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quarta-feira, 29 de março de 2023

Disciplinas filosóficas


A investigação filosófica se divide em várias disciplinas que focam em distintos conjuntos de problemas filosóficos. E volta e meia surgem novas disciplinas que lidam com novos problemas filosóficos tal com a filosofia do filme, por exemplo. Entretanto, há umas poucas disciplinas principais, que lidam com tipos de problemas que perpassam as demais disciplinas. Estas são a metafísica, a epistemologia e a filosofia da linguagem. Em todas as demais disciplinas filosóficas haverão problemas desses três tipos: metafísicos, epistemológicos e linguísticos. Mas há outras disciplinas que merecem destaque por causa da importância dos seus tópicos: a ética, a filosofia política, a estética, a filosofia da mente, a filosofia da ciência e a filosofia da religião. Na verdade, muitas dessas disciplinas mantém zonas de interseção em que certos problemas filosóficos pertencem a mais de uma delas. Esse texto se dedica a uma brevíssima apresentação esquemática daquelas três primeiras disciplinas.


Metafísica

O termo "Metafísica" foi cunhado por Andrônico de Rodes (c. 60 a.C.) para dar nome a um conjunto de livros de Aristóteles. Andrônico estava organizando os livros de Aristóteles e acreditou, por causa da afinidade do assunto, que aquele conjunto particular de livros sem título deveria ser lido depois do livro intitulado "Física", no qual Aristóteles apresenta sua teoria física. Por isso ele nomeou esse conjunto de livros "Metafísica", ou seja, depois da (meta) Física. Depois disso, a disciplina que trata do tipo de problemas filosóficos com os quais Aristóteles lidou nesse conjunto de livros passou a se chamar "Metafísica". Portanto, ao contrário do que muitos pensam, a metafísica ganhou esse nome não porque lida exclusivamente com coisas que não são físicas, que estão "para além da física". Mas qual é a natureza dos problemas com os quais Aristóteles lidou na Metafísica

A metafísica lida com dois problemas principais: (1) O que existe? (2) Qual é a natureza do que existe? Problemas mais específicos do primeiro tipo são, por exemplo: O mundo exterior (à mente) existe? As entidades postuladas pelas teorias científicas, as entidades teóricas, existem? Existem apenas entidades físicas? Mentes existem? Números existem? Existem entidades lógicas? Existem proposições? Existem entidades abstratas? Existem entidades fictícias? Existem mundos possíveis diferentes do atual? Existem propriedades morais? Existem propriedades estéticas? Existem fatos normativos? Além de indivíduos, existem coisas universais, como propriedades? Existem direitos? Existem relações causais? Existe uma primeira causa de tudo? Deus existe? Toda existência é contingente, ou há coisas cuja existência é necessária? Etc. 

Alguém poderia dizer: "Mas não é óbvio que existem números? Não dizemos, por exemplo, que existe um número que é maior que 2 e menor que 4? E isso não é verdade?" Sim dizemos coisas desse tipo e isso que dizemos é verdade. Mas aparentemente os números são diferentes dos numerais, que são palavras, pois embora os numerais "3" e "III" sejam distintos, 3 e III são o mesmo número. Mas se números não são os numerais, o que eles são? Que tipo de coisas os numerais nomeiam, se nomeiam alguma coisa? Trata-se de uma entidade mental? Ou trata-se de uma entidade abstrata, ou seja, uma entidade que não é nem espacial, nem temporal? Ou não existem números e os numerais são apenas símbolos manipulados de acordo com certas regras. Essas perguntas são sobre a natureza do número. Geralmente perguntas da forma "O que é X?" são perguntas sobre a natureza de um certo tipo de coisa. O que elas pedem, idealmente, é uma definição desse tipo de coisa e uma definição é, idealmente, um conjunto de condições individualmente necessárias e conjuntamente suficientes para algo ser desse tipo de coisas. Esse conjunto de condições é tradicionalmente chamado de essência ou ser, além de natureza. A definição, portanto, é a formulação linguística que apresenta a essência, ou natureza ou ser de uma coisa. Por exemplo: a definição de "circunferência" é: "circunferência é uma figura fechada cujos pontos equidistam de um mesmo ponto. Outro exemplo: "água é uma substância formada de moléculas que contêm dois átomos de hidrogênio e um átomo de oxigênio". [1]

Uma questão metafísica importante é justamente se todas as coisas ou ao menos algumas possuem essências. Outra questão é se as essências são ou não objetivas, isto é, independentes da nossa existência e de nosso modo de pensá-las e conhecê-las.

Antes de investigar se isso ou aquilo existe, temos que definir aquilo cuja existência está em questão (ou dar uma descrição da coisa que mais se aproxime de uma definição). Até mesmo um ateu, aquele que nega a existência de Deus, deve definir "Deus", para ficar determinado e claro o que ele está negando que exista. Por isso, devemos perguntar o que são cada uma daquelas coisas cuja existência está em questão nos exemplos acima. 

Mas uma outra coisa deve ser feita antes de se investigar se isso ou aquilo existe: determinar o que é para uma coisa existir. O que é a existência? Ela é algum tipo de propriedade? Há critérios gerais para se dizer que algo existe? Alguns filósofos sustentaram que a existência não é uma propriedade de indivíduos, mas de conceitos. Dizer que existem cavalos, por exemplo, é dizer que a extensão do conceito de cavalo, o conjuntos de cavalos, tem elementos. Nesse caso, uma proposição sobre a existência de uma pessoa, por exemplo, de alguma forma deve ser reduzida a uma proposição que diz que a extensão de uma certa descrição tem um elemento. Essa descrição seria uma que seria verdadeira de apenas um indivíduo e seu conteúdo seria o conteúdo dos nomes. Mas isso parece implausível. A que descrição desse tipo um nome próprio pode ser reduzido? Saul Kripke tem três argumentos contra essa redução.

Quine sustentou que o critério geral da existência é este: se proposições existenciais verdadeiras não são elimináveis por meio de uma análise lógica, então aquilo que elas afirmam existir existe. Por exemplo: podemos dizer "Existem 12 deuses olímpicos". Mas essa proposição pode ser analisada assim "Os gregos acreditavam na existência de 12 deuses olímpicos". Portanto, mesmo que tomemos a primeira frase como verdadeira, isso não nos compromete com a existência de deuses olímpicos.

Uma outra questão metafísica importante é sobre a possibilidade da existência de certas coisas. Um mundo com leis naturais diferentes das leis naturais do mundo atual é possível? Alguns experimentos mentais usados em filosofia, ou seja, descrições de certas situações que parecem relevantes para a discussão sobre determinados problemas filosóficos, eventualmente geram questões sobre possibilidade. É possível, como sugere Putnam, mesmo que uma cérebro possa ser mantido vivo em uma cuba e ligado a um supercomputador de tal modo que a troca de impulsos elétricos entre o cérebro e o computador resulte em uma experiência qualitativamente indistinguível da experiência que temos do mundos exterior à mente?

Questões metafísicas surgem em outras disciplinas filosóficas, como veremos no caso da epistemologia e da filosofia da linguagem. As questões "O que é o conhecimento?" e "O que é a linguagem?", por exemplo, são questões sobre a essência dessas coisas. A questão "Existe proposições?" é uma questão sobre a existência de certas entidades supostamente ligadas ao funcionamento da linguagem.


Epistemologia

Uma vez determinado o que as coisas são e que tipos de coisas existem ou ao menos podem existir, podemos perguntar se conhecemos essas coisas e como as conhecemos. Essas perguntas pertencem à epistemologia, aquela disciplina filosófica que lida com problemas filosóficos relativos ao conhecimento. Todavia, um dos principais problemas filosóficos da epistemologia é um problema metafísico, sobre a natureza ou essência do conhecimento: o que é conhecimento?

Tradicionalmente o conhecimento é definido como crença verdadeira justificada, também chamada de definição tripartite. Platão, no Teeteto, já definia conhecimento como opinião verdadeira acompanhada de logos, que em grego significa tanto razão quanto linguagem. Mas Edmund Gettier formulou uma crítica a essa definição. Ele formulou dois contra-exemplos, dois casos em que alguém tem uma crença verdadeira e justificada, mas não tem conhecimento. Se esses são mesmo contra-exemplos, então as condições para o conhecimento estabelecidas pela definição tradicional, embora possam ser necessárias, não são suficientes. Esse problema gerou um grande debate sobre a natureza do conhecimento. Os casos de Gettier são mesmo contra-exemplos da definição tradicional? Se são, qual ou quais condições devem ser acrescentadas à definição para tenhamos um conjunto de condições necessárias e suficientes? Ou o conceito de conhecimento é indefinível?

Independentemente do problema de Gettier, se as condições estabelecidas pela definição tradicional de conhecimento são mesmo condições necessárias, então há mais três questões na nossa agenda epistemológica: O que é crença? O que é verdade? E o que é justificação? 

Há um relativo consenso que crer é tomar uma proposição como verdadeira. (Uma proposição, para os presentes propósitos, pode ser definida como o conteúdo de uma frase do modo indicativo.) Quando a proposição acreditada é verdadeira, a crença é verdadeira. Podemos nos enganar, ou seja, tomar uma proposição como verdadeira, quando de fato ela é falsa. E podemos crer sem estarmos justificados. Mas devemos estar justificados para crer? Essa é uma obrigação? É claro que se o objetivo é o conhecimento, a resposta é "sim". Mas devemos perseguir esse objetivo sempre? Ou, embora via de regra isso seja o que devemos fazer, há casos que são exceções? Há uma relativamente nova disciplina filosófica que lida com problemas que estão na zona de intersecção entre a epistemologia e a ética: a ética da crença. Sua principal questão é: as obrigações epistêmicas, aquelas que devemos cumprir para obter conhecimento ou crença justificada, são também obrigações morais?

Outras questões importantes sobre a crença: toda crença é consciente? Podemos nos enganar sobre quais crenças temos? A crença é um estado mental ou uma disposição para o comportamento? As crenças são voluntárias? Temos algum controle sobre nossas crenças? O que é uma proposição?

Há uma grande controvérsia sobre como definir a verdade. Mas há uma controvérsia anterior: quais são os portadores de verdade, ou seja, de que coisas dizemos que são verdadeiras? Os principais candidatos são: frases, proposições, enunciados, e pensamentos. Há quem ofereça resistência a reconhecer quaisquer desses candidatos porque defendem uma concepção de verdade como identidade, segundo a qual o que a frase verdadeira "Sócrates é sábio", por exemplo, expressa é o próprio fato que Sócrates é sábio. A verdade não seria sobre os fatos, mas seria os próprios fatos. Proposições verdadeiras seriam o mesmo que os fatos. Dizer que uma frase expressa uma proposição verdadeira seria o mesmo que dizer que ela expressa um fato. Mas essa concepção de verdade enfrenta vários problemas, tal como esse: eu posso lembrar da proposição verdadeira que Sócrates é sábio sem saber que ela é verdadeira e posso não lembrar do fato que Sócrates é sábio. Portanto, a proposição verdadeira que Sócrates é sábio não é o fato que Sócrates é sábio.

A definição de verdade mais aceita e intuitiva, que tem um apelo inicial mais forte, é a definição correspondencista de verdade: a verdade seria uma relação de correspondência entre um portador de verdade, geralmente uma proposição, e um fato, o modo como as coisas estão no mundo. Mas o caráter intuitivo dessa definição vai se desvanecendo quando passamos de proposições empíricas para proposições modais, proposições da matemática, proposições morais e proposições estéticas. O que constitui os fatos modais? O que constitui os fatos matemáticos? O que constitui os fatos morais? O que constitui os fatos estéticos?

Uma outra definição, menos aceita, é a definição pragmatista de verdade, segundo a qual uma proposição é verdadeira quando a crença nela é, de alguma forma, útil. Essa definição é contra-intuitiva porque parece haver verdades inúteis e falsidades úteis. 

Uma terceira definição de verdade é a coerentista, segundo a qual uma proposição é verdadeira quando faz parte de uma totalidade abrangente e coerente de proposições. Essa definição é contra-intuitiva porque parece ser possível haver totalidades distintas de proposições igualmente abrangentes e coerentes e incompatíveis entre si. 

Por fim há a concepção deflacionista de verdade, segundo a qual a verdade não pode ser definida em termos de condições necessárias e suficientes, tal como almejam os adeptos das três definições anteriores. A verdade seria um conceito cujo conteúdo pode ser totalmente elucidado pelo esquema T: "p" é verdadeira se e somente se p, onde p é uma proposição qualquer. Estamos dispostos a tomar como verdadeiras todas as instâncias desse esquema. O conceito de verdade teria como única função possibilitar construir certas generalizações que, sem ele, não poderíamos ("A primeira coisa que você disser amanhã é verdadeira", por exemplo). Nos demais casos ("É verdade que chove", por exemplo) ele simplesmente torna sintaticamente explícito que a proposição está sendo afirmada.

O correspondencismo às vezes é estimulado por uma certa confusão entre uma verdade lógica, o esquema T, e o esquema da correspondência. Mas enquanto que o esquema T é uma equivalência e, por isso, pode ser investido sem que seu conteúdo seja modificado, o esquema da correspondência, a saber, "p" é verdadeira porque p, não pode ser invertido sem mudança de conteúdo. Dizer que p porque "p" é verdadeira é dizer que o fundamento do fato que p é que a proposição "p" é verdadeira. Mas que sentido faz dizer que chove porque "Chove" é verdadeira?

Há também uma grande controvérsia sobre o que é uma justificação. Há um relativo consenso que a justificação é aquele elemento que tem o papel de eliminar, tanto quanto possível, o fator sorte da nossa aquisição de crenças. Se uma crença é justificada, então não será por pura sorte que ela é verdadeira. Todavia, há divergência sobre como a justificação exerce essa função: ela torna a verdade da proposição acreditada provável, ou ela implica logicamente que a proposição acreditada é verdadeira? É ou não possível que uma crença falsa seja justificada? 

Há uma concepção de justificação que está na origem de um famoso problema cético: o trilema de Agripa. Se a justificação consiste em inferir validamente a proposição acreditada de outras proposições justificadas, então toda proposição é justificada inferencialmente. Mas isso gera um regresso das justificações: uma crença é justificada porque é inferida de outras, que são justificadas porque são inferidas de outras, que são justificadas porque são inferidas de outras, e assim por diante. Esse regresso pode ter apenas três estruturas, mas nas três, argumenta-se, nenhuma crença é justificada: ou o regresso é infinito, ou ele é circular, ou ele termina em alguma crença não justificada. Todavia, esse concepção de justificação não necessita ser aceita.

Há uma teoria da justificação, o externismo, segundo a qual é possível que algumas crenças sejam justificadas sem que aquele que possui a crença saiba o que justifica essa crença. Isso é o que parece acontecer, por exemplo, com aquelas pessoas que são capazes de dizer o dia da semana de qualquer data, sem que elas saibam dizer como são capazes disso. Parece haver um mecanismo gerando crenças nessas pessoas e esse mecanismo parece justificar suas crenças, pois as crenças geradas são geralmente verdadeiras. Mas, se é assim, então talvez o regresso das justificações termine em crenças que não são justificadas inferencialmente.

Há uma grande controvérsia epistemológica sobre se há ou não conhecimento a priori, ou seja, sobre se há ou não como justificar crenças verdadeiras de modo independente da experiência sensível. Duas ciências muito importantes parecem fornecer exemplos de crenças verdadeiras justificadas a priori: a lógica e a matemática. A experiência sensível confirma as crenças justificadas nessas ciências. Mas não parece ser a experiência que as justifica. Se alguém contar dois conjuntos de 5 bolas de gude e encontrar 11 como resultado não vamos tomar isso como a refutação de que 5+5=10. Vamos pensar que ou houve um erro na contagem, ou uma bola de gude foi acrescentada desapercebidamente a um dos conjuntos. Mas se a experiência não é fonte de refutações de crenças aritméticas, então tampouco é sua fonte de justificações. Semelhantemente, não parece ser a experiência que justifica a crença de que nenhuma contradição é verdadeira ou que ou que toda proposição ou é verdadeira, ou é falsa, por exemplo. Tampouco examinamos todos os solteiros para constatar que nenhum deles é casado. Mas no que consiste uma justificação a priori? Se a percepção sensível não desempenha nenhum papel na obtenção de conhecimento a priori, como o obtemos? Todavia há filósofos, como Quine, por exemplo, que sustentam que todas as crenças, inclusive matemáticas e lógicas, são, direta ou indiretamente, justificadas pela experiência, na medida em que o que é justificado não são crenças particulares, mas sempre uma totalidade de crenças que constitui nossa melhor teoria sobre o mundo.

Há uma grande e longa controvérsia sobre se a metafísica produz conhecimento e, no caso de produzir, se é um conhecimento a priori ou empírico. Como podemos saber quais tipos de coisas existem? Como podemos conhecer a essência das coisas? Como podemos saber quais mundos são possíveis? Os empiristas radicais, claro, argumentam que não há conhecimento metafísico a priori, sendo a metafísica, no melhor dos casos, um inventário das entidades postuladas pelas nossas melhores teorias empíricas. Os racionalistas, por sua vez, argumentam que a metafísica produz genuíno conhecimento a priori, que pode inclusive contrariar teorias científicas. Outros, como Wittgenstein, argumentam que as essências nada mais são do que critérios linguísticos por meio dos quais usamos nossos predicados e que podem ser alterados conforme a utilidade prática da linguagem. Quando descobriu-se que a maior parte do que se chamava água era formado por moléculas de H2O, fez-se uma mudança conceitual na química, substituindo os antigos critérios para o uso de "água" por novos, mais úteis para os propósitos da ciência.

Os empiristas radicais têm dificuldade para acomodar um tipo de conhecimento que parece ser a priori: o conhecimento inato. A ironia é que as evidências para a existência desse tipo de conhecimento são empíricas. Tudo que aprendemos por meio da experiência parece depender de reagirmos naturalmente a ela de um modo que não aprendemos com a experiência. Chomsky, por exemplo, argumenta que a aquisição da linguagem depende de um conhecimento inato de uma gramática universal. Estudos parecem mostrar que, mesmo antes de aprender uma linguagem, os bebês identificam expressões e comportamentos empáticos e não-empáticos, reagindo com simpatia aos primeiros e com antipatia aos segundos.

Além da percepção sensível, outras fatores desempenham um papel na aquisição de conhecimento empírico, tal como a introspecção, a memória, o testemunho e a autoridade de especialistas, por exemplo. A introspecção é o que nos possibilita o autoconhecimento, ou seja, o conhecimento da mente de si, embora muitas vezes obtenhamos esse tipo de conhecimento através de uma reflexão sobre nosso próprio comportamento, como no caso do autoconhecimento das nossas crenças, desejos e temores. Mas ninguém reflete sobre o comportamento de si para saber que vê vermelho, ou que está ouvindo um barulho, por exemplo. A memória, por sua vez, não desempenha um papel apenas epistêmico. Ela parece desempenhar um papel metafísico crucial na constituição da identidade pessoal ao longo do tempo. Ser a mesma pessoa ao longo do tempo parece implicar a capacidade de unificar e acessar os conteúdos da mente de si por meio da memória. Muitos conhecimentos que temos são obtidos de modo indireto, seja porque uma testemunha confiável relatou um evento, seja porque examinamos os registros de conhecimentos obtidos por especialistas.

Há filósofos que argumentam ou que não temos muito do conhecimento que alegamos ter ou que, pior ainda, não podemos ter muito do conhecimento que alegamos ter. Estes são os céticos, que existem desde a antiguidade grega. Os céticos ou argumentam ou contra a existência de conhecimento, alegando que há tanta razão para crer quanto para não crer no que se alega saber, ou contra a possibilidade do conhecimento. Agripa, referido acima, era um cético da Grécia antiga que justamente, com o seu trilema, procurava mostrar que o conhecimento não é possível. Mas há uma diferença entre o ceticismo dos antigos e o ceticismo moderno, como aquele da Primeira Meditação de Descartes.[2] Os filósofos antigos, em geral, inclusive os céticos, não faziam uma separação entre teoria e prática, mas procuravam viver de acordo com o que pensavam quando filosofavam. Isso colocava um problema para os céticos, pois como eles poderiam levar suas vidas de acordo com a alegação de que não temos conhecimento? Para evitar esse problema, Descartes distinguiu entre vida teórica e vida prática e alegou que podemos duvidar da verdade de uma proposição enquanto estamos fazendo uma investigação teórica e tomá-la como verdadeira na vida prática, para podermos levar a cabo nossos afazeres. Mas essa distinção é controversa.

Os céticos em geral não apenas duvidam, mas procuram justificar suas dúvidas por meio de argumentos, para que suas dúvidas sejam racionais. Os argumentos céticos principais formulados por Descartes são dois, um baseado na hipótese cética de que estamos sonhando quando alegamos conhecer o mundo por meio da percepção sensível e a hipótese cética de fomos criados de tal forma por um gênio maligno que tudo no que acreditamos é falso e não podemos descobrir a falsidade de nossas crenças para nos corrigirmos. O primeiro argumento foi destinado a colocar em dúvida as crenças sobre o mundo exterior e o segundo, as crenças matemáticas. Hilary Putnam formulou um argumento cético que se destinava a pôr em dúvida nosso conhecimento do mundo exterior, tal como o argumento do sonho de Descartes. Mas sua hipótese cética era a de que somos cérebros em uma cuba, tal como formulado acima, quando falei sobre questões acerca de possibilidades. Mas, tal como Descartes, Putnam não formulou esse argumento para defender o ceticismo, mas para mostrar as virtudes de sua teoria do significado, que ele alega poder ser usada para refutar o ceticismo. Descartes, por sua vez, ao refutar os seus próprios argumentos céticos, almejava encontrar a certeza absoluta e dar novos fundamentos para as ciências.[3]

Hume iniciou uma tradição cética em relação ao que parece ser uma das principais ferramentas para a obtenção de conhecimento empírico ou crenças baseadas na experiência: a indução. A indução é um tipo de raciocínio em que as premissas descrevem observações particulares de que certos tipos de coisas possuem certa propriedade e a conclusão é uma generalização sobre todas as coisas desse tipo. Por exemplo: cada observação de um corvo preto gera uma premissa da indução e a conclusão seria que todos os corvos são pretos. Essa conclusão, se verdadeira, é verdadeira não apenas dos casos observados, mas dos casos ainda não observados. A indução é dedutivamente inválida: é sempre possível que suas premissas sejam verdadeira e sua conclusão seja falsa. Hume argumentou que esse tipo de raciocínio está baseado no princípio geral segundo a qual a natureza, no futuro, se comportará do mesmo modo regular que fez no passado. Mas esse princípio, segundo ele, não pode ser justificado. Ou ele é justificado a priori, ou por meio da experiência. Se fosse justificado a priori, com base apenas no conhecimento das "relações entre as idéias", então aquele princípio seria necessário e isso tornaria a indução dedutivamente válida. Se fosse justificado pela experiência, ele seria justificado pela indução. Mas isso geraria uma petição de princípio, ou seja, um raciocínio que de alguma forma contém entre as premissas a sua conclusão. A indução seria baseada em um princípio que seria justificado pela indução.

Questões epistêmicas surgem em outras disciplinas filosóficas. Por exemplo: "Há conhecimento metafísico?", "Há conhecimento semântico?", "Há conhecimento moral?". "Há conhecimento estético?", "Há conhecimento religioso?", "Como conhecemos entidades abstratas, dado que não mantemos nenhuma relação causal com elas?", etc.


Filosofia da linguagem

Acima falamos sobre definições, sobre o significado de certas expressões que figuram em certos problemas filosóficos, sobre proposições. Geralmente questões filosóficas sobre esse tipo de coisas, e outros referente à linguagem usada para formular os problemas filosóficos, fazem parte de uma antesala de muitas disciplinas filosóficas. Mas há uma disciplina que lida com os problema filosóficos mais gerais sobre a linguagem, a filosofia da linguagem.

Alguns dos principais problemas da filosofia da linguagem são metafísicos. Mas outros são epistêmicos. O principal problema é justamente a questão sobre o que é a linguagem. Ela consiste em um sistema de sinais, sem dúvida. Mas o que é um sinal? Quantos sinais há em um quadro negro quando escrevemos duas vezes a apalavra "casa" nele? Um escrito duas vezes, ou dois?[4] Sinais são coisas que compreendemos/entendemos. Mas o que é compreender/entender um sinal? É ter um certo estado mental? É ter uma certa disposição? O que compreendemos é o conteúdo/significado do sinal. Mas o que é o conteúdo/significado? Uma entidade mental? Algo que temos em mente? Uma entidade abstrata que apreendemos com a mente? O modo como usamos o sinal? Quando usamos um sinal com um certo conteúdo/significado, então certos usos desse sinais são corretos e outros são incorretos, ou seja, há critérios de correção para seu uso. Isso significa que o significado é essencialmente normativo? Usar uma palavra com certo significado implica comprometer-se com certas obrigações subjetivas? Devemos usar o sinal de um determinado modo quando o usamos com um determinado significado? Que o uso de um determinado sinal tenha critérios de correção significa que ele é usado de acordo com uma regra. Mas o que é uma regra? É uma entidade mental? É uma entidade abstrata? Ou é simplesmente uma disposição para o uso de um sinal?

Um dos problemas mais específicos mas muito importante da filosofia da linguagem foi aludido acima: os termos gerais são todos definíveis em termos de condições necessárias e suficientes? Termo gerais são aquelas expressões que podem ser predicadas verdadeira ou falsamente das coisas, tal como os termos "conhecimento", "verdade", "tigre", "planeta", "guerra", etc. Eles possuem, portanto, uma generalidade: há uma totalidade, ou conjunto, ou classe de coisas que são conhecimentos, verdades, tigres, planetas, guerras, etc. Essa totalidade/conjunto/classe pode não conter nenhum elemento, ou um elemento, ou mais elementos, dependendo do termo geral. Até onde sabemos, a totalidade dos unicórnios, por exemplo, é zero. A totalidade dos números naturais, por outro lado, é infinita. A questão, então, é: há condições individualmente necessárias e conjuntamente suficientes para que algo pertença à totalidade de qualquer termo geral? Há quem defenda, como Frege, que sim, ao menos para os termos gerais que não sejam primitivos. Termos primitivos são aqueles que estão no final da cadeia de definições em termos de condições necessárias e suficientes. Esquematicamente: o termo T é definido pelos termos T1 e T2, T1 é definido por T3 e T4, T2 é definido por T5 e T6, e assim por diante, até que chegamos aos termos Tn... Tm, os termos primitivos que são indefiníveis. Quem defende essa posição pode ser chamado de essencialista, na medida em que defende que, com exceção dos termos primitivos, todos os termos gerais expressam uma essência. Mas há quem defenda, como Wittgenstein, que muitos termos não-primitivos não são definíveis nos termos de condições necessárias e suficientes, ou ao menos que nossa competência no uso desses termos não está baseada no conhecimento de nenhuma essência. 

Um potencial exemplo desse tipo de termo são os termos vagos. Um termo T é vago quando embora haja exemplos paradigmáticos do que é T e do que não é T, há casos que são indeterminados. Por exemplo: temos casos paradigmáticos do que é do que não é uma pessoa calva, ou do que é e do que não é um monte de arroz; mas com quantos fios de cabelo na cabeça alguém passa a ser calva e com quantos grãos um conjunto de grãos de arroz passa a ser um monte de arroz? A fronteira entre ser e não ser calvo, ou entre ser ou não ser um monte, parece difusa. Por isso, termos vagos não parecem ser passíveis de uma definição em termos de condições necessárias e suficientes. Mas os termos vagos parecem colocar um problema para o princípio da bivalência, segundo o qual toda proposição é ou verdadeira ou falsa. Se João é um caso fronteiriço entre calvice e não-calvice, qual é o valor de verdade de "João é calvo"? Essa frase não expressa uma proposição? Ou o princípio de bivalência é falso porque há proposições que não são nem verdadeiras, nem falsas?

Um outro tipo de termo que parece conter uma indeterminação semelhante, porém distinta, são os termos para semelhanças de família. Parece haver condições necessárias para que algo seja um jogo, por exemplo, tal como ser uma atividade, mas parece que não há um conjunto de condições necessárias e suficientes para algo ser um jogo. Identificamos algo como jogo talvez por identificar que ele satisfaz certas condições necessárias para algo ser um jogo e, ademais, por causa da sua semelhança com exemplos paradigmáticos do que chamamos jogos, isto é, exemplos sobre os quais não há dúvida de que sejam jogos.

Um outro conjunto de problemas importante da filosofia da linguagem diz respeito aos nomes próprios. Parece que a função de um nome próprio, como de qualquer termo singular, é se referir a um indivíduo, para que, assim, possamos dizer alguma coisa sobre ele, mesmo que falsa. Todavia, há alguns casos que desafiam essa intuição. Por exemplo: usamos o nome "Jesus" como um nome próprio de uma pessoa que supostamente nasceu a 2023 anos atrás. Mas fora a Bíblia, as evidências históricas de que ele tenha existido são muito escassas, tanto que alguns duvidam que ele tenha existido. Se esse for o caso, então o nome "Jesus" não possui referência, ou como se diz em filosofia da linguagem, é vazio. A consequência disso parece ser que o que dizemos sobre Jesus não é nem verdadeiro, nem falso. Para que fosse falso que Jesus nasceu em Belém, por exemplo,, Jesus deveria ter existido e ter nascido em outra cidade. Por outro lado, nomes de personagens de ficção tampouco parecem ter referência. Mas se digo que Sherlock Holmes é um cantor de pagode, parece que digo algo falso. Como isso pode ser falso, se Sherlock Holmes não existe? Esse é o velho problema que surgiu na filosofia antiga sobre como é possível falar sobre o que não existe ou sobre o nada.

Um outro problema filosófico sobre os nomes próprios é justamente o que determina a relação de referência nos casos em que o nome claramente tem uma? O que faz com que um nome se refira a um determina indivíduo? Alguns sustentaram que isso ocorre porque o conteúdo/significado de cada nome é uma certa descrição que se aplica verdadeiramente a apenas um indivíduo. O conteúdo/significado de "Aristóteles", por exemplo, seria o mesmo de "O autor da Metafísica". Mas Kripke formulou objeções a essa teoria. Aristóteles ainda seria o mesmo Aristóteles mesmo que nunca tivesse escrito a Metafísica, por exemplo. Além disso, sabemos que Aristóteles é o autor da Metafísica de maneira empírica, e não a priori por conhecermos o conteúdo/significado do nome "Aristóteles". Aliás, como poderíamos ter descoberto que Aristóteles não é o autor da metafísica se "Aristóteles" fosse sinônimo de "O autor da Metafísica"? Kripke defendeu que a referência é fixada por um batismo e é transmitida por uma cadeia histórica ao longo do tempo, ou perdida, quando essa cadeia é interrompida de alguma forma. Graças a essa cadeia, que incluiu a modificação do nome grego quando foi introduzido no português, hoje podemos nos referir a Aristóteles e falar sobre ele.

Há um clássico problema filosófico normalmente apresentado como um problema metafísico, mas que pode ser apresentado, com algumas vantagens, como um problema de filosofia da linguagem. Trata-se do problema dos universais. Como vimos, termos gerais são aqueles que podem ser predicados verdadeira ou falsamente das coisas. Isso parece significar que as coisas das quais predicamos verdadeiramente um termo geral têm algo em comum a muitos, algo universal (por oposição a particular ou individual). Mas elas têm mesmo algo em comum? O que é isso? Normalmente dizemos que essa coisa em comum é uma propriedade. Por exemplo: se as frases "João é professor" e "Maria é professora" são ambas verdadeiras, se predicamos verdadeiramente "professor" de João e de Maria, então parece que João e Maria têm uma propriedade em comum, ser professor, que é expressa ou referida pelo termo geral. Essa propriedade existe mesmo? O que ela é? Algo que constitui João e Maria (realismo moderado)? Algo independente dos indivíduos João e Maria mas que mantêm uma relação com eles (realismo extremo)? Um conceito na mente de quem predica (conceitualismo)? Ou não há uma tal propriedade mas apenas o termo geral que usamos de certa forma (nominalismo)? 

Essa é a maneira metafísica de se formular o problema. Mas creio que a maneira linguística é melhor porque é mais neutra em relação às suas possíveis respostas, pois não parte da aceitação aparentemente intuitiva da existência de propriedades, entendidas de alguma forma realista. Na sua formulação linguística, o problema seria: termos gerais têm alguma referência? Se sim, o que é sua referência? Algo que constitui os indivíduos? Algo independente dos indivíduos? Ou algo na mente? Se eles não possuem referência, como explicar o uso de termos gerais? Seja qual for a formulação em que o problema seja apresentado, uma pressuposição parece ser assumida: que termos gerais têm um uso uniforme, que têm de ser encontrada uma resposta a essas perguntas que seja verdadeira de todos os termos gerais. Todavia, há uma teoria sobre o termo geral "verdade", como vimos, que afirma que esse termo não se refere ou expressa qualquer propriedade substancial, ou seja, algo comum a tudo que é verdadeiro, mas é um mero recurso lógico-sintático que nos permite fazer certas generalizações. Não há uma propriedade comum que todas as proposições possuem que seria a propriedade da verdade. Portanto, aquela suposição do problema não parece ser verdadeira desse caso, mesmo que seja verdadeira de outros.

Por falar em verdade, embora tenha sido apresentado na seção sobre epistemologia, o problema sobre se o termo "verdade" pode ser definido e, se sim, sobre qual é a sua definição correta é também um problema da filosofia da linguagem. Ele foi apresentado como um problema da epistemologia porque o conceito de conhecimento é definido tradicionalmente por meio do conceito de verdade. Mas podemos dizer de frases que são verdadeiras ou falsas. Determinar o que é para uma frase ser verdadeira é uma questão da filosofia da linguagem.

Há muitas questões da filosofia da linguagem importantes para disciplinas filosóficas específicas. Já vimos que a definição de "conhecimento" é central para a epistemologia, por exemplo. Mas há outras: enunciados éticos e estéticos são verdadeiros ou falsos? Predicados éticos e estéticos se referem a ou expressam algum tipo de propriedade? Enunciados normativos, sobre deveres, proibições e permissões, podem ser reduzidos a enunciados não normativos sobre fatos naturais?


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[1] Aristóteles concebia a investigação metafísica como uma investigação sobre o ser na qual se procura determinar o que é ser um número, por exemplo, o que é ser físico, o que é ser biológico, o que é ser mental, etc. Mas ele também formulou uma questão mais geral que essas. Ele concebeu uma questão não sobre o que é para uma coisas ser desse ou daquele tipo de coisas, mas o que é para uma coisa simplesmente ser: o que é o ser como ser? Uma dificuldade para essa questão é a ambiguidade do verbo "ser". Platão, no seu diálogo Sofista, foi um dos primeiros a notar essa ambiguidade. Frases como "João é professor" e "João é Joca" o verbo "ser" não parece significar a mesma coisa. Com a primeira frase estamos dizendo que uma pessoa, João, tem uma certa propriedade, ser professor. Com a segunda não estamos dizendo que uma pessoa possui a propriedade de ser Joca, mas estamos dizendo que a pessoa João e a pessoa Joca são a mesma pessoa. A primeira frase é uma frase predicativa singular, em que predicamos algo de um indivíduo. A segunda frase é uma frase de identidade, em que dizemos que uma coisa é idêntica a si mesma. Mas o verbo "ser" também tem mais um significado no português. Na bíblia há afirmações como "Deus é", que significa o mesmo que "Deus existe". Esse é um uso arcaico do verbo "ser", mas pertence ao português. Tudo isso torna difícil, para dizer o mínimo, determinar o que é para uma coisa, em geral, ser.

[2] Embora Descartes ele próprio não seja um cético, ele se serviu do método da dúvida cética para encontrar a certeza absoluta. Sua estratégia era a seguinte: se duvidarmos de tudo que pode ser (racionalmente) duvidado, então, se houver uma certeza absoluta, ela será o resíduo dessa dúvida máxima.

[3] Para uma exposição mais detalhada desses argumentos céticos, ver essa postagem.

[4] Uma resposta aqui seria: ambos, dois e um. Há dois sinais concretos que são instâncias ou exemplos concretos do mesmo sinal tipo. Quando perguntamos quantas letras o alfabeto possui, por exemplo, não estamos perguntado nada sobre sinais concretos usados em diferentes contextos, mas sobre sinais tipo, que são uma espécie de entidade abstrata, que não estão em lugar nenhum e não são destruídos mesmo que todos os sinais concretos sejam destruídos. A palavra "casa", por exemplo, é uma das milhares palavras tipo do português. E nessa última frase eu usei um exemplo concreto dessa palavra para falar sobre essa palavra tipo.


terça-feira, 16 de abril de 2019

"Não julgueis para não serdes julgado."


A frase do título normalmente é atribuída a Jesus. Ela é uma frase do modo imperativo. Ou seja, ela expressa uma ordem ou norma que aquele que a profere espera que cumpramos ou sigamos. Ela parece supor que julgar é, de alguma forma, um mal e, portanto, moralmente errado. Não devemos julgar, se não queremos ser julgados, poderíamos parafrasear. Se não houvesse nada de errado em ser julgado pelos outros, então por que eu acharia errado julgar os outros? Isso está de acordo com o uso que geralmente se faz dessa frase: para chamar à atenção daquele que está julgando que ele está fazendo algo errado. Diz-se cosias como "Olhe o que você está fazendo! Está me julgando!" Mas o que há de mal em julgar e ser julgado? O que é julgar? No seu sentido mais amplo, o verbo "julgar" indica a ação de formar um juízo sobre algo, onde juízo consiste em tomar uma certa proposição como verdadeira. Por exemplo: ao julgar que o atual presidente da república é o pior em toda história do Brasil, eu tomo como verdadeira a proposição "O atual presidente do Brasil é o pior em toda história desse país". Nesse sentido, juízo é o mesmo que crença. Formar um juízo é adquirir uma crença. Mas na frase do título parece que "julgar" não tem esse sentido amplo, mas um mais específico. Trata-se dos juízos que podemos fazer sobre as ações das pessoas. De acordo com isso, a frase poderia ser parafraseada assim: "Não julgueis as ações alheias para que as suas não sejam julgadas." Mas o que há de errado em julgar as ações alheias?

Se a interpretação da frase do título apresentada acima está correta, imaginemos que todos sigam a norma que ela expressa. Qual seria a consequência? Não havendo nenhum juízo sobre as ações das pessoas, não haveria nenhuma avaliação dessas ações, pois tais juízos seriam o resultado dessa avaliação. Logo, ninguém seria recompensado ou punindo por fazer o que faz. Logo, a responsabilização moral desapareceria, pois responsabilizar alguém moralmente é atribuir a alguém a autoria de uma ação moralmente boa ou moralmente má. As pessoas continuariam a agir, mas suas ações não seriam mais avaliadas do ponto de vista moral. Como Strawson, creio que essa situação é psicologicamente impossível. Mas, além disso, creio que ela é moralmente indesejável. Um agente moral bom quer que o bem se realize e que o mal não se realize, no que se refere às ações de todos, não apenas de si. Mas para que isso ocorra, as pessoas devem ser moralmente responsabilizadas por suas ações, recebendo recompensas e punições pelo que fazem. Portanto, abster-se de julgar as ações alheias é incompatível com ser um agente moral bom. Por fim, o uso corriqueiro que se faz dessa frase contém uma contradição performativa: usa-se ela baseando-se em um ato de julgar a ação de julgar.

Talvez essa interpretação literal da frase do título esteja errada. O que se segue no contexto em que a frase é escrita na Bíblia sugere uma outra interpretação: "porque com o juízo que julgardes os outros, sereis julgados; e com a medida com que medirdes, vos medirão também a vós." Isso sugere que o problema não está no juízo em si, mas no modo como é feito: se você julgar mal (de forma errada), você será mal julgado. De acordo com essa interpretação, a frase do título poderia ser parafraseada assim: "Não julgueis mal a ação das pessoas, para que vossas ações não sejam mal julgadas." Se essa interpretação está correta, a má fama do ato de julgar que acompanha o uso corriqueiro da frase do título se baseia em uma má interpretação dessa frase, interpretação literal. Julgar as ações dos outros não é algo intrinsecamente errado. Tudo depende de como esse juízo é feito. Seja como for, ainda resta uma dificuldade: por mais caridosos que sejamos com o autor da frase, fica difícil aceitar que minha inabilidade para julgar bem as ações dos outros implique que os outros serão igualmente inábeis para julgar bem minhas ações. Mas isso parece ser fortemente sugerido, para dizer o mínimo, pela frase interpretada desse último modo. Todavia, frequentemente pessoas hábeis para julgar bem os outros são mal julgadas por pessoas inábeis para isso, e vice-versa.

quarta-feira, 18 de abril de 2018

A formação de cidadãos

Sócrates "corrompendo" a juventude.

Quando da ocasião da reforma curricular do ensino fundamental e médio há alguns anos, houve uma grande discussão sobre o número de disciplinas e sobre seus conteúdos, sobre o suposto excesso de disciplinas, sobre a suposta inutilidade de algumas delas e sobre a suposta vantagem formativa de outras. Não quero aqui entrar nessa discussão diretamente. Quero aqui defender a idéia de uma disciplina que não existe no currículo obrigatório do ensino formal brasileiro.

Antes de expor a idéia dessa disciplina, gostaria de falar um pouco sobre o fim que ela visaria ajudar a atingir. Sim, ajudar a atingir, porque sozinha ela seria incapaz de tal resultado. Ela visaria ajudar a formar cidadãos, pois esse, na minha opinião, é o objetivo principal do ensino fundamental e médio.[1] Ela ajudaria e não seria a única responsável porque cidadãos seriam o resultado da educação informal recebida em casa e da educação formal recebida nas instituições formais de ensino.

Mas o que é um cidadão? Cidadão é aquele que faz parte de um estado, usufruindo dos direitos reconhecidos legalmente e garantidos por esse estado e tendo que cumprir as obrigações legalmente determinadas nesse estado.[2] Um dos direitos que também é uma obrigação no estado brasileiro, é o voto popular. Todo cidadão brasileiro tem o direito e o dever de votar (coisa que não é um dever nos EUA, por exemplo). O voto popular é o meio para escolher todos os ocupantes dos cargos de dois poderes: o executivo e o legislativo. Essa votação ocorre nas três esferas: municipal, estadual e federal. Os cargos do poder judiciário, no Brasil, não são eleitos pelos cidadãos (outra coisa que também é diferente em alguns estados dos EUA[3]), mas são ocupados mediante concurso público, ou eleição interna, ou indicação através de um processo que inclui a aprovação por parte de membros dos outros dois poderes. Pois bem, notem que falei de muitas coisas a respeito do sistema político brasileiro: cidadão, direitos, deveres, voto, cargos, poderes, esferas, executivo, legislativo, judiciário, indicação, concurso público, etc. Tudo isso é de extrema importância para a organização política, social e econômica do nosso país, para se dizer o mínimo. Por isso, aqui é o lugar se de fazer a seguinte pergunta: não é de se estranhar, para se dizer o mínimo, que no currículo de formação do ensino formal do nosso país não haja nenhuma disciplina dedicada explicitamente a ensinar essas coisas? Pois bem, a disciplina que imagino seria dedicada a ensinar como funciona o nosso sistema político, administrativo e legal, entre outras coisas. Mas uma tal disciplina não deveria ensinar apenas sobre como nosso sistema político, administrativo e legal é, mas também sobre outros sistemas políticos, administrativos e legais possíveis diferentes do nosso. Além disso, essa disciplina deveria também ensinar sobre os seguintes assuntos: ética e política, lógica, epistemologia e análise estatística. Seguem-se as razões para a inclusão de todos esses tópicos.

Um cidadão deve ter habilidade para pensar sobre questões importantes para a sociedade, tais como questões éticas e políticas. As respostas a questões éticas são estruturantes da sociedade, seja porque as discussões sobre leis são baseadas largamente em discussões sobre questões éticas, seja porque os costumes dos cidadão são grandemente influenciados por suas crenças éticas. Por exemplo: anterior à discussão sobre se as escolas deveriam incluir nos seus currículos assuntos políticos e éticos (a discussão sobre a famigerada escola "sem partido"[4]) está a discussão sobre por que temos escolas, instituições de ensino formal, pois nem sempre elas existiram.[5] Mas há outras questões: qual é o melhor sistema econômico? Qual é o melhor sistema político? O aborto é justificado? A eutanásia é justificada? O suicídio é justificado? Por que a produção e consumo de álcool e cigarros são legais e a produção e consumo de outras drogas, como a maconha, é proibido? Há justificação para consumir produtos de origem animal? Casais do mesmo sexo têm direito ao casamento civil? O voto popular deve ser obrigatório? O estado deve ser laico? Qual deve ser a atitude de um tolerante frente a um intolerante? Homens e mulheres devem ter os mesmos direitos? Há maneiras factíveis de se organizar a sociedade sem o estado? A liberdade de expressão deve ser ilimitada? E essas são apenas algumas das questões ético-políticas importantes para se pensar nosso sistema sócio-político.

Pensar com rigor e critério sobre tais assuntos deveria ser uma habilidade exercitada por todo cidadão. Mas, infelizmente, isso ocorre com pouca frequência. Pensar com rigor e critérios é algo que envolve um certo número de capacidades: a capacidade de usar o português de forma competente, a capacidade de compreender os conceitos expressos pelas termos gerais do português, a capacidade de formular frases claras para expressar crenças e formular hipóteses, a capacidade de raciocinar, de extrair conclusões, de forma logicamente correta a partir de afirmação justificadas, a capacidade de justificar afirmações, etc. O que poderia ajudar os alunos a desenvolver essas capacidades são os rudimentos de duas disciplinas filosóficas: a lógica, o estudo dos raciocínios logicamente corretos e daqueles que parecem ser corretos sem o ser (as falácias) e a epistemologia, que estuda a natureza, possibilidade e estrutura da crença, justificação e conhecimento. Em conexão com os rudimentos de outras duas disciplinas filosóficas, a ética e a política, lógica e epistemologia podem ajudar os alunos a melhorar seu modo de pensar sobre questões éticas e políticas.

Embora a epistemologia seja a disciplina que estuda o conhecimento e a justificação, há um certo tipo de justificação muito usado em ciência que merece um tratamento especial numa disciplina escolar como essa que estou tentando explicar. Trata-se na justificação de afirmações empíricas por meio de dados estatísticos. A razão pela qual esse tipo de justificação merece um tratamento especial é o fato de que muitas afirmações biológicas, psicológicas, sociológicas e econômicas, dentre outras, são justificadas dessas forma. Mas não apenas isso: dados estatísticos são, de forma relativamente fácil, manipulados para justificar afirmações desses tipos para aqueles que não estão familiarizados com esse tipo de justificação.[6] Por sorte, no momento em que escrevo esse texto, há um provável exemplo bastante didático e relevante desse tipo de manipulação. Trata-se de uma pesquisa que concluiu, com base em dados estatísticos, que o ensino obrigatório de filosofia e sociologia nas escolas está causando o declínio das notas dos estudantes em matemática (ver aqui). Todavia, uma coisa é que o ensino de filosofia e sociologia e a queda das notas em matemática ocorram simultaneamente. Outra coisa é que o primeiro seja a causa do segundo. Os dados estatísticos por si só não justificam essa hipótese causal. Muitas outras coisas podem ser a causa desse declínio nas notas sem que o ensino de filosofia e sociologia tenha qualquer influência causal no fenômeno.[7] A propósito, uma pesquisa divulgada em 2016 conclui exatamente o contrário para uma amostragem mais ampla (veja aqui). Em geral, dados estatísticos por si só não justificam hipóteses empíricas. É necessários realizar uma análise desses dados para poder tentar justificar qualquer hipótese com base neles. Uma outra maneira de se realizar manipulação estatística consiste em formular uma hipótese negativa de maneira positiva e vice-versa. Por exemplo: suponha que um programa de tratamento de viciados em drogas consiga sucesso em 60% dos que procuram o programa. Uma maneira de apresentar isso de forma negativa é dizendo que 40% daqueles que procuram o programa o abandonam antes de atingir o seu objetivo. Por tudo isso, o ensino dos rudimentos de análise estatística seria muito útil para que os alunos aprendam a identificar essas manipulações.

Sendo assim, contra aqueles que defendem a diminuição de disciplinas escolares, acredito que uma disciplina como a descrita acima ajudaria a promover a cidadania e, como consequência, a qualidade das decisões que os cidadãos tomam sobre questões importantes para nossa sociedade. Esse é apenas o esboço de uma idéia que submeto à crítica. Alguns tópicos da disciplina que tenho em mente já são abordados em outras disciplinas. Mas creio que a concentração deles em uma disciplina seria muito mais eficiente, dadas as conexões que há entre eles.

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[1] Isso é matéria de uma controvérsia na qual, por razões de espaço e tempo, não quero entrar aqui. Meu ponto é que a escola não é destinada unicamente à formação de mão de obra, pois um cidadão não é apenas um trabalhador. Por isso, a disciplina de matemática, por exemplo, embora tenha uma importância diferente da filosofia, não é mais importante que essa última.

[2] Essa definição pode ser adequadamente modificada para incluir a possibilidade de uma organização anarquista da sociedade, ou seja, uma organização sem estado. Basta que se substitua "estado" por "grupo social organizado" ou algo semelhante.

[3] Na Georgia, por exemplo, juízes estaduais devem receber no mínimo 50% dos votos populares para serem nomeados. Veja aqui.

[4] Para as minhas razões pelas quais acredito que o projeto da escola sem partido não satisfaz sequer condições lógicas para ser justificado, ver minha postagem A contradição performativa da escola sem partido.

[5] Novamente nos EUA, os pais não são obrigados e enviar seus filhos para a escola, desde que providenciem um ensino particular para eles. Veja

[6] Para uma explicação de algumas dessas manipulações, veja aqui (texto em inglês).

[7] A Sociedade Brasileira de Sociologia Lançou uma nota criticando a metodologia da pesquisa. Veja aqui.


terça-feira, 18 de abril de 2017

O dilema do prisioneiro

John Nash

João e Maria são presos sob a acusação de roubarem um banco, embora a evidência para essa acusação não seja suficiente. Quando foram presos, ambos portavam ilegalmente armas de fogo. Ambos se importam muito mais com o seu próprio bem-estar do que com o bem-estar do seu cúmplice. Eles estão incomunicáveis. O delegado então faz a seguinte proposta separadamente a ambos: "Você e seu companheiro podem ou confessar ou ficar em silêncio. Se você confessar e seu cúmplice ficar em silêncio, você será libertada e a pena do seu cúmplice será aumentada. Se ele confessar e você ficar em silêncio, ele será libertado e a sua pena será aumentada. Se ambos confessarem, vocês cumprirão a pena mínima e ganharão liberdade condicional mais cedo. Se ambos ficarem em silêncio, vocês serão processados e condenados por posse ilegal de armas, cuja pena é menor que a pena mínima de assalto a banco."

Diante dessas opções, ambos podem escolher entre decidir o que é melhor para si e o que é melhor para o grupo. Se Maria, por exemplo, resolver decidir o que é melhor para si, então ela vai decidir se é melhor confessar ou ficar em silêncio seja o que for que João faça, pois ela não sabe o que João vai fazer. Seja o que for que o João faça, o melhor para Maria é confessar. Se João decidir ficar em silêncio e Maria decidir confessar, então Maria será libertada. Se João decidir ficar em silêncio e Maria decidir ficar em silêncio, ambos cumprirão pena por posse ilegal de armas, que é menor que a pena mínima por assalto a banco. Nesse caso, o melhor é confessar. Se João decidir confessar e Maria decidir ficar em silêncio, Maria terá sua pena aumentada e João será libertado. Se João decidir confessar e Maria decidir confessar, ambos cumprirão pena mínima por assalto a banco. Nessa caso, o melhor, novamente, é confessar.

Se ambos raciocinam da mesma forma, tentando decidir o que é racionalmente melhor para si, ambos decidirão confessar. O resultado dessa decisão será que ambos cumprirão pena mínima por assalto a banco. Todavia, o resultado de ambos confessarem é pior do que o resultado de ambos ficarem em silêncio. Se ambos decidissem o que é melhor não para si, mas para o grupo, e confiassem mutuamente que seu cúmplice assim o decidiria, então o resultado que obteriam seria melhor do que se ambos decidissem o que é melhor para si.

O dilema consiste no conflito entre essas duas formas de decisão, a individualista e a coletiva. Quando os indivíduos decidem o que é melhor para si, independentemente das decisões dos demais, isso leva a um resultado pior do que tais indivíduos obteriam se decidissem o que é melhor para o grupo a que pertencem. Mas a decisão sobre o que é melhor para o grupo somente é eficiente se os indivíduos puderem confiar que os demais irão decidir do mesmo modo.

O dilema do prisioneiro foi criado por dois matemáticos, Melvin Dresher e Merrill Flood, para ilustrar os jogos não-cooperativos da teoria dos jogos, criada por John Von Neumann e desenvolvida por John Nash. Os jogos não-cooperativos são aqueles em que os jogadores decidem o que é melhor para si. Eles são usados para explicar muitos fenômenos sociais e econômicos. A estratégia dominante em jogos não-cooperativos consiste em buscar o equilíbrio de Nash, ou seja, uma situação tal que, se um dos membros do grupo mudar unilateralmente sua estratégia, sua situação somente irá piorar. Ao seguir essas estratégia, cada membro do grupo decide o que é melhor para si, sem precisar confiar em ninguém, na suposição de que todos farão o mesmo. Todavia, dado que o melhor resultado é obtido quando se decide o que é melhor para o grupo, talvez fomentar a confiança e o espírito cooperativo seja a estratégia mais racional. Cartéis seriam muito mais numerosos e frequentes, se os empresários não adotassem a estratégia dominante na administração de suas empresas, por exemplo. Mas o fato de que cartéis tampouco são raros é explicado pelo fato de alguns empresários darem-se conta que uma estratégia de grupo ser mais benéficas para os membros do grupo, embora seja prejudicial para os demais membros da sociedade e dependa da confiança mútua dos membros do grupo. A tendência de prisioneiros de uma quadrilha de corruptos a quererem fazer delações premiadas é explicada pelo fato de, nessas situações, a desconfiança entre os membros da quadrilha ser estimulada. Nesse caso, a estratégia dominante parece ser a solução mais racional.


segunda-feira, 17 de abril de 2017

Aborto e prostituição



Muitas pessoas argumentam a favor da legalização do aborto a partir das seguintes premissas:
O aborto continuará sendo praticado, quer seja legalizado, quer não seja.
Se não for legalizado, mulheres pobres que fazem aborto continuarão sofrendo por causa de abortos baratos mal feitos.
Se for legalizado, o estado poderá fornecer aborto de qualidade de graça via sistema público de saúde.
As mulheres não devem continuar sofrendo por causa de abortos baratos mal feitos.
Portanto, o aborto deve ser legalizado.
Todavia, algumas pessoas que argumentam a favor da legalização do aborto dessa forma, também argumentam a favor da proibição da prostituição, frequentemente com base no fato de que a prostituição explora, marginaliza e é fonte de violência contra a mulher. Somente alguém que perdeu totalmente contato com a realidade negaria que isso frequentemente acontece na prostituição. Todavia, é perfeitamente argumentável que a causa dessa exploração, marginalização e violência contra a mulher não é a prostituição em si, mas justamente o fato de essa profissão não ser legalizada e, por isso, as prostitutas não receberem o amparo do estado no que diz respeito a segurança, saúde e previdência. Além disso, é perfeitamente falso que isso ocorra com todas as prostitutas. Muitas prostitutas têm uma vida relativamente tranquila, com tantos problemas quanto tem a média dos demais trabalhadores. Seja como for, mesmo que a prostituição seja legalizada, a exploração das prostitutas não irá acabar totalmente, pois a exploração, em uma sociedade capitalista, é parte do sistema. Ademais, as prostitutas são marginalizadas principalmente porque boa parte das pessoas acham moralmente errado vender o corpo para sexo, quer as prostitutas sejam saudáveis, bem tratadas e bem remuneradas, quer não sejam. A razão disso, muitos alegam, é que comprar um corpo para sexo é tomar uma pessoa como meio e não como um fim em si mesmo, como diria Kant. A prostituta é tomada como um objeto por aquele que paga pelo seu serviço. Todavia, se o simples pagar por um serviço é tomar a pessoa que o presta como objeto, em qual profissão essa objetificação não acontece? Algumas pessoas acham que ser prostituta é degradante, fere a dignidade da mulher, pois ela está vendendo seu corpo. Todavia, como conciliar isso com a máxima "Meu corpo, minhas regras", frequentemente defendida por mulheres a favor do aborto? Se o corpo é da mulher, ela não deveria ter o direito de decidir se quer ou não vendê-lo? Ademais, modelos fotográficas e de passarela não vendem também seu corpo? O problema é, então, o sexo? O que há de moralmente errado em se fazer sexo por dinheiro?

Poder-se-ia argumentar que as mulheres tornam-se prostitutas por coerção. Isso pode ser verdade em muitos casos, mas certamente não é verdade em todos os casos. Muitas mulheres tornam-se prostitutas por livre e expontânea vontade. Mas algumas pessoas argumentam que mesmo quando uma mulher acredita que está tomando uma decisão livre para ser prostituta, na verdade ela está sendo inadvertidamente coagida pelo sistema machista a tomar essa decisão. Mas, pelo mesmo argumento, quase todas as profissões são imorais, pois, numa sociedade capitalista, quem não detém o poder econômico também está inadvertidamente sendo coagido a escolher a profissão que escolhe. Os capitalistas precisam da existência de uma classe trabalhadora que venda seu trabalho o mais barato possível. Para eles, portanto, é essencial que a maior parte das pessoas escolham vender seu trabalho o mais barato possível. Sendo assim, se a prostituição é imoral pela razão aduzida, a coerção sistêmica, assim também o é todo trabalho oferecido o mais barato possível.

Um fato importante contra a idéia de que a prostituição é algo intrinsecamente machista é que, embora sejam casos esmagadoramente minoritários, há prostituição masculina e prostituição homossexual. Como essas formas de prostituição poderiam ser machista?

Creio que não há nenhum argumento cogente para se mostrar que a prostituição é intrinsecamente imoral. As maiores motivações para se pensar assim são religiosas e estéticas. No fundo, as pessoas que argumentam a favor dessa tese estão apenas tentando racionalizar sua fé e/ou sua visão da prostituição como algo feio.

Pode-se formular um argumento a favor da legalização da prostituição análogo àquele acima a favor da legalização do aborto:

A prostituição continuará sendo praticada, quer seja legalizada, quer não seja.
Se não for legalizada, mulheres prostitutas continuarão sofrendo coerção, exploração, marginalização e violência.
Se for legalizada, o estado poderá fornecer saúde, direitos trabalhistas, previdência e segurança para as prostitutas.
As mulheres não devem continuar sofrendo coerção, exploração, marginalização e violência.
Portanto, a prostituição deve ser legalizada.
Se esse argumento não é cogente, então tampouco é aquele a favor da legalização do aborto. É claro que em ambos os casos, está-se supondo, sem argumento, que nem o aborto nem a prostituição são moralmente errados. Estas suposições podem ser e têm sido questionadas. Creio que ambas são corretas e aqui tentei defender a segunda de algumas críticas.


sábado, 1 de outubro de 2016

O paradoxo do conhecimento fácil: ou sobre a acrasia cognitiva

Logo do WikiLeaks

O advento da informática, da tecnologia da informação, e sua evolução assombrosamente rápida, em conjunto com um outro fato da sociedade contemporânea industrializada, contribui para o surgimento de uma situação paradoxal. O outro fato a que me refiro é um número assustador de pessoas que sofrem de um certo tipo de indigência cognitiva: um misto de ignorância e ilusão de conhecimento sobre assuntos fundamentais da nossa sociedade. Como pode ser o caso que boa parte das pessoas esteja nessa indigência cognitiva dado que o acesso à informação nunca foi tão fácil em toda a história da humanidade? Para ter esse acesso, não é necessário ter um computador. Basta uma pessoa ter um smartfone (ok, um smartfone é um minicomputador, mas você entendeu...) e acesso à internet para ela ter acesso, por exemplo, até a alguns dos segredos de governos de países poderosos revelados pelo site WikiLeaks (literalmente: vazamentos rápidos), entre outras muitas coisas. Há milhões de livros e artigos especializados, notícias de alta qualidade, enciclopédias, tudo disponível de graça. Para aqueles que lêem apenas em português, há dicionários bilingues, tradutores automáticos e cursos de línguas estrangeiras. Tudo isso está ali, a alguns toques em qualquer smartfone que tenha acesso à internet. Alguém disse que tal e tal coisa é o caso e você quer saber se isso é verdade? Basta digitar umas palavras-chave no Google e voilà! Você pode encontrar sites especializados confirmando ou negando que tal e tal coisa seja o caso. Não sabe o que "voilà" significa? Pronto: voilà. Você pode inclusive saber como se pronuncia essa palavra e se tornar um pouco mais erudito...

A facilidade de acesso à informação proporcionada pela informática parece nos levar à conclusão de que nunca foi tão fácil obter conhecimento. Mas o fato de que grande parte das pessoas sofre do que chamei de indigência cognitiva está em conflito com essa conclusão. Se é tão fácil obter conhecimento, por que essa indigência cognitiva pervade cada vez mais nossa sociedade industrializada? Há várias causas para isso, creio. Algumas estão relacionadas à própria natureza do processo de aquisição de conhecimento e outras têm uma natureza político-econômica.

A obtenção de conhecimento, principalmente sobre assuntos complexos como aqueles relativos à sociedade, demanda muito trabalho. Não basta acessar a informação. Ela deve ser processada, analisada, comparada, etc. Deve-se extrair as conclusões dessas informações com base em raciocínios bem feitos. E antes disso, deve-se buscar fontes confiáveis de informação. Ou seja, deve-se buscar informação sobre a informação. Tudo isso demanda tempo e muito trabalho. Mas não há outro jeito. Não há atalhos para o conhecimento. Toda essa complexidade também é devida a complexidade das questões importantes para a nossa sociedade. Elas são muitas e formam uma rede de conexões complexas. Responder a uma destas questões mais fundamentais, como, por exemplo, "O sistema capitalista é o melhor?", nunca é uma tarefa simples, pois envolve responder a muitas questões a ela subordinadas. Por tudo isso, embora a informação seja de fácil acesso, é bem mais fácil escolher um pacote pronto de crenças cuidadosamente escolhidas sobre a sociedade ricamente embalado, onde já estão todas as respostas prontas para as perguntas fundamentais sobre nossa sociedade, que podem ser consultadas sempre que for necessário, como quem consulta a Bíblia, do que adquirir conhecimento por conta e risco.

É claro que boa parte das pessoas sequer tem um celular, muito menos um smartfone, e, por isso, têm muito pouco acesso à informação. Mas isso não afeta o que eu disse cima, pois a indigência cognitiva de que falo é daqueles que possuem acesso à informação.

Mas há um outro empecilho para a aquisição de conhecimento. É um velho clichê dizer que conhecimento é poder. Clichê ou não, isso é bem verdade. Costuma-se atribuir a Napoleão a seguinte frase: "Se perco o controle da imprensa não aguentarei no poder nem por três meses." Se Napoleão disse mesmo isso é o que menos importa aqui. Importa é que essa frase expressa uma preocupação de uma boa parte daqueles que detém o poder político-econômico: o controle da informação. O romance de George Orwell, 1984, adaptado para o cinema, mostra isso de maneira dramática. Esse controle é exercido de muitas formas: ocultação de informação, propaganda, desinformação, boatos, monopólio dos grandes meios de comunicação, inculcação de medo da situação que os poderosos querem evitar, pseudo-cientificidade, etc. O objetivo desse controle é convencer o povo de que o que os poderosos fazem é o melhor a ser feito, que o sistema político-econômico em que se vive é o melhor possível, para que, assim, o poder possa ser exercido com o mínimo de resistência possível. Não há nenhum problema em se acreditar sinceramente nisso e tentar convencer as pessoas disso a fim de que a sociedade viva em paz. O problema é fazer isso manipulando a informação.

Esses dois fatos somados produzem o que eu chamo de indigência cognitiva de boa parte das pessoas. O controle da informação é imensamente facilitado pela comodidade de se escolher um pacote pronto de crenças sobre a sociedade ricamente embalado, ao invés de se escolher a busca autônoma pelo conhecimento. Kant já tinha percebido que a autonomia cognitiva é mais trabalhosa e dolorosa que a heteronomia. A aquisição de conhecimento, além de ser trabalhosa, pode gerar angústia, frustração e decepção. Pode ser doloroso abandonar crenças que foram inculcadas pela educação que recebemos quando crianças. A inércia que essa educação provoca na nossa mente está sempre a dificultar a aquisição de conhecimento. Não obstante ser difícil e muitas vezes doloroso, creio que é uma obrigação moral buscar a autonomia cognitiva. E uma das principais razões para isso é que não buscá-la facilita o controle da informação por parte dos poderosos e, por conseguinte, facilita as ações desses poderosos, que afetam a todos. Os poderosos contam com a acrasia cognitiva do povo para controlar a informação. A moderna forma de escravidão é voluntária, porque a escravidão agora é atraente, graças ao controle da informação.


terça-feira, 10 de maio de 2016

"Queria ver o que você faria, se fosse você nessa situação!"

Primeira cadeira elétrica

Uma das principais contribuições que os filósofos podem dar à sociedade é a clarificação de certos conceitos e argumentos usados em debates sobre questões de importância fundamental, dado que essa é uma das habilidades que os filósofos cultivam, ou deveriam cultivar... Essa contribuição do filósofo serve para dissipar ilusões, expor confusões e até mesmo falsas discordâncias, entre outras coisas. Mesmo que isso não seja suficiente para decidir quem está correto no debate, se alguém estiver, é uma condição necessária para isso.

Uma das confusões mais comuns em debates sobre questões de filosofia moral e/ou filosofia política é aquela entre o discurso sobre o que é normativo e o discurso sobre o que não é normativo. Por exemplo: já me deparei várias vezes com tentativas de se argumentar em favor da pena de morte (e de outras normas) que seguem mais ou menos as linhas do seguinte diálogo imaginário:
A: A pena de morte é injustificada.
B: Você já teve algum parente querido que morreu a tiros em um assalto a mão armada, mesmo depois de ter entregue tudo o que o assaltante pediu, tendo sido inclusive estuprada?
A: Felizmente, não.
B: Então é por isso que você está dizendo que é contra a pena de morte! Queria ver o que você faria se você tivesse uma filha que tivesse sido assaltada, estuprada e morta, e tivesse a oportunidade de matar o criminoso. Queria ver o que você faria, se fosse você nessa situação!
O que uma pessoa como B não percebe é algo que a sabedoria de várias gerações sintetizou na expressão "Explica, mas não justifica". Se o pai de uma jovem que é assaltada, estuprada e morta por um criminoso matar esse criminoso quando tiver oportunidade, então essa circunstância ajudará, sem dúvida, a explicar causalmente o seu ato e atenuar uma provável pena a que fosse condenado a cumprir. Mas essa explicação não necessariamente é suficiente para justificar o seu ato. Talvez a pessoa A, se estivesse naquela circunstância, ou seja, se fosse o pai daquela jovem, matasse o criminoso que assaltou, estuprou e matou a sua filha. E talvez ele admita isso, que faria isso naquela circunstância. Mas admitir isso não o obriga a admitir que isso que ele faria é o que ele deveria fazer, ou seja, que estaria justificado fazer isso que ele faria.

Esse ponto se mostra de forma mais didática no fato que, por vezes, temos a disposição para fazer o que não deveríamos fazer em certas circunstâncias. Mas se temos essa disposição, então, nessas circunstâncias, isso é o que provavelmente faríamos. Entretanto, se é a disposição para fazer o que não deveríamos fazer, então esse é uma caso em que faríamos algo que não deveríamos fazer. Logo, mostrar que uma pessoa provavelmente faria isso e aquilo em tais e tais circunstâncias está longe de ser suficiente para mostrar que isso é o que ela deveria fazer.

O discurso sobre o que faríamos em determinadas circunstâncias é o discurso sobre o que não é normativo, sobre o que é ou seria o caso, por oposição ao que deveria ser o caso. O discurso sobre o que deveríamos fazer em determinadas circunstâncias é um discurso sobre o que é normativo. Essa normatividade pode ser instrumental ou moral. Ela é instrumental quando consiste no que deveríamos fazer para atingir certos fins, não importando se tais fins são ou não são moralmente bons. Ela é moral quando levamos em conta a moralidade dos fins, não apenas dos meios. Mesmo que haja casos em que o que faríamos e o que deveríamos fazer coincidam, disso não se segue que seja válido inferir o que deveríamos fazer do que faríamos. Por isso, não há nenhuma contradição em se dizer: "Se eu tivesse oportunidade, eu provavelmente faria tal e tal coisa em tal e tal circunstância, embora eu ache que eu não deveria fazer isso."

Não é raro que o desejo de institucionalizar a vingança seja aquilo que motiva alguém a inferir o que deveria ser feito em determinada circunstância daquilo que essa pessoa faria nessa circunstância. Mas fazer justiça não é o mesmo que se vingar. Se alguém merece morrer (e esse é uma grande "se"), certamente não o é para saciar a sede de vingança de alguém. Ambas as coisas podem coincidir, mas não necessariamente coincidem, pois é extremamente subjetivo o que satisfaria o desejo de vingança de cada um e muitos não têm desejo de vingança.

quinta-feira, 5 de maio de 2016

V Workshop Wittgenstein: Linguagem, Ética e Estética


Data: 22 a 23 de Julho de 2016
Local: Centro de Eventos Maria Thaler Moser. Rua Antônio Carlos Konder Reis, Treze Tílias, SC
Valor da inscrição (para ter direito a certificado): Profissionais, professores e alunos de pós: R$50,00; Alunos de graduação: R$25:00

Site oficial do evento


Objetivo Geral

O objetivo geral do Workshop é: investigar as relações e implicações, bem como os alcances e limites, da filosofia de Wittgenstein quanto aos problemas, morais, estéticos, epistemológicos e linguísticos. Sendo assim, pretende-se avaliar em que medida o pensamento wittgensteiniano pode contribuir para oferecer respostas às questões e problemas da filosofia contemporânea.

Objetivos Específicos

1. Examinar o potencial teórico da Filosofia de Wittgenstein para a contemporaneidade, bem como suas vantagens e limitações;

2. Estabelecer um fórum interinstitucional permanente de discussões sobre a Filosofia de Wittgenstein (ainda parcialmente explorada e conhecida no Brasil);

3. Divulgar os mais recentes resultados de pesquisas de professores, pesquisadores e alunos de pós-graduação (com reconhecido mérito acadêmico), no que diz respeito ao pensamento do filósofo austríaco;

4. Ampliar e fortalecer os vínculos entres os Programas de Pós-Graduação em Filosofia do Brasil e com alunos de graduação em filosofia, em especial, com a modalidade EaD.

5. Ampliar o intercâmbio internacional entre os Programas de Pós-Graduação em Filosofia do Brasil.


Comissão Organizadora

Prof. Dr. Darlei Dall’Agnol (UFSC)
Me. Bruno Aislã Gonçalves dos Santos (Doutorando UFSC – bruno.aisla@posgrad.ufsc.br)


Comissão Científica

Janyne Sattler (UFSM)
Juliano do Carmo (UFPel)
Léo Peruzzo (PUCPR)


Call for papers

As pessoas interessadas em apresentar trabalho em mesa-redonda no dia 24 deverão enviar até dia 15 de junho um resumo de até 500 palavras no e-mail: darlei@cfh.ufsc.br


Programação

Data: 22/07

16:00h às 17:30h: Minicurso Pré-evento (Professor: Darlei Dall’Agnol, UFSC), A vida e a obra do filósofo austríaco Ludwig Wittgenstein

18:00h: Abertura oficial do V Workshop Wittgenstein (Prefeitura de Treze Tílias e Coordenação do Pólo EaD da UAB)

18h10m: Apresentação cultural

18h30min: Nick Zangwill (Hull University, Inglaterra): Wittgenstein on language, rules and privacy.

19h30min: Alexandre Machado (UFPR): O dever de fazer o mal

20h30min: Coffee Break

20h40min: Arturo Fatturi (UFFS): Conceitos psicológicos em Wittgenstein: significado e comportamento

21h40min: Bortolo Valle (PUCPR): Wittgenstein e a Estética

Data: 23/07

9:00h: Primeira-mesa redonda: Jonathan Orozco
(coord.); Lucas Piccinin Lazzaretti; Matheus de Lima Rui; Teri Roberto Guerios

10:00h: Segunda-mesa redonda: Geraldo das Dores de Armendane (coord.); Gustavo Generaldo de Sá Teles Junior; Lucas Vinícius Cintra Mendes

11:00h: Coffee Break

11h15min: Janyne Sattler (UFSC): Wittgenstein e Elliot contra o ‘ar rarefeito da teoria moral’

12h15min: Almoço

14:00h: Jônadas Techio (UFRGS): O mundo assistido e o mundo vivido: elucidações gramaticais a partir de Wittgenstein e Cavel

15:00h: Juliano do Carmo (UFPel): O papel do treinamento ostensivo na aquisição da linguagem natural

16:00h: Coffee Break

16h15min: Leo Peruzzo (PUCPR): A possibilidade de um cognitivismo moral pragmático a partir de Wittgenstein

17h15min: Mirian Donat (UEL): A ação humana entre causas e razões

18h15min: Vicente Sanfélix Vidarte (València): "El yo em lãs Observaciones filosóficas"

19h15min: Jantar de confraternização.

quinta-feira, 1 de outubro de 2015

Falácia normativista e as lutas sociais


O termo "falácia naturalista" algumas vezes é usado para se referir ao que também é chamado de problema do "deve" e do "é", embora também designe uma falácia analisada por Edward Moore, que consiste na tentativa de reduzir os conceitos morais a conceitos naturais. Aqui uso o termo no primeiro sentido. A falácia naturalista consiste em inferir afirmações sobre como as coisas devem ser, afirmações normativas, de afirmações sobre como as coisas são. Por exemplo:
Há diferenças biológicas entre homens e mulheres além das diferenças sexuais.
Logo, homens e mulheres devem ter direitos civis distintos.
Não quero discutir se há ou não exceções em que podemos fazer uma inferência válida desse tipo. Mas o exemplo acima é um claro caso de inferência inválida. Ela é geralmente cometida por quem defende o que se costuma chamar de darwinismo moral.

Há um outro tipo de falácia que é uma versão contrária à falácia naturalista. Eu a chamo de falácia normativista. Ela consiste em inferir afirmações sobre como as coisas são de afirmações sobre como as coisas devem ser. Por exemplo:
Homens e mulheres devem ter os mesmos direitos civis.
Logo, não há diferenças biológicas entre homens e mulheres além das diferenças sexuais.
Mas quem comete esse tipo de falácia? Infelizmente ela tem sido cometida com cada vez mais frequência por alguns daqueles que lutam causas sociais justas, como a luta contra o machismo, a luta contra o racismo, a luta contra a homofobia, e outras. O que motiva essa falácia, entre outras coisas, é o compromisso com uma certa agenda ético-política, um conjunto de afirmações normativas, sobre como o mundo social deve ser, a partir da qual o ativista julga como o mundo é, seja o mundo social, seja o natural (mais sobre a diferença entre social e natural a seguir). Mas o mundo natural está pouco se lixando para nossas agendas ético-políticas. Isso não deveria causar nenhum alvoroço, pois a lição que a falácia naturalista deveria nos ensinar é que nossas regras morais e políticas não podem ser nem justificadas apenas a partir dos fatos da natureza, nem revogadas com base neles, salvo, é claro, se parte do conteúdo ou uma suposição dessas regras for uma afirmação falsa sobre o mundo natural. Para continuar no exemplo das falácias acima, diferenças biológicas não implicam, por si só, diferenças ético-políticas.

A falácia normativista é cometida com mais frequência quando se trata de discutir se certas diferenças e padrões sociais têm ou não têm uma origem biológica. Parte do estudo para decidir essa questão consiste num estudo histórico-sociológico dessas diferenças e padrões. Mas é um erro pensar que isso é suficiente. Uma das causas desse erro é o desejo de mostrar que as referidas diferenças são elimináveis e os referidos padrões de comportamento mutáveis porque são puras "construções sociais", tese que seria justificada apenas por uma investigação histórico-sociológica. Mas aqui há duas suposições problemáticas. Uma delas é achar que o fato de uma coisa ser uma construção social implica que essa coisa não tem uma origem biológica. A segunda suposição é uma versão generalizada da primeira: pensar que a sociedade não faz parte do mundo natural, que ela não tem uma história natural. Nenhuma dessas suposições é óbvia. E para decidirmos se são verdadeiras, precisamos estudar também biologia, o que inclui a biologia evolutiva. Alguns temem os resultados desses estudos porque temem que isso tenha implicações ético-políticas, como se o conhecimento da gênese biológica de nosso comportamento social fosse uma justificação desse comportamento. Ou seja, o que leva alguns a cometer a falácia normativista é o temor de que sua agenda ético-política seja atacada por falácias naturalistas.

Um exemplo muito claro de como o conhecimento da nossa evolução não tem implicações ético-políticas é a discussão em torno de um certo argumento contra o veganismo. O argumento infere que devemos comer carne do fato que o consumo de carne dos nossos antepassados é uma das coisas que contribuiu causalmente para que tenhamos o cérebro altamente evoluído que temos. Mas o que possibilitou a evolução do nosso cérebro foi o consumo de proteína. E agora que ele está assim evoluído, podemos usá-lo para saber sobre a sua evolução e saber que a proteína que o ajudou a evoluir poderia ter sido retirada de outras fontes, embora não soubéssemos disso no passado e embora essas outras fontes talvez não estivessem tão facilmente disponíveis quanto a carne. O conhecimento de que o consumo de carne desempenhou um papel importante na nossa evolução nem implica que devemos comer carne, nem o contrário.

O temor que o resultado de investigações da ciência natural tenham implicações ético-políticas é infundado. Ele pode ser usado falaciosamente, claro. Mas não é uma boa justificação para a não produção desse conhecimento argumentar que assim evitamos o seu uso falacioso.

segunda-feira, 14 de setembro de 2015

Um vegano pode considerar carne um alimento?

hamburger sintético

Por estranho que possa parecer, minha resposta a essa pergunta é "sim". Mas veganos não são aqueles que se recusam a comer alimentos de origem animal? Como então um vegano pode considerar a carne um alimento? Bem o vegano de fato evita consumir alimentos de origem animal, como a carne, mas não pelo simples fato de a origem desse alimento ser animal, mas porque o seu processo de produção envolve a escravização, sofrimento e abate de animais não-humanos. Essa é a verdadeira motivação do vegano para não consumir carne. Comer carne não é algo moralmente errado em si mesmo. O que é moralmente errado é o processo de produção da carne.

Mas então estou defendendo o bem-estarismo? Bem-estarismo é uma posição em ética dos animais segundo a qual tudo que é moralmente errado no nosso trato com os animais não-humanos é o fato de infligirmos sofrimento a eles. Se os tratássemos bem, proporcionando bem estar a eles e os matando sem sofrimento, então estaríamos moralmente justificados em matá-los pra os transformar em alimento e outros bens. Eu não estou defendendo nenhuma forma de bem-estarismo. Sou um abolicionista, pois defendo que os animais senscientes devem ser livres e têm direito à vida. O processo de produção da carne envolve a escravização, sofrimento e abate de animais não-humanos e isso, creio, é moralmente errado.

Mas então como um vegano abolicionista pode considerar carne um alimento? Tudo depende de como a carne foi produzida. Se sua produção não envolve nem a escravização, nem o sofrimento e nem a morte de animais não-humanos, então nenhum princípio moral que está na base do veganismo é infringido por quem a consome. Mas como se poderia produzir carne sem escravizar e abater animais? Simples: animais são seres vivos e eventualmente morrem de causas naturais. Nenhum princípio moral impede que um vegano coma a carne de um animal que que viveu livre e morreu de causas naturais. Essa produção provavelmente não seria suficiente para atender à demanda de carne atual, nem qualitativa, nem quantitativamente. Mas isso é uma outra questão. Entretanto, há já os primeiros esforços para se produzir carne em laboratório (ver foto), sem que nenhum animal necessite ser escravizado, sofra ou seja morto para isso.

Para deixar esse ponto didaticamente claro, vou fazer uma afirmação ainda mais forte: nenhum princípio moral impede que um vegano coma a carne de um ser humano que viveu livre e morreu de causas naturais. Nossa cultura vê isso como algo repugnante. Mas essa repugnância não é baseada em princípios morais. Há culturas em que comer a carne dos idosos que falecem, ou dos inimigos de guerra mortos em combate, não é considerado algo repugnante. Seja como for, há casos extremos em que, para sobreviver, pessoas comem carne de pessoas mortas, sem que sejam moralmente condenadas por isso. Este foi o caso dos uruguaios  que sobreviveram à queda de um avião nos Andes, em 1972.

Alguns veganos de fato são radicalmente contra a "cultura da carne", em que os animais são vistos como alimento. Eles discordarão das teses que estou defendendo aqui, porque para eles o que é moralmente errado é justamente isto: ver e tratar os animais como alimento. (Uma vez fui criticado porque fazia hamburger de lentilha, pois isso mostrava que eu ainda tinha desejo de comer carne, que não tinha me libertado da tal cultura da carne...) Mas do que eu digo não se segue que os animais vivos podem ser vistos e tratados como alimentos. O que estou dizendo é apenas que não é contraditório com o veganismo comer carne. Eu acho essa rejeição à carne em si injustificada. Em alguns casos, essa rejeição toma a forma de uma devoção religiosa, como se a carne fosse algo sagrado e comê-la fosse algo pecaminoso. O movimento abolicionista tem só a ganhar, se focarmos a atenção no que realmente importa moralmente para o abolicionista: acabar com a escravidão, sofrimento e abate de animais não-humanos.


segunda-feira, 7 de setembro de 2015

Empatia e moralidade

Peter F. Strawson
No excelente Freedom and Resentment, Peter F. Strawson[1] já defendia que na base da moralidade estão atitudes reativas em relação à vontade alheia: ressentimento, quando alguém faz algo errado para mim, indignação, quando alguém faz algo errado para uma terceira pessoa, e culpa, quando eu mesmo faço algo errado. Estas atitudes estão todas baseadas na nossa capacidade de ter empatia, um fenômeno cognitivo-prático que consiste ao menos de duas coisas: nossa capacidade de nos colocarmos imaginativamente no lugar de outra pessoa e nossa reação afetiva ao resultado disso.

O que o experimento do vídeo abaixo, feito com crianças de colo que ainda não sabem falar, mostra é que nossa reação afetiva primitiva é precisamente aquela sobre a qual falava Strawson. A criança assiste a um bonequinho tentando subir uma rampa com alguma dificuldade. Num primeiro momento, um outro bonequinho o empurra para cima, ajudando-o a atingir seu objetivo. Posteriormente, quando tenta novamente subir a rampa, um outro bonequinho o empurra ara baixo, dificultando ainda mais atingir o seu objetivo. Tudo que a criança sabe sobre o bonequinho é que ele quer subir a rampa. Isso é suficiente para que ela tenha empatia por ele, apreço por quem tenta ajudar e desprezo por quem atrapalha. Ela escolhe sempre o bonequinho que ajuda. O nosso sentimento de culpa é introduzido na nossa educação moral desde os primeiros anos por meio do cultivo da nossa empatia em relação a ursinhos de pelúcia, animais de estimação e coisas semelhantes.

Se isso está certo, na base da moralidade não está nem algo puramente afetivo, nem algo puramente intelectual, mas uma combinação de ambos. E talvez isso explique em parte o que Aristóteles disse na sua Ética a Nicômaco:
...a fim de ouvir inteligentemente as preleções sobre o que é nobre e justo, e em geral sobre temas de ciência política, é preciso ter sido educado nos bons hábitos. (1095b) 
Mas o que são os bons hábitos? Se pensarmos que eles envolvem o estímulo e o exercício da empatia tal como foi descrita acima, então o que Aristóteles está dizendo é que as condições para a compreensão e reflexão em filosofia moral e política não são puramente intelectuais. Alguém que, como um psicopata, perdeu a capacidade de ter empatia poderia conhecer "por descrição" tais bons hábitos. Mas essa pessoa jamais se tornaria sábia, pois jamais adquiriria a mesma competência no uso dos conceitos morais que possui aquele que adquiriu tais hábitos, que os conhece "por familiaridade", e essa diferença se reflete diretamente nos resultados da reflexão filosófica.




Leitura

Karsten Stueber, Empathy (Stanford Encyclopedia of Philosohy)

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[1] Tradução para o português publicada em Ensaios Sobre a Filosofia de Strawson. (Agradeço a Silvio Kavetski pela informação.)