Título Original: La Mécanique du coeur
Autoria: Mathias
Malzieu
Editora: Contraponto
Nº. Páginas: 143
Tradução: Irene Daun e
Lorena & Nuno Daun e Lorena
Sinopse:
Edimburgo,
1874. Jack nasce no dia mais frio de sempre, com o coração… congelado. A Dr.ª
Madeleine, a parteira (segundo alguns, uma bruxa) que o trouxe ao mundo,
consegue salvar-lhe a vida instalando um mecanismo – um relógio de madeira – no
seu peito, para ajudar o coração a funcionar. A prótese resulta e Jack sobrevive,
mas com uma contrapartida: terá sempre de se proteger de sobrecargas emocionais.
Nada de raiva e, sobretudo, nada de amor. A Dr.ª Madeleine, que o adopta e zela
pelo seu mecanismo, avisa: «O amor é perigoso para o teu coraçãozinho.» Mas não
há mecânica capaz de fazer frente à vida e, um dia, uma pequena cantora de rua
arrebata o coração – o mecânico e o verdadeiro – de Jack. Disposto a tudo para
a conquistar, Jack parte numa peregrinação sentimental até à Andaluzia, a terra
natal da sua amada, onde encontrará as delícias do amor... e a sua crueldade.
Opinião:
Existe um sentimento
sombrio, inebriante e absolutamente único, que resiste a tudo para lá do tempo
e do espaço, ao qual nem o mais frágil, o mais cuidado e protegido dos corações
consegue sobreviver. Um sentimento que se entranha, que cria raízes no mais fundo
do nosso ser. Um sentimento impossível de extinguir, de acalmar, de combater.
Um sentimento que, uma vez ganho, para sempre ficará connosco, nos nossos
pequenos ovos de recordações, nos nossos tiquetaques
de existência, nos nossos... corações embelezados pelos mais ricos, os mais efémeros
e invulgares relógios de cuco.
A Mecânica do Coração é bem capaz de ser o «conto» mais brilhante e, ao mesmo tempo, inquietante
que tive o prazer de ler. Sobre um amor que fugiu por entre os dedos, sobre uma
familiaridade escondida por trás de uma mentira protegedora, sobre amizades
peculiares que subsistiram ao longo do tempo, e sobre uma demanda, uma viagem e
uma aventura, em busca do bem mais precioso e mais bem preservado do mundo,
esta é uma narrativa singular que, mais cedo ou mais tarde, mais ao início ou
mais a caminho do fim, atingirá o leitor com uma força e um estrondo tão
espectacular, tão gigantesco que nada o poderá alguma vez preparar para o misto
de sentimentos e reflexões que daí advirão.
Mathias Malzieu possui
uma escrita muito própria, com um tom único e encantatório, até algo melancólico.
Nas suas palavras estão presentes as mais variadas emoções e, com o avançar da trama,
todos esses vislumbres de sensações são transmitidos ao leitor, ao ponto de
este se deixar embalar por completo na melodia narrativa que esta história com
laivos de conto frui.
Um pouco confuso e
estranho ao início, até ligeiramente apressado, este é um enredo que, com o
fluir das páginas, vai cativando e emocionando. E embora as personagens que
povoam esta fábula sem igual não sejam desenvolvidas ao seu máximo,
compreendidas em toda a sua magnitude, muito é mostrado e ainda mais é deixado
para ponderação, para posterior reflexão por parte do leitor.
Little Jack, por sua
vez, é o instrumento que não cessa de tocar, o coração que insiste em pulsar, a
lágrima rebelde que corre livremente por um rosto inexpressivo. Sendo a figura deste romance, este Homem Sem Efeitos Especiais é aquele que
persegue um amor impossível com quem somente trocou uns tantos versos e um
curto olhar. Mas esse amor, essa impossibilidade de alcançar, esse sonho que não
desaparece, é o alento que Jack secretamente guarda no pensamento e pelo qual
será capaz de lutar, de procurar até ao fim do universo.
Também Miss Acácia e Madeleine são
intervenientes de peso, cada uma à sua maneira. Enquanto a primeira é os olhos
que não querem ver, a realidade que prefere distorcer mas o afecto que guarda
para aquele que verdadeiramente ama, a segunda é a mãe que nunca foi mas sempre
quis ser, a feiticeira que cura, a mulher que ajuda sem nada pedir em troca, a
não ser a recusa perante a muito provável fatalidade de um coração precário.
Os cenários são outro
aspecto importante e delicioso. Desde a transmutável cidade de Edimburgo que
viu nasceu, no dia mais frio de sempre, o rapaz que, no lugar de um coração
humano, exibe um relógio de madeira, à localidade que esconde um circo Extraordinarium, enriquecido por uma série
de atracções femininas e assustadoras, todos os locais são fruto de pequenos
pormenores importantes mas estes dois, em particular, são o palco dos melhores
e dos piores momentos na vida de Jack.
Ainda que A Mecânica do Coração seja uma história
fabulada, as mensagens que transmite, que conserva, são impagáveis. Recordo-me
de pensar, ao ler este livro, num ditado muito popular que diz: «Quem espera,
sempre alcança.», e no caso de Jack, a esperança e a vontade de conseguir algo
que deseja tão ardentemente conferiu-lhe toda uma vida de alegrias e desilusões,
mas todos eles sentimentos, situações que nunca esquecerá. Acima de tudo, este é
um livro que ensina a não desistir do amor, dos sonhos. Ensina a não matar a esperança,
mesmo quando o que nos torna únicos e especiais e diferentes é motivo de
chacota e receio por parte de outros. Essencialmente, trata-se de uma alegoria
que, de uma forma bela e poética, mostra que, por vezes, o facto de tomarmos
riscos, de não olharmos para trás, de, simplesmente, nos atirarmos precipício fora,
pode trazer uma imensidão de benesses e de desejos concretizados. Ou seja,
diz-nos para nunca desistirmos de sonhar.
Quanto a mim, está
bastante claro que esta foi uma leitura que me agradou sobremaneira, e ainda
que inicialmente me tenha sentido algo perdida num enorme lago de descrições
temporais breves e de uma prosa etérea, no final, todo o desespero e toda a não
compreensão iniciais compensou. Penso que, principalmente, este é um romance
que exige uma mente aberta e uma atenção muito particular por parte do leitor, além
de um coração forte.
Uma excelente aposta
por parte da Contraponto que, com publicações destas, marca totalmente a
diferença. Interessante, belo e singular, aconselho vivamente.