Uma pessoa é inteligente quando é capaz de usar o conhecimento que tem, seja pouco, seja muito, para resolver problemas que podem ser resolvidos com esse conhecimento de que ela dispõe. Sendo assim, podemos pensar na possibilidade de dois tipos de casos: por um lado, uma pessoa pouco erudita e inteligente, por outro, uma pessoa muito erudita e pouco inteligente. Nesse sentido, num caso extremo, um vendedor de picolé analfabeto pode ser mais inteligente que um uma pessoa pós-graduada, pois ele pode saber usar o pouco conhecimento que tem de uma forma melhor que aquela de uma pessoa pós-graduada, que faz quase nada com o muito conhecimento que possui.
No trabalho filosófico acadêmico (e no trabalho acadêmico em geral), principalmente entre estudantes iniciantes (mas, infelizmente, também entre alguns professores), a confusão entre erudição e inteligência tem várias manifestações. Quem confunde as duas coisas tende a acreditar que um texto que não cite vários filósofos famosos não é um bom texto filosófico. Uma tal confusão também leva freqüentemente à suposição que a justificação de uma afirmação (seu "embasamento" ou "fundamentação") consiste simplesmente em se citar uma passagem de um livro de um autor famoso em que ele faz a mesma afirmação. É claro que se essa citação contém um
argumento, cuja conclusão é a afirmação que se quer justificar, e aquele que cita aceita o referido argumento, então a citação não é apenas demonstração de erudição. Mas ela será também uma demonstração de inteligência conforme for a competência que aquele que cita o argumento tem de explicá-lo, justificar suas premissas e defendê-lo de objeções. É claro também que, se a afirmação que se quer justificar é sobre o que um certo autor disse, então a citação não apenas é útil mas indispensável. Mas afirmações sobre o que um autor disse não são afirmações
filosóficas... são afirmações
histórico-exegéticas. Mas também em discussões sobre esse tipo de afirmação se pode exibir inteligência (mais erudita ou menos), ou apenas erudição... O apelo à autoridade pode ter um papel legítimo numa discussão filosófica (ou em outra discussão qualquer). Mas esse papel é limitado. Uma afirmação não é verdadeira
porque uma autoridade no assunto (ou várias) a fez. Mas o fato de tê-la feito pode ser aventado como um meio de, por exemplo, fazer nosso interlocutor levar mais a sério o que estamos falando, se não estiver levando. Mas se, ao sermos perguntados sobre como a autoridade em questão justifica essa afirmação, nós não tivemos uma resposta, então não podemos exigir que nosso interlocutor concorde conosco
apenas porque a autoridade fez a mesma afirmação. Isso seria cometer a falácia do argumento de autoridade. É claro, também, que uma pessoa não está justificada em pensar que a afirmação da autoridade em um assunto citada por nós seja injustificada
apenas porque não soubemos apresentar a justificação que essa autoridade apresenta para sua afirmação (na suposição de que exista tal justificação). Nesse caso, podemos dizer: "Eu não lembro da justificação que ele apresenta. Mas leia o livro dele que você vai ver qual é." Mas isso significa admitir que não soubemos justificar a mesma afirmação, se tudo o que soubemos fazer foi citar...
O apelo à autoridade pode ter outro papel epistêmico legítimo. Se eu afirmo que estou com uma certa doença, por exemplo, e alguém me pergunta "Como você sabe?", eu posso dizer "O médico me disse". Nesse caso, não estarei sendo falacioso. Estou apelando para o conhecimento de uma autoridade para justificar minha afirmação de que sei. Mas se me for perguntado "Como o médico sabe", não posso mais fazer o mesmo tipo de apelo. Analogamente, se, ao afirmar que o significado de uma palavra é seu uso na linguagem, eu citar Wittgenstein e alguém me perguntar "Como Wittgenstein sabe?", não posso mais repetir o apelo à autoridade de Wittgenstein pra justificar minha resposta. Tenho que mostrar qual é a justificação que Wittgenstein oferece, para que meu interlocutor avalie se é ou não suficiente para o conhecimento.
Um trabalho filosófico é uma exibição de inteligência se o seu autor sabe lidar bem com problemas filosóficos: entende o problema (sabe explicá-lo), oferece uma solução (nem que seja parcial ou esquemática) e a defende como a melhor solução frente as demais já oferecidas, bem como de objeções. É claro que, para fazer isso em um nível acadêmico avançado, o filósofo vai ter de conhecer uma considerável porção do que já se publicou sobre o assunto e, portanto, no final, vai exibir erudição. Um trabalho filosófico erudito é, pois, uma exibição de inteligência, quando o seu autor sabe usar sua erudição para lidar com problemas filosóficos.
Erudição e inteligência não são coisas mutuamente incompatíveis, é claro. Quero apenas chamar a atenção para o fato de serem coisas distintas. O ideal é que sejamos inteligentes eruditos.
Já vi pessoas vinculando a inteligência à humildade. "Uma pessoa inteligente", dizem, "é humilde e não precisa se mostrar. Quem é arrogante e prepotente não é inteligente e precisa se impor pela arrogância e prepotência". É claro que, em alguns contextos, é uma atitude pouco inteligente ser arrogante e prepotente: numa entrevista para emprego, por exemplo... Mas isso de forma alguma é verdadeiro em todos os contextos. Não estou dizendo que em alguns contextos devemos ou podemos ser arrogantes e prepotentes. Acho que sempre devemos tentar evitar essa atitude. O que estou dizendo é que o fato de alguém geralmente ser arrogante e prepotente não implica que ele não é inteligente. Pode ser apenas uma infeliz combinação de excelência intelectual com pobreza moral.
Numa discussão filosófica, por exemplo, a pessoa que tem mais inteligência
filosófica, ou seja, aquela que sabe lidar melhor com os problemas filosóficos debatidos (do modo descrito mais acima), pode ser a mais moralmente pobre. Para muitos ,parece errado atribuir algum tipo de virtude ou excelência a alguém que consideramos moralmente mau. Essa tendência a associar inteligência à humildade parece provir do seguinte raciocínio falacioso: Fulano é uma má pessoa; uma má pessoa não tem virtude; logo, Fulano não tem virtude
epistêmica. A falácia aqui consiste em concluir que alguém não têm virtude
epistêmica do fato que ele não tem virtude
moral. Mas, infelizmente, pessoas más freqüentemente são inteligentes. E, infelizmente, pessoas boas, bem intencionadas, freqüentemente são pouco inteligentes.
É claro que, se formos arrogantes e prepotentes em um debate, podemos correr o risco de, por exemplo, não levar em consideração uma importante objeção ao que dizemos. E correr esse risco sem necessidade não é muito inteligente. Mas isso não é suficiente para concluir que um arrogante e prepotente em um debate filosófico (ou outro debate qualquer) está agindo assim porque é o interlocutor menos inteligente
do ponto de vista filosófico. A despeito da arrogância e prepotência, ele pode ser o que melhor sabe lidar com o problema filosófico discutido. Quem associa de modo necessário a falta de humildade a erro teórico pode estar sendo pouco inteligente, pois pode deixar de concordar com seu interlocutor não-humilde em uma ocasião em que ele está com a razão.
_______