quarta-feira, 14 de outubro de 2009

O Método de Marx e a Crítica ao Método da Economia Política - Fabio Maia Sobral

Extratos da tese de doutorado de Fabio Maia Sobral. Esta se encontra diponível em: http://libdigi.unicamp.br/document/?code=vtls000447383 (grifo meu)

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“Nos remetemos a esta passagem, tão freqüentemente citada na literatura marxista, porque também nos ilustra acerca do plano estrutural de Marx de 1857; porque já revela que esse plano (como ocorreria também com O Capital) ‘segue o caminho das determinações abstratas ao concreto’, quer dizer que, de modo algum ele pode ser interpretado no sentido de uma subdivisão ‘desde o ponto de vista material’. Mas isto não é tudo. O plano original foi evidentemente concebido de tal maneira que nele tem lugar repetidamente o processo da síntese, do ‘elevar-se do abstrato ao concreto” (ROSDOLSKY: 1989, 54).
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Talvez abstrato e concreto representem aqui os equivalentes categoriais de abstrato e concreto para Hegel. Neste, abstrato é o que não obedece ao plano histórico, ao desenrolar do desenvolvimento histórico, algo que tomou um rumo infértil, afastando-se da possibilidade de alcançar o “sistema da vida ética”. Concreto traduz o passo adequado e necessário a ser dado pela humanidade naquele momento específico, como o estágio possível de uma época produzir para si mesma.

Para Marx abstrato e concreto apresentam a semelhança de que possuem a natureza de algo a ser eliminado (o abstrato) e algo a ser preservado ou alcançado (o concreto). O abstrato não é irreal, nem em Hegel, nem em Marx. O abstrato para Marx é, na sociedade capitalista, a realidade dominante: o valor. Elevar-se do abstrato ao concreto significaria superar o método da economia política, superar a sociedade mesma onde a economia e o valor alcançaram a posição dominante, e atingir o concreto de uma nova ciência crítica, e de uma nova sociedade onde o abstrato terá sido superado.

Explicaríamos assim a síntese: superação de uma realidade dominada pelo abstrato e construção de uma sociedade que seja a manutenção dos elementos concretos, nos arriscaríamos a dizer positivos. Tal perspectiva está configurada nos dois planos da obra de Marx, é o que admite Rosdolsky. Aí está um dos elementos que une os dois períodos: o objetivo é elevar-se do abstrato ao concreto, não somente na exposição; não se trata somente de uma diferença expositiva, algo como um caráter estilístico. Estilo literário e o objetivo estão unidos na práxis política. Marx não desprezaria este ponto, ao contrário, a sua quase obsessiva busca de um estilo adequado é revelador do que está em jogo: o estilo deve obedecer ao momento histórico.

Onde está o abstrato na economia? Ele se apresenta como “fatores da produção” (ROSDOLSKY: 1989, 56), como capital, terra e trabalho, que se definiriam como elementos indispensáveis de qualquer forma de produção, independentemente do momento histórico. Mas esta é apenas a aparência do conteúdo real de uma abstração dominante: o domínio do capital sobre os meios de produção, o que produziria “... ‘a mistificação do modo capitalista de produção, a coisificação das relações sociais’” (ROSDOLSKY: 1989, 56).

O abstrato é o objeto da crítica, é o alvo do ataque decidido da classe operária, por representar a própria condição da formação social capitalista. O abstrato não representa um elemento simples que está na base de uma investigação, com se caminhássemos do abstrato ao concreto de forma natural e tranqüila; na verdade, ele representa a própria estrutura da condição social capitalista, como contínua abstração por meio do mercado da posse dos meios de produção por uma parcela da sociedade. Ao abstrato cabe o combate, a derrocada. Os pressupostos desta sociedade capitalista são abstratos. Qualquer sociedade que busque substituí-la deve eliminar a abstração, sob pena de nada alterar na formação social. Utópico, no sentido combatido por Marx, é a incompreensão da abstração.

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Ressaltamos que a resistência subjetiva envolve a necessidade de um projeto, de uma análise que permita orientar a ação. O comunismo só pode ser fruto da ação coletiva, algo que fez Marx criticar a Hegel nos Manuscritos de Paris. Hegel compreenderia a transformação como parte de subjetividade do intelectual que concentra a força teórica do projeto. Para Marx o conceito deve unir-se à prática, a elaboração do intelectual inexiste como concretude se não estiver unido à força de luta das massas. Eis o terreno fértil em que utopia e cientificidade revolucionária precisam distinguir-se. A proposição da análise científica de transformação da realidade não pode ser utópica, mas concreta; o utópico encontra o abstrato, a alteração não radical, a manutenção dos “fundamentos” anteriores, a incapacidade de propor novos “princípios”.

Marx precisava produzir uma nova forma de investigação para possibilitar a vitória da luta da classe operária contra o capital. Uma nova formação social não surgiria sem a intervenção consciente da teoria; é esta a conclusão inusitada de Marx. Formas sociais anteriores surgiram e desapareceram sem que fossem dirigidas pela orientação da ação humana consciente. A construção comunista deveria inaugurar uma luta pensada e desenvolvida por um conteúdo programático claro.

A Revolução Francesa foi a iniciativa coletiva que mais se aproximara da busca de um programa revolucionário, porém, ela mesma é a luta por reconhecer o domínio de categorias já dominantes na esfera da produção. A economia já é o campo determinante da vida social e luta contra o anacronismo das instituições de transição com o feudalismo. Esta revolução já lidava com categorias que considerava “naturais e universais”, restando a tarefa de instaurar a “racionalidade” científica diante da obscuridade supersticiosa do Antigo Regime. É desta visão que nasce a metodologia da economia política: da idéia de “natureza” social, estágio que rompe como domínio da natureza em sua forma primitiva. Por isso afirma Marx que:

“Parece justo começar pelo real e o concreto, pelo suposto efetivo; assim, por exemplo, pela população que é a base e o sujeito do ato social da produção em seu conjunto. No entanto, se examinamos com maior atenção, isto se revela [[como]] falso. A população é uma abstração se deixo de lado, por exemplo, as classes de que se compõe. Estas classes são, por sua vez, uma palavra vazia se desconheço os elementos sobre os quais repousam, por exemplo, o trabalho assalariado, o capital, etc. Estes últimos supõem a troca, a divisão do trabalho, os preços, etc. O capital, por exemplo, não é nada sem trabalho assalariado, sem valor, dinheiro, preços, etc. Se começara, pois, pela população teria uma representação caótica do conjunto e, precisando cada vez mais, chegaria analiticamente a conceitos cada vez mais simples: do concreto representado chegaria abstrações cada vez mais sutis até alcançar as determinações mais simples” (MARX: 1989, 21).

A análise da economia já começa com categorias estabelecidas e empreende uma escavação em busca dos princípios. Marx relata este tema para criticar os socialistas que continuavam a trabalhar com categorias gerais vazias, sem ter empreendido nem a busca dos fundamentos. A economia política havia feito esta busca, e ela mesma tinha superado as categorias gerais vazias, este “... caminho é o que seguiu historicamente a economia política nascente” (MARX: 1989,21). Porém, este caminho foi uma imposição de uma sociedade nascente, que ainda não divisara seu conjunto e que tateava em busca de sua afirmação dominante. O caminho teve que seguir a partir das categorias anteriores para somente depois encontrar seus próprios fundamentos. Somente o pleno desenvolvimento da sociedade capitalista permitiu encontrar os pilares que sustentavam a forma social.

Ao chegar a estas determinações simples de sustentação da sociedade capitalista é que foi possível retornar. Assim:

“Chegado a este ponto haveria que reempreender a viagem de retorno, até dar de novo com a população, mas desta vez não teria uma representação caótica de um conjunto, mas uma rica totalidade com múltiplas determinações e relações” (MARX: 1989, 21).

A compreensão dos fundamentos é que permite analisar as manifestações gerais da sociedade. As categorias mais simples permitem compreender o mecanismo de funcionamento da estrutura social. Somente a identificação dos princípios simples permite formar uma visão da totalidade; não mais um todo vazio, que não é capaz de explicar a sociedade, mas um todo rico pelo entendimento da unidade em meio às manifestações diversas e contraditórias. Esta é a chave do presente e que permite abrir as portas do passado, mas não somente o passado e o presente, mas entender a possibilidade do futuro.

Da análise de um todo vazio a economia política caminhou para as determinações simples do funcionamento do sistema. Então, diz Marx:

“Uma vez que esses momentos foram mais ou menos fixados e abstraídos, começaram [[a surgir]] os sistemas econômicos que se elevaram do simples – trabalho, divisão do trabalho, necessidade, valor de troca – até o Estado, a troca entre as nações e o mercado mundial. Este último é, manifestamente, o método científico correto. O concreto é concreto porque é a síntese de múltiplas determinações, portanto, unidade do diverso. Aparece no pensamento como processo de síntese, como resultado, não como ponto de partida, e, em conseqüência, o ponto de partida também da intuição e da representação” (MARX: 1989, 21).

O concreto é o resultado da capacidade de determinar, de estabelecer os limites entre as categorias, de descobrir os fundamentos que dirigem a organização social. O concreto é possibilitado pelos resultados alcançados historicamente pela busca da economia política. Mas não só, foi preciso ir além dela como método científico; tornou-se necessário compreender os limites, as determinações negativas do capitalismo, criando a base sob a qual ocorre a ciência da crítica à economia política. Estar no campo programático do capitalismo não permite visualizar as categorias desta sociedade como estruturas determinadas (limitadas) no tempo, decorrentes da dissolução de formações anteriores, e representando, elas mesmas, uma transição para formas seguintes.

A síntese das múltiplas categorias, das múltiplas determinações, não é o ponto de partida, mas o resultado de um enorme esforço de compreensão e investigação. Apenas com o desenvolvimento do próprio sistema dá-se a oportunidade de compreendê-lo. A sua compreensão definitiva surge, paradoxalmente, no período em que se torna possível a sua derrubada, a sua substituição. Marx busca ocupar o espaço da formulação para a substituição do capitalismo.

Porém, poderíamos nos perguntar se um novo sistema não teria que tatear na incompreensão de um todo vazio, até que descobrisse os seus fundamentos já em seu princípio de ocaso. Mas, esta é uma das diferenciações de um novo sistema que surgisse da destruição do capitalismo: sua capacidade de pensar a si mesmo, não sendo mais dirigido por mecanismos automáticos e estranhos às decisões humanas. Marx diferencia-se das propostas e do método de Hegel neste ponto. Diz ele:

“... as determinações abstratas conduzem à reprodução do concreto pelo caminho do pensamento. Eis aqui porque Hegel caiu na ilusão deconceber o real como resultado do pensamento que, partindo de si mesmo, se concentra em si mesmo, se aprofunda em si mesmo e se move por si mesmo, ao mesmo tempo que o método que consiste em elevar-se do abstrato ao concreto é para o pensamento somente a maneira de apropriar-se do concreto, de reproduzi-lo como um concreto espiritual. Mas este não é de nenhum modo o processo de formação do concreto mesmo” (MARX: 1989, 21-2).

Marx diverge de Hegel na capacidade de produzir o concreto como resultado do pensamento. Este resultado não é determinado apenas pelo pensamento, ele é a solução das próprias condições sociais, do processo de dissolução das formas vigentes, da produção de uma crise dos princípios de sustentação do mecanismo social. Marx se dirige a Hegel justamente por este ter concebido um “sistema ético” que aproveitava as categorias vigentes para reformá-las. Hegel propõe a racionalidade do sistema capitalista, um racional alcançado por medidas estatais pensadas, por elaborações intelectuais voltadas para a estrutura jurídica. Marx percebe que este é o caminho da manutenção do sistema; o racional não pode, independentemente das condições sociais, submeter os fundamentos do capital. Este produz uma nova racionalidade, um racional do mercado, a racionalidade capitalista. Eis a razão da falência do projeto hegeliano.

Marx busca construir um novo modo de produção, uma nova racionalidade, decorrente da crise dos próprios mecanismos de funcionamento do capitalismo; o conteúdo programático marxiano já não utiliza as categorias específicas deste sistema em derrocada, mas propõe a sua eliminação por completo, a erradicação de seus fundamentos. Esta é um processo de continuidade das crises do capital. Somente é possível elaborar um programa oriundo das determinações necessárias para substituir o sistema. Daí Marx afirma que:

“Portanto, à consciência, para qual o pensamento conceptivo é o homem real e, por conseguinte, o mundo pensado é como tal a única realidade – e a consciência filosófica está determinada deste modo –, o movimento das categorias lhe aparece como o verdadeiro ato de produção... cujo resultado é o mundo” (MARX: 1989, 22).

É interessante notar que Marx não despreza o pensamento que produz conceitos sobre a realidade, mas reconhece o perigo dos conceitos que são imaginados independentemente da realidade. Pensar soluções para o mundo sem que correspondam às categorias da realidade produz a manutenção do sistema. Romper com o sistema do capital exige compreensão da sua estrutura de funcionamento. Aqui é estabelecida a ligação com o tópico da produção, onde Marx discutiu o geral, que pertence a todas as épocas e que deve ser mantido em uma sociedade futura, e o específico, que deve ser eliminado por ser a base distintiva do capitalismo. O “movimento das categorias” não pode desconhecer esta contradição entre geral e específico; aqui o pensamento pode perder o sentido do que é real e manter-se na esfera que ele queria substituir. Por isso, segue na “Introdução” com a discussão das categorias específicas e sua existência histórica. Diz ele a respeito destas categorias:

“Mas estas categorias simples não têm uma existência histórica ou natural autônoma, anterior às categorias concretas? Ça dépend... O dinheiro pode existir e existiu historicamente antes que existisse o capital, antes que existissem os bancos, antes que existisse o trabalho assalariado. Desde esse ponto de vista, pode-se afirmar que a categoria mais simples pode expressar as relações dominantes de um todo não desenvolvido ou as relações subordinadas de um todo mais desenvolvido, relações que já existiam historicamente antes que o todo se desenvolvesse no sentido expresso por uma categoria mais concreta. Somente então o caminho do pensamento abstrato, que se eleva do simples ao complexo, poderia corresponder ao processo histórico real”
(MARX: 1989, 23).

A argumentação se concentra na concepção de “todo”. Seu foco é a identificação das formas de produção distintas. As categorias de uma forma podem existir em outra sem estarem totalmente desenvolvidas. A definição de total corresponde à dominante. Compreende-se uma fase da história humana por meio das categorias dominantes. Mas, algumas das categorias podem sobreviver ao declínio de sua forma dominante, ou categorias não desenvolvidas podem anunciar o futuro de uma forma por surgir.

Mas, na passagem acima Marx se refere ao pensamento abstrato e à sua correspondência ao processo histórico real. Isto significa que a análise das categorias abstratas, o exame em separado de uma categoria específica do capitalismo, serve para permitir que o pensamento deixe a sua dimensão meramente especulativa e produza uma compreensão de um período histórico, ou seja, identificar como certas categorias estiverampresentes em outras formações sociais, mas não eram centrais, ou estavam em situação subordinada ao todo, à unidade, daquela forma.

O pensamento abstrato deve estar voltado à identificação do processo histórico, à tentativa de resolução de seus dilemas, à busca pelas causas do funcionamento de uma sociedade específica. Uma categoria é abstrata porque está em situação dominante, porque se separou de outras e constitui um mecanismo de sustentação fundamental do sistema. O abstrato não é produzido pelo pensamento, ele é a manifestação real de uma essência social, que pode ou não ser captada pelo pensamento. Este captar do intelecto permite enxergar as modificações a serem adotadas a fim de eliminar a abstração dominante.

Marx identifica o aspecto da abstração dominante afirmando que:

“Assim, as abstrações mais gerais surgem unicamente ali onde existe o desenvolvimento concreto mais rico, onde um elemento aparece como o comum a muitos, como comum a todos os elementos. Então, deixa de poder ser pensado somente sob uma forma particular” (MARX: 1989, 25).

O caráter comum de uma categoria implica a sua dominação sobre os elementos particulares e em contradição interna no sistema. Algo unifica este mecanismo, que é o caráter comum de uma categoria abstrata. Então, o pensamento percebe que a abstração invade todas as esferas, dirige todas as ações do sistema; o que põe como tarefa central para a revolução a identificação e eliminação dos fundamentos abstratos, das categorias abstratas. A revolução pode tornar-se vitoriosa somente por meio da supressão do mais abstrato, por isso, do dominante. Diz Marx:

“... as categorias mais abstratas, apesar de sua validade – precisamente devida à sua natureza abstrata – para todas as épocas, são não obstante, no que há de determinado nesta abstração, o produto de condições históricas e possuem plena validez somente para estas condições e dentro de seus limites” (MARX: 1989, 26).

O abstrato é uma determinação específica de um sistema. Mesmo que sua história atravesse vários modos de produção, ele só atinge a condição dominante em um estágio particular. A categoria abstrata pode e deve ser eliminada para que se alcance uma forma superior de sociedade. Não é possível aceitar propostas que mantenham intactas as categorias abstratas dominantes. Mais uma vez Marx anuncia o final do sistema capitalista por uma conclusão de seu trabalho de investigação. Posteriormente, ele irá explicar o trabalho abstrato como base para o valor, ou seja, explicará estes conceitos para justificar sua característica de categorias essenciais para a existência do modo de produção capitalista.

Para Marx estão definidas as tarefas: compreender a sociedade dominada pelo capital, compreender as sociedades anteriores ao capitalismo e sua relação com este e, por fim, apresentar as possibilidades para a construção da sociedade comunista. Diz Marx:“O capital é a potência econômica, que domina o todo, da sociedade burguesa. Deve constituir o ponto de partida e o ponto de chegada...” (MARX: 1989, 28). O capital é a partida e a chegada das categorias. Cabe eliminá-las e construir uma nova sociedade, fazendo com que seja rompida a abstração como forma social dominante.


Bibliografia
MARX, Karl. Elementos Fundamentales Para la Crítica de la Economía Política (Grundrisse) 1857~1858. 16. ed. México: Siglo Veintiuno, 1989. (Biblioteca del Pensamiento Socialista). Vol. I.

ROSDOLSKY, Roman. Génesis y Estructura de El Capital de Marx (estudios sobre los Grundrisse). 6. ed. México: Siglo Veintiuno, 1989.

NEGRI, Antonio. Marx Más Allá de Marx: cuaderno de trabajo sobre los Grundrisse. Madri: Akal, 2001.