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sábado, 3 de outubro de 2015

terça-feira, 26 de maio de 2015

Parabéns Alberto!

Emile Bernard (1868 - 1941)
 
 
 
E aqui fica um poema, muito pouco conhecido de Ary (manuscrito na capa de um livro) 
 
Um riso alvar
Um franzir de sobrancelhas
um boné a desabar
que cai sobre as orelhas

olhos no dono postos
ou no chão para ver os pés
Homem triste e sem gostos
e sem o vigor do português

Palhaço fardado d’almirante
marinheiro que nunca andou no mar
Sabujo, lacaio que é capaz

de se curvar e envilecer perante
o seu dono – Salazar
Um só existe: – o Tomaz.
 


terça-feira, 25 de junho de 2013

RESUMO

Amo
o que conheço.

Pelo resto
passo
e esqueço.

Alberto Soares
In: Arquivo mortal. Porto: Amititia, 2013, p. 23

segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

domingo, 31 de julho de 2011

Bom Vinho & Bom Tom

O livrinho Bom vinho &  bom tom, de [Alberto] da Cunha Dias, Lisboa, Edições Delta, 1937, 24 p. pode ser relativamente raro. Apenas encontramos rasto dele, na Net, quando googlamos, no espólio do Dr. José de Almeida, no Arquivo Distrital da Guarda.
Foi composto na Imprensa Beleza (Rua da Rosa, 99 a 107, Lisboa), acabando-se a sua impressão a 7 de Julho de 1937 e parece ter sido patrocinado pelo C.E.V.U. (Comissão Instaladora do Centro de Estudos Cientificos do Vinho e da Uva).
E entre as várias máximas que cita, escolho uma de Baudelaire:
«O vinho torna o homem sincero; teem qualquer coisa que esconder aqueles que o não bebem.»
Parece que tenho de começar a beber....

Este post é dedicado ao Alberto, companheiro de bebidas, comidas e Amigo. 

quarta-feira, 20 de julho de 2011

Poesia de amor portuguesa e brasileira

Há dias ofereceram-me esta antologia, organizada por Victor Oliveira Mateus e prefaciada por António Carlos Cortez. Nela encontrei alguns amigos e conhecidos. E também muitos poetas (principalmente brasileiros) que não conhecia. Para hoje seleccionei um amigo de todos nós conhecido.

Fafe: Labirinto, 2010

Passarás de um passo
a outro passo
quase sem dar por isso.

O excesso
é um início.

Alberto Soares

segunda-feira, 12 de abril de 2010

Saturno

Porque te sentaste à minha mesa
se não eras alegria nem beleza?

Alberto Soares
In: Equilíbrio. Lisboa: Caminho, 1988

Com bastante atraso, à laia de agradecimento.

sábado, 13 de março de 2010

A. S.: Escolhas Pessoais XXI

Dois Poemas Emblemáticos


Retrato de Miguel Torga, por Guilherme Filipe

Estamos próximo dos idos de Março, do fim do Inverno, neste ano que tem sido áspero e duro, no país e no mundo. No frio, na chuva, nos cataclismos naturais. Ora, áspero, mas natural, foi também o transmontano Miguel Torga (1907-1995), de seu nome de baptismo: Adolfo Rocha. Que era também portador de uma grande ternura humana, mas selectiva. Um dia, encheu o quarto de estudante de Eugénio de Andrade, de flores silvestres que colhera – quando o visitou, em Coimbra. De outra vez, ainda aluno universitário, num intervalo das aulas, deu uma palmada nas traseiras de uma colega. Como ela protestasse, admitiu: “ É ternura, sua bruta!” Eu não sou um incondicional de Torga e até lhe prefiro a prosa à poesia. No entanto, o autor de “Bichos” tem um poema que é toda uma vida. E vale toda uma obra, para mim, pela sua simplicidade e força naturais.

BUCÓLICA

A vida é feita de nadas:
De grandes serras paradas
À espera de movimento;
De searas onduladas
Pelo vento;
De casas de moradia
Caídas e com sinais
De ninhos que outrora havia
Nos beirais;
De poeira;
De sombra de uma figueira;
De ver esta maravilha:
Meu pai a erguer uma videira
Como uma mãe que faz a trança à filha.


Retrato de Alberto de Lacerda, por Rui Filipe

Por outro lado há, por vezes, poemas que têm um início fulgurante, perfeito e, depois, no final afunilam de uma forma redutora ou banal, o que tinha sido um começo surpreendente e feliz. É o caso, entre muitos outros exemplos que poderia citar, de um poema de Alberto Lacerda (1928-2007) a quem Jorge de Sena chamou “um puro poeta”, aquando da publicação, em Londres, de “77 poemas”. Além de bom poeta, Alberto de Lacerda era, também, um grande “diseur” da sua própria poesia. Nem todos os poetas o são. Tive, aliás, o grato prazer de o ouvir. Ora, o poema de que eu falava acima, tem uma grandeza inspirada inicial que, de algum modo, desaparece no verso final, quase fazendo implodir a obra em si. Mesmo assim consegue, no seu todo, ser um belo poema. Tem por título:

DIOTIMA

És linda como haver Morte
depois da morte dos dias.
Solene timbre do fundo
de outra idade se liberta
nos teus lábios, nos teus gestos.
Quem te criou destruiu
qualquer coisa para sempre,
ó aguda até à luz
sombra do céu e da terra,
libertadora mulher,
amor pressago e terrível,
primavera, primavera!


Sol de Primavera

Nota: Esta será a minha última “Escolha Pessoal”. Que termina, exactamente, cinco meses depois de ter feito a primeira. Pesam-me algumas omissões, neste “Clube de Poetas Mortos”, que são de minha frequente leitura: Sá de Miranda, Pessanha, Cesário, Nemésio, Jorge de Sena, Ruy Belo, para só falar de poetas portugueses. Mas antes que o hábito se transforme em rotina e o gosto em obrigação, é salutar que acabe no limiar da Primavera – que é um tempo propício para viver a Poesia… Laus Deo.

P.S.: A LB, com reconhecimento e estima.

Post de Alberto Soares

sábado, 6 de março de 2010

A. S. : Escolhas Pessoais XX

Juan Ramón Jimenez


Retrato de Jimenez por Sorolla

O que talvez melhor sintetize a poesia de Juan Ramón Jimenez (1881-1958) é a sua constante evolução e aperfeiçoamento, ao longo da vida do poeta. Ou uma ascese até “Dios Deseado y Deseante”- seu último conjunto de poemas. Mas desenganemo-nos, porque Jimenez não é um poeta religioso. Das suas “…três vocações declaradas – a mulher, a obra, a morte” – como ele referiu, Deus está arredado. Ou é apenas um símbolo e um motivo irradiante. Muito mais despojado e imaterial do que o foi na poesia de S. Juan de la Cruz e Sta. Teresa de Ávila. O misticismo de Juan Ramón Jimenez é um misticismo laico ( um pouco à maneira de José Régio) e descarnado (“Raízes e asas. Mas que as asas ganhem raízes / e as raízes voem.”). De um rigor e austeridade extremos, o sentido crítico do Poeta exerce-se implacavelmente em tudo aquilo que escreveu e, incessantemente, corrigiu em sucessivas antologias que foi publicando. A sua preocupação sempre foi atingir o “essencial” ( evitando os “borradores silvestres” juvenis) ou, para usar ainda palavras dele: “Bendito el llamado defecto, que no lo es, y que nos salva de la odiosa perfección” e “Ningún dia sin romper un papel…Mi mejor obra es mi constante arrependimiento de mi Obra”. Não se pense, no entanto, que a sua obra é seca e árida: estão aí “Platero y yo” (1914) e “Diário de un Poeta Reciencasado” de 1916 para provar o contrário e mostrar a capacidade do seu humor e ironia nos comentários, bem dispostos, que faz aos Estados Unidos da América – no último dos livros referidos. Porque os seus derradeiros livros são mais complexos e interagem no seu todo, através duma longa respiração de leitura – a exemplo das obras de Saint-John Perse, ou algum Eliot – privilegiei a tradução de poemas mais curtos do início da maturidade de Juan Ramón Jimenez, onde o lirismo tem um papel preponderante.

TU

Passam todas verdes, rubras…
Tu estás mais além, branca.
Todas barulhentas, ácidas…
Tu estás mais além, plácida.
Passam manhosas, levianas…
Tu estás mais além, casta.


Quadro de Picasso

A sua musa principal identificou-se, a partir do casamento (1916), com a mulher Zenobia Camprubi (1887-1956) que, quando J. R. Jimenez recebeu a notícia do Nobel, em 1956, já se encontrava moribunda e viria a falecer poucos dias depois. O Poeta na altura disse: “…el Premio Nobel me apena profundamente. Yo cuanto a mí, no tengo nada que decir”. Seguem-se dois anos de viuvez e recolhimento em Porto Rico, onde habitava havia tempo, num estado depressivo acentuado que estava já longe da plenitude e beleza lírica que produziram, por exemplo:

LUA CHEIA

A porta está aberta;
O grilo cantando.
Andarás tu nua
Pelo campo?
Como que água eterna
Por tudo entra e sai.
Andarás tu nua
Pelo ar?
A segurelha não dorme,
A formiga trabalha.
Andarás tu nua
Pela casa?

Era a altura de acabar a obra. Ou como ele disse, e para sempre, em “O Poema”: “Não lhe toques mais / porque é assim a rosa!”.

P. S. : A JAD, pela atenção e gentileza. Com amizade.

Post de Alberto Soares

sábado, 27 de fevereiro de 2010

A.S.: Escolhas Pessoais XIX

Cristovam Pavia



São alguns os poetas portugueses conhecidos e lembrados apenas por um poema. Por exemplo, João Roiz de Castel-Branco e a sua cantiga “Partindo-se”. Muitos, pelo único livro que publicaram: Cesário pelo “Livro de Cesário Verde” ou Camilo Pessanha com a sua “Clepsidra”. Quase sempre a prolixidade, em poesia, não rima com eternidade. Esquecido ou muito pouco lembrado está Gomes Leal que, no entanto, abriu caminho a Cesário Verde… Poetas há que tiveram sorte, outros má sina. Cristovam Pavia (1933-1968) foi um destes últimos. De seu nome completo, Francisco António Lahmeyer Flores Bugalho, era filho do poeta presencista Francisco Bugalho, e, pouco depois de completar 35 anos, interrompeu a sua própria vida cruzando o corpo ainda jovem com um comboio, ali para as bandas de Belém. Tinha começado a escrever e publicar poesia precocemente, em revistas: “Anteu”, “Árvore” e “Távola Redonda”. Em 1959 foi editado o seu primeiro e único livro, “35 Poemas”, na Moraes. Mas era um homem atormentado, com sentimentos de culpa e profunda religiosidade.

POEMA

Súbitos mergulhadores descendo nas águas inimigas
Com os olhos fitos e os peitos esmagados,
Descendo devagar, ao som lento de segundos vertiginosos como séculos
Todos nós vos acompanhamos e juntamos todas as nossas forças na mesma meditação.
Aqui, da terra firme,
Entre nuvens e terra,
Entre o suor e o orvalho,
Esperamos o termo com todas as nossas forças.
E sabereis a nossa mensagem:
Só há saída pelo fundo.

O seu desajustamento com o mundo não o impediu de ter cultivado amigas relações com José Régio e Casais Monteiro, bem como com poetas da sua idade ou geração: Pedro Tamen e António Osório. Mas a sua hipersensibilidade levaram-no por duas vezes até Heidelberga onde inicia uma psicoterapia e, ao mesmo tempo, trabalhará como pedreiro na construção civil.
Os poemas iniciais de Cristovam Pavia são, muitas vezes, voltados para a infância como numa tentativa de regresso a um paraíso perdido. Os finais, de extrema simplicidade, numa linguagem clara, mas quase sempre de tom elegíaco e grande carga dramática, falam de sentimentos e da vida de todos os dias. O poema que a seguir se transcreve, e que fez à morte do seu cão, é um bom exemplo disso – e, do meu ponto de vista, uma das mais belas elegias da poesia portuguesa do século XX.


Pintura de Mário Botas

AO MEU CÃO

Deixei-te só, à hora de morrer.
Não percebi o desabrigado apelo dos teus olhos
Humaníssimos, suaves, sábios, cheios de aceitação
De tudo… e apesar disso, sem pedido, tentando
Insinuar que eu ficasse perto,
Que, se me fosse, a mesma era a tua gratidão.
Não percebi a evidência de que ias morrer
E gostavas da minha companhia por uma noite,
Que te seria tão doce a minha simples presença
Só umas horas, poucas,
Não percebi, por minha grosseira incompreensão,
Não percebi, por tua mansidão e humildade,
Que já tinhas perdoado tudo à vida
E começavas a debater-te na maior angústia, a debater-te com a morte.
E deixei-te só, à beira da agonia, tão aflito, tão só e sossegado.

P. S.: à MR, pela paciência, disponibilidade, generosidade e incentivo. Afectuosamente.

Post de Alberto Soares

sábado, 20 de fevereiro de 2010

A.S.: Escolhas Pessoais XVIII

Florilégio Japonês


Retrato de M. Bashô

Em meados dos anos 60, e devido à minha curiosidade em conhecer poesia de outros países, para lá da Europa, fui, um dia, à Embaixada do Japão, em Lisboa, para saber se tinham biblioteca, para consulta. Fui gentilmente recebido. E, num prédio de esquina, próximo do Parque Eduardo VII, levaram-me até uma saleta onde, num armário envidraçado, se alinhavam, em boa ordem, cerca de uma centena de volumes. Consultados, por alto, dei-me conta que cerca de 20 eram de poesia japonesa traduzida para inglês e, destes, a maior parte eram de “hai-ku” (plural de “hai-kai”). Os pequenos tercetos de 17 sílabas (5-7-5) estavam quase sempre agrupados pelas estações do ano (Primavera, Verão…). Fui-os requisitando, gradualmente, e lendo com gosto. E até traduzi alguns “hai-ku” de que gostei mais.
Aprendi, entretanto, duas coisas importantes: que Matsuo Bashô (1644-1694) era o poeta japonês mais considerado; e que o “hai-kai” teria nascido de uma “dissidência” literária, em relação à poesia tradicional, por volta do séc. XV, por parte de dois poetas também importantes – Arakida Moritaka (1473-1549) e Yamazaki Sokán (1465-1553). O “hai-kai” é um poema minimalista muito insinuante e de fácil contágio (A. Machado, J. R. Jimenez, Borges, E. de Andrade…), embora de difícil execução. É como que um “flash” de uma máquina fotográfica. Um momento visual da Natureza (normalmente) que se cruza com o pensamento ou sentimento do poeta, numa síntese mimética e perfeita. Depois, desaparece, ficando transformado e condensado em 17 sílabas de um terceto.

Comecemos, então, por Bashô.

1. Outono – até as aves
e as nuvens parecem
envelhecidas.

2. Amigos separam-se
para sempre – gansos bravos
pelo céu, perdidos.

3. Do coração doce
da peónia sai voando
uma abelha ébria.

4. Narciso e biombo:
um ao outro se iluminam,
branco no branco.


Onda gigante de Hokusai

Seguidamente de Matsunaga Teitoku (1571-1653):

5. Hora do tigre:
névoa de primavera
também raiada.

6. Intenso flui
o mar bravo contra a ilha:
rio de estrelas.

Finalmente de Kobayashi Issa (1763-1827):

7. Para o mosquito
também a noite é longa,
longa e solitária.

8. A minha aldeia:
regresso, encontro, toco
- tudo se muda em sarça ardente.

As versões acima transcritas, previno, são feitas em terceira mão. Grande parte delas cotejadas, duplamente, via Octávio Paz (“Sendas de Oku”) e Nobayuku Yuasa (“The Narrow Road to the deep North…”). E, nalguns casos, também comparadas com as versões de Lucien Stryk. Tentei sempre, ao traduzir, seguir a ideia geminada do poema. Evitei os “hai-ku” em que havia divergências acentuadas. Porque, muitas vezes, na tradução de poesia cada um também se lê a si mesmo. Não tenho a certeza se o consegui evitar…

P.S.: Uma pequena curiosidade. «Bashô» é uma palavra acrescentada, na idade, ao seu próprio nome, pelo Poeta. Acontece que um discípulo lhe ofereceu um tipo de bananeira que Matsuo plantou junto de sua casa. Como gostava muito dessa árvore, acrescentou a palavra ao seu nome, em jeito de apelido.

Post de Alberto Soares

sábado, 13 de fevereiro de 2010

A.S.: Escolha Pessoal XVII

Fernando Assis Pacheco



Jornalista de mérito e acaso, quase fundador de “O Jornal”, entrevistador nato e arguto (ver entrevista a Salgueiro Maia em “Retratos Falados”- Ed. Asa), Fernando Assis Pacheco (1937-1995), como poeta, pertence à honrosa linhagem que, tendo origem nos colaboradores das “Cantigas de Escárnio e Maldizer”, passa por alguns poetas do “Cancioneiro Geral”, se prolonga no século XVIII por Tolentino e Bocage, e vem desaguar em Alexandre O’Neill. Uma das suas referências foi também Drummond de Andrade. Assis Pacheco é, talvez, menos “aristocrático” que O’Neill. Mas ambos são portadores de uma discreta ternura ou uma compassiva atenção às pequenas coisas do mundo ou aos “Enjeitados da Fortuna”, para lembrar José Daniel Rodrigues da Costa, outro dos parentes mais afastados, e com muito menos talento.
Fernando Assis Pacheco estreia-se, em 1963, com “Cuidar dos Vivos”, em plena maturidade de estilo e arte, glosa o Vietname – por defesa prudente contra a censura – em “Câu Kiên: um Resumo”(1972), para falar da sua experiência de guerra em Angola. O seu último livro de poesia “Respiração Assistida” sai já, postumamente, em 2003. Nestes seus últimos poemas, Eros e Thanatos entrelaçam-se e fundem-se virulentos e extremos, num estertor final pressentido que, por vezes, raia o fescenino e lembra a “dança da morte “ medieval, num frenético amor à vida que lhe foge.
A arte da indignação também sempre fez parte do seu credo:

Não Posso

Nasce
em torpes corações a Primavera.
Tempo, astros, alegria nunca escolhem
sobre quem derramar-se.
Para exemplo deste imponderável
Goering amava os animais
e vem a Lisboa David Oistrakh
tocar para estudantes e rameiras.
Quando colho uma flor, sei
que ela mudará as minhas noites.
Mas é também conhecido
que a certas horas os carcereiros
despem a farda
e vão às Mercês e à Rinchoa
comprar cestos à beira da estrada
com morangos ou cravos. Não posso
com tanta ironia.

Através de edições de autor, ou editoras menos consagradas, ou marginais, Assis Pacheco procurou afastar-se sempre das mundanidades literárias, dos holofotes da fama e das “vernissages do croquete” que o seu nome, por demais conhecido nos “media”, lhe teria disponibilizado, Truculento e imaginativo, era certeiro e natural nos versos, com a candura e rudeza das palavras sinceras e do seu grande amor à vida.


Desenho de Hans Hartung

Dá Lá a Mão

Herói das noites insones
Coração não me abandones
neste Outono derramado
não me godas coração
dá-me lá a tua mão
coração tu não me enroles
carcaça foi que está gasta
o check-up diz que basta
tem paciência coração
não me godas não me trames
que estou preso por arames
coração dá lá a mão

sábado, 6 de fevereiro de 2010

A.S.: Escolhas Pessoais XVI

Antonio Machado


Retrato de Machado por Alvaro Delgado

Antonio Cipriano José Maria y Francisco de Santa Ana Machado y Ruiz (1875-1939), como poeta conhecido, simplesmente, por Antonio Machado, é uma das figuras mais importantes do grupo denominado “Geração de 98” em que também pontificaram seu irmão Manuel Machado (1874-1947) e o prémio Nobel Juan Ramón Jimenez (1881-1958). Nascido em Sevilha (“A minha infância são lembranças dum pátio de Sevilha / e de um horto claro onde brilha um limoeiro; / a juventude vinte anos em terras de Castela; / a minha história, alguns casos que não quero recordar…"), Machado viveu também em Paris, onde conheceu Verlaine, vindo a fixar-se por Madrid; até que, quando do avanço das tropas de Franco sobre a capital espanhola, é evacuado para Valência, depois Barcelona, refugiando-se, de seguida, em França onde veio a morrer pouco depois, a 22 de Fevereiro de 1939, três dias antes de sua Mãe que o acompanhara.
A sua poesia, bem como a de dois heterónimos que criou (Abel Martín e Juan de Mairena), passa rapidamente da fase inicial, mais rebuscada, para um período amadurecido de grande simplicidade em que o verso alexandrino produz aquele efeito mais sereno e pausado (“Amo a beleza, e na moderna estética, / cortei as velhas rosas do jardim de Ronsard; / mas não quero os adornos da actual cosmética, / nem sou um desses pássaros de alegre cantar…”) e alterna com pequenos tercetos que se aproximam muito dos “hai-ku” japoneses:

“Prestai atenção:
um coração solitário
não é um coração.”

Na forma que não no conteúdo, mais de reflexão que de motivo panteísta.
A geografia e paisagem castelhana, com o Douro predominante, são temas recorrentes de Antonio Machado em “Campos de Castela”, a sua obra mais conhecida, bem como os aforismos de sabor quase filosófico (“…Caminhante, não há caminho, / o caminho faz-se a andar…”) ou um diálogo interrogativo de certa religiosidade.


Quadro de G. Chirico

Um simbolismo muito próprio atravessa também alguns dos seus poemas em que as parábolas têm um halo de mistério metafísico, com uma linearidade quase abstracta, mas sempre muito sugestiva ao nível das imagens que projecta no seu leitor:

“A praça tem uma torre,
a torre tem um balcão,
o balcão tem uma dama,
a dama uma branca flor.
Passou lá um cavaleiro
- quem sabe porque passou! -
e levou consigo a praça,
com sua torre e balcão,
com o balcão e a dama,
a dama e a branca flor.”

P.S.: Proponho algumas referências de leitura, pessoalmente, para este último poema. Com tudo o que isso implica de, eventualmente, redutor ou excessivo.
A torre que surge no primeiro verso poderia ser uma reminiscência, em forma abstracta, da “Giralda” de Sevilha, cidade natal do Poeta. A dama com a branca flor a noiva-mulher, Leonor Izquierdo, com quem A.M., então com trinta e quatro anos, se casou, em 1909, tendo ela apenas 15 anos. E que veio a falecer em 1912, de tuberculose, deixando Antonio Machado em funda depressão. Finalmente, o cavaleiro seria a figura da Morte. Que tudo levou, deixando apenas o vazio.

Post de Alberto Soares

sábado, 23 de janeiro de 2010

A. S. : Escolhas Pessoais XV

Francisco Manuel de Melo



Personagem multifacetada, poeta-soldado, historiador, diplomata, teórico do Poder (“Aula Política, Cúria Militar”, 1720), hagiógrafo, moralista q. b., viajante por dever, por desgraça (degredo no Brasil) e ofício, Francisco Manuel de Melo (1608-1666) é, dos nossos autores antigos, talvez aquele que – afora Camões – melhor conheceu o mundo da sua época e que, mais alargado horizonte tinha, na sua experiência de vida. Cortesão lisboeta, e de outras cortes, viveu a meninice na Calçada do Combro, tendo alternado, na idade madura, entre o Rossio, onde também morou, e a sua quinta de Alcântara. Pelo meio, as prisões: Torre de Belém, Castelo de S. Jorge e Torre Velha (na Outra-banda) onde compôs uma das suas obras-primas: “Carta de Guia de Casados”, editada em 1651. Precoce, na escrita, fez imprimir, com cerca de 20 anos, em 1628, um pequeno livro, hoje raríssimo, com doze sonetos sobre Inês de Castro, e que foi reeditado, em edição fac-similada em 1960, por “ O Mundo do Livro”.



A sua poesia, se bem que agregue toda uma herança conceptista, tem marca própria e, por vezes, um humor muito vivo, até quando refere as suas desgraças e prisões: “Casinha desprezível mal forrada, / Furna lá dentro mais que inferno escura / Fresta pequena, grade bem segura, / Porta só para entrar, logo fechada;…” Amigo de Francisco de Quevedo, com quem privou na corte de Madrid, de que resta uma carta testemunho (L da 2ª Centúria), enviada por Manuel de Melo, e integrada na obra “Cartas Familiares” – talvez o 1ºconjunto de epistolografia da literatura portuguesa.

    Degredado para o Brasil, por motivos ainda hoje não totalmente esclarecidos, o seu testemunho das terras de Vera Cruz é mínimo, se bem que lá tivesse ficado 5 anos. Deixou-nos um soneto que começa assim:

    “São dadas nove. A luz e o sofrimento

    Me deixam só nesta varanda muda,

    Quando Domingos, que dormindo estuda

    Por um nome que errou, lhe chamo cento.

    Mortos da mesma morte o dia e o vento,

    A noite estava para ser sesuda,

    Que desta negra gente, em festa ruda,

xxxxxxEndoudece o lascivo movimento…”



Da sua vasta bibliografia elejo “Carta de Guia de Casados” de que escolhi um pequeno excerto com pretexto e sugestão de que a leiam ou releiam. Aqui vai:

    “ Dizia um nosso grande cortesão, que havia três castas de casamento no mundo: casamento de Deus, casamento do Diabo, casamento da morte. De Deus, o do mancebo com a moça. Do Diabo, o da Velha com o mancebo. Da morte, o da moça com o Velho. Ele certo tinha razão, porque os casados moços podem viver com alegria. As Velhas casadas com moços vivem em perpétua discórdia. Os velhos casados com as moças apressam a morte, ora pelas desconfianças, ora pelas demasias.”

Post de Alberto Soares

sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

A. S.: Escolhas Pessoais XIV

Drummond de Andrade


Retrato de Drummond de Andrade, por Portinari

Carlos Flávio Drummond de Andrade (1902-1987) é conhecido, sobretudo, como um dos grandes poetas brasileiros do séc. XX, mas foi também um contista notável - “Contos de Aprendiz”- e autor de crónicas memoráveis.

Homem, aparentemente, simples, mas de grande sabedoria poética (“Não faças versos sobre acontecimentos […] Penetra fundamente no reino das palavras”), autor de poemas de grande dramatismo expressivo (“A morte do Leiteiro”, “Caso do Vestido” e “Desaparecimento de Luísa Porto”) que alternam, inesperados, com versos de intenso humor negro:

          A SANTA

        Sem nariz e fazia milagres.

        Levávamos alimentos esmolas

        Deixávamos tudo na porta

        Petrificados.

        Por que Deus é horrendo em seu amor?

Os seus contos, de saboroso humor minimalista, articulam de uma forma analítica o espanto provinciano (Itabira, onde nasceu) perante a ”perfeição” citadina (Belo Horizonte, para onde foi estudar) – vista pelos olhos de uma criança -, por exemplo em “O Sorvete”; ou dão lugar aos sentimentos infantis, extremados, na sua pureza original (“Salvação da Alma”). Mas a seriedade do tom destas pequenas narrativas, com o seu inesperado final, faz lembrar um menino sisudo, educado e compenetrado dos seus deveres (e não esqueçamos que Drummond foi um eficiente e cumpridor funcionário público …) que, quando menos se espera faz uma malandrice… Este humor, por vezes ácido, é também uma herança do “modernismo brasileiro” que Manuel Bandeira, por exemplo, conservou até ao fim.

Carlos Drummond de Andrade foi também um tradutor exemplar de autores franceses: Laclos, Moliére, Balzac, Proust e Mauriac. E Lorca. Os seus versos que, às vezes, parecem excessivamente prosaicos, têm uma musicalidade muito própria e chegaram (algumas composições) a ser musicadas por Vila-Lobos: “Viagem de Família” e “Cantiga do Viúvo”.

A preocupação social, a solidão (“Nesta cidade do Rio, / de dois milhões de habitantes, / estou sozinho no quarto, / estou sozinho na América…”) e o amor, quer na sua fase inicial - mais optimista -, quer na final, com notas mais dramáticas (“Deus me deu um amor no tempo da madureza, / quando os frutos ou não são colhidos ou sabem a verme…”), para lá dum cristianismo discreto, mas muito presente, são temas estruturantes na sua obra. Lapidarmente, Otto Maria Carpeaux disse que a obra poética de Drummond era um “acordo raro de certa ingenuidade rústica com a mais rigorosa disciplina intelectual.”


Desenho de A. Rodin

De Carlos Drummond de Andrade escolhi:

        O QUARTO EM DESORDEM

      Na curva perigosa dos cinquenta

      Derrapei neste amor. Que dor! que pétala

      Sensível e secreta me atormenta

      E me provoca à síntese da flor

      Que não sabe como é feita: amor,

      Na quinta essência da palavra, e mudo

      De natural silêncio já não cabe

      em tanto gesto de colher e amar

      a nuvem que de ambígua se dilui

      nesse objecto mais vago do que nuvem

      e mais defeso, corpo! corpo, corpo,

      verdade tão final, sede tão vária,

      e esse cavalo solto pela cama,

xxxxxxxxxxxxxxxXa passear o peito de quem ama.

Post de Alberto Soares.

sábado, 9 de janeiro de 2010

A.S.: Escolhas Pessoais XIII

Sophia Andresen



O tom da sua obra é quase sempre imperativo e o pensamento geométrico, clássico na influência. As dúvidas, se as encontramos, são, sobretudo, quando o discurso é um discurso amoroso, de veemência apaixonada, mas sem sentimentalismos excessivos. Puro e duro. Não há meias medidas na poesia de Sophia de Mello Breyner Andresen (1919-2004), poucas disjuntivas nos seus versos, poucas alternativas hesitantes.

“A Conquista de Cacela

As praças fortes foram conquistadas
Por seu poder e foram sitiadas
As cidades do mar pela riqueza
Porém Cacela
Foi desejada só pela beleza”


A exigência ética e um certo dramatismo atravessam muitos dos seus poemas, em que, nalguns casos, espreita uma ironia seca e cortante, certeira e desapiedada:

“As pessoas sensíveis não são capazes
De matar galinhas
Porém são capazes
De comer galinhas…”


Um dos poemas, que mais aprecio de Sophia Andresen, tem como base uma “falsa” história. Intitula-se “Meditação do Duque de Gandia sobre a Morte de Isabel de Portugal” e a frase (“Nunca mais servirei senhor que possa morrer”) corre atribuída a Francisco de Borja e Aragão (1510-1572), Duque de Gandia, que depois de enviuvar, professou e veio a ser Superior Geral dos Jesuítas. A célebre frase estava, na verdade, integrada na oração fúnebre, feita por S. João de Ávila, no funeral de Isabel de Portugal (1503-1539), esposa de Carlos V, e mãe do futuro rei de Portugal, Filipe I (II de Espanha). Não é, portanto, do Duque de Gandia. A ficção, no entanto, é, por vezes, bem mais interessante do que a prosaica realidade.


Ticiano - Isabel de Portugal
Óleo sobre tela
Madrid, Museu do Prado


Transcreve-se, então, o belo poema de Sophia Andresen:

“Nunca mais
A tua face será pura limpa e viva
Nem o teu andar como onda fugitiva
Se poderá nos passos do tempo tecer.
E nunca mais darei ao tempo a minha vida.
Nunca mais servirei senhor que possa morrer.
A luz da tarde mostra-me os destroços
Do teu ser. Em breve a podridão
Beberá os teus olhos e os teus ossos
Tomando a tua mão na sua mão.
Nunca mais amarei quem não possa viver
Sempre.
Porque eu amei como se fossem eternos
A glória a luz e o brilho do teu ser,
Amei-te em verdade e transparência
E nem sequer me resta a tua ausência,
És um rosto de nojo e negação
E eu fecho os olhos para não te ver.
Nunca mais servirei senhor que possa morrer.”


Post de Alberto Soares

sexta-feira, 1 de janeiro de 2010

A.S. : Escolhas Pessoais XII

W. H. Auden


W. H. Auden (Avedon, 1960)

Numa tradução de poesia importa, à partida, definir um critério de valores. Podem encarar-se alguns dos aspectos a ter em conta. Por exemplo: manter ou não a rima (se o poema for rimado), tentar conservar o ritmo ou não, respeitar o sentido do poema e/ou procurar atingir a intenção do poeta. Se quisermos, porém, respeitar em simultâneo estes três aspectos, referidos acima, com toda a certeza que ambicionamos chegar à “quadratura do círculo”. O que é difícil, convenhamos… E uma enorme tolice – do meu ponto de vista.
Em tudo aquilo que traduzo, procuro sobretudo o sentido dos poemas. Se puder respeitar o ritmo ou respiração do poema, tanto melhor. Manter a rima, na poesia (se tem rima) é, para mim, totalmente secundário. Em nome da rima, na tradução, se têm cometido autênticas monstruosidades. Já basta a “traição” que é traduzir, em si.
Vem isto a propósito de dois poemas de Wisten Hugh Auden (1907-1973) que traduzi e transcrevo abaixo.
Não sendo um poeta excessivamente moderno, ou inovador nas formas e metros usados, é-o nos conteúdos. Auden foi um escritor que ocupou e justificou, em plenitude, o seu tempo de vida na Terra. Nómada, com profundas convicções políticas, teve uma intervenção e tomadas de posição inequívocas, persistentes e marcadas perante os grandes problemas ou crises que afectaram o Mundo e a sua época. A Guerra Civil de Espanha, a ascensão do nazismo e a II Grande Guerra foram objecto de poemas seus. Tem mesmo um poema intitulado “September 1, 1939”, numa atitude semelhante à de René Char. A menorização dos princípios éticos também o preocupava:

“A História da Verdade

Há muito e quando ser era também acreditar
A verdade era superior a muitas crenças,
A mais inicial, mais eterna que um leão com asas
De morcego, um cão de rabo de peixe, um peixe com cabeça
De águia, e o menor dos mortais duvidava que morressem.
A verdade era o exemplo que procuravam construir
Um conjunto de duráveis objectos em que acreditar,
Sem crer nas coisas terrestres ou na lenda,
No arco e na canção, onde credível ou não
A verdade estava sempre ali por ser mesmo verdade.
Só que, entretanto, assim como os úteis pratos de papel,
A verdade converteu-se em quilovátios,
E a última coisa a fazer foi criar um anti-modelo,
Alguma inverdade por onde alguém possa mentir,
Um nada em que ninguém precisa de acreditar.”


Frontal e incómodo para o Poder, de humor, por vezes, sarcástico, Auden foi também libretista de óperas e autor de peças de teatro. A sua poesia, no entanto, não excluiu o amor, tema que sempre abordou de forma emotiva, mas nunca de maneira excessivamente sentimental.


Jack Butler Yeats - The two travellers
Londres, Tate Gallery

Disso é exemplo o poema “Funeral Blues”, uma das suas obras mais difundidas, que foi utilizado no filme “Quatro casamentos e um funeral”.

“Parem todos os relógios, desliguem o telefone,
Evitem que o cão ladre, com um osso saboroso,
Silenciem os pianos e ao som cavo de tambores
Tragam o caixão, deixem entrar quem vier de luto.
Deixem os aviões gemer sobre as nossas cabeças
Escrevendo no céu a mensagem Ele Está Morto,
Ponham crepes, tarjas negras no pescoço branco dos pombos
Da rua, que os sinaleiros usem luvas pretas de algodão.
Ele era o meu Norte, o meu Sul, o meu Leste e Oeste,
A semana de trabalho e o descanso de domingo,
O meio-dia, a meia-noite, a minha fala e canção;
Eu pensava que o amor era eterno, mas estava enganado.
Agora as estrelas são inúteis: apaguem-nas todas;
Embrulhem a lua, desmantelem o sol;
Despejem o oceano e desfaçam-se da floresta
Porque nada do que vier servirá de conforto.”


P.S.: Com agradecimentos a Américo Guerreiro de Sousa.

Post de Alberto Soares.

sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

A. S.: Escolhas Pessoais XI

Ramalho Ortigão


Retrato de Ramalho por Columbano

José Duarte Ramalho Ortigão (1836-1915) nasceu no Porto, cidade onde veio a iniciar a sua carreira de homem de letras, como jornalista. Esteta, ginasta, andarilho incansável, e elegante prosador, cedo se distinguiu pela vivacidade dos seus escritos e comentários. Homem de princípios, chegou a bater-se em duelo com Antero de Quental, para desafrontar o nome de Feliciano de Castilho, por causa da polémica “Bom senso e Bom gosto”. Em parceria com Eça de Queiroz escreveu O Mistério da Estrada de Sintra e a parte inicial de As Farpas, que depois continuou a publicar sozinho. Da sua lavra, exclusivamente, são A Holanda e Praias de Portugal, entre outras obras, em que o apontamento certeiro e pitoresco, o olhar perspicaz e bem humorado denunciam a sua vocação natural de jornalista. Tradicionalista, monárquico até ao fim (D. Carlos, o Martirizado que publicou pouco depois do regicídio), senhor de um nacionalismo saudável e aberto, deixou notas inconfundíveis sobre o folclore, a arte popular e os costumes portugueses da época. São dele os excertos que se seguem, insertos em As Farpas, a propósito do Natal, e do intenso movimento mercantil que o antecede:

“…Lisboa prepara neste momento a festa do Natal.
Grandes rebanhos de perus, enrabeirados de lama, espalham no macadame as suas manchas movediças e escuras, de reflexos de aço, adornadas de florescências brancas e vermelhas dos moncos. Pessoas idóneas pastoreiam esses galináceos, guiando-os a golpes de cana por entre as rodas dos trens e por entre as pernas dos viandantes. Na compra destes perus convém escolher os mais teimosos: à força da cana, são os mais tenros.”



“… Os restaurantes empilham em exposição as perdizes, as galinholas, os patos bravos, os pastelões de presunto e vitela, os tímbales de frango misturados de “champignons”, e os ventres loirejantes e amanteigados dos perus embutidos de trufas, no meio de gargalos de prata de Champagne e das garrafas pretas do Bourgogne lacradas de verde.”

“… Na Praça da Figueira, num movimento extraordinário de apetites em circulação, grunhem os leitões, cacarejam os galos e berram alvoroçados os marrecos e as galinhas, erguidos pelas asas e arrepiados nas penas do peito pelo sopro dos compradores. A caça pende em bambolins ao longo das barracas, e enquanto coelhos mansos suspensos pelas pernas, expiram fulminados com a pancada seca dada com a mão de trave sobre as orelhas, cordeiros e cabritos esfolados enxugam ao ar, abertos de cima a baixo, com um caniço em cruz metido no ventre.”

“… Todas as especialidades culinárias se anunciam: os paios de Castelo de Vide, os presuntos de Melgaço, os vinhos da Fuzeta e de Borba, as arrufadas de Coimbra, os biscoitos de Oeiras, as queijadas de Sintra, a marmelada de Odivelas, os mexilhões de Aveiro, as frutas secas de Elvas e de Setúbal, o pão de ló de Margaride, o massapão de Espanha, o caviar da Rússia, a mortadela de Itália, as “pralinés” e os” marrons glacés” de Paris, o salmão da Escócia, a “choucroute” da Alemanha…”
“… Dir-se-ia que uma indigestão nacional se prepara e que o estômago de Lisboa vai rebentar de fartura amanhã.”


Capa d’As Farpas

P.S.: Boas-Festas a Todos. Aos Residentes e aos Visitantes do “Prosimetron”!

Post de Alberto Soares.

sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

A. S. : Escolhas Pessoais X

Jorge de Lima


Jorge Matheos de Lima (1893-1953), pintor, médico, escultor, ensaísta, cinco vezes rejeitado para ingressar na Academia Brasileira de Letras, poeta, sobretudo conhecido, e saturadamente, pelo poema “Essa negra Fulô” – que João Villaret dizia magistralmente – é uma figura que vale a pena lembrar. Cerca de um ano antes de morrer, numa entrevista, definiu-se assim: Tenho um metro e sessenta e oito centímetros de altura, peso 59,5 kgs. e uso óculos. Sou meio careca e meio surdo. Sou católico praticante e meu santo é São Jorge. Visto sempre de cinza e acordo às quatro da manhã com os galos e a aurora…
Infelizmente, e no que à poesia diz respeito, alguns dos seus melhores poemas estão sepultados por entre essa densa floresta epopeica intitulada Invenção de Orfeu (nome escolhido por Murilo Mendes) e que foi prefaciada por João Gaspar Simões, na sua edição original.
Autor de uma obra desmesurada e desigual, de leitura, por vezes difícil e pesada, em que o barroco se mescla de misticismo, e os metros clássicos e temas se travestem de surrealismo, sobrevoada por um sopro bíblico, a voz de Jorge de Lima é, no entanto, incontornável para quem quiser conhecer as tonalidades variadas da melhor poesia brasileira.



Francis Bacon: "Three studies for a basis of a crucifixion", 1.ª versão (1944)

Transcreve-se, do poeta, um soneto de grande tensão expressiva e que foi publicado – como inédito, na altura – na revista portuguesa Árvore (vol.II - Primeiro fascículo):

Divina Voz, divino Sopro santo,
respiro-me em teu Voo, veloz Amor.
E sinto-me pequeno de poesia.
Vezes uns uivos, longe de ser canto

vestem-me os pêlos como Manto novo,
cordas revoando. Louvo-te Senhor.
Tenho em roda ao pescoço uma coleira
de cão, de pobre cão entre o meu povo.

Nem sei dizer se esse mudado verbo,
nem sei dizer se essa gaguês furiosa,
essa rosa de vento que é meu berro

se tornou na asfixia de Teu perro,
- canto com que louvar-Te, canto-chão,
nessa Tua divina ventania.

Post de Alberto Soares.

sábado, 5 de dezembro de 2009

A. S. : Escolhas Pessoais IX

António Nobre

Guerra Junqueiro (1850-1923) e António Nobre (1867-1900) foram os primeiros poetas que li. Se Junqueiro é, hoje, uma remota recordação no tempo, Nobre, pelo contrário, revisito-o muitas vezes. E, para tomar de empréstimo a Vitorino Nemésio algumas palavras, diria, com ele : “Queremos falar criticamente do «Só», e ele recusa-se, foge do terreno crítico como uma recordação de família que não suporta outra estima senão a do coração”.
Mas sobre a criação poética, em Nobre, tenho alguma coisa a dizer a propósito do soneto 13 (da primeira edição do “Só” ) que passou a ser o 12º na segunda edição.
De Paris, e a 2 de Fevereiro de 1891, o Poeta escreve, ao seu grande amigo Alberto de Oliveira, uma carta em que refere: “Ó Alberto! manda-me notícias! Jornais aos montes (…) crivados de pormenores, com a cópia de quantos telegramas têm nestes dias atravessado os fios de arame que eu vejo além, meu Deus! sob um lindo céu cheio de sol, atacadinhos de pardais de todo alheados do «pronunciamento», nem por isso lhe oscilando as patas – Revolução! 30 mortos! 100 feridos!... - que passam”. Esta sofreguidão de António Nobre por notícias prendia-se com os factos ocorridos com a intentona do 31 de Janeiro de 1891, no Porto, em que participara, pelo menos, um dos seus amigos: Sampaio Bruno.
Cerca de nove meses mais tarde e na passagem pela Alemanha, em Colónia (possivelmente a 10 de Novembro de 1891), esta carta vai “transformar-se” no soneto 13 da primeira edição do “Só”.
Reproduz-se este soneto através das provas para a 2ªedição, com as emendas feitas pela mão de Nobre, no seu exemplar.

Este soneto deve ter deixado, também e posteriormente, marcas de leitura num poema de Alexandre O’Neill, intitulado “A Central das frases”. O contágio de Nobre reflecte-se também, no paralelismo da doença e no agrado pelo coloquial, em alguma da poesia de Manuel Bandeira. E não só.
Como disse Vitorino Nemésio, a arte de António Nobre é portadora de grande “astúcia estética” que lhe permitiu sobreviver ao seu tempo e deixar marcas para o futuro.
Além do afecto que tenho pelo “Só”, é com imenso gosto que lembro, hoje, o seu autor e o escolho.

Post de Alberto Soares