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segunda-feira, 15 de junho de 2020

Feminismo e liberdade

"Minhas roupas não são meu consentimento"

O feminismo é uma luta árdua contra o machismo estrutural da sociedade. Mas uma coisa que contribuir para a dificuldade dessa luta é a educação machista recebida por homens e mulheres, especialmente no que diz respeito ao comportamento sexual. Aos homens é dada uma liberdade sexual quase ilimitada, desde que seja heterossexual, claro. Sua iniciação sexual é cobrada ou, no mínimo, tolerada por quase todos, desde que seja heterossexual, claro. Estimula-se que o número de parceiras sexuais seja o maior possível. Se um homem conseguir transar com duas mulheres na mesma noite, ele é um herói. Se ele transar com duas mulheres ao mesmo tempo, então ergue-se uma estátua para ele. Os homens não são estimulados a serem discretos sobre suas aventuras sexuais. Vangloriarem-se de suas conquistas é, no mínimo, tolerado, mas, frequentemente, aplaudido, principalmente por outros homens. Homens podem andar sem camisa na rua, mostrado seus mamilos. Isso pode ser considerado de mau gosto, mas nunca imoral, muito menos em uma praia.

Tudo é o contrário quando se trata do comportamento sexual das mulheres. As mulheres, segundo a educação machista, nem devem ter comportamento sexual antes do casamento. Elas devem se preservar para o futuro marido, porque a maior parte dos homens prefere uma mulher virgem. Essa exigência já exclui a possibilidade de as mulheres terem vários parceiros sexuais e, muito mais, de transarem com mais de um homem ao mesmo tempo, o que exclui a possibilidade de um relacionamento aberto ou de poliamor. Uma mulheres "decente" nunca faria isso. A discrição sobre a sua vida sexual é cobrada da mulher apenas quando ela começa sua vida sexual no casamento. A mulher é estimulada a ser passiva, a não tomar a iniciativa, porque senão pode revelar alguma tendência a um comportamento sexual considerado impróprio para as mulheres "decentes". As mulheres não apenas não podem sair de peito nu na rua, nem na praia, como devem usar sutiã de bojo, para que seus mamilos entumecidos não sejam perceptíveis por debaixo da roupa. Mulheres que se vestem de forma ousada, com roupas justas, mostrando boa parte do corpo e sem sutiã são consideradas como mulheres que estão "provocando" os homens, passando a clara mensagem de que estão procurando sexo. Se forem estupradas usando essas roupas, muitos homens dirão que a culpa é da vítima, por estar vestida daquele jeito "indecente", como "vadia" ou "puta".[1] Aquelas mulheres que se rebelam contra a educação machista  e adotam padrões de comportamento considerados indecentes, de vadia ou putas, são aquelas que servem justamente para que os homens percam sua virgindade e para que eles possam aumentar o seu número de aventuras sexuais. São mulheres "para se divertir", por oposição às mulheres que aderem à educação machista, que são "para casar".[2] Isso está relacionado a outro aspecto da educação machista: ela ensina a mulher a não dissociar sexo de amor, incutindo a idéia de que sexo casual, por puro prazer físico, é uma coisa moralmente condenável, que nenhuma mulher decente faria. Os homens, pelo contrário, podem se divertir com as "vadias" ou "putas" e são estimulados a não criarem vínculos afetivos com elas.

Essa educação machista não tem outro objetivo que não seja controlar o comportamento sexual das mulheres, enquanto concede liberdade quase ilimitada aos homens. Para esse tipo de educação, o prazer sexual do homem é prioritário, na melhor das hipóteses, e o único que merece consideração, na pior. Essa educação machista não possui nenhum fundamento moral justificado. Os homens não possuem nenhum privilégio moral para terem direito a comportamentos sexuais que as mulheres não tenham. Por isso, algumas feministas defendem que a liberação sexual das mulheres é uma forma de libertar-se dessa injustificável educação machista e empoderar as mulheres. Lutar pela liberação sexual das mulheres seria lutar para que a sociedade reconheça que as mulheres têm liberdade para agir sexualmente do modo que elas quiserem, desde que não firam regras morais justificáveis. Isso não significa que uma mulher sexualmente liberada é obrigada a transar com todos os homens que encontra, ou que ela não possa abster-se temporariamente ou permanentemente de sexo. Ela pode, desde que isso não seja porque ainda está presa, inconscientemente, à educação machista. A libertação da educação machista também desobriga a mulher a fazer sexo apenas quando ela ama seu parceiro sexual.

Todavia, há controvérsia entre as feministas. Algumas delas argumentam que a liberação sexual das mulheres não deve ser incentivada, porque beneficia principalmente os homens que, dessas forma, terão sexo mais facilmente. Algumas chegam ao extremo de defender que mulheres heterossexuais deveriam cultivar abstinência sexual, porque dar prazer sexual aos homens seria moralmente errado e porque o lesbianismo seria a "consequência lógica" do feminismo.[3] Esse tipo de feminismo tem embasado críticas a artistas mulheres que usam a sua própria sensualidade para promover a liberação sexual das mulheres, exibindo, no seu trabalho, um comportamento condenado pela educação machista por ser "vulgar", "promíscuo", "indecente". Essas críticas se resumem a afirmar que o trabalho dessas artistas contribui para a exploração das mulheres a partir de sua excessiva sexualização, na medida em que a indústria cultural, predominantemente machista, lucra com essa exploração. A estratégia dessa forma de argumentação é fazer uma analogia, implícita ou explícita, entre o trabalho dessas artistas e o das prostitutas ou atrizes pornô. A prostituição e a indústria pornográfica exploram sexualmente as mulheres de forma análoga a que a indústria cultural explora aquelas artistas.

Creio que esse feminismo que condena a promoção da liberação sexual das mulheres é completamente infundado e que seus argumentos são falaciosos. Creio que esse tipo de feminismo, embora bem intencionado, provavelmente é uma forma de permanecer inconscientemente preso à educação machista por meio de uma racionalização.

Para começar, é falso que os principais beneficiados com a liberação sexual das mulheres seriam os homens. É claro que com mais mulheres dispostas a transar com homens, suas chances de transar com mais frequência aumentam. Mas as mais beneficiadas com essa liberação são, por três razões principais, as próprias mulheres. A primeira razão é que, se se tornarem sexualmente liberadas, elas conquistam um bem muito mais precioso que o sexo adicional que os homens conseguirão: a liberdade. A segunda razão é que as mulheres gozarão (sem trocadilhos) dos benefícios físicos e psicológicos de uma vida sexual ativa.[4] A terceira razão pode ser didaticamente explicada por meio de um experimento de pensamento. Imagine que todas as mulheres, ou a grande maioria delas se tornem sexualmente liberadas. Essa situação teria uma consequência importante: haveria uma normalização do comportamento sexual liberal da mulher, o que seria um grande benefício para as mulheres. Isso aconteceria porque os homens não poderiam mais dividir as mulheres entre aquelas que são "para se divertir" e aquelas que são "para casar", se não quiserem ficar sem casamento. No caso de quererem criar uma relação amorosa com mulheres, eles teriam de fazê-lo com mulheres sexualmente liberadas. Mulheres sexualmente liberadas seriam o novo normal.

Quanto à analogia entre exploração das artistas pela indústria cultural e a exploração sexual das mulheres pela prostituição e pela indústria pornográfica, trata-se de uma falsa analogia. Em primeiro lugar, o capitalismo explora qualquer coisa cuja venda gere lucro, independentemente de ideologia. Um exemplo bem didático são as empresas que vendem carne e, não obstante, também oferecem produtos veganos. Portanto, a exploração da sensualidade feminina na indústria cultural é apenas mais um caso de exploração dentro do sistema capitalista. Isso não justifica essa exploração, claro. O ponto é que não há nada de especial nesse caso de exploração. Mas trata-se exploração da sensualidade dessas mulheres, alguém poderia dizer. Sim, a indústria cultural lucra com isso. Mas estas artistas e as mulheres em geral também se beneficiam com esse uso da sensualidade, e, mais importante, não apenas financeiramente, justamente por estarem engajadas em uma causa anti-machista. Se a mensagem do seu trabalho for bem entendida e causar o efeito desejado, a saber, a liberação sexual das mulheres, então essas artistas e as mulheres em geral obtêm um ganho moral por meio do sistema capitalista. Isso não é um elogio do capitalismo. O ponto é que pode-se usar o sistema, a indústria cultural predominantemente machista, contra ele mesmo. Essa é a diferença entre o caso dessas artistas e o caso das atrizes pornô e das prostitutas: essas últimas não usam seu trabalho para promover uma causa anti-machista. Seja como for, não consigo ver nenhum erro moral em se usar a própria sensualidade para ganhar dinheiro. Isso acontece todo tempo no cinema, por exemplo. Personagens sensuais são interpretados por atores e atrizes sensuais, que ganham dinheiro para isso. O trabalho daquelas artistas engajadas está muito mais próximo de um trabalho dramatúrgico do que do trabalho de prostitutas e atrizes pornô.

Durante muito tempo, racistas e homofóbicos usaram as palavras para insultar negros ("crioulo") e homossexuais ("bicha", "veado"). Mas negros e homossexuais encontraram uma maneira engenhosa de afirmação da sua identidade social: eles se apropriaram dessas palavras, usando-as para referirem-se uns aos outros, mas com uma conotação positiva. Essas palavras, depois de ressignificadas, passaram a expressar o orgulho de ser aquilo que os insultadores viam como motivo de vergonha.[5] Creio que está mais do que na hora de as mulheres se apropriarem de palavras que são usadas para insultá-las, tal como "puta", e ressignificá-las para expressar o orgulho de serem sexualmente livres.

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[1] Para quem não sabe, a Marcha das Vadias foi um movimento que surgiu em 2011, no Canadá, em protesto contra o comentário de um policial canadense sobre casos de estupro na Universidade de Toronto. Ele disse que as mulheres evitariam esses estupros de não se vestissem como vadias (sluts, em inglês). Na marcha, as mulheres se vestem de forma ousada, com roupas íntimas ou com os peitos nus.

[2] Há um ditado machista muito difundido entre os homens: "Enquanto não encontro a mulher certa, eu me divirto com as erradas".

[3] Ver o artigo da Wikipédia Lesbian Feminism.

[4] Há vários artigos confiáveis que mostram isso. Eis aqui uma lista de exemplos.

[5] Ver este artigo da Wikipédia, para o exemplo da palavra "queer", do inglês.


quarta-feira, 18 de abril de 2018

A formação de cidadãos

Sócrates "corrompendo" a juventude.

Quando da ocasião da reforma curricular do ensino fundamental e médio há alguns anos, houve uma grande discussão sobre o número de disciplinas e sobre seus conteúdos, sobre o suposto excesso de disciplinas, sobre a suposta inutilidade de algumas delas e sobre a suposta vantagem formativa de outras. Não quero aqui entrar nessa discussão diretamente. Quero aqui defender a idéia de uma disciplina que não existe no currículo obrigatório do ensino formal brasileiro.

Antes de expor a idéia dessa disciplina, gostaria de falar um pouco sobre o fim que ela visaria ajudar a atingir. Sim, ajudar a atingir, porque sozinha ela seria incapaz de tal resultado. Ela visaria ajudar a formar cidadãos, pois esse, na minha opinião, é o objetivo principal do ensino fundamental e médio.[1] Ela ajudaria e não seria a única responsável porque cidadãos seriam o resultado da educação informal recebida em casa e da educação formal recebida nas instituições formais de ensino.

Mas o que é um cidadão? Cidadão é aquele que faz parte de um estado, usufruindo dos direitos reconhecidos legalmente e garantidos por esse estado e tendo que cumprir as obrigações legalmente determinadas nesse estado.[2] Um dos direitos que também é uma obrigação no estado brasileiro, é o voto popular. Todo cidadão brasileiro tem o direito e o dever de votar (coisa que não é um dever nos EUA, por exemplo). O voto popular é o meio para escolher todos os ocupantes dos cargos de dois poderes: o executivo e o legislativo. Essa votação ocorre nas três esferas: municipal, estadual e federal. Os cargos do poder judiciário, no Brasil, não são eleitos pelos cidadãos (outra coisa que também é diferente em alguns estados dos EUA[3]), mas são ocupados mediante concurso público, ou eleição interna, ou indicação através de um processo que inclui a aprovação por parte de membros dos outros dois poderes. Pois bem, notem que falei de muitas coisas a respeito do sistema político brasileiro: cidadão, direitos, deveres, voto, cargos, poderes, esferas, executivo, legislativo, judiciário, indicação, concurso público, etc. Tudo isso é de extrema importância para a organização política, social e econômica do nosso país, para se dizer o mínimo. Por isso, aqui é o lugar se de fazer a seguinte pergunta: não é de se estranhar, para se dizer o mínimo, que no currículo de formação do ensino formal do nosso país não haja nenhuma disciplina dedicada explicitamente a ensinar essas coisas? Pois bem, a disciplina que imagino seria dedicada a ensinar como funciona o nosso sistema político, administrativo e legal, entre outras coisas. Mas uma tal disciplina não deveria ensinar apenas sobre como nosso sistema político, administrativo e legal é, mas também sobre outros sistemas políticos, administrativos e legais possíveis diferentes do nosso. Além disso, essa disciplina deveria também ensinar sobre os seguintes assuntos: ética e política, lógica, epistemologia e análise estatística. Seguem-se as razões para a inclusão de todos esses tópicos.

Um cidadão deve ter habilidade para pensar sobre questões importantes para a sociedade, tais como questões éticas e políticas. As respostas a questões éticas são estruturantes da sociedade, seja porque as discussões sobre leis são baseadas largamente em discussões sobre questões éticas, seja porque os costumes dos cidadão são grandemente influenciados por suas crenças éticas. Por exemplo: anterior à discussão sobre se as escolas deveriam incluir nos seus currículos assuntos políticos e éticos (a discussão sobre a famigerada escola "sem partido"[4]) está a discussão sobre por que temos escolas, instituições de ensino formal, pois nem sempre elas existiram.[5] Mas há outras questões: qual é o melhor sistema econômico? Qual é o melhor sistema político? O aborto é justificado? A eutanásia é justificada? O suicídio é justificado? Por que a produção e consumo de álcool e cigarros são legais e a produção e consumo de outras drogas, como a maconha, é proibido? Há justificação para consumir produtos de origem animal? Casais do mesmo sexo têm direito ao casamento civil? O voto popular deve ser obrigatório? O estado deve ser laico? Qual deve ser a atitude de um tolerante frente a um intolerante? Homens e mulheres devem ter os mesmos direitos? Há maneiras factíveis de se organizar a sociedade sem o estado? A liberdade de expressão deve ser ilimitada? E essas são apenas algumas das questões ético-políticas importantes para se pensar nosso sistema sócio-político.

Pensar com rigor e critério sobre tais assuntos deveria ser uma habilidade exercitada por todo cidadão. Mas, infelizmente, isso ocorre com pouca frequência. Pensar com rigor e critérios é algo que envolve um certo número de capacidades: a capacidade de usar o português de forma competente, a capacidade de compreender os conceitos expressos pelas termos gerais do português, a capacidade de formular frases claras para expressar crenças e formular hipóteses, a capacidade de raciocinar, de extrair conclusões, de forma logicamente correta a partir de afirmação justificadas, a capacidade de justificar afirmações, etc. O que poderia ajudar os alunos a desenvolver essas capacidades são os rudimentos de duas disciplinas filosóficas: a lógica, o estudo dos raciocínios logicamente corretos e daqueles que parecem ser corretos sem o ser (as falácias) e a epistemologia, que estuda a natureza, possibilidade e estrutura da crença, justificação e conhecimento. Em conexão com os rudimentos de outras duas disciplinas filosóficas, a ética e a política, lógica e epistemologia podem ajudar os alunos a melhorar seu modo de pensar sobre questões éticas e políticas.

Embora a epistemologia seja a disciplina que estuda o conhecimento e a justificação, há um certo tipo de justificação muito usado em ciência que merece um tratamento especial numa disciplina escolar como essa que estou tentando explicar. Trata-se na justificação de afirmações empíricas por meio de dados estatísticos. A razão pela qual esse tipo de justificação merece um tratamento especial é o fato de que muitas afirmações biológicas, psicológicas, sociológicas e econômicas, dentre outras, são justificadas dessas forma. Mas não apenas isso: dados estatísticos são, de forma relativamente fácil, manipulados para justificar afirmações desses tipos para aqueles que não estão familiarizados com esse tipo de justificação.[6] Por sorte, no momento em que escrevo esse texto, há um provável exemplo bastante didático e relevante desse tipo de manipulação. Trata-se de uma pesquisa que concluiu, com base em dados estatísticos, que o ensino obrigatório de filosofia e sociologia nas escolas está causando o declínio das notas dos estudantes em matemática (ver aqui). Todavia, uma coisa é que o ensino de filosofia e sociologia e a queda das notas em matemática ocorram simultaneamente. Outra coisa é que o primeiro seja a causa do segundo. Os dados estatísticos por si só não justificam essa hipótese causal. Muitas outras coisas podem ser a causa desse declínio nas notas sem que o ensino de filosofia e sociologia tenha qualquer influência causal no fenômeno.[7] A propósito, uma pesquisa divulgada em 2016 conclui exatamente o contrário para uma amostragem mais ampla (veja aqui). Em geral, dados estatísticos por si só não justificam hipóteses empíricas. É necessários realizar uma análise desses dados para poder tentar justificar qualquer hipótese com base neles. Uma outra maneira de se realizar manipulação estatística consiste em formular uma hipótese negativa de maneira positiva e vice-versa. Por exemplo: suponha que um programa de tratamento de viciados em drogas consiga sucesso em 60% dos que procuram o programa. Uma maneira de apresentar isso de forma negativa é dizendo que 40% daqueles que procuram o programa o abandonam antes de atingir o seu objetivo. Por tudo isso, o ensino dos rudimentos de análise estatística seria muito útil para que os alunos aprendam a identificar essas manipulações.

Sendo assim, contra aqueles que defendem a diminuição de disciplinas escolares, acredito que uma disciplina como a descrita acima ajudaria a promover a cidadania e, como consequência, a qualidade das decisões que os cidadãos tomam sobre questões importantes para nossa sociedade. Esse é apenas o esboço de uma idéia que submeto à crítica. Alguns tópicos da disciplina que tenho em mente já são abordados em outras disciplinas. Mas creio que a concentração deles em uma disciplina seria muito mais eficiente, dadas as conexões que há entre eles.

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[1] Isso é matéria de uma controvérsia na qual, por razões de espaço e tempo, não quero entrar aqui. Meu ponto é que a escola não é destinada unicamente à formação de mão de obra, pois um cidadão não é apenas um trabalhador. Por isso, a disciplina de matemática, por exemplo, embora tenha uma importância diferente da filosofia, não é mais importante que essa última.

[2] Essa definição pode ser adequadamente modificada para incluir a possibilidade de uma organização anarquista da sociedade, ou seja, uma organização sem estado. Basta que se substitua "estado" por "grupo social organizado" ou algo semelhante.

[3] Na Georgia, por exemplo, juízes estaduais devem receber no mínimo 50% dos votos populares para serem nomeados. Veja aqui.

[4] Para as minhas razões pelas quais acredito que o projeto da escola sem partido não satisfaz sequer condições lógicas para ser justificado, ver minha postagem A contradição performativa da escola sem partido.

[5] Novamente nos EUA, os pais não são obrigados e enviar seus filhos para a escola, desde que providenciem um ensino particular para eles. Veja

[6] Para uma explicação de algumas dessas manipulações, veja aqui (texto em inglês).

[7] A Sociedade Brasileira de Sociologia Lançou uma nota criticando a metodologia da pesquisa. Veja aqui.


sábado, 22 de outubro de 2016

Uma paisagem filosófica sem torres de marfim: ou sobre como a filosofia é útil para o cidadão comum e, portanto, para a sociedade

O Pensador, de Rodin, é impressionante
porque expressa, por meio da tensão do corpo
do pensador, o esforço exigido para
se pensar com rigor e critério.

O que é ser útil? Algo é inútil ou útil sempre em relação a um objetivo. Algo pode ser inútil para um objetivo e útil para outro. E existem os mais variados tipos de objetivos, que podem ser combinar de muitos modos diferentes dentro de um sem número de possíveis planos: objetivos morais, cognitivos, estéticos, religiosos, instrumentais, biológicos, psicológicos, econômicos, educacionais, sociais, etc.

A dificuldade de se avaliar a utilidade da filosofia é diretamente proporcional à dificuldade de se determinar os objetivos pelos quais fazemos filosofia e, antes disso, o que é fazer filosofia. Eu não vou tentar responder à pergunta "O que é filosofia?" aqui. Esboço uma resposta na postagem O que é filosofia?, publicada em duas partes: parte 1; parte 2. O que defendo lá é que a filosofia é uma atividade de lidar com problemas relativos às nossas crenças e conceitos fundamentais.[1] Por meio de uma reflexão acerca do que sabemos ou julgamos saber (o que inclui os conhecimentos científicos), os filósofos procuram esclarecer o conteúdo de nossos conceitos e crenças fundamentais, motivados principalmente pela percepção de aparentes conflitos ou incompatibilidades entre tais crenças, ou por casos que parecem ser contra-exemplos delas. Tais conceitos e crenças fundamentais são as bases sobre as quais pensamos o mundo e orientamos nossas ações nele. O sucesso de tais ações depende do modo como a orientamos a partir do modo como pensamos o mundo e nossas ações nele. Em outras palavras, a qualidade do modo como pensamos o mundo e nossas ações nele determina o sucesso dessas ações. A importância ou utilidade da filosofia, entendida do modo como descrevi acima, advém primeiramente do fato de ela proporcionar, ou tentar proporcionar, uma clareza reflexiva sobre as virtudes e defeitos dessa base conceitual e doxástica sobre a qual pensamos e agimos sobre o mundo. Através da prática de filosofar, exercitamos a arte de pensar com mais rigor e critério sobre o que é muito básico para nossos próprios pensamentos e nossas ações, sejam pensamentos sobre o mundo natural, sobre coisas abstratas, pensamentos estéticos, morais, religiosos, sobre a sociedade a política, etc. A filosofia é importante não apenas porque é útil. Ela também é, para quem a pratica, uma atividade intrinsecamente prazeirosa.

Sustento que a importância ou utilidade da disciplina de filosofia nos currículos do ensino médio e mesmo fundamental é exatamente a mesma da própria filosofia, desde que ela seja lecionada como uma introdução ao filosofar. Os estudantes, nessa disciplina, deveriam ser introduzido a uma seleção de problemas filosóficos e de algumas das principais maneiras de se lidar com esses problemas. De preferência essa introdução deveria ser feita através de aulas socráticas, que consistem em uma reflexão coletiva guiada por perguntas que estimulem os estudantes a pensarem sobre seus conceitos e crença fundamentais. A história da filosofia pode ter um papel nessas aulas, desde que seja encarada como a história dos debates sobre os problemas filosóficos e as tentativas de se lidar com eles. Creio que aulas demasiadamente focadas no resultado do filosofar, as doutrinas ou teorias, negligenciando o seu processo, a reflexão sobre os problemas filosóficos, apresentam a filosofia de maneira enganadoramente estática e livresca, pois esconde seu aspecto prático. Filosofia (assim como a ciência) é uma atividade! Os resultados dessa atividade são parte dela, sem dúvida. Mas ensinar a filosofar é ensinar a lidar com problemas filosóficos, não é tornar o estudante erudito sobre os resultados dessa atividade cristalizados em livros.

Filosofar não é algo que apenas filósofos profissionais podem fazer. Os filósofos profissionais, é claro, são especialistas nessa atividade e o nível de profundidade e discussão entre eles é bem maior do que entre não-especialistas. Mas isso não é justificativa para trancar a filosofia em uma torre de marfim, longe do alcance do público não especializado. Crianças podem filosofar! E elas filosofam naturalmente, pois na tentativa de entender os conceitos que estão adquirindo, fazem perguntas que, mesmo sem termos respostas adequadas, as dissuadimos de perguntar.

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[1] Um conceito é tão fundamental quanto for a dependência que nossa forma de vida tiver de sua posse. Tente pensar como seria nossa forma de vida se não tivéssemos conceitos estéticos, por exemplo. Uma crença é tão fundamental quanto for a quantidade de crenças cuja verdade depende da verdade dessa crença. Pense em quantas crenças seriam falsas se fosse falsa a crença de que o somos livres, por exemplo.

terça-feira, 9 de junho de 2015

Quantidade e qualidade no ensino superior

Cena do filme Detachment
(Imagem sugerida por Edy)
É claro que uma variedade grande de opções de disciplinas e atividades (seminários, palestras, colóquios, mini-cursos, grupos de estudo, etc.) que um curso universitário oferece torna mais fácil flexibilizar os conteúdos na formação superior, tornando mais fácil o aluno moldar a sua formação conforme seus interesses particulares. Não vejo o que haja para discutir sobre isso. Mas eu tenho percebido em boa parte de docente e discentes (de filosofia no Brasil) uma forte tendência a privilegiar a quantidade de atividades e disciplinas, em detrimento da qualidade com que são realizadas, tanto pelos docentes como pelos discentes. Muitas vezes, o aumento da quantidade é buscada justamente em função da baixa qualidade de ao menos parte do que já está disponível. Isso vai criando uma mentalidade que vai na direção do seguinte pensamento: uma boa formação se dá quando leio muitos livros, vou a muitos eventos, sei várias línguas, participo de vários grupos de estudo, etc. Se o aluno fizer tudo isso com qualidade, então, sim, é claro ele vai ter uma ótima formação. Mas qual qualidade? É uma qualidade que não se adquire simplesmente se expondo a conteúdos, lendo, ouvindo, etc. Ela exige que o aluno faça algo, a saber: pensar criteriosamente sobre o que lê e ouve e exercitar esse pensamento escrevendo de modo também criterioso, com a ajuda de críticas que ele aprende a ouvir e usar para melhorar seu trabalho.

O privilégio da quantidade em detrimento da qualidade vai fomentando uma mentalidade enciclopedista, em que a erudição é confundida com inteligência. Mas, no limite, se um aluno estudar com qualidade, exercitando sua capacidade de pensar criteriosamente, mesmo que se forme com base em um currículo pouco variegado, mas mínimo, essa pouca quantidade não vai ser problema signiticativo. A internet está repleta de conteúdo de muito boa qualidade* (embora cheia de coisas de péssima qualidade tb)! São livros, artigos, palestras, video-aulas, entrevistas, cursos de línguas, etc. É claro que a possibilidade de interagir com as pessoas em palestras e outros eventos, fazendo perguntas, por exemplo, é uma diferencial dessas atividades presenciais. Mas, em primeiro lugar, qual a percentagem dos que fazem isso? Muitíssimo pequena! Em segundo lugar, poder interagir dessa forma é a cereja no bolo, não a atividade fim na formação. No limite, se o conteúdo já disponível na internet e o pouco oferecido por um currículo pequeno fossem bem aproveitados, não ter essa interação não seria um problema significativo na formação.

Essa não é uma nota contra a quantidade, mas contra o privilégio da quantidade em detrimento da qualidade. Meu ponto é: essa ânsia por quantidade não seria tão grande se a qualidade fosse melhor.

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* Criei um blog que dá mais substância a essa afirmação: Guia do Filósofo Aprendiz na Internet.