leitura obtemos uma resposta diferente para o mesmo. E então subimos várias vezes as escadas do 33 só com este poema a jogar xadrez conosco no nosso íntimo, e de cada vez que tornamos a descer as escadas a configuração fisica das escadas está diferente porque o poema, com as inúmeras perguntas que nos colocou, nos transformou, provocando uma mutação, a tal conversão semiótica.
O poema absorve-nos, transforma-nos, vai incubando em nós que tudo é outra coisa para lá das aparências e em cada limiar abriu novas janelas. A mesma janela que se abre quando dançamos e não somos mais nós que dançamos, e a dança que dança em nós, ou a mesma janela que se abre quando tocamos piano, e damos conta de que não somos mais nós ou as nossas mãos que tocam, mas é a música que se serve das nossas mãos para acontecer. Por muito que nos custe, tanto a beleza como a arte ou o amor acontecem mais quando o “eu” está ausente. Agora para isso precisamos de estarmos desnudos, e e necessário estarmos implicados na relação – na que, por exemplo, o poema estabelece connosco. Temos de participar.
Julgo ser nesta diferença que tudo se joga, não no facto do poema ser acessível ou não, simples ou complicado. Um poema que não altere a nossa percepção do mundo, do corpo, do tempo e dos outros, que não incuba em nós, serve para quê – para além de servir a vaidade do seu autor? O que é complexo não pode deixar de ser complexo – e para visitarmos esses “novos mundos” apenas precisamos decidir se queremos ser leitores exigentes, que admitem a longa duração, ou voláteis frequentadores do shooping, se queremos ser velhos de espírito vivo e gaiteiro ou jovens que o tempo gastou como as borrachas.»
Vemos então como a frase de Camus é não apenas terrorista como, em nome da clareza, premeia a facilidade e todos os equívocos.
Cada texto conduz a uma “clareza” natural, dentro da sua constelação. A clareza de Camus não é a mesma de Blanchot, a obscuridade em Herberto não é a mesma que em Gôngora. E obviamente que não desejamos a clareza de Dan Brown porque a esta – como a toda literatura montada em fórmulas e estereótipos – lhe faltam as sombras.
Por isso, contra o meu querido Camus, nesta frase tão acarinhada pelos burocratas da língua, sempre que vejo algo que não percebo fico todo contente, engancha-se aí um porvir, um novo relacionamento. Não entender algo faz dilatar o meu horizonte, desoprime-o dos meus parcos limites e até da vaidade destes. Evidentemente que se trata de não entender algo que, não obstante, irradie uma inteligibilidade que me escapa ainda, como uma luz entre frinchas – e não de um texto que à partida seja uma burla, uma coisa que a prática detecta facilmente.
Por exemplo, durante anos, o enfrentamento da erosão africana levou-me a um afastamento em relação a dois autores que em Portugal gostava muito, Char e Gamoneda. Aquela mescla metafórica parecia-me de repente artificiosa face à realidade que se me opunha (percebi aí que os lugares e as contingências acabam por ter muita importância em relação às leituras que escolhemos). Tive de ler uma biografia de Char e de me comover com a particular dignidade daquele percurso de vida para sopesar cada metáfora na sua poesia, grave e necessária, e não um mero jogo ornamental – tendo redescoberto o poeta com outro gosto e até outro proveito.
O Char, tão obscuro, e de que até o Camus, ironicamente, foi um dos primeiros comentadores, abriu-se-me então em matizes de uma claridade que não prescindia das suas sombras para ser.
Por isso, ao arrepio de Camus, eu confio mais na interpelação de um comentarista do que na passividade de um leitor, embora, neste universo pós-simbólico, a literatura tenda a uma literalidade que ofusca e afinal nos faça não ver por nos aproximar do amorfo.
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sábado, 16 de fevereiro de 2013
GLADÍOLOS E LUCÍOLOS
um gladíolo e um lucíolo?
Escrevo:
«Não me cansarei de me lamentar
por este triste limite: leio, “as noites
de verão que inflamam os lucíolos, entre o rio e a Via Láctea” e veem-me à
cabeça, vagamente a forma dos lucíolos, mais a sua cor, mas fico rapidamente
turvo, sem a certeza se não os confundo com os lanceolados gladíolos, por
exemplo, e esta indefinição (que digo: ignorância) desgosta-me porque
simplesmente sinaliza que me fui afastando da natureza, um dos males do século, segundo Camus, que regista nos Carnets: «Voltei a ler todos estes cadernos, desde o primeiro. O que me saltou à
vista: as paisagens desaparecem pouco a pouco. O cancro moderno corrói-me a mim
também». Depois olho bem para a frase, e desconfio. Vou ver o que significa exactamente lucíole em francês e dou conta que é vaga-lume pirilampo, o que dá outro propriedade à frase: “as noites de verão que inflamam os pirilampos, entre o rio e a Via Láctea”…e pior, que nunca houve qualquer flor chamada lucíolo. C’est fini, c’est Capri.
Há qualquer coisa de doentio no critério editorial desses senhores e que mostra a pobreza mental, a venalidade sem remédio, em que se acantonou o país, onde uma ida ao Elefante Branco já passa pelo melhor que os media são capazes de oferecer à imaginação das pessoas.
Estranho, que a Leonor Pinhão nunca tenha feito uma crónica sobre esta nova tendência do jornal.
Gosto sempre de ver uma mulher nua, ou semi-nua, mas… acho que a nudez pode provir de formas mais saudáveis de relacionamento e não me parece que esta “atitude de proxeneta” dignifique nem o leitor nem o jornal.
E encontro aí uma sugestão deliciosa sobre as rosas. A de que o perfume nasce do ritmo da rosa, emanado como uma melodia que uma onda rítmica desencadeou.
19 de Setembro de 1912, Kafka nos Diários escreve assim: «Esta história, O Processo, escrevia-a eu de um jacto durante a noite de 22 para 23, das dez da noite às seis da manhã».
Eis aqui a mesma bazófia olímpica que usou Pessoa para se gabar que escrevera na noite de 8 de Março de 1914, de pé, encostado a uma cómoda alta, todo o ciclo do Guardador de Rebanhos, mais a Chuva Oblíqua e a Ode Triunfal, como refere em carta para Casais Monteiro. Claro que esta mistificação é-lhe merecida, mas mais tarde encontraram-se, desde 1912, se não me falha a memória, vários rascunhos datados do que viria a ser o poema chave de Alberto Caeiro.
Não há dúvida, dois favorecidas pelas Musas. A proeza de Kakfa equivaleria à facecia de Tolstoi jurar a pés juntos que havia escrito A Guerra e Paz, numa semana.
Bom, se Deus criou o mundo em seis dias e o colapso do sétimo ainda não acabou!
sábado, 15 de setembro de 2012
CEGOS À FORÇA
matta
Há um certo ar do tempo que aparentemente actualiza algumas premissas do Existencialismo e que leva a que neste momento se “recupere” Camus, por exemplo. Está de novo na moda.
O século XX desenvolveu um tipo de pensamento e de concepção moral que prescindiam do recurso a uma instância superior, a Deus, ou a outras abstrações ideológicas. Durante algum tempo funcionou, embora isso significasse que o homem estava face a face com aquilo a que Camus e Sartre apelidavam de “a medonha liberdade”.
“Não há mais homens culpados, escreveu Camus, mas apenas homens responsáveis”. Esta asserção pareceu uma coisa prometedora quando foi pronunciada.
Setenta anos depois estamos na ressaca da liberdade e o tema dominante é “a segurança”. Mesmo o debate em torno da “segurança social” e da salvaguarda das “reformas” prende-se no fundo a uma necessidade de manter uma certa margem de previsibilidade na projecção do (meu) futuro. É evidente que a questão dos “direitos sociais adquiridos” deve ser considerada mas ao fundo de tudo, no ADN, digamos, existe o medo a ser sem rede.
E hoje volta o que, afinal, nunca foi superado mas esteve apenas recalcado: incapaz de suportar a incerteza ou a responsabilidade diante da incerteza o homem – cansado dos horrores e da falta de grandeza de que tem sido capaz sem Deus (exactamente do mesmo quilate das vilezas cometidas com Deus) – quer de novo recair nos padrões pré-estabelecidos, abandonando-se ao desfrutre dos estereótipos postos à sua mão de semear – religiosos, políticos, filosóficos, e assim por diante.
Qual o melhor instrumento para este retorno à “segurança”?
O airbaig que “a cultura de massas” nos oferece, com a ilusão de que somos todos semelhantes e temos acesso a um igual repertório de estereótipos e a as redes sociais, onde reagimos sincronizadamente, em interacção, como os cardumes. O sentimento de pertença a um padrão de gosto universalizado ou “especializado”, são as duas faces de uma mesma ilusão, a que nos vai valendo na aflição de nos queremos cegos à força. “Cultura de massas” e Facebooks vivem num «imaginário de aliança» (e é brutal constatar que um imaginário de aliança se difunde num momento em que os desequilíbrios económico-sociais se institucionalizam com o triunfo neo-liberal) e por isso uma das palavras que o representa é o verbo “Partilhar”.
Partilhar gostos, preferências, com manifesta bondade, criar comunidades é uma espécie de comunitarismo licorizado que nos apraz.
A esta busca de unanimidade chamava Camus «o suicídio filosófico».
Bion, o psicanalista, descartando-se da ideia de funcionar como “guia” para a orientação dos seus pacientes: “… não acredito que eu saiba conduzir nem mesmo a minha própria vida. Muitos anos de experiência me indicam que continuo existindo mais por sorte do que por julgamento – esta é a única forma que posso colocar…”
Espantosa honestidade de um dos grandes psicanalistas do século XX, o britânico Bion, mas imagino o susto do paciente ao enfrentar tais convicções do seu terapeuta.
E o meu ao constatar que continuo a existir mais por azar que por julgamento.
São tremendamente informados e tremendamente passivos.
A resposta é o infortúnio da pergunta, Maurice Blanchot
Para Agostinho o mundo inteiro saiu das mãos de Deus
e por isso é «belo» no conjunto. Agora há que poder conhecê-lo e experimentá-lo,
e isto somente se consegue quando o homem se “converte” em Deus, a partir do
seu próprio interior. Só despertando esta empatia aflora nele a capacidade para
descortinar também a beleza na ordem exterior – e a arte teria esta faculdade.
As belezas da arte seriam então a correspondente resposta à beleza da criação.
Sigo o que escreve Safranski no seu livro sobre O Mal. Onde também aponta que este enlace não se daria sem dificuldades e terrenos pantanosos, segundo Agostinho.
Uma das ambiguidades derrapantes associa-se ao problema do desejo, pois se nos aproximamos das coisas pelo ângulo do desejo, a beleza escapa-se-nos. Simplesmente, para o desejo o mundo transforma-se num obscuro objecto e o obscuro objecto do desejo não nos permite uma atitude estética – a reserva de nos distanciarmos. O desejo devora, aquele que deseja é devorado pelo objecto que deseja.
É este o tema de Esse Obscuro Objecto do Desejo, de Buñuel, afinal uma fita agostiniana, com as suas duas actrizes a representarem o mesmo papel – Carole Bouquet e Angela Molina.
O filme adapta um livro do herético e pornógrafo Pierre Louys o que torna a associação mais picante.
E o relevante é o que conta o próprio cineasta, quanto à forma como o filme foi recebido: «Ao princípio eu dizia, Vão pensar que são duas pessoas diferentes. Mas não, o público percebeu-as como não fazendo senão uma. O que prova bem que há no cinema qualquer coisa da ordem do hipnotismo». Foram também os espectadores devorados pela instigante e perturbadora flutuação de carácter que aquela mulher parecia ter e que a tornava tão irresistível? O desejo devorou-lhes o discernimento, o recuo para a gravitação estética.
Mas há uma outra característica referente à arte que Agostinho e refere e onde desta vez sou eu que me sinto em consonância. A arte, para Agostinho, conserva a dignidade do mundo e faz com que as coisas sejam: “A obra de arte não pesca no turvo, antes atravessa o formigueiro do mundo para deixar que se faça transparente a ordem fundamental ali subjacente”.
Roberto Matta, o meu pintor favorito, conta a sua
visita a Mondrian, em Nova Iorque.
Ao chegar ao atelier, cruzou com uma senhora que ia a sair.
Mondrian recebeu-o e preparou-lhe um chá. Era um homem taciturno e solitário, de óculos. Matta pelo seu lado – alegre e expansivo – deu-se conta de alguma perturbação no mais velho e pediu-lhe que lhe explicasse as razões.
- É por causa da mulher que acabou de sair – disse-lhe Mondrian – pôs-se a dizer, por que há tantas linhas rectas nos seus quadros?
Matta não disse nada. Então perguntou-lhe Mondrian:
- Onde vês tu, essas linhas rectas nos meus quadros?
É Jean-Claude Carrière quem conta esta belíssima história. Para concluir:
«Trata-se de uma história exemplar que podemos aplicar perfeitamente ao cinema. Que é que Fellini não vê nos seus filmes que outros, sim, veem? E Kurosawa? E Bresson? E Kubrick?»
Eu acho que se aplica a todos os campos. O que é que é cego para si mesmo em todos os criadores? Não será essa a parte mais autêntica neles? A que aflora e insiste, como um nó, apesar de invisível para o autor?
A mim sempre me chamaram hermético. Desde que escrevia artigos para os jornais. Nunca entendi porquê. Mas como deixar de ser cego sobre nós mesmos? Como deixar de ser invisíveis ao nosso próprio olhar?
Há um certo ar do tempo que aparentemente actualiza algumas premissas do Existencialismo e que leva a que neste momento se “recupere” Camus, por exemplo. Está de novo na moda.
O século XX desenvolveu um tipo de pensamento e de concepção moral que prescindiam do recurso a uma instância superior, a Deus, ou a outras abstrações ideológicas. Durante algum tempo funcionou, embora isso significasse que o homem estava face a face com aquilo a que Camus e Sartre apelidavam de “a medonha liberdade”.
“Não há mais homens culpados, escreveu Camus, mas apenas homens responsáveis”. Esta asserção pareceu uma coisa prometedora quando foi pronunciada.
Setenta anos depois estamos na ressaca da liberdade e o tema dominante é “a segurança”. Mesmo o debate em torno da “segurança social” e da salvaguarda das “reformas” prende-se no fundo a uma necessidade de manter uma certa margem de previsibilidade na projecção do (meu) futuro. É evidente que a questão dos “direitos sociais adquiridos” deve ser considerada mas ao fundo de tudo, no ADN, digamos, existe o medo a ser sem rede.
E hoje volta o que, afinal, nunca foi superado mas esteve apenas recalcado: incapaz de suportar a incerteza ou a responsabilidade diante da incerteza o homem – cansado dos horrores e da falta de grandeza de que tem sido capaz sem Deus (exactamente do mesmo quilate das vilezas cometidas com Deus) – quer de novo recair nos padrões pré-estabelecidos, abandonando-se ao desfrutre dos estereótipos postos à sua mão de semear – religiosos, políticos, filosóficos, e assim por diante.
Qual o melhor instrumento para este retorno à “segurança”?
O airbaig que “a cultura de massas” nos oferece, com a ilusão de que somos todos semelhantes e temos acesso a um igual repertório de estereótipos e a as redes sociais, onde reagimos sincronizadamente, em interacção, como os cardumes. O sentimento de pertença a um padrão de gosto universalizado ou “especializado”, são as duas faces de uma mesma ilusão, a que nos vai valendo na aflição de nos queremos cegos à força. “Cultura de massas” e Facebooks vivem num «imaginário de aliança» (e é brutal constatar que um imaginário de aliança se difunde num momento em que os desequilíbrios económico-sociais se institucionalizam com o triunfo neo-liberal) e por isso uma das palavras que o representa é o verbo “Partilhar”.
Partilhar gostos, preferências, com manifesta bondade, criar comunidades é uma espécie de comunitarismo licorizado que nos apraz.
A esta busca de unanimidade chamava Camus «o suicídio filosófico».
Bion, o psicanalista, descartando-se da ideia de funcionar como “guia” para a orientação dos seus pacientes: “… não acredito que eu saiba conduzir nem mesmo a minha própria vida. Muitos anos de experiência me indicam que continuo existindo mais por sorte do que por julgamento – esta é a única forma que posso colocar…”
Espantosa honestidade de um dos grandes psicanalistas do século XX, o britânico Bion, mas imagino o susto do paciente ao enfrentar tais convicções do seu terapeuta.
E o meu ao constatar que continuo a existir mais por azar que por julgamento.
«Com muita frequência, acaba sendo danosa a persistência
e sobrevivência de atitudes morais que em alguma época podem ter sido valiosas.
Por exemplo, posso ver que o patriotismo poderia ter sido uma característica
valiosa; foi com certeza importante, nalguma época do desenvolvimento da
pessoa, que ela aprendesse a ser leal para com os seus contemporâneos.Só que também penso que você pode chegar a uma época
na qual esta formulação, possivelmente valiosa no seu momento, se torna
inapropriada caso persista além do período durante o qual a formulação e o seu
contexto se equiparavam. A persistência de tal moralidade pode ser perigosa...»,
diz Bion.
Que falta faz isto ser percebido por uma certa
elite africana que faz da «tradição» um finca-pé- boto.
A facilidade com que ouço dizer que as crianças de
hoje estão mais atentas, estão mais conectadas, aprendem mais rapidamente e
sobretudo manejam as tecnologias com uma habilidade inigualável. Tudo isto é
verdade e não é, simultaneamente. “Cresceu” de facto a inteligência, se a
tomarmos no seu sentido pejorativo, como a nossa capacidade para “aprender
truques”.
Mas para além da assustadora redução no espectro do
vocabulário que encontro na maior parte deles, em raros jovens muito informados
e especializados em determinada área encontro eu uma poética que filtre e traduza uma
expressão para a sua leitura da realidade.
São tremendamente informados e tremendamente passivos.
As belezas da arte seriam então a correspondente resposta à beleza da criação.
Sigo o que escreve Safranski no seu livro sobre O Mal. Onde também aponta que este enlace não se daria sem dificuldades e terrenos pantanosos, segundo Agostinho.
Uma das ambiguidades derrapantes associa-se ao problema do desejo, pois se nos aproximamos das coisas pelo ângulo do desejo, a beleza escapa-se-nos. Simplesmente, para o desejo o mundo transforma-se num obscuro objecto e o obscuro objecto do desejo não nos permite uma atitude estética – a reserva de nos distanciarmos. O desejo devora, aquele que deseja é devorado pelo objecto que deseja.
É este o tema de Esse Obscuro Objecto do Desejo, de Buñuel, afinal uma fita agostiniana, com as suas duas actrizes a representarem o mesmo papel – Carole Bouquet e Angela Molina.
O filme adapta um livro do herético e pornógrafo Pierre Louys o que torna a associação mais picante.
E o relevante é o que conta o próprio cineasta, quanto à forma como o filme foi recebido: «Ao princípio eu dizia, Vão pensar que são duas pessoas diferentes. Mas não, o público percebeu-as como não fazendo senão uma. O que prova bem que há no cinema qualquer coisa da ordem do hipnotismo». Foram também os espectadores devorados pela instigante e perturbadora flutuação de carácter que aquela mulher parecia ter e que a tornava tão irresistível? O desejo devorou-lhes o discernimento, o recuo para a gravitação estética.
Mas há uma outra característica referente à arte que Agostinho e refere e onde desta vez sou eu que me sinto em consonância. A arte, para Agostinho, conserva a dignidade do mundo e faz com que as coisas sejam: “A obra de arte não pesca no turvo, antes atravessa o formigueiro do mundo para deixar que se faça transparente a ordem fundamental ali subjacente”.
Ao chegar ao atelier, cruzou com uma senhora que ia a sair.
Mondrian recebeu-o e preparou-lhe um chá. Era um homem taciturno e solitário, de óculos. Matta pelo seu lado – alegre e expansivo – deu-se conta de alguma perturbação no mais velho e pediu-lhe que lhe explicasse as razões.
- É por causa da mulher que acabou de sair – disse-lhe Mondrian – pôs-se a dizer, por que há tantas linhas rectas nos seus quadros?
Matta não disse nada. Então perguntou-lhe Mondrian:
- Onde vês tu, essas linhas rectas nos meus quadros?
É Jean-Claude Carrière quem conta esta belíssima história. Para concluir:
«Trata-se de uma história exemplar que podemos aplicar perfeitamente ao cinema. Que é que Fellini não vê nos seus filmes que outros, sim, veem? E Kurosawa? E Bresson? E Kubrick?»
Eu acho que se aplica a todos os campos. O que é que é cego para si mesmo em todos os criadores? Não será essa a parte mais autêntica neles? A que aflora e insiste, como um nó, apesar de invisível para o autor?
A mim sempre me chamaram hermético. Desde que escrevia artigos para os jornais. Nunca entendi porquê. Mas como deixar de ser cego sobre nós mesmos? Como deixar de ser invisíveis ao nosso próprio olhar?
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