quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

O Partido Mundial - Nahuel Moreno

Retirado da revista Marxismo Vivo, edição especial - Disponível em http://www.archivoleontrotsky.org/phl/www/arquivo/MV14pte/mvep-6pm.pdf

Este texto é parte de uma longa entrevista de Moreno, publicada em livro com o título "Conversando com Moreno". Esse trabalho é considerado seu testamento político. O fato de que tenha dedicado todo um capítulo à explicação da necessidade da Internacional mostra a importância que ele dava à construção de uma organização revolucionaria mundial.



Ao longo de sua vida política você dedicou esforços enormes à construção de uma organização revolucionaria mundial...

Eu diria que a maior parte da minha militância política esteve e continua estando voltada ao partido mundial, à construção da Quarta Internacional.
O partido mundial é a prioridade número um do movimento operário, porque existem uma economia e uma política mundiais, as quais estão subordinadas as realidades nacionais. O imperialismo aplica uma só política, através do FMI, a todos os países, adiantados ou atrasados, que tenham dividas com os bancos internacionais. E isso que dizemos em relação à divida externa, é valido em todos os terrenos da política e da economia.
A existência de uma política mundial é característica do capitalismo e, uma vez que se trata de derrubá-lo, necessitamos de um instrumento adequado a essa realidade e a essa tarefa. O movimento de massas mundial requer ferramentas distintas para cada um dos problemas que a luta de classes coloca. Para lutar no terreno econômico, a classe operaria criou os sindicatos. Não é casual que as primeiras organizações sindicais tenham nascido na Inglaterra, o berço da revolução industrial.


Mas da necessidade de elaborar uma política mundial não decorre necessariamente a necessidade de uma organização mundial.

Quero demonstrar justamente o contrario. Continuemos com o exemplo anterior. Os operários necessitam dos sindicatos para lutar por seus salários, por estabilidade no trabalho, etc., contra seus exploradores nacionais. Necessitam de partidos políticos para defender seus interesses de classe. No terreno internacional, necessitam de um movimento sindical unido. Desgraçadamente, essas organizações se perderam, devido à divisão do movimento operário internacional em tendencias pró-ocidentais e pró-soviéticas. A economia mundial exige o desenvolvimento de grandes organizações sindicais internacionais. Sua ausência significa um grande atraso para o movimento de massas. Por que foi derrotada a grande greve do carvão na Inglaterra? Devido justamente à falta de solidariedade internacional. uma grande organização sindical mundial revolucionaria teria criado um movimento de solidariedade com os mineiros ingleses que teria sido irrefreável.

Pelo que você acaba de dizer, parece que essas organizações sindicais internacionais já existiram alguma vez.

Efetivamente, e tiveram muita força. Existiu uma internacional sindical amarela e, paralelamente, a Internacional Sindical Vermelha(1) criada pela Terceira Internacional, que foi muito forte, muito bem organizada.
Imagine uma organização desse tipo, forte e centralizada, que resolvesse, por exemplo, que não sairia um único avião ou navio para o Chile, nem se descarregaria um só cargueiro chileno em portos estrangeiros, até que Pinochet fosse derrubado. Quanto tempo duraria essa ditadura? Muito pouco, parece-me. O mesmo se pode dizer em relação à greve do carvão: se existisse uma organização capaz de impedir o envio de petróleo e carvão à Inglaterra, a greve teria triunfado rapidamente.

Eu tive a oportunidade de conversar com dirigentes do Partido Nacionalista Galego. Eles concordam com a necessidade de fazer analises internacionais e que a solidariedade é imprescindível, mas afirmam que os partidos só podem ser nacionais, devido ao peso das especificidades nacionais.

E quem organiza a solidariedade, ou elabora a análise internacional? Cada tarefa requer uma organização específica, não creio na espontaneidade nesse terreno. Que organização obrigou o movimento operário mundial a ser solidário com os mineiros ingleses? Nenhuma e por isto não houve solidariedade.

O que você diz da Espanha e das Brigadas Internacionais, que foram combater com a República contra Franco?

Justamente, nessa época existia a Terceira Internacional, que impulsionou a solidariedade com a República e a formação das Brigadas. Também os trotskistas e os anarquistas impulsionaram esse processo. Do contrario, não
teriam existido Brigadas Internacionais na Espanha.

A falta de solidariedade com a Inglaterra não se deveu mais ao baixo nível de consciência do movimento operário internacional do que à sua falta de organização?

Os dois fatores estão intimamente ligados. Se tomarmos as categorias de Hegel(2) espirito objetivo e espirito subjetivo, poderemos dizer que o espirito subjetivo, o nível de consciência, tem que se objetivar. Como? Em uma organização. São duas faces de um mesmo problema. Se o operário é consciente de que o exploram, cria uma organização para lutar contra a exploração. É a transformação do espirito subjetivo em objetivo: do pensamento em ação e depois em organização.

Voltando um pouco à posição dos nacionalistas galegos e não são os únicos que pensam assim —, eles afirmam que o peso das especificidades nacionais obriga os partidos nacionais a manter uma independência de critério politico, e a não se submeter a uma organização internacional.

Não nego a importância das especificidades nacionais, nem que os partidos devam conservar sua independência de critério. Agora, trata-se de determinar o que é decisivo. Se o mundo é uma soma de especificidades nacionais, em que a Argentina é diametralmente oposta ao Uruguai, o Uruguai ao Brasil, este ao México e assim sucessivamente, quer dizer, se não existem características comuns e os países não formam parte de uma totalidade mundial, então a internacional não pode nem deve existir.
Qual é, entretanto, a realidade? Exagerando um pouco, podemos comparar o mundo e os países com um país e seus estados. Quando analisamos a realidade argentina a consideramos como uma totalidade, não como uma soma de situações provinciais. A Argentina é dominada por um Estado nacional, não por Estados provinciais.
A situação mundial não é exatamente assim, já que os Estados nacionais existem e têm profundas diferenças. Mas a característica central da dominação capitalista é a existência do sistema mundial. Tanto é assim que se fala de ciclos econômicos e políticos mundiais. Por exemplo, quando o capitalismo teve necessidade de uma grande produção de açúcar, os países do Caribe e também o Nordeste do Brasil se voltaram à produção de açúcar; apareceram grandes engenhos açucareiros. A revolução européia de 1848 foi um processo único que abarcou todo o continente. Outro exemplo: antes do capitalismo não houve guerras mundiais.
Para os marxistas, o fato científico primeiro e decisivo é a existência do sistema econômico, politico e social capitalista mundial, ao qual estão subordinadas as especificidades nacionais. Dito de outra maneira, o nacional é uma expressão específica do sistema mundial.
O internacionalismo proletário surgiu em resposta a um problema objetivo, não é algo inventado por Marx em sua escrivaninha. O Manifesto Comunista, publicado em 1848, é um documento de operários emigrantes, as ligas operarias européias, que se encontravam imersas em um processo de ebulição revolucionaria. Eram alemães, franceses, belgas, ingleses, italianos...
Em 1863 surge a Primeira Internacional, fundada por dirigentes sindicais de distintos países, que convidaram Marx a colaborar. Na Inglaterra havia muitos operários imigrantes, entre eles os alemães, que recebiam salários muito baixos. Esse fato criava problemas para os operários ingleses, que ficavam sem trabalho devido a essa mão-de-obra barata. Na Franca existiam problemas similares. Os dirigentes operários desses países se reuniram, descobriram que tinham problemas comuns, que requeriam uma organização internacional. Ou seja, o problema na Inglaterra não se resolveria com o enfrentamento entre operários ingleses e alemães, e sim com a união de ambos e de todos os proletários do mundo contra o inimigo de classe comum.
Para nos, o maior crime, a maior traição da burocracia stalinista foi a dissolução da Terceira Internacional, exigida por seus aliados Churchill e Roosevelt. Isso é o que explica que o imperialismo não tenha sido derrotado.
A Segunda Internacional existe, mas não é uma verdadeira internacional, e sim uma federação de partidos social-democratas, defensores do sistema capitalista. A Terceira Internacional e a Internacional Sindical Vermelha foram oficialmente dissolvidas pelo stalinismo. Com isso, a necessidade da internacional se apagou da consciência das massas.
Hoje em dia, nós, os internacionalistas, somos uma ínfima minoria no movimento de massas mundial. Somos os únicos que reivindicamos a necessidade indispensável de contar com uma organização sindical e uma organização política internacionais, um partido mundial centralizado.
Há setenta ou oitenta anos todos os operários de vanguarda reivindicavam a internacional. Na Primeira, havia os anarquistas, os marxistas, os proudhonistas(3 os "trade-unionistas" ingleses. Quando a Segunda foi fundada, todas as correntes do movimento operário menos os anarquistas participaram dela. Isso não significava que os anarquistas houvessem deixado de ser internacionalistas, simplesmente continuaram na Primeira.
O stalinismo quebrou essa tradição, ao mesmo tempo em que elaborava a teoria do socialismo em um só país(4). Segundo esse ponto de vista, a URSS derrotaria o imperialismo na competição econômica; portanto, não era necessário um partido mundial para elaborar o programa e as táticas do movimento operário. Kruschev dizia que em vinte anos o poderio da URSS superaria o dos Estados Unidos. Essa ideologia provocou um salto para traz na consciência do movimento operário, que retrocedeu ao período anterior à revolução de 1848 e à aparição do Manifesto Comunista.
Em pedagogia denomina-se analfabeto funcional o individuo que aprendeu a 1er e a escrever na escola primária e em seguida perdeu esse conhecimento por não o exercitar. Podemos dizer que o movimento operário mundial sofre de analfabetismo funcional no terreno do internacionalismo proletário devido ao stalinismo. O partido mundial, a única ferramenta política que pode derrotar o imperialismo, aparece diante da vanguarda operaria como uma idéia utópica, uma expressão de desejos.
A principal base de sustentação da teoria do socialismo em um só país revelou-se falsa, pois os Estados operários não puderam alcançar o imperialismo no terreno do desenvolvimento tecnológico e da produção. Por essa via, entre outras, confirma-se uma vez mais que a ferramenta indispensável para liquidar o capitalismo não é a competição tecnológica e econômica dos Estados operários com o imperialismo, e sim o partido mundial, a internacional, que enfrente politicamente o imperialismo, mobilizando os trabalhadores de todo o mundo. Melhor dizendo, são necessárias duas internacionais intimamente ligadas: uma sindical e outra política.
Seria necessário acrescentar que esses fatos não negam as especificidades nacionais. Somos contrários a intervenções arbitrarias da direção internacional sobre os partidos nacionais. Somos contra que a internacional lhes ordene como atuar, que política devem aplicar...

Que é como atua o stalinismo, não é verdade?

O stalinismo é o oposto de uma internacional. A URSS, como grande potencia, mantém e financia partidos em todos os países do mundo que servem a seus interesses e aplicam a política que ela lhes dita. Uma internacional atua como um partido: realiza congressos em que os delegados dos partidos nacionais discutem e votam uma orientação política.
Veja o caso do PC argentino, que apoiou explicitamente o golpe de março de 76 e o governo de Videla(5) Não posso acreditar que todos os membros do PC argentino e os milhões de ativistas operários que simpatizara com a URSS em nível mundial concordaram com essa política, de apoiar a ditadura que torturou e matou milhares de militantes, inclusive do próprio PC. O partido comunista argentino fez isso porque é um partido que depende de um Estado burocrático e faz o que lhe ordenam. A URSS em todo momento manteve excelentes relações diplomáticas e comerciais com a ditadura.
No entanto, para muitos, o internacionalismo é isso: um Estado dita sua vontade aos partidos que simpatizam com ele. Por exemplo, há pouco tempo houve uma reunião de partidos comunistas latino-americanos em Havana. Isso não seria uma especie de internacional? Ou é só uma fachada? Não é nem uma coisa nem outra: é uma reunião de embaixadores, similar a que faz Reagan quando viaja para a Europa e se reúne com seus embaixadores e líderes dos partidos pró-ianques.
A reunião dos PCs não é uma internacional: se as questões se resolvem por unanimidade, não é um partido operário. Houve alguma resolução aprovada por maioria, não por unanimidade? Algum jornal publicou que houve fortes discussões? Não, foi simplesmente uma reunião de agentes do Ministério de Relações Exteriores da URSS, onde este explicou e depois ditou sua posição a todos os presentes.
A Internacional, como a concebemos, se caracteriza pela existência de profundas diferenças, justamente porque é mundial. Não poderia ser de outra maneira, em uma reunião de delegados de países distintos, que refletem distintas culturas, tradições, idiomas. A unanimidade nessas circunstancias é impossível.

O desenvolvimento da revolução é desigual de país a país, certo? Isso provoca um desenvolvimento desigual dos partidos nacionais, seções da internacional

Exato.

Suponhamos que em um país, Bolívia, por exemplo, estejamos em condições de avançar para a tomada do poder, justamente quando não existe ainda uma internacional forte...

A pergunta é se tomamos o poder ou não?

A. pergunta é se a tomada do poder em um país depende da construção de uma internacional muito forte.

Eu diria que a construção dos partidos nacionais e da internacional é um processo combinado. Em primeiro lugar, para intervir na luta de classes é indispensável partir de uma análise correta da situação nacional. A tarefa de fazer essa análise e elaborar a política e o que chamamos a "linha" do partido — isto é, a combinação de tarefas e consignas que propomos para mobilizar as massas e construir o partido — é tarefa, em primeiro lugar, do partido nacional. Mas essa análise só pode ser completa no contexto de uma apreciação correta da situação internacional: como compreender a situação argentina sem levar em conta a situação do conjunto do continente latino-americano e a política do imperialismo? Não é casual que em nossos congressos partidários a discussão da situação mundial preceda o ponto nacional na ordem do dia. Pois bem, é aqui que a organização internacional ainda que seja pequena e débil como a LIT, cumpre um papel indispensável, ao recolher as experiencias e opiniões de militantes e dirigentes de muitos países. A análise sempre vai ser mais ampla, mais rica, do que aquela que poderia elaborar um partido nacional, por mais brilhantes que sejam seus dirigentes.
Agora, o outro aspecto da combinação que mencionei no principio, é que a Internacional só pode conseguir um salto qualitativo em, seu fortalecimento e crescimento a partir da conquista do poder por alguns de seus partidos. Um triunfo do trotskismo em qualquer país acabaria com uma série de preconceitos, em primeiro lugar com o que afirma que a internacional é desnecessária. Honestamente, creio que nenhum partido trotskista — e recordemos que estamos falando do partido que aspira ao socialismo com democracia operaria — pode tomar o poder sem a ajuda política e teórica da internacional, por pequena e débil que seja. Com o triunfo de uma revolução dirigida pelo trotskismo, cairia por terra a idéia profundamente errónea, nefasta, de que a internacional é só um adorno, e não a necessidade política mais profunda do movimento operário internacional.
Por outro lado, o exemplo de um governo trotskista provocaria um impacto colossal, ao impor a democracia operaria, com liberdades de todo tipo. Esse governo outorgaria maiores liberdades democráticas que qualquer Estado, burgues ou operário burocrático. Esses dois fatos despertariam um enorme entusiasmo na classe operaria mundial, e a internacional se transformaria, por fim, em uma organização de milhões de trabalhadores.

Você diz então, que a internacional cumpre principalmente um papel de elaboração política. Pode ou deve a direção internacional intervir na vida dos partidos nacionais

Não só de elaboração política, mas também de organização de campanhas internacionais, como a solidariedade com as grandes lutas operarias — desde a guerrilha salvadorenha até a greve mineira inglesa e a luta antiburocrática do Solidariedade na Polônia — ou a política de unidade das massas dos países dependentes contra o pagamento da divida externa.
Para responder à sua pergunta, considero que nessa etapa a Internacional não deve intervir nos partidos nacionais. Talvez mais adiante seja diferente, quando existir uma grande internacional, com uma direção muito prestigiada, cujos partidos detenham o poder em vários países. No momento deve intervir, e com toda energia, nas discussões políticas, mas seria um erro muito perigoso se a direção internacional modificasse a direção de um partido ou impusesse uma política nacional. O nacional é um aspecto específico do internacional, mas conserva um grau de autonomia muito grande.



1 A Federação Sindical Internacional (chamada "amarela") agrupava os sindicatos dirigidos pelos partidos social-democratas europeus. Desaparecera durante a Segunda Guerra Mundial. A Internacional Sindical Vermelha foi criada pela Terceira Internacional — e dissolvida unto com ela - agrupar sindicatos fundados pelos comunistas em oposição à burocracia reformista.

2 George Hegel (1770-1831), filósofo e lógico alemão, exerceu profunda influencia sobre Marx no terreno da lógica.

3 Pierre-Joseph Proudhon (1809-1865) foi um dos primeiros teóricos do anarquismo. Suas idéias tiveram grande aceitação entre os operários no século XIX.

4 A teoria do socialismo em um só país, formulada por Stalin para justificar seu abandono da revolução internacional, afirma que a URSS, em função de sua extensão e de suas riquezas naturais, seria capaz por si mesma de "alcançar e ultrapassar" o desenvolvimento dos países capitalistas mais avançados e chegar ao socialismo. A teoria marxista afirma, pelo contrario, que embora o primeiro passo seja a conquista do poder e a expropriação da burguesia nos Estados nacionais, só se chegará ao socialismo mediante um grande desenvolvimento das forças produtivas, condição que requer a conquista do poder em nível mundial e a abolição das fronteiras nacionais. Dessa maneira, o grande desenvolvimento econômico, científico e tecnológico, hoje patrimônio de um punhado de países, chegaria ao planeta inteiro.

5 Quando Videla assumiu a presidência, o jornal do PC argentino comentou: "As formulações do general Videla constituem um programa libertador, que compartilhamos. O general Videla pede compreensão. Terá. Por conseqüência, é necessário que todos os setores patrióticos do nosso povo, atendendo ao chamado presidencial, participem da reorganÍ2acao democrática" (
Tribuna Popular 8/4/76)

terça-feira, 17 de novembro de 2009

Michael Löwy

Extraído da revista Tempo disponível em: http://www.historia.uff.br/tempo/entrevistas/entres2-1.PDF

Um intelectual marxista: entrevista com Michael Löwy (*)

Michael Löwy é pesquisador do Centre National des Recherches Scientifiques (CNRS) em Paris. Concedeu esta entrevista aos professores Ângela de Castro Gomes e Daniel Aarão Reis em 11 de setembro de 1996, na Universidade Federal Fluminense, em Niterói.
(*) Edição de Dora Rocha


Seu nome é bastante conhecido nos meios acadêmicos do Brasil, país onde você nasceu, mas não conhecemos bem sua trajetória intelectual. Onde você se formou, onde começou a estruturar as suas concepções?

Vamos começar do começo. Nasci em São Paulo em 6 de maio de 1938, numa família de judeus emigrados para o Brasil nos anos 30. Minha família veio para cá essencialmente porque meu pai estava desempregado, em crise, e aqui havia oportunidade de trabalho. Desconfio que tenha havido também alguma relação com a quase guerra civil que houve na Áustria em 1934, com o esmagamento da socialdemocracia, mas fundamentalmente foram razões econômicas. Meu pai tinha contatos em São Paulo, sobretudo de família, e lá se instalou. Fiz o ginásio e o científico em escola pública e depois entrei para o curso de ciências sociais da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, na rua Maria Antônia, em 1956. Foram meus colegas de turma Roberto Schwarz, Francisco Weffort e vários outros.


Por que ciências sociais?

Eu já tinha uma militância socialista, e para mim ciências sociais era o que mais tinha a ver com as minhas preocupações: o movimento operário, o marxismo, as idéias socialistas. Quem ficou em primeiro lugar no vestibular foi o Weffort. Eu fiquei em segundo, junto com uma moça chamada Evelyn. Na nossa classe acho que tínhamos entre 25 e 30 alunos.


Quem eram os professores ?

Fernando Henrique Cardoso e Otávio Ianni, que na época eram muito amigos; Florestan Fernandes, que na época não aparecia como o mais avançado politicamente, era um dos mais ecléticos, digamos assim; Azis Simão, de quem eu me sentia mais próximo. Azis Simão era o único que se interessava de forma mais direta pelo movimento operário, sobretudo a sociologia do movimento operário. Eu tinha uma ligação muito forte com ele. Meus primeiros trabalhos foram mais ou menos inspirados em Azis Simão.


E quais foram esses primeiros trabalhos?

Minha primeira pesquisa foi sobre consciência de classe entre operários metalúrgicos do estado de São Paulo. Fiz essa pesquisa com a ajuda do DIEESE, onde eu trabalhava como voluntário. O DIEESE fazia uma pesquisa sobre custo devida distribuindo cadernetas de consumo para as famílias operárias, e eu colaborava com eles. Com a ajuda deles elaborei então um questionário que distribuí em um congresso do Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo. Havia várias perguntas que tentavam aferir níveis de consciência de classe, além de perguntas sobre a origem dos sindicalistas. Havia também uma pergunta mais diretamente política, sobre quais eram os melhores líderes sindicais: os trabalhistas, os socialistas, os anarquistas ou os comunistas? As respostas eram anônimas e muitos responderam em papel timbrado do DIEESE. Cruzando os dados, iniciei o trabalho. Outra pergunta era sobre o sindicato: o sindicato serve para dar assistência dentária e hospitalar, ou é o órgão de luta dos trabalhadores em defesa dos seus interesses? Se o delegado sindical respondia que o sindicato servia para dar assistência, eu já não o qualificava. Foi uma primeira tentativa de pesquisa sociológica sobre o tema. E para minha grande satisfação e glória eterna, recebi o primeiro prêmio do Centro de Pesquisa dos Alunos de Ciências Sociais, ou alguma coisa assim. Depois fiz uma versão um pouco mais sofisticada do mesmo material, que saiu publicada na França no Cahier International de Sociologie. A versão brasileira saiu na Revista de Estudos Políticos, no começo dos anos 60.


Os resultados dessa pesquisa, além de terem agradado aos seus colegas, agradaram à sua consciência militante na época? A classe operária surgia como uma classe promissora do ponto de vista político?

Sim, dava para perceber que havia vários níveis de consciência, e que havia também uma consciência política. Consciência política, para mim, tinham todos aqueles que se identificavam ou com os comunistas ou com os socialistas ou com os anarquistas. Esses tinham consciência de classe. Quem dizia que era a favor dos trabalhistas, não. Essa era a opinião que eu tinha, inspirada um pouco em Azis Simão.


Azis Simão era bom professor?

Era muito bom professor, muito simpático, pedagógico.Os professores com quem a gente se dava melhor eram ele, Fernando Henrique, Otávio Ianni e Antonio Candido, esses quatro. Florestan também, mas já com uma distância maior. Era uma questão de geração. E curiosamente ele se revelava o menos comprometido politicamente com o marxismo. Digo curiosamente porque depois ele vai ser o contrário, mas na época era assim que a gente o via.


O clima na turma do curso de ciências sociais era muito politizado, as pessoas participavam de movimentos?

Não. Poucos eram os que participavam. E esses eram vistos como curiosidades pelos outros alunos. Havia interesse político, havia interesse pela teoria marxista, mas militância política, não, era muito limitada.


Quem eram os que participavam politicamente?

Weffort e mais um ou dois que também eram comunistas, não me lembro agora dos nomes. E acho que só. Na turma seguinte entraram os irmãos Sader, o Eder e o Emir.


Leôncio Martins Rodrigues não fazia parte da turma?

O Leôncio era alguns anos mais velho, estava algumas classes acima. Quando nós entramos ele ainda era militante trotskista. Lembro que andava distribuindo a revista da Quarta Internacional em francês.


Sua turma se encontrava fora da universidade?

Sim, mas não todos. Nós éramos três amigos: Roberto Schwarz, Gabriel Bolaffi e eu. Nos víamos freqüentemente e andávamos sempre juntos. Nos chamavam de “Os três mosqueteiros”. Alguns participavam de um curso dado por Anatol Rosenfeld, de história da filosofia, se não me engano, na casa do Roberto Schwarz. Assisti poucas vezes.


Vocês tinham alguma revista na escola?

Não. Havia uma revista, não me lembro do nome, de alunos que acho que não eram nem de ciências sociais. Era uma revista pequena, que tinha uma vocação para a política e a estética. Lembro que escrevi para lá um artigo sobre a FIARI: Federação Internacional dos Artistas Revolucionários Independentes. Os surrealistas, em 1938, quando Trotski, Diego Rivera e Breton se encontraram no México, resolveram criar uma federação de artistas revolucionários, e independentes em relação à Terceira Internacional. Trotski e Breton redigiram o texto, que foi assinado por Diego Rivera. Esse documento é interessante pois procura analisar o papel revolucionário do artista. Você nos disse que ao entrar para a faculdade já tinha uma militância socialista.


Que tipo de militância era essa?

Antes de entrar na universidade eu participei, durante um tempo curto, do Partido Socialista e depois da famosa Liga Socialista Independente. Era um grupo muito pequeno - minúsculo, microscópico -, inspirado em Rosa Luxemburgo, do qual faziam parte, no começo, Paul Singer, Rocha Barros, Sachetta, Sader. Na realidade, eu me considerava um discípulo de Paul Singer. Foi ele quem me iniciou na obra de Rosa Luxemburgo. Lembro que por volta de 1953-54 ele estava no Partido Socialista e distribuiu um panfleto protestando contra a invasão da Guatemala. Mas depois de um ano ele se decepcionou com o partido, e aí começaram as discussões para se criar um novo grupo, a Liga Socialista Independente. Tenho a impressão de que em conversas e discussões com Paul Singer aprendi tanto quanto na universidade. Do ponto de vista da formação intelectual e política marxista, ele foi uma espécie de universidade particular para mim.


De que maneira você definiria Paul Singer em termos intelectuais na época?

Alguém que ao mesmo tempo tinha uma formação econômica marxista sólida, conhecia perfeitamente Marx, Rosa Luxemburgo, e tinha um engajamento sindical, operário e político muito forte. Ele tinha a preocupação de manter um vínculo com o sindicato e os sindicalistas, com as lutas operárias e com a esquerda, buscando uma alternativa política marxista fora dos quadros do Partido Comunista e da socialdemocracia, tal como era representada exoticamente pelo Partido Socialista.


Que vínculos Paul Singer mantinha com sindicatos e sindicalistas?

Ele tinha contato sobretudo no Sindicato dos Metalúrgicos, com uma corrente de oposição à direção. Havia uma pequena corrente que se propunha reformar a estrutura sindical, desatrelar o sindicato do Estado, acabar com o imposto sindical. Já o meu relacionamento com o sindicato passou pelo movimento estudantil, através da União Estadual dos Estudantes (UEE). Integrei lá uma espécie de secretaria sindical e assistia a reuniões sindicais como representante estudantil. Lembro de ter ido a várias assembléias de operários em greve, trazer a palavra de solidariedade dos estudantes.


Foi na sua época de faculdade que se constituiu esse grupo que tem uma certa importância na trajetória intelectual de vários professores e políticos brasileiros, o chamado “grupo do Capital”?

O “grupo do Capital” apareceu nessa época. Quando estávamos terminando a faculdade, em 1959 ou 60, os responsáveis pelo grupo, Fernando Henrique, Paul Singer, nos convidaram. Éramos alunos já considerados suficientemente maduros para participar. Mas pegamos o bonde andando. Quando entramos acho que eles já estavam no fim do primeiro volume ou no começo do segundo. Eu participei das reuniões durante um ano mais ou menos. Havia professores de várias disciplinas, era um grupo interdisciplinar: filósofos, economistas, historiadores, sociólogos. Fernando Novais, Giannotti, Rui Fausto, Otávio Ianni, Fernando Henrique...


Onde vocês se reuniam?

Na casa do Giannotti, se não me engano. A cada semana se lia um capítulo do Capital. Quem sabia alemão lia em alemão, os outros liam a tradução em espanhol. Uma pessoa fazia o resumo e o comentário do capítulo, e em seguida se discutia. Comecei já no meio, como disse, e fui embora para a França antes de terminar. Mas deu para pegar um bom pedaço. Em relação às referências teóricas, você falou em Marx e Rosa Luxemburgo.


Lenin e Trotski não eram moeda corrente entre vocês?

Não. Lenin era visto como um personagem autoritário, que tinha sido criticado por Rosa Luxemburgo pelo viés autoritário que tinha dado ao movimento revolucionário, e como o responsável, até certo ponto, pelo que aconteceu depois na União Soviética. Dentro da minha formação política, que era luxemburguista estrita, o leninismo era visto como algo pelo menos ambivalente e criticável. E o Trotski era criticado por ser leninista. Embora vários dos companheiros com os quais estávamos ligados fossem de origem trotskista, como o Sachetta, havíamos chegado a um balanço crítico em relação a Trotski.


Fora do campo marxista, havia alguma outra referência teórica para o “grupo do Capital”?

Havia. Para a maior parte dos meus colegas havia uma abertura muito grande para a sociologia e para todas as formas de pensamento. O mais dogmático mesmo era eu. A idéia de que um pensador nãomarxista pudesse trazer alguma coisa de interessante, para mim, era difícil de aceitar. Lembro de discussões violentíssimas com Roberto Shwartz porque ele dizia que Huizinga tinha razão ao afirmar que, no fundo, o que determinava o ser humano era mais o jogo do que a infraestrutura econômica. Isso para mim era totalmente absurdo. Eu também me lembro de outro episódio com uma professora nossa de ciência política, chamada Paula Beiguelman. Ela nos deu para ler um texto de Mannheim sobre o pensamento conservador, que ela mesma traduziu, mimeografou e distribuiu. No começo eu resistia, mas ela me disse: “Você não precisa deixar de ser marxista. Você lê Mannheim e depois volta a ler Marx. Não tem problema. Mas veja se há também outras coisas fora do marxismo.” Eu estava muito cético, mas acabei lendo Mannheim e até achei interessante. Meu estado de espírito era um pouco esse: ainda tem tanta coisa para ler em Marx, Engels e outros marxistas, para que perder tempo lendo Durkheim, Mannheim... Eu achava uma perda de tempo. Lia porque era obrigado, mas com a intenção polêmica de desconstruir esses autores, provar que estavam todos errados do ponto de vista marxista.


Essas outras referências apaixonavam seus colegas que não eram marxistas?

Eles se interessavam. Eram mais abertos, mais ecléticos. Não tinham essa preocupação, essa animosidade contra o pensamento burguês. A atitude deles era diferente. Isso gerava uma certa tensão entre mim e mesmo os meus amigos mais próximos.


Ainda sobre o “grupo do Capital”: o objetivo era estudar Marx apenas para o aprimoramento acadêmico, ou havia a intenção de formar um grupo intelectual de assessoria ou de participação em algum projeto político?

Não era um cenáculo acadêmico, ninguém estava ali em função de sua tese ou de sua carreira acadêmica, mas tampouco era algo com um objetivo político comum, de assessoria ou o que fosse. Não era uma coisa nem outra. Havia um desejo de autoilustração de cada um em função de seus objetivos próprios. Uns mais universitários, outros mais teóricos no sentido amplo, e outros com objetivos propriamente políticos. Havia uma diversidade muito grande, mas todos ali estavam de acordo que era importante voltar à fonte e ler O Capital.


A amizade entre os participantes permaneceu para além do “grupo do Capital”?

Acho que sim. Já havia laços de amizade antes entre nós, Fernando Henrique, Otávio Ianni, Paul Singer, Giannotti. Quem era convidado já possuía laços de amizade que naturalmente se reforçaram depois no grupo. E permaneceram. Para mim talvez menos, porque me afastei, fui embora, mas para quem ficou acho que sim. Embora naturalmente houvesse rupturas, como a de
Fernando Henrique com Otávio. Mesmo assim, de alguma maneira se criou uma espécie de comunidade intelectual.


Você se formou em 1959 e depois foi para a França. Antes disso você chegou a ter alguma experiência profissional no Brasil?

Sim. Quando ainda estava terminando a universidade, no último ano, fui convidado por Wilson Cantoni, professor de sociologia, que conheci através da Liga Socialista, para ser seu assistente na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de São José do Rio Preto. Foi uma experiência muito interessante. Conheci uma turma muito simpática e, entre outros, encontrei meu ex-professor de filosofia, não me lembro do nome dele agora, que tinha sido trotskista e estava dando aula lá. Mas o que mais me marcou na época foi a relação com o movimento camponês. Estava sendo organizada uma Liga Camponesa na região de Santa Fé do Sul, cujo dirigente chamava-se Jofre Correia Neto. Esse cara vivia o tempo todo perseguido, entrando e saindo da prisão. Eu, Wilson Cantoni e outros colegas nos interessamos muito por esse movimento. Fomos até Santa Fé do Sul dar apoio a ele e trouxemos uma delegação de várias centenas de camponeses até São José do Rio Preto para participar de um ato em defesa da escola pública. Havia uma relação muito forte entre nós e esse movimento de Santa Fé do Sul.


Por que você foi para a França?

Minha idéia de ir para a França veio primeiro de uma fascinação pela cultura francesa desde a minha adolescência. O surrealismo sempre foi uma influência forte para mim. Eu tinha também uma certa imagem mítica de Paris por ser a cidade das revoluções. Mas, mais concretamente, para mim foi uma descoberta capital ler a obra de Lucien Goldmann, coisa que devo ao Gabriel Bolaffi. Aliás, nunca vou esquecer desta cena: um dia, acho que estávamos no segundo ou terceiro ano da faculdade, o Gabriel Bolaffi me disse assim: “Estou lendo um livro interessante e não vou lhe dizer qual, porque você já é chato, mas se ler esse livro vai ficar um chato inteligente, vai ser insuportável.” Eu e Bolaffi vivíamos discutindo, porque eu era um marxista chato e ele era bem mais eclético, mais aberto, descomprometido. Ele acabou confessando que o livro era La ciência humana y la filosofia, de Lucien Goldmann. Eu naturalmente me precipitei sobre o livro para ver se ficava um chato inteligente, e fiquei deslumbrado. Fiquei deslumbrado porque era marxismo num estilo bastante diferente do que eu tinha visto até então. Havia uma crítica forte à sociologia burguesa, mas ao mesmo tempo um marxismo bem desdogmatizado, aberto. Para mim foi uma iluminação. A partir daí comecei a ler outras coisas de Lucien Goldmann e resolvi: vou para a França fazer minha tese de doutorado com Lucien Goldmann. Pedi uma bolsa francesa e quando já estava trabalhando em São José do Rio Preto veio a resposta positiva. Então fui para Paris. Fui em 1961, pouco depois de o Jango assumir.


Como foi para você, militante político, esse momento da renúncia de Jânio e da posse de João Goulart?

Lembro que a gente simpatizou muito com o Brizola. Saíamos na rua gritando: “Brizola, entra de sola!” Nessa época eu já estava em outra organização política, porque em 1960 uma parte do pessoal que estava na Liga Socialista Independente se juntou com outros grupinhos e criou uma organização chamada Política Operária, Polop - esta já é mais conhecida. Acho que a Liga Socialista Independente, só os nossos amigos é que conheciam... Participei da fundação daPolop junto com Paul Singer, os irmãos Sader, Juarez Brito, Teotônio dos Santos e Rui Mauro Marini.


A ida para a França era uma aspiração que você compartilhava com outras pessoas ou era algo pouco usual no seu grupo?

Acho que havia interesse pela França em muitos do grupo. Alguns inclusive já tinham estudado lá. O interesse era maior da parte dos estudantes de filosofia do que dos sociólogos. Quem estudava filosofia automaticamente iria continuar na França, a relação era muito forte. Em sociologia não era tanto assim. Decididos mesmo a fazer a tese lá acho que estávamos só eu e o Rui Fausto.


Ao partir para a França com o intuito de fazer sua tese de doutorado com Lucien Goldmann, você também tinha a idéia de cumprir uma missão política? Como é que isso estava definido na sua cabeça?

Estava definida na minha cabeça a idéia de fazer uma tese sobre Marx e voltar para o Brasil. Eu já tinha começado a trabalhar sobre Marx no Brasil. Até escrevi três artigos para a Revista Brasiliense, um sobre a questão agrária, “Notas sobre a questão agrária no Brasil” - o que não me faltava era pretensão -, outro sobre o jovem Marx e outro sobre a teoria do partido no pensamento marxista. Aquela discussão clássica entre Rosa Luxemburgo e Lenin. Ir para Paris fazer o doutorado sobre Marx era uma tarefa ao mesmo tempo política e intelectual.


Como foi sua trajetória intelectual na França?

Fiz minha tese com Goldmann. Na época me lembro que estava começando a aparecer o Althusser, e os alunos se dividiram. Rui Fausto, por exemplo, estava mais atraído pelo Althusser; eu, por Goldmann. No seminário do Goldmann apareciam figuras como Herbert Marcuse. Ele passou um ano a convite do Goldmann dando seminários na Escola de Altos Estudos. Outras vezes Goldmann convidava Henri Lefebvre para dar umas conferências. Enfim, era um lugar onde aconteciam coisas interessantes. Fora os seminários do Goldmann, eu assistia a outros cursos, como o do Touraine. Assistia tanto a cursos de filosofia como de sociologia. Fui aos cursos, por exemplo, do Hippolyte sobre Hegel e do Raymond Aron e do Gurvitch, que ensinavam sociologia na Sorbonne. Segui o curso deles com bastante reserva. Eram dois professores insuficientemente marxistas para o meu gosto, mas enfim, aprendi coisas, sobretudo com Aron, que era um cara muito inteligente, ensinava Marx muito bem. Havia outro seminário também interessante, o de Georges Haupt, historiador, sobre o socialismo internacional.


Enquanto estava lá, você acompanhava os acontecimentos no Brasil?

Sim, acompanhava bastante de perto e tinha uma correspondência com meus amigos do Brasil, Paul Singer e os irmãos Sader. Acompanhava as discussões internas da Polop. Considerava-me um militante da Polop em Paris e participava das atividades da esquerda francesa, particularmente doPartido Socialista Unificado, na célula da Sorbonne.


Houve a idéia de estabelecer uma ligação entre o PSU e a Polop? Havia uma analogia entre eles, do ponto de vista do questionamento das ortodoxias partidárias, não é?

Se houve alguma idéia, nunca se concretizou nada. Enfim, li o resto da obra do Goldmann que eu não conhecia ainda e desenvolvi minha tese sobre a teoria da revolução na obra de Marx, metodologicamente inspirada em Goldmann. Mas o Goldmann não concordava. Resumindo a tese: eu relacionava a obra de Marx com o movimento operário na época, tentando mostrar que a teoria da revolução no jovem Marx era uma formulação a partir das experiências concretas do movimento operário, do qual Marx se considerava um pouco o porta-voz. No meu entender, havia uma relação entre a classe e o seu intelectual, enquanto que o Goldmann era muito cético em relação a isso. Para ele, não existe classe operária no século XIX, existem artesãos, e Marx representava mesmo a ala esquerda da burguesia. Então, eu dizia de brincadeira que me considerava um neo-goldmanniano de esquerda. No dia da minha defesa de tese Goldmann me criticou bastante. Em um de seus artigos escreveu que um aluno tentou demonstrar que Marx era a expressão do ponto de vista de classe do proletariado, e que ele não ficara muito convencido. Mas enfim, metodologicamente minha tese era estritamente goldmanniana, no sentido de procurar articular classes sociais, ideologia e cultura: era uma espécie de sociologia da cultura.


Quando você defendeu sua tese?

Em março de 1964. Termino a tese e neste momento se abre um parêntese meio estranho no meu itinerário: vou parar em Israel por razões que não têm nada de políticas nem de intelectuais, são estritamente familiares. Meu pai tinha falecido, meu irmão já vivia em Israel e minha mãe se mudou para lá. Resolvi então tentar o futuro em Israel. Terminado o doutorado, passei um ano estudando hebraico num kibutz e trabalhando metade do dia. Depois de um ano de estudo, fui convidado a dar aula de história das idéias políticas, primeiro na Universidade de Jerusalém, depois na Universidade de Tel-Aviv. Passei quatro anos em Israel, um ano como aluno e três como professor. Mantive ainda algum contato com o Brasil, sobretudo me correspondendo com os irmãos Sader. Aí veio maio de 68 e me deu muita vontade de voltar para a Europa. Nessa época também entro em conflito político com o diretor do Departamento de Ciências Políticas da Universidade de Tel-Aviv, onde eu trabalhava. Arma-se um pequeno escândalo na universidade, com muitos protestos. Inclusive os jornais discutem se a demissão do professor era por motivos políticos ou não. Aí um amigo meu que tinha vivido em Israel, mas que estava na Inglaterra, o historiador Theodor Chamu, escreve um artigo no New Statement, denunciando o que ele chama de “macartismo na Universidade de Tel-Aviv”. Um amigo de Chamu, o professor em Manchester Peter Worsley, alguns dias depois telefonou para ele dizendo: “Lemos o seu artigo e resolvemos, em solidariedade ao seu amigo vítima da discriminação, convidá-lo a dar aula aqui em Manchester.” Para mim foi a oportunidade de sair, pois eu já estava me sentindo sufocado em Tel-Aviv.


Nesses quatro anos que você passou em Israel, houve algum acréscimo do ponto de vista intelectual ou vivencial?

O acréscimo importante foi que, para poder dar o curso que dei, aprendi bem história das idéias políticas: Maquiavel, Hobbes, Locke, Tocqueville, Hegel. Foi um bom aprendizado.


Confirmando aquele adágio que diz que o professor é o que mais aprende...

Não é o que mais aprende, é o único que aprende.


Como foi seu contato com a cultura judaica?

Curiosamente, em toda a minha estada em Israel nunca me interessei por nenhum aspecto da cultura judaica. Nunca estudei, nunca escrevi nada! Indiferença total. Só comecei a me interessar pelo judaísmo e a cultura judaica dez anos depois de ter saído de Israel.


Na sua família tinha havido algum investimento em termos de valorização da cultura judaica?

Minha família era entusiasticamente sionista. Tanto que meu irmão e minha mãe foram para Israel. Minha educação teve muito de sionismo e de socialismo, mas a minha decisão de ir para Israel não foi por causa do sionismo, foi, como disse, por razões familiares. Durante esse período em que você esteve em Israel, o Brasil estava se fechando cada vez mais.


Você alimentava a vontade de em algum momento retornar ao Brasil?

Sim, nos quatro anos que vivi em Israel eu tinha a convicção forte de que iria voltar. Lembro que em 1968 escrevi ao Azis Simão dizendo que estava pensando em voltar e perguntando se havia alguma chance de trabalhar em alguma universidade. O Azis escreveu dizendo: “Não volte, não meta os pés aqui. Você chegando aqui vai entrar em cana logo de cara. Seu nome é conhecido, vários de seus amigos já foram presos. Não volte! Por favor, fique aí na Europa!” Fiquei frustrado, mas achei que ele tinha razão. Anos depois, quando voltei ao Brasil pela primeira vez, Azis Simão estava com a impressão de que eu tinha rompido com ele por causa da sua negativa. Ele tentou se desculpar, mas eu disse: “Você tinha razão!”


Nunca lhe passou pela cabeça a idéia de voltar ao Brasil para militar na Polop como dirigente político clandestino? Era o que o Sader estava fazendo, não?

Sim, mas a idéia de voltar clandestinamente era complicada. Não havia muita estrutura. Inclusive houve uma cisão da Polop. O pessoal a quem eu estava mais ligado havia criado uma nova organização chamada POC (Partido Operário Comunista) e estava se aproximando da Quarta Internacional. Nesse momento o Emir Sader veio à Europa. Nós dois discutimos e chegamos à conclusão de que a Quarta Internacional era interessante. Mas não se colocou aí, que eu me lembre, a idéia de voltar ao Brasil.


Além da atividade docente você desenvolveu alguma pesquisa depois que saiu da França?

Concluí minha tese sobre a teoria da revolução no jovem Marx em 1964, mas infelizmente não consegui publicá-la porque fui para Israel. Isso foi uma grande frustração. Seis anos depois, quando retornei à França, procurei um editor, o François Maspero, conversei com ele e com o Georges Haupt, e minha tese foi publicada. Pesquisa, em Israel, fiz muito pouca. Não havia um clima muito favorável à pesquisa. Meu esforço maior foi na docência, na preparação das aulas sobre a história das idéias políticas. Cheguei a escrever alguns artigos em Israel, mas o único trabalho de pesquisa mais interessante foi um sobre Kafka e o anarquismo. É uma pesquisa na qual continuo trabalhando há anos e nunca termino. Em Manchester trabalhei num curso de sociologia política com Peter Worsley e comecei a estudar Max Weber. Quem dá curso sobre Max Weber tem que estudar Max Weber. Comecei a pesquisar sobre ele e até escrevi um artigo que era uma crítica marxista a Max Weber. Mas minha principal pesquisa nessa época, 1968-69, foi mesmo um trabalho mais político do que acadêmico: um livro sobre o pensamento de Che Guevara. Na verdade, comecei esse trabalho escrevendo artigos sobre Guevara em Israel. Continuei as pesquisas em Manchester, e o livro foi publicado em 1970. Antes de ir para a Inglaterra, ainda em Israel, eu já tinha pedido uma bolsa de estudos na França. Um ano depois meu pedido foi aceito. Saio de Manchester em 1969, desembarco em Paris e aí encontro o meu velho amigo Emir Sader, que trabalhava como assistente em Paris-VII com o professor Nicos Poulantzas. Ele me apresenta ao Poulantzas e diz que está indo embora para o Chile. Poulantzas então me fez contratar como assistente. A partir daí comecei a trabalhar como encarregado de curso, chargé de cours, uma pessoa que não tinha contrato, que ganhava por hora. Estatuto meio precário, mas dava para eu me manter.


O que você achou do Poulantzas?

Um cara simpaticíssimo. Nos demos muito bem, mas não concordávamos em nada. Nem politicamente nem teoricamente. Ele era maoísta, eu era trotskista; ele era althusseriano, eu era kantiano. Total divergência e perfeita amizade. No primeiro ou no segundo ano ele propôs que fizéssemos um curso juntos. Era engraçado, porque a cada semana era um que falava e o outro criticava. Os alunos adoravam ver a gente discordando, embora muito amigavelmente. Cada aula era um desacordo total.


Os alunos devem ter aprendido bastante.

Pode ser. Acho que o primeiro curso que fizemos juntos foi sobre o marxismo e a questão nacional. Lembro que a partir desse curso tive a idéia de preparar uma antologia sobre o marxismo e a questão nacional. Fui falar sobre isso com Georges Haupt, que tinha publicado meu livro sobre Marx, ele disse que tinha a mesma idéia e sugeriu que fizéssemos o trabalho juntos. Essa antologia foi publicada em 1974. Enquanto isso, o Goldmann morreu, infelizmente, me deixou órfão. Quando eu estava em Israel tinha pouco contato com ele, mas quando voltei para Paris retomei o contato, voltei a assistir aos seus seminários. Através do Goldmannn conheci Lukács, resolvi fazer meu segundo doutorado, a tese de estado, sobre Lukács, e iria fazê-la com o Goldmannn, mas ele faleceu. Nesses anos 70, trabalhei então na minha tese sobre Lukács e escrevi alguns artigos: um era uma polêmica contra Althusser, chamado “O humanismo historicista de Marx ou Para ler O capital”. Comprei a briga dos lukacsianos contra Althusser. Outro artigo que escrevi foi “Objetividade e ponto de vista de classe nas ciências sociais”. Foi o embrião de um trabalho sobre a sociologia do conhecimento. Esses artigos e vários outros saíram publicados primeiro no Brasil através de um amigo meu, Reginaldo de Piero, com o título Método dialético e teoria política, pela Paz e Terra. Afinal fiz essa tese sobre Lukács, viajei à Hungria várias vezes, trabalhei no arquivo de Budapeste, conheci os discípulos de Lukács. A tese foi publicada na França com um título meio estranho: Por uma sociologia dos intelectuais revolucionários. Aqui no Brasil saiu também com esse título.


Nesse momento em que você volta à França chega também muita gente que está saindo do Brasil.

Exatamente. E eu me integro de maneira direta à colônia dos exilados brasileiros. Embora não fosse um exilado, me identifico com eles e tento na medida do possível dar minha pequena contribuição para a difamação do Brasil no exterior. Lembro que em 1970 eu e uma amiga brasileira fomos visitar o Sartre e pedir a ele para lançar um protesto dos intelectuais franceses contra a tortura no Brasil. Como ainda éramos muito ingênuos, em vez de levar um texto já pronto, levamos só a idéia. Ele é que teve que sentar e escrever o texto. Depois telefonou para os outros intelectuais assinarem, e saiu o protesto. Eu estava em todas as reuniões com a Violeta Arraes, que era a principal organizadora.


Você nos revelou que desde a universidade possuía um pensamento bastante ortodoxo. Anos depois, estudando em Paris, tendo contato com esse conjunto bastante heterogêneo de exilados brasileiros, como você avaliaria suas posições intelectuais? Houve alguma mudança?

A grande mudança que houve para mim foi a descoberta de Goldmann e Lukács. Passei de um marxismo ortodoxo para um marxismo mais aberto. Quanto aos exilados, havia uma espécie de unidade contra a ditadura, uma simpatia geral pela luta armada. Minha referência política era o POC, que não existia mais no Brasil - era portanto uma referência mais imaginária do que real. A última tentativa de reorganizar o POC fracassou em 1971, quando um amigo nosso voltou de Paris para o Brasil e foi morto pela ditadura.


Você ainda achava, nesse período, que iria voltar para o Brasil?

Francamente, cada vez menos. Entre outras razões, havia uma pessoal: eu havia me casado. Quer dizer, eu não descartava completamente a idéia, mas ficava ainda mais complicado. Depois nasceram dois filhos na França e o meu regresso foi ficando cada vez mais improvável.


Seu comprometimento profissional com a França também devia contar.

Sim, mas isso não era o maior obstáculo. Eventualmente, mudando o regime no Brasil, eu conseguiria trabalho na universidade brasileira. Era mais esse problema pessoal. E nessa época também me confiscaram o passaporte brasileiro. Fui renovar o meu passaporte na embaixada e me explicam que eu era persona non grata. Eu já não tinha nem legalmente como voltar ao Brasil.


Depois que confiscam o seu passaporte, como é que você fica na França?

Em maus lençóis. Na mesma época eu tinha pedido a naturalização francesa, que foi recusada. Em 1975 me encontro sem passaporte brasileiro e sem naturalização francesa. Aí me lembro dos meus ancestrais austríacos. Vou à embaixada da Áustria com o certificado de nascimento do meu pai e consigo o passaporte austríaco. Durante vários anos fui austríaco. Só muitos anos depois consegui a naturalização francesa. Fui ver um advogado e ele me disse: “Desista, se mudar a presidência e ganhar a esquerda, voltamos a falar no assunto.” Depois da eleição do Mitterand, em 1981, fui ver o advogado outra vez e ele enfim conseguiu, mas não foi fácil. Foi preciso quebrar muitos galhos.


Na década de 70 houve uma retomada da produção intelectual no Brasil com a implantação dos cursos de pósgraduação. Você acompanhou esse processo?

Não. Meu acompanhamento da atividade acadêmica no Brasil é zero! A última coisa que acompanhei foi no final dos anos 60 na USP, quando o pessoal de esquerda publicou aquela revista Teoria e Prática. Mandei para eles um capítulo da minha tese sobre Marx e eles traduziram e publicaram. Eram meus amigos Rui Fausto, Sader, Schwarz. Depois, boa parte deles foi para o exílio. Roberto Schwarz estava em Paris; Emir estava no Chile e depois foi para Cuba; Rui Fausto foi para o Chile e depois veio para Paris, onde arranjei trabalho para ele. Boa parte dos meus amigos estava em Paris, não estava mais na USP. Então, eu não tinha a menor idéia do que estava acontecendo.


Você teve algum contato com o experimento do CEBRAP?

O CEBRAP é de 1969, estava lá o Fernando Henrique Cardoso.
É claro que ouvi falar do CEBRAP, mas não tinha uma ligação direta. Eu conhecia melhor as últimas cisões da VARPalmares...


A partir de quando você retomou o contato com o Brasil?

Em 1980 apareceu uma chance de visitar o Brasil. Não sei como, alguém aqui do Brasil armou um negócio para eu ir em missão da UNESCO ajudar a formar uma pósgraduação na cidade de Belo Horizonte. Minha retomada de contato com o Brasil foi portanto em 1980, depois de 19 anos de ausência. Foi um choque cultural. O sentimento foi de que no Brasil tudo tinha mudado e tudo continuava na mesma. Tudo mudou porque tudo ficou mais enorme, tudo se expandiu. Coisas que eram referências para mim já não existiam mais. A minha casa tinha sido demolida, meu ginásio tinha sido demolido, a Maria Antônia não era mais Maria Antônia. Desse ponto de vista eu estava realmente me sentindo meio perdido. Mas as pessoas e o estilo de vida brasileiro eram os mesmos, era o velho Brasil de sempre.


E você gostou?

Gostei e fiquei com vontade de voltar. Não voltei logo porque não apareceu ocasião, mas a partir de 1984 comecei a voltar regularmente a cada dois anos e retomei os contatos universitários, pessoais, familiares.


De que maneira o Brasil ocupa hoje um lugar dentro de você?

Ser brasileiro sempre foi parte fundamental da minha identidade. Se a minha identidade é uma espécie de construção de tijolinhos, o fundamento é brasileiro. Mas nessa construção também entra a França. Depois de tantos anos na Europa a gente acaba se europeizando. Mas agora, pela primeira vez, estou trabalhando com temas brasileiros: a questão da religião e política no Brasil e na América Latina, em torno da Teologia da Libertação.


Antes de entrar nesse ponto, retomemos sua trajetória: Marx, Goldmann, Lukács... A partir de quando há uma ampliação de horizontes?

Há um momento que acho importante marcar, que é o do meu trabalho sobre a sociologia do conhecimento. Aí eu finalmente voltei a ler Mannheim - minha querida amiga Paula Beiguelman tinha razão, precisamos ler Mannheim - e fiz um projeto de concurso para entrar no CNRS - Centre National des Recherches Scientifiques. Por milagre, fui aceito. Digo milagre porque os projetos para se conseguir entrar no CNRS são de pesquisa empírica, o fenômeno social é estudado empiricamente. E eu fui o único que apresentou um projeto de teoria sociológica. Pelo jeito eles gostaram. Entrei para o CNRS com esse projeto e fiz um trabalho sobre a sociologia do conhecimento que foi publicado na França e traduzido no Brasil com o pomposo título, meio irônico, de As aventuras de Karl Marx contra o Barão de Münchhausen. É o único livro meu que teve um certo sucesso no Brasil. Também foi publicado na França, mas teve muito menos impacto. Nesse período dei um passo além do marxismo goldmannianolukacsiano. Esse passo foi dado com a descoberta do Walter Benjamin em 1979-80. Ele me dá uma iluminação tremenda, e se abre um horizonte novo para mim: a Escola de Frankfurt e a temática do romantismo, que eu já vinha trabalhando a partir de Lukács, mas que começa a me interessar mais. Isso me obriga a rever uma série de coisas do marxismo e a ter uma visão bastante mais heterodoxa. Começa também o interesse pela relação entre religião-cristianismo-revolução, daí aquele livro meu Redenção e utopia.


Você estabelece alguma relação entre a sua inclinação pelo Walter Benjamin e o reconhecimento do fracasso, pelo menos a curto prazo, do projeto revolucionário no Brasil?

Não. Só se for de uma maneira muito indireta, no sentido de que o Walter Benjamin é alguém que se preocupa muito com a história dos vencidos e tem uma sensibilidade muito forte em relação a isso. Subjetivamente isso pode corresponder ao sentimento de simpatia pelas vítimas do processo de repressão, e pelo próprio Brasil. Só se for muito indiretamente.


Há uma correlação evidente entre a descoberta de Gramsci e a redescoberta da temática da democracia por parte da esquerda brasileira a partir de 1974. Já partir dos anos 80 há uma inclinação geral pelo Walter Benjamin. Ou seja, no momento em que se considera que o projeto revolucionário está encerrado, as obras de Benjamin são traduzidas no Brasil e todo mundo lê Benjamin.

Pode ser que a opção pelo Benjamin no Brasil tenha se dado nesse contexto, mas a minha pessoal não foi assim. Ao contrário, peguei Benjamin pelo lado messiânico e revolucionário. Já na questão da democracia, para mim, a referência ainda era Rosa Luxemburgo. Não necessitei dessa passagem pelo Gramsci.


Walter Benjamin também o ajuda a chegar ao universo de referências da cultura judaica?

Sim, claro. É a partir de Benjamin que descubro o judaísmo e a religião. Tanto o messianismo judeu como a religião em geral, religião como cultura revolucionária. Minha filiação atual com o CNRS passa por um centro de estudo de sociologia da religião. Obviamente, do ponto de vista de alguém que não é religioso, mas observa com muito interesse o fenômeno.


Como você se posiciona em relação à crítica que vê o marxismo como uma religião laica?

Colocada nesses termos, de crítica, acho que é uma tese furada, superficial. Não dá conta do que é o marxismo como teoria materialista. Mas, em outro nível mais profundo, já não como crítica, mas como reivindicação positiva, acho a tese legítima. Eu me refiro ao nível que é estudado pelo Lucien Goldmann naquele livro dele sobre o Deus oculto, quando ele compara a aposta de Pascal com a aposta de Marx. Ele diz que tanto no caso da religião em Pascal como no caso do socialismo em Marx há um elemento de fé, isto é, um elemento que não pode ser demonstrado empiricamente. Ambos se apoiam numa aposta. Pascal aposta na existência de Deus; Marx aposta na possibilidade da realização do comunismo. E essa aposta implica necessariamente o risco de não dar certo. Mas o indivíduo tem que apostar, ele já está embarcado, não dá para escapar. Como diz Pascal, “já estamos embarcados”, não dá para ficar olhando de fora.. Você é obrigado a apostar em uma coisa ou outra. Quem não aposta na existência de Deus orienta a sua vida em função dessa hipótese. Já o cristão orienta a vida dele pela outra aposta. O mesmo vale para o socialismo, todos temos que apostar. Então, nesse sentido há uma afinidade, ou uma homologia estrutural, entre a religião, pelo menos um certo tipo de religião, que é a do Pascal, e o socialismo de Marx. Há um elemento de fé, um princípio último não demonstrável cientificamente e fundado numa aposta. Nesse sentido acho legítima a comparação entre religião e marxismo, mas não no sentido superficial, jornalístico.


Para encerrar, pediria que você fizesse um balanço da atualidade do pensamento de Marx. Você, que sempre teve a referência do marxismo, como enfrenta esse movimento atual que afirma que Marx foi um grande autor, mas do século XIX, e que é um anacronismo mantê-lo como referência?

Começaria lembrando uma velha citação: “Marx morreu para a humanidade”. Benedetto Croce, 1960. Essa tese de que Marx acabou não é muito nova. Na verdade, o que se está assistindo hoje em dia na França e em outros lugares é um fenômeno que a própria imprensa chama de “a volta de Marx”. E eu acho que é bastante previsível, porque para tentar entender o capitalismo e, ainda mais, para tentar transformar esse mundo, é necessário Marx. Inevitavelmente, mais cedo ou mais tarde, ele voltará à ordem do dia, até o momento em que já não for mais necessário, quando o capitalismo não existir mais. Como já diziam Rosa Luxemburgo e Gramsci, numa sociedade pós-capitalista, socialista, sem classes, as categorias do marxismo estarão superadas. Dito isto, acho que cabe uma crítica a Marx, obviamente. As duas vertentes de crítica que me parecem mais ricas a explorar são a vertente libertária e a vertente ecológica. Toda a crítica libertária à concepção de Estado de Marx e às ilusões de Marx sobre o Estado merece ser explorada, é uma problemática fértil. E a outra crítica que me parece interessante é a ecológica. Ela põe em questão toda a doutrina de progresso, toda a concepção da história a partir do desenvolvimento das forças produtivas, ou seja, elementos centrais em termos de marxismo, sobretudo de um certo marxismo que, para resumir numa frase, eu chamaria de “marxismo do Prefácio de 1857”. Aí está um elemento que precisa ser recolocado, e não é um mero detalhe, é um elemento bastante central da teoria de Marx. Acho que passa por aí uma revisão crítica do marxismo, mas no sentido de aprofundar a radicalidade e a negatividade da teoria em relação à modernidade capitalista. A maior parte das críticas ou das proposições de revisão que hoje se fazem a Marx vão na direção contrária, tentam diluir a radicalidade e reconciliar Marx com a modernidade capitalista. Na minha opinião, o interessante é exatamente aprofundar a dimensão crítica, colocando em questão aqueles elementos da obra de Marx que são insuficientemente críticos em relação ao modelo de civilização ocidental, industrial e patriarcal.

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

O Método de Marx e a Crítica ao Método da Economia Política - Fabio Maia Sobral

Extratos da tese de doutorado de Fabio Maia Sobral. Esta se encontra diponível em: http://libdigi.unicamp.br/document/?code=vtls000447383 (grifo meu)

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“Nos remetemos a esta passagem, tão freqüentemente citada na literatura marxista, porque também nos ilustra acerca do plano estrutural de Marx de 1857; porque já revela que esse plano (como ocorreria também com O Capital) ‘segue o caminho das determinações abstratas ao concreto’, quer dizer que, de modo algum ele pode ser interpretado no sentido de uma subdivisão ‘desde o ponto de vista material’. Mas isto não é tudo. O plano original foi evidentemente concebido de tal maneira que nele tem lugar repetidamente o processo da síntese, do ‘elevar-se do abstrato ao concreto” (ROSDOLSKY: 1989, 54).
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Talvez abstrato e concreto representem aqui os equivalentes categoriais de abstrato e concreto para Hegel. Neste, abstrato é o que não obedece ao plano histórico, ao desenrolar do desenvolvimento histórico, algo que tomou um rumo infértil, afastando-se da possibilidade de alcançar o “sistema da vida ética”. Concreto traduz o passo adequado e necessário a ser dado pela humanidade naquele momento específico, como o estágio possível de uma época produzir para si mesma.

Para Marx abstrato e concreto apresentam a semelhança de que possuem a natureza de algo a ser eliminado (o abstrato) e algo a ser preservado ou alcançado (o concreto). O abstrato não é irreal, nem em Hegel, nem em Marx. O abstrato para Marx é, na sociedade capitalista, a realidade dominante: o valor. Elevar-se do abstrato ao concreto significaria superar o método da economia política, superar a sociedade mesma onde a economia e o valor alcançaram a posição dominante, e atingir o concreto de uma nova ciência crítica, e de uma nova sociedade onde o abstrato terá sido superado.

Explicaríamos assim a síntese: superação de uma realidade dominada pelo abstrato e construção de uma sociedade que seja a manutenção dos elementos concretos, nos arriscaríamos a dizer positivos. Tal perspectiva está configurada nos dois planos da obra de Marx, é o que admite Rosdolsky. Aí está um dos elementos que une os dois períodos: o objetivo é elevar-se do abstrato ao concreto, não somente na exposição; não se trata somente de uma diferença expositiva, algo como um caráter estilístico. Estilo literário e o objetivo estão unidos na práxis política. Marx não desprezaria este ponto, ao contrário, a sua quase obsessiva busca de um estilo adequado é revelador do que está em jogo: o estilo deve obedecer ao momento histórico.

Onde está o abstrato na economia? Ele se apresenta como “fatores da produção” (ROSDOLSKY: 1989, 56), como capital, terra e trabalho, que se definiriam como elementos indispensáveis de qualquer forma de produção, independentemente do momento histórico. Mas esta é apenas a aparência do conteúdo real de uma abstração dominante: o domínio do capital sobre os meios de produção, o que produziria “... ‘a mistificação do modo capitalista de produção, a coisificação das relações sociais’” (ROSDOLSKY: 1989, 56).

O abstrato é o objeto da crítica, é o alvo do ataque decidido da classe operária, por representar a própria condição da formação social capitalista. O abstrato não representa um elemento simples que está na base de uma investigação, com se caminhássemos do abstrato ao concreto de forma natural e tranqüila; na verdade, ele representa a própria estrutura da condição social capitalista, como contínua abstração por meio do mercado da posse dos meios de produção por uma parcela da sociedade. Ao abstrato cabe o combate, a derrocada. Os pressupostos desta sociedade capitalista são abstratos. Qualquer sociedade que busque substituí-la deve eliminar a abstração, sob pena de nada alterar na formação social. Utópico, no sentido combatido por Marx, é a incompreensão da abstração.

...

Ressaltamos que a resistência subjetiva envolve a necessidade de um projeto, de uma análise que permita orientar a ação. O comunismo só pode ser fruto da ação coletiva, algo que fez Marx criticar a Hegel nos Manuscritos de Paris. Hegel compreenderia a transformação como parte de subjetividade do intelectual que concentra a força teórica do projeto. Para Marx o conceito deve unir-se à prática, a elaboração do intelectual inexiste como concretude se não estiver unido à força de luta das massas. Eis o terreno fértil em que utopia e cientificidade revolucionária precisam distinguir-se. A proposição da análise científica de transformação da realidade não pode ser utópica, mas concreta; o utópico encontra o abstrato, a alteração não radical, a manutenção dos “fundamentos” anteriores, a incapacidade de propor novos “princípios”.

Marx precisava produzir uma nova forma de investigação para possibilitar a vitória da luta da classe operária contra o capital. Uma nova formação social não surgiria sem a intervenção consciente da teoria; é esta a conclusão inusitada de Marx. Formas sociais anteriores surgiram e desapareceram sem que fossem dirigidas pela orientação da ação humana consciente. A construção comunista deveria inaugurar uma luta pensada e desenvolvida por um conteúdo programático claro.

A Revolução Francesa foi a iniciativa coletiva que mais se aproximara da busca de um programa revolucionário, porém, ela mesma é a luta por reconhecer o domínio de categorias já dominantes na esfera da produção. A economia já é o campo determinante da vida social e luta contra o anacronismo das instituições de transição com o feudalismo. Esta revolução já lidava com categorias que considerava “naturais e universais”, restando a tarefa de instaurar a “racionalidade” científica diante da obscuridade supersticiosa do Antigo Regime. É desta visão que nasce a metodologia da economia política: da idéia de “natureza” social, estágio que rompe como domínio da natureza em sua forma primitiva. Por isso afirma Marx que:

“Parece justo começar pelo real e o concreto, pelo suposto efetivo; assim, por exemplo, pela população que é a base e o sujeito do ato social da produção em seu conjunto. No entanto, se examinamos com maior atenção, isto se revela [[como]] falso. A população é uma abstração se deixo de lado, por exemplo, as classes de que se compõe. Estas classes são, por sua vez, uma palavra vazia se desconheço os elementos sobre os quais repousam, por exemplo, o trabalho assalariado, o capital, etc. Estes últimos supõem a troca, a divisão do trabalho, os preços, etc. O capital, por exemplo, não é nada sem trabalho assalariado, sem valor, dinheiro, preços, etc. Se começara, pois, pela população teria uma representação caótica do conjunto e, precisando cada vez mais, chegaria analiticamente a conceitos cada vez mais simples: do concreto representado chegaria abstrações cada vez mais sutis até alcançar as determinações mais simples” (MARX: 1989, 21).

A análise da economia já começa com categorias estabelecidas e empreende uma escavação em busca dos princípios. Marx relata este tema para criticar os socialistas que continuavam a trabalhar com categorias gerais vazias, sem ter empreendido nem a busca dos fundamentos. A economia política havia feito esta busca, e ela mesma tinha superado as categorias gerais vazias, este “... caminho é o que seguiu historicamente a economia política nascente” (MARX: 1989,21). Porém, este caminho foi uma imposição de uma sociedade nascente, que ainda não divisara seu conjunto e que tateava em busca de sua afirmação dominante. O caminho teve que seguir a partir das categorias anteriores para somente depois encontrar seus próprios fundamentos. Somente o pleno desenvolvimento da sociedade capitalista permitiu encontrar os pilares que sustentavam a forma social.

Ao chegar a estas determinações simples de sustentação da sociedade capitalista é que foi possível retornar. Assim:

“Chegado a este ponto haveria que reempreender a viagem de retorno, até dar de novo com a população, mas desta vez não teria uma representação caótica de um conjunto, mas uma rica totalidade com múltiplas determinações e relações” (MARX: 1989, 21).

A compreensão dos fundamentos é que permite analisar as manifestações gerais da sociedade. As categorias mais simples permitem compreender o mecanismo de funcionamento da estrutura social. Somente a identificação dos princípios simples permite formar uma visão da totalidade; não mais um todo vazio, que não é capaz de explicar a sociedade, mas um todo rico pelo entendimento da unidade em meio às manifestações diversas e contraditórias. Esta é a chave do presente e que permite abrir as portas do passado, mas não somente o passado e o presente, mas entender a possibilidade do futuro.

Da análise de um todo vazio a economia política caminhou para as determinações simples do funcionamento do sistema. Então, diz Marx:

“Uma vez que esses momentos foram mais ou menos fixados e abstraídos, começaram [[a surgir]] os sistemas econômicos que se elevaram do simples – trabalho, divisão do trabalho, necessidade, valor de troca – até o Estado, a troca entre as nações e o mercado mundial. Este último é, manifestamente, o método científico correto. O concreto é concreto porque é a síntese de múltiplas determinações, portanto, unidade do diverso. Aparece no pensamento como processo de síntese, como resultado, não como ponto de partida, e, em conseqüência, o ponto de partida também da intuição e da representação” (MARX: 1989, 21).

O concreto é o resultado da capacidade de determinar, de estabelecer os limites entre as categorias, de descobrir os fundamentos que dirigem a organização social. O concreto é possibilitado pelos resultados alcançados historicamente pela busca da economia política. Mas não só, foi preciso ir além dela como método científico; tornou-se necessário compreender os limites, as determinações negativas do capitalismo, criando a base sob a qual ocorre a ciência da crítica à economia política. Estar no campo programático do capitalismo não permite visualizar as categorias desta sociedade como estruturas determinadas (limitadas) no tempo, decorrentes da dissolução de formações anteriores, e representando, elas mesmas, uma transição para formas seguintes.

A síntese das múltiplas categorias, das múltiplas determinações, não é o ponto de partida, mas o resultado de um enorme esforço de compreensão e investigação. Apenas com o desenvolvimento do próprio sistema dá-se a oportunidade de compreendê-lo. A sua compreensão definitiva surge, paradoxalmente, no período em que se torna possível a sua derrubada, a sua substituição. Marx busca ocupar o espaço da formulação para a substituição do capitalismo.

Porém, poderíamos nos perguntar se um novo sistema não teria que tatear na incompreensão de um todo vazio, até que descobrisse os seus fundamentos já em seu princípio de ocaso. Mas, esta é uma das diferenciações de um novo sistema que surgisse da destruição do capitalismo: sua capacidade de pensar a si mesmo, não sendo mais dirigido por mecanismos automáticos e estranhos às decisões humanas. Marx diferencia-se das propostas e do método de Hegel neste ponto. Diz ele:

“... as determinações abstratas conduzem à reprodução do concreto pelo caminho do pensamento. Eis aqui porque Hegel caiu na ilusão deconceber o real como resultado do pensamento que, partindo de si mesmo, se concentra em si mesmo, se aprofunda em si mesmo e se move por si mesmo, ao mesmo tempo que o método que consiste em elevar-se do abstrato ao concreto é para o pensamento somente a maneira de apropriar-se do concreto, de reproduzi-lo como um concreto espiritual. Mas este não é de nenhum modo o processo de formação do concreto mesmo” (MARX: 1989, 21-2).

Marx diverge de Hegel na capacidade de produzir o concreto como resultado do pensamento. Este resultado não é determinado apenas pelo pensamento, ele é a solução das próprias condições sociais, do processo de dissolução das formas vigentes, da produção de uma crise dos princípios de sustentação do mecanismo social. Marx se dirige a Hegel justamente por este ter concebido um “sistema ético” que aproveitava as categorias vigentes para reformá-las. Hegel propõe a racionalidade do sistema capitalista, um racional alcançado por medidas estatais pensadas, por elaborações intelectuais voltadas para a estrutura jurídica. Marx percebe que este é o caminho da manutenção do sistema; o racional não pode, independentemente das condições sociais, submeter os fundamentos do capital. Este produz uma nova racionalidade, um racional do mercado, a racionalidade capitalista. Eis a razão da falência do projeto hegeliano.

Marx busca construir um novo modo de produção, uma nova racionalidade, decorrente da crise dos próprios mecanismos de funcionamento do capitalismo; o conteúdo programático marxiano já não utiliza as categorias específicas deste sistema em derrocada, mas propõe a sua eliminação por completo, a erradicação de seus fundamentos. Esta é um processo de continuidade das crises do capital. Somente é possível elaborar um programa oriundo das determinações necessárias para substituir o sistema. Daí Marx afirma que:

“Portanto, à consciência, para qual o pensamento conceptivo é o homem real e, por conseguinte, o mundo pensado é como tal a única realidade – e a consciência filosófica está determinada deste modo –, o movimento das categorias lhe aparece como o verdadeiro ato de produção... cujo resultado é o mundo” (MARX: 1989, 22).

É interessante notar que Marx não despreza o pensamento que produz conceitos sobre a realidade, mas reconhece o perigo dos conceitos que são imaginados independentemente da realidade. Pensar soluções para o mundo sem que correspondam às categorias da realidade produz a manutenção do sistema. Romper com o sistema do capital exige compreensão da sua estrutura de funcionamento. Aqui é estabelecida a ligação com o tópico da produção, onde Marx discutiu o geral, que pertence a todas as épocas e que deve ser mantido em uma sociedade futura, e o específico, que deve ser eliminado por ser a base distintiva do capitalismo. O “movimento das categorias” não pode desconhecer esta contradição entre geral e específico; aqui o pensamento pode perder o sentido do que é real e manter-se na esfera que ele queria substituir. Por isso, segue na “Introdução” com a discussão das categorias específicas e sua existência histórica. Diz ele a respeito destas categorias:

“Mas estas categorias simples não têm uma existência histórica ou natural autônoma, anterior às categorias concretas? Ça dépend... O dinheiro pode existir e existiu historicamente antes que existisse o capital, antes que existissem os bancos, antes que existisse o trabalho assalariado. Desde esse ponto de vista, pode-se afirmar que a categoria mais simples pode expressar as relações dominantes de um todo não desenvolvido ou as relações subordinadas de um todo mais desenvolvido, relações que já existiam historicamente antes que o todo se desenvolvesse no sentido expresso por uma categoria mais concreta. Somente então o caminho do pensamento abstrato, que se eleva do simples ao complexo, poderia corresponder ao processo histórico real”
(MARX: 1989, 23).

A argumentação se concentra na concepção de “todo”. Seu foco é a identificação das formas de produção distintas. As categorias de uma forma podem existir em outra sem estarem totalmente desenvolvidas. A definição de total corresponde à dominante. Compreende-se uma fase da história humana por meio das categorias dominantes. Mas, algumas das categorias podem sobreviver ao declínio de sua forma dominante, ou categorias não desenvolvidas podem anunciar o futuro de uma forma por surgir.

Mas, na passagem acima Marx se refere ao pensamento abstrato e à sua correspondência ao processo histórico real. Isto significa que a análise das categorias abstratas, o exame em separado de uma categoria específica do capitalismo, serve para permitir que o pensamento deixe a sua dimensão meramente especulativa e produza uma compreensão de um período histórico, ou seja, identificar como certas categorias estiverampresentes em outras formações sociais, mas não eram centrais, ou estavam em situação subordinada ao todo, à unidade, daquela forma.

O pensamento abstrato deve estar voltado à identificação do processo histórico, à tentativa de resolução de seus dilemas, à busca pelas causas do funcionamento de uma sociedade específica. Uma categoria é abstrata porque está em situação dominante, porque se separou de outras e constitui um mecanismo de sustentação fundamental do sistema. O abstrato não é produzido pelo pensamento, ele é a manifestação real de uma essência social, que pode ou não ser captada pelo pensamento. Este captar do intelecto permite enxergar as modificações a serem adotadas a fim de eliminar a abstração dominante.

Marx identifica o aspecto da abstração dominante afirmando que:

“Assim, as abstrações mais gerais surgem unicamente ali onde existe o desenvolvimento concreto mais rico, onde um elemento aparece como o comum a muitos, como comum a todos os elementos. Então, deixa de poder ser pensado somente sob uma forma particular” (MARX: 1989, 25).

O caráter comum de uma categoria implica a sua dominação sobre os elementos particulares e em contradição interna no sistema. Algo unifica este mecanismo, que é o caráter comum de uma categoria abstrata. Então, o pensamento percebe que a abstração invade todas as esferas, dirige todas as ações do sistema; o que põe como tarefa central para a revolução a identificação e eliminação dos fundamentos abstratos, das categorias abstratas. A revolução pode tornar-se vitoriosa somente por meio da supressão do mais abstrato, por isso, do dominante. Diz Marx:

“... as categorias mais abstratas, apesar de sua validade – precisamente devida à sua natureza abstrata – para todas as épocas, são não obstante, no que há de determinado nesta abstração, o produto de condições históricas e possuem plena validez somente para estas condições e dentro de seus limites” (MARX: 1989, 26).

O abstrato é uma determinação específica de um sistema. Mesmo que sua história atravesse vários modos de produção, ele só atinge a condição dominante em um estágio particular. A categoria abstrata pode e deve ser eliminada para que se alcance uma forma superior de sociedade. Não é possível aceitar propostas que mantenham intactas as categorias abstratas dominantes. Mais uma vez Marx anuncia o final do sistema capitalista por uma conclusão de seu trabalho de investigação. Posteriormente, ele irá explicar o trabalho abstrato como base para o valor, ou seja, explicará estes conceitos para justificar sua característica de categorias essenciais para a existência do modo de produção capitalista.

Para Marx estão definidas as tarefas: compreender a sociedade dominada pelo capital, compreender as sociedades anteriores ao capitalismo e sua relação com este e, por fim, apresentar as possibilidades para a construção da sociedade comunista. Diz Marx:“O capital é a potência econômica, que domina o todo, da sociedade burguesa. Deve constituir o ponto de partida e o ponto de chegada...” (MARX: 1989, 28). O capital é a partida e a chegada das categorias. Cabe eliminá-las e construir uma nova sociedade, fazendo com que seja rompida a abstração como forma social dominante.


Bibliografia
MARX, Karl. Elementos Fundamentales Para la Crítica de la Economía Política (Grundrisse) 1857~1858. 16. ed. México: Siglo Veintiuno, 1989. (Biblioteca del Pensamiento Socialista). Vol. I.

ROSDOLSKY, Roman. Génesis y Estructura de El Capital de Marx (estudios sobre los Grundrisse). 6. ed. México: Siglo Veintiuno, 1989.

NEGRI, Antonio. Marx Más Allá de Marx: cuaderno de trabajo sobre los Grundrisse. Madri: Akal, 2001.

segunda-feira, 14 de setembro de 2009

O Pensamento Vivo de Karl Marx - Leon Trotski

Retirado do Arquivo Marxista da Internet diponível em: http://www.marxists.org/portugues/trotsky/1939/marxismo/index.htm (grifo meu)


O Que Oferecemos ao Leitor?

Este livro expõe, de forma resumida, as doutrinas econômicas fundamentais de Marx segundo as próprias palavras de Marx. Afinal de contas, ninguém ainda foi capaz de expor melhor a teoria do trabalho que o próprio Marx[1]

Algumas das argumentações de Marx, principalmente no primeiro capítulo, o mais difícil de todos, podem parecer ao leitor não iniciado digressivas, minuciosas ou “metafísicas” demais.

Na verdade, esta impressão é uma conseqüência da necessidade ou do costume de aproximar-se dos fenômenos corriqueiros, antes de mais nada, de uma maneira científica. A mercadoria transformou-se numa parte tão comum, tão habitual e tão familiar de nossa vida diária que nem sequer nos ocorre pensar por que os homens abrem mão de objetos importantes, necessários para o sustento da vida, em troca de pequenos discos de ouro ou de prata que não são utilizados em nenhum lugar da terra. A questão não se limita à mercadoria. Todas e cada uma das categorias da economia de mercado parecem ser aceitas sem análise, como evidentes por si mesmas, e como se fossem as bases naturais das relações humanas. No entanto, enquanto as realidades do processo econômico são o trabalho humano, as matérias-primas, as ferramentas, as máquinas, a divisão do trabalho, a necessidade de distribuir os produtos acabados entre os que participam do processo do trabalho etc, categorias como “mercadoria”, “dinheiro”, “salários”, “capital”, “lucro”, “imposto” etc, são, nas cabeças dos homens, apenas reflexos semi-místicos dos diversos aspectos de um processo econômico que eles não compreendem e que não podem dominar. Para decifrâ-los é indispensâvel uma anâlise científica completa.

Nos Estados Unidos, onde se considera que um homem que possui um milhão de dólares “vale” um milhão de dólares, os conceitos relativos ao mercado foram muito mais rebaixados do que em qualquer outro lugar. Até bem recentemente, os estadunidenses se preocuparam muito pouco com a natureza das relações econômicas. Na terra do mais poderoso sistema econômico, a teoria econômica continuou sendo excessivamente estéril. Só a crise, cada vez mais profunda, da economia norte-americana, conseguiu fazer com que a opinião pública desse país se enfrentasse repentinamente com os problemas fundamentais da sociedade capitalista. De qualquer modo, todo aquele que não tenha superado o costume de aceitar sem um rigoroso exame as considerações ideológicas sobre o progresso econômico feitas superficialmente, todo aquele que não tenha pensado, seguindo os passos de Marx, a natureza essencial da mercadoria como sendo a célula bâsica do organismo capitalista, não serâ capaz de entender cientificamente as manifestações mais importantes de nossa época.


O Método de Marx

Tendo definido a ciência como o conhecimento dos recursos objetivos da natureza, o homem procurou, obstinada e persistentemente, excluir a si mesmo da ciência, reservando-se privilégios especiais sob a forma de um pretenso intercâmbio com forças supra-sensíveis (religião) ou com preceitos morais independentes do tempo (idealismo). Marx privou o homem definitivamente e para sempre desses odiosos privilégios, considerando-o um elo natural no processo evolutivo da natureza material, a sociedade como a organização para a produção e a distribuição e o capitalismo como uma etapa no desenvolvimento da sociedade humana.

A finalidade de Marx não era descobrir as “leis eternas” da economia. Ele negou a existência de tais leis. A história do desenvolvimento da sociedade humana é a história da sucessão de diversos sistemas econômicos, cada um dos quais atua de acordo com suas próprias leis. A transição de um sistema para outro sempre foi determinada pelo aumento das forças de produção, por exemplo, da técnica e da organização do trabalho. Até certo ponto, as mudanças sociais são de caráter quantitativo e não alteram as bases da sociedade, por exemplo, as formas prevalecentes da propriedade. Mas chega-se a um novo ponto quando as forças produtivas maduras já não podem conter-se por mais tempo dentro das velhas formas da propriedade: produz-se, então, uma mudança radical na ordem social, acompanhada de comoções. A comuna primitiva foi substituída ou complementada pela escravidão; à escravidão seguiu-se a servidão com sua superestrutura feudal; o desenvolvimento comercial das cidades levou a Europa, no século XVI, à ordem capitalista, que passou imediatamente por diversas etapas. Em seu Capital, Marx não estuda a economia em geral, mas a economia capitalista, que tem leis específicas próprias. Refere-se a outros sistemas apenas de passagem e com o objetivo de pôr em evidência as características do capitalismo.

A economia da família de agricultores primitiva, que se bastava a si mesma, não tinha necessidade da “economia política”, pois era dominada por um lado pelas forças da natureza e por outro pelas forças da tradição. A economia natural dos gregos e romanos, completa em si mesma, fundada no trabalho dos escravos, dependia da vontade do proprietário dos escravos, cujo “plano” era diretamente determinado pelas leis da natureza e da rotina. O mesmo se pode dizer do Estado medieval com seus servos camponeses. Em todos esses casos as relações econômicas eram claras e transparentes em sua crueza primitiva. Mas o caso da sociedade contemporânea é completamente diferente. Ela destruiu essas velhas conexões completas em si mesmas e esses modos de trabalho herdados. As novas relações econômicas relacionaram entre si as cidades e as vilas, as províncias e as nações. A divisão do trabalho abarcou todo o planeta. Tendo destroçado a tradição e a rotina, esses laços não se estabeleceram de acordo com algum plano definido, e sim muito mais à margem da consciência e da previsão humanas. A interdependência dos homens, dos grupos, das classes, das nações, conseqüência da divisão do trabalho, não é dirigida por ninguém. Os homens trabalham uns para os outros sem conhecer-se, sem conhecer as necessidades dos demais, com a esperança, e inclusive com a certeza, de que suas relações se regularizarão de algum modo por si mesmas. E assim o fazem, ou melhor, assim gostariam de fazê-lo.

É totalmente impossível encontrar as causas dos fenômenos da sociedade capitalista na consciência subjetiva — nas intenções ou nos planos de seus membros. Os fenômenos objetivos do capitalismo foram formulados antes que a ciência começasse a pensar seriamente sobre eles. Até hoje a imensa maioria dos homens nada sabe sobre as leis que regem a economia capitalista. Toda força do método de Marx reside em se aproximar dos fenômenos econômicos, não do ponto de vista subjetivo de certas pessoas, mas do ponto de vista objetivo do desenvolvimento da sociedade em seu conjunto, da mesma forma que um homem de ciência que estuda a natureza se aproxima de uma colméia ou de um formigueiro.

Para a ciência econômica o que tem um significado decisivo é o que fazem os homens e como o fazem, o que pensam eles com relação a seus atos. Na base da sociedade não se encontram a religião e a moral, mas a natureza e o trabalho. O método de Marx é materialista, pois vai da existência à consciência e não o contrário. O método de Marx é dialético, pois observa como a natureza e a sociedade evoluem e a própria evolução como a luta constante das forças em conflito.


O Marxismo e a Ciência Oficial

Marx teve predecessores. A economia política clássica — Adam Smith, David Ricardo — floresceu antes que o capitalismo tivesse se desenvolvido, antes que começasse a temer o futuro. Marx rendeu aos grandes clássicos o perfeito tributo de sua profunda gratidão. No entanto, o erro básico dos economistas clássicos era considerarem o capitalismo como a existência normal da humanidade em todas as épocas, ao invés de considerá-lo simplesmente como uma etapa histórica no desenvolvimento da sociedade. Marx iniciou a crítica dessa economia política, mostrou seus erros, assim como as contradições do próprio capitalismo, e demonstrou que seu colapso era inevitável.

A ciência não atinge sua meta no estudo hermeticamente fechado do erudito, e sim na sociedade de carne e osso. Todos os interesses e paixões que dilaceram a sociedade exercem sua influência no desenvolvimento da ciência, principalmente da economia política, a ciência da riqueza e da pobreza. A luta dos trabalhadores contra os capitalistas obrigou os teóricos da burguesia a dar as costas para a análise científica do sistema de exploração e a ocupar-se com uma descrição vazia dos fatos econômicos, o estudo do passado econômico e, o que é muitíssimo pior, com uma falsificação absoluta das coisas tais como são com o propósito de justificar o regime capitalista. A doutrina econômica ensinada até hoje nas instituições oficiais de ensino e que se prega na imprensa burguesa não está desprovida de materiais importantes relacionados com o trabalho, mas não obstante é inteiramente incapaz de abarcar o processo econômico em seu conjunto e descobrir suas leis e perspectivas, nem tem o menor intuito de fazer isso. A economia política oficial está morta.


A Lei da Valorização do Trabalho

Na sociedade contemporânea o vínculo cardeal entre os homens é a troca. Todo produto do trabalho que entra no processo de troca converte-se em mercadoria. Marx iniciou sua pesquisa com a mercadoria e extraiu dessa célula fundamental da sociedade capitalista as relações sociais que se constituíram objetivamente com base na troca, independentemente da vontade do homem. Somente seguindo este caminho é possível decifrar o enigma fundamental: como, na sociedade capitalista, onde cada homem pensa só em si e ninguém pensa nos demais, criaram-se as proporções relativas dos diversos setores da economia indispensáveis para a vida.

O operário vende sua força de trabalho, o agricultor leva seu produto ao mercado, o agiota ou o banqueiro concedem empréstimos, o comerciante oferece um sortimento de mercadorias, o industrial constrói uma fábrica, o especulador compra e vende ações e bônus, e cada um deles leva em consideração suas próprias conveniências, seus planos particulares, sua própria opinião sobre os salários e os lucros. No entanto, deste caos de esforços e ações individuais surge determinado conjunto econômico que embora certamente não seja harmonioso, e sim contraditório, dá à sociedade a possibilidade de não só existir, como também de se desenvolver. Isto quer dizer que, no final das contas, o caos não é absolutamente caos, que de alguma maneira está regulado automaticamente, se não conscientemente. Compreender o mecanismo pelo qual os diversos aspectos da economia chegam a um estado de equilíbrio relativo é descobrir as leis objetivas do capitalismo.

Evidentemente, as leis que regem as diversas esferas da economia capitalista — salários, preços, arrendamento, proventos, lucro, crédito, bolsa — são numerosas e complexas. Mas em última análise procedem todas de uma única lei descoberta por Marx e por ele examinada até o fim; é a lei do valor-trabalho, que é sem dúvida a que regula basicamente a economia capitalista. A essência dessa lei é simples. A sociedade tem a sua disposição determinada reserva de força de trabalho viva. Aplicada à natureza, essa força engendra produtos necessários para a satisfação das necessidades humanas. Como conseqüência da divisão do trabalho entre produtores individuais, os produtos assumem a forma de mercadorias. As mercadorias são trocadas entre si numa proporção determinada, a princípio diretamente e depois por meio do ouro ou da moeda. A propriedade essencial das mercadorias, que em certa relação as iguala entre si, é o trabalho humano investido nelas — trabalho abstrato, trabalho em geral —, base e medida do valor. A divisão do trabalho entre milhões de produtores dispersos não leva à desintegração da sociedade, porque as mercadorias são intercambiadas de acordo com o tempo de trabalho socialmente necessário investido nelas. Mediante a aceitação e a rejeição das mercadorias, o mercado, na qualidade de terreno de troca, decide se elas contêm ou não em si mesmas o trabalho socialmente necessário, com o que determina as proporções dos diversos tipos de mercadorias necessárias para a sociedade, e também, conseqüentemente, a distribuição da força de trabalho de acordo com os diversos tipos de comércio.

Os processos reais do mercado são imensamente mais complexos que o que expusemos aqui em poucas linhas. Assim, ao girar em torno do valor do trabalho, os preços flutuam acima e abaixo de seus valores. As causas destes desvios são inteiramente explicadas no terceiro volume de O Capital de Marx, onde se descreve “o processo da produção capitalista considerado em seu conjunto”. No entanto, por maiores que possam ser as diferenças entre os preços e os valores das mercadorias nos casos individuais, a soma de todos os preços é igual à soma de todos os valores, pois, em última análise, só os valores que foram criados pelo trabalho humano se encontram à disposição da sociedade, e os preços não podem ultrapassar estes limites, mesmo tendo-se em conta o monopólio dos preços ou trust; onde o trabalho não criou um valor novo nem o próprio Rockefeller pode fazer alguma coisa.


Desigualdade e Exploração

Mas, se as mercadorias são trocadas de acordo com a quantidade de trabalho investido nelas, como se deriva a desigualdade da igualdade? Marx decifrou esse enigma expondo a natureza peculiar de uma das mercadorias que é a base de todas as outras: a força de trabalho. O proprietário dos meios de produção, o capitalista, compra a força de trabalho. Como todas as outras mercadorias, a força de trabalho é valorizada de acordo com a quantidade de trabalho investida nela, isto é, dos meios de subsistência necessários para a vida e reprodução do trabalhador. Mas o consumo desta mercadoria — força de trabalho — se produz mediante o trabalho, que cria novos valores. A quantidade desses valores é maior que aquela que o próprio trabalhador recebe e gasta para se manter. O capitalista compra força de trabalho para explorá-Ia. Essa exploração é a fonte da desigualdade.

A parte do produto que contribui para a subsistência do trabalhador é chamada por Marx de produto necessário; a parte excedente que o trabalhador produz é chamada de produto excedente ou mais-valia. O escravo tinha que produzir mais-valia, pois de outra forma o dono de escravos não os teria. O servo tinha que produzir mais-valia, pois de outro modo a servidão não teria tido nenhuma utilidade para a classe proprietária. O operário assalariado também produz mais-valia, só que numa escala muito maior, pois de outra maneira o capitalista não teria necessidade de comprar a força de trabalho. A luta de classes não é outra coisa senão a luta pela mais-valia. Quem possui a mais-valia é o dono da situação, possui a riqueza, possui o poder do Estado, tem a chave da igreja, dos tribunais, das ciências e das artes.


Concorrência e Monopólio

As relações entre os capitalistas que exploram os trabalhadores são determinadas pela concorrência, que atua como mola principal do progresso capitalista. As grandes empresas gozam de maiores vantagens técnicas, financeiras, de organização, econômicas e políticas do que as empresas pequenas. O grande capital capaz de explorar um número maior de operários é inevitavelmente o que consegue vencer numa concorrência. Tal é a base inalterável do processo de concentração e centralização do capital.

Ao estimular o desenvolvimento progressivo da técnica, a concorrência não só consome gradualmente as camadas intermediárias, mas também consome-se a si mesma. Sobre os cadáveres e semi-cadáveres dos pequenos e médios capitalistas, surge um número cada vez menor de magnatas capitalistas cada vez mais poderosos. Deste modo, a concorrência honesta, democrática e progressista engendra irrevogavelmente o monopólio pernicioso, parasitário e reacionário. Seu predomínio começou a se afirmar por volta dos anos 80 do século passado e assumiu sua forma definida no início do presente século. Pois bem, a vitória do monopólio é reconhecida sem reservas pelos representantes oficiais da sociedade burguesa[2]. No entanto, quando Marx, ao longo de seu prognóstico, foi o primeiro a concluir que o monopólio é uma conseqüência das tendências inerentes do capitalismo, o mundo burguês continuou considerando a concorrência como uma lei eterna da natureza.

A eliminação da concorrência pelo monopólio assinala o início da desintegração da sociedade capitalista. A concorrência era a principal mola criadora do capitalismo e a justificação histórica do capitalista. Por isso mesmo, a eliminação da concorrência assinala a transformação dos acionistas em parasitas sociais. A concorrência precisa de certas liberdades, uma atmosfera liberal, um regime democrático, um cosmopolitismo comercial. O monopólio, em compensação, precisa de um governo o mais autoritário possível, barreiras alfandegárias, suas “próprias” fontes de matérias-primas e mercados (colônias). A palavra final na desintegração do capital monopolista é o fascismo.


Concentração das Riquezas e Aumento das Contradições de Classe

Os capitalistas e seus defensores procuram por todos os meios ocultar tanto aos olhos do povo como aos do cobrador de impostos o alcance real da concentração da riqueza. Contra toda evidência, a imprensa burguesa ainda tenta manter a ilusão de uma distribuição “democrática” do investimento do capital. The New York Times, para refutar os marxistas, assinala que há de três a cinco milhões de patrões individuais. É verdade que as companhias por ações representam uma concentração de capital maior que três a cinco milhões de patrões individuais, embora os Estados Unidos contem com “meio milhão de corporações”. Esta forma de jogar com as cifras tem por objetivo não esclarecer, mas ocultar a realidade das coisas.

Desde o começo da guerra até 1923 o número de fábricas e estabelecimentos comerciais existentes nos Estados Unidos caiu de 100% para 98,7%, enquanto que a massa de produção industrial subiu de 100% para 156,3%. No período de uma prosperidade sensacional (1923-1929), quando parecia que todo mundo ia ficar rico, o número de estabelecimentos baixou de 100% para 93,8%, enquanto que a produção cresceu de 100% para 113 %. No entanto, a concentração de estabelecimentos comerciais, limitada por seu volumoso corpo material, está longe da concentração de sua alma, a propriedade. Em 1929 havia, na verdade, mais de 300.000 corporações, como observa corretamente The New York Times. A única coisa que falta acrescentar é que 200 delas, quer dizer, 0,007% do total, controlava diretamente os 49,2% dos capitais de todas as corporações. Quatro anos depois, a porcentagem já tinha subido para 56, enquanto que no período da administração Roosevelt subiu, sem dúvida, ainda mais. Nessas 200 principais companhias por ações o domínio verdadeiro pertence a uma pequena minoria[3].

O mesmo processo pode ser observado no sistema bancário e nos sistemas de seguros. Cinco das maiores companhias de seguros dos Estados Unidos absorveram não somente as outras companhias, como também muitos bancos. O número total de bancos reduziu-se, principalmente sob a forma das chamadas “associações”, essencialmente através da absorção. Esta mudança avança rapidamente. Acima dos bancos eleva-se a oligarquia dos superbancos. O capital bancârio associa-se ao capital industrial no supercapital financeiro. Supondo que a concentração da indústria e dos bancos se produza na mesma proporção que durante o último quarto de século — na verdade o “tempo” de concentração tende a aumentar — ao longo do próximo quarto de século os monopolistas terão concentrado em si mesmos toda a economia do país, sem deixar nada para os outros.

Apresentamos as estatísticas dos Estados Unidos porque são mais exatas e mais surpreendentes. O processo de concentração é de carâter essencialmente internacional. Ao longo das diversas etapas do capitalismo, ao longo das fases dos ciclos de conexão, ao longo de todos os regimes políticos, ao longo dos períodos de paz como dos períodos de conflitos armados, o processo de concentração de todas as grandes fortunas num número de mãos cada vez menor seguiu adiante e prosseguirá sem termo. Na época da Grande Guerra, quando as nações estavam feridas de morte, quando os próprios corpos políticos da burguesia jaziam esmagados sob o peso das dívidas nacionais, quando os sistemas fiscais rolavam para o abismo, arrastando atrás de si as classes médias, os monopolistas obtinham lucros sem precedentes com o sangue e a lama. Durante a guerra, as empresas mais poderosas dos Estados Unidos aumentaram seus lucros duas, três e até quatro vezes e aumentaram seus dividendos em até 300, 400 e 900% e ainda mais.

Em 1840, oito anos antes da publicação, por Marx e Engels, do Manifesto do Partido Comunista, o famoso escritor francês Alexis de Tocqueville escreveu em seu livro A democracia na América: “A grande riqueza tende a desaparecer e o número de pequenas fortunas a aumentar”. Este pensamento foi reiterado inúmeras vezes, de início com referência aos Estados Unidos, e depois com referência a outras jovens democracias, Austrália e Nova Zelândia. Evidentemente, a opinião de Tocqueville já era errônea na sua época. Mais ainda, a verdadeira concentração da riqueza só começou depois da Guerra Civil americana, nas vésperas da morte de Tocqueville. No início deste século 2% da população dos Estados Unidos possuía mais da metade de toda a riqueza do país; em 1929 esses mesmos 2% possuíam três quintos da riqueza nacional. Ao mesmo tempo, 36.000 famílias ricas possuíam uma renda tão alta quanto a de 11.000.000 de famílias de classe média baixa. Durante a crise de 1929-1933 os estabelecimentos monopolistas não precisavam apelar para a caridade pública; pelo contrário, fizeram-se mais poderosos que nunca em meio ao declínio geral da economia nacional. Durante a subseqüente raquítica reação industrial produzida pelo fermento da New Deal, os monopolistas conseguiram novos benefícios. O número de desempregados diminuiu, na melhor das hipóteses, de 20.000.000 para 10.000.000; ao mesmo tempo a camada superior da sociedade capitalista — não mais de 6.000 adultos — acumulou dividendos fantásticos; isto é o que o subsecretário de Justiça Robert H. Jackson demonstrou com cifras em seu depoimento ante a correspondente comissão de investigação dos Estados Unidos.

Mas o conceito abstrato de “capital monopolista” para nós está cheio de sangue e carne. Isto quer dizer que um punhado de famílias[4], unidas pelos laços de parentesco e do interesse comum numa oligarquia capitalista exclusiva, dispõe das formas econômica e política de uma grande nação. Somos forçados a admitir que a lei marxista da concentração do capital realizou bem a sua obra!


A Teoria de Marx Tornou-se Antiquada?

As questões da concorrência, da concentração da riqueza e do monopólio levam naturalmente à questão de que se em nossa época a teoria econômica de Marx não teria apenas um simples interesse histórico — como, por exemplo, a teoria de Adam Smith — ou se continua tendo verdadeira importância. O critério para responder a essa pergunta é simples: se a teoria. considera corretamente o curso da evolução e prevê o futuro melhor que as outras teorias, continua sendo a teoria mais avançada de nossa época, embora já tenha muitos anos de idade.

O famoso economista alemão Werner Sombart, que era virtualmente um marxista no início de sua carreira mas que depois revisou todos os aspectos mais revolucionários da doutrina de Marx, contrapôs a O Capital de Marx seu Capitalismo, provavelmente a mais conhecida exposição apologética da economia burguesa dos últimos tempos. Sombart escreveu:

“Karl Marx profetizou: primeiro, a miséria crescente dos trabalhadores assalariados; segundo, a ‘concentração’ geral, com o desaparecimento da classe de artesãos e lavradores; terceiro, o colapso catastrófico do capitalismo. Nada disso aconteceu”.

A estes prognósticos equivocados, Sombart contrapõe seus próprios prognósticos “estritamente científicos”.

“O capitalismo subsistirá — segundo ele — para transformar-se internamente na mesma direção em que já começou a transformar-se na época do seu apogeu: quanto mais vai ficando velho, mais e mais vai ficando tranqüilo, sossegado, razoável”.

Tentemos verificar, embora apenas nas suas linhas mais gerais, qual dos dois está com a razão: Marx, com sua idéia da catástrofe, ou Sombart, que em nome de toda economia burguesa prometeu que as coisas se arranjariam de uma forma “tranqüila, sossegada e razoável”. O leitor há de convir que o assunto é digno de estudo.


a) A Teoria da Miséria Crescente

“A acumulação da riqueza num pólo — escreveu Marx sessenta anos antes de Sombart — é, conseqüentemente, ao mesmo tempo, acumulação de miséria, sofrimento no trabalho, escravidão, ignorância, brutalidade, degradação mental no pólo oposto, quer dizer, no lado da classe que produz seu produto na forma do capital”.


Esta tese de Marx, chamada de “teoria da miséria crescente”, sofreu ataques constantes por parte dos reformadores democráticos e social-democratas, especialmente durante o período de 1896 a 1914, quando o capitalismo se desenvolveu rapidamente e fez certas concessões aos trabalhadores, principalmente a seu estrato superior. Depois da Guerra Mundial, quando a burguesia, assustada com seus próprios crimes e com a Revolução de Outubro, seguiu o caminho das reformas sociais anunciadas, cujo valor foi simultaneamente anulado pela inflação e pelo desemprego, a teoria da transformação progressiva da sociedade capitalista pareceu totalmente assegurada aos reformistas e aos professores burgueses.

“A compra de força de trabalho assalariada — assegurou-nos Sombart em 1928 — cresceu na proporção direta à expansão da produção capitalista”.

Na verdade, a contradição econômica entre o proletariado e a burguesia agravou-se durante os períodos mais prósperos do desenvolvimento capitalista, quando a melhora do nível de vida de determinada camada de trabalhadores, que era às vezes apenas extensiva, ocultou a diminuição da participação do proletariado na fortuna nacional. Deste modo, justamente antes de cair na prostração, a produção industrial dos Estados Unidos, por exemplo, aumentou em 50% entre 1920 e 1930, enquanto que o total pago por salários aumentou somente em 30%, o que significa uma tremenda diminuição da participação do trabalho nas rendas nacionais. Em 1930 teve início um terrível aumento do desemprego, e em 1933 uma ajuda mais ou menos sistemática aos desempregados, que receberam como compensação pouco mais da metade do que tinham perdido sob a forma de salários. A ilusão do progresso “ininterrupto” de todas as classes desvaneceu-se sem deixar rastro. A queda relativa do nível de vida das massas foi superada pela queda absoluta. Os trabalhadores começaram economizando em suas modestas diversões, depois em seu vestuário e finalmente em seus alimentos. Os artigos e produtos de qualidade média foram substituídos pelos de qualidade medíocre e os de qualidade medíocre, pelos de qualidade visivelmente baixa. Os sindicatos começaram a parecer-se ao homem que se pendura desesperadamente no corrimão, enquanto desce vertiginosamente num elevador.

Com 6% da população mundial, os Estados Unidos possuem 40% da riqueza mundial. Além disso, um terço da nação, como admite o próprio Roosevelt, está mal alimentado, vestido inadequadamente e vive em condições inferiores às humanas. Que se poderia dizer, portanto, dos países muito menos privilegiados? A história do mundo capitalista desde a última guerra confirma irrefutavelmente a chamada “teoria da miséria crescente”.

O regime fascista, que reduz simplesmente ao máximo os limites da decadência e da reação inerentes a todo capitalismo imperialista, tornou-se indispensável quando a degeneração do capitalismo fez desaparecer qualquer possibilidade de manter ilusões com respeito à elevação do nível de vida do proletariado. A ditadura fascista significa o aberto reconhecimento da tendência ao empobrecimento, que as democracias mais ricas ainda tentam esconder. Mussolini e Hitler perseguem o marxismo com tanto ódio justamente porque seu próprio regime é a mais horrível confirmação dos prognósticos marxistas. O mundo civilizado indignou-se, ou pretendeu indignar-se, quando Goering, com o tom de verdugo e de bufão que lhe é peculiar, declarou que os canhões são mais importantes que a manteiga, ou quando Cagliostro—Casanova—Mussolini advertiu os trabalhadores da Itália que deviam apertar os cintos de suas camisas negras. Mas por acaso não acontece essencialmente o mesmo nas democracias imperialistas? Em toda a parte se utiliza a manteiga para azeitar os canhões. Os trabalhadores da França, da Inglaterra e dos Estados Unidos aprendem a apertar seus cintos sem ter camisas negras.


b) O Exército de Reserva e a Nova Sub-Classe dos Desempregados

O exército industrial de reserva constitui uma componente indispensável do mecanismo social do capitalismo, tanto quanto a reserva de máquinas e de matérias-primas nas fábricas ou de produtos manufaturados nos depósitos. Nem a expansão geral da produção nem a adaptação do capital à maré periódica do ciclo industrial seriam possíveis sem uma reserva de força de trabalho. Da tendência geral da evolução capitalista — o aumento do capital constante (máquinas e matérias-primas) às custas do capital variável (força de trabalho) — Marx tira esta conclusão:

“Quanto maior é a riqueza social/... / tanto maior é o exército industrial de reserva /.../. Quanto maior é a massa de superpopulação consolidada /.../ tanto maior é o pauperismo oficial. Esta é a lei geral e absoluta da acumulação capitalista”.

Esta tese — indissoluvelmente ligada à “teoria da miséria crescente” e denunciada durante muito tempo como “exagerada”, “tendenciosa” e “demagógica” — ransformou-se agora na imagem teórica irrepreensível das coisas tais como elas são. O atual exército de desempregados já não pode ser considerado como um “exército de reserva”, pois sua massa fundamental já não pode ter esperança nenhuma de voltar a se ocupar; pelo contrário, está destinada a ser engrossada por uma afluência constante de desempregados adicionais. A desintegração do capital trouxe consigo toda uma geração de jovens que nunca tiveram um emprego e que não têm esperança nenhuma de conseguí-lo. Esta nova subclasse entre o proletariado e o semiproletariado é obrigada a viver às custas da sociedade. Calcula-se que ao longo de nove anos (1930-1938) o desemprego privou a economia dos Estados Unidos de mais de 43 milhões de anos de trabalho humano. Se considerar-mos que em 1929, no auge da prosperidade, havia dois milhões de desempregados nos Estados Unidos e que durante esses nove anos o número de trabalhadores potenciais aumentou em até cinco milhões, o número total de anos de trabalho humano perdido deve ser incomparavelmente maior. Um regime social atacado por semelhante praga está doente de morte. O diagnóstico exato dessa doença foi feito há cerca de oitenta anos, quando a própria doença se encontrava latente.


c) A Decadência das Classes Médias

Os números que demonstram a concentraçãodo capital indicam ao mesmo tempo que a gravitação específica da classe média na produção e sua participação na riqueza nacional foram decaindo constantemente, enquanto que as pequenas propriedades foram completamente absorvidas ou reduzidas em grau e desprovidas de sua independência, transformando-se num mero símbolo de um trabalho insuportável e de uma necessidade desesperada. Ao mesmo tempo, é verdade, o desenvolvimento do capitalismo estimulou consideravelmente um aumento no exército de técnicos, diretores, empregados, advogados, médico, numa palavra, a chamada “nova classe média”. Mas esse estrato, cuja existência já não tinha mistérios para Marx, pouco tem a ver com a velha classe média, que na propriedade de seus meios de produção tinha uma garantia tangível da independência econômica. A “nova classe média” depende mais diretamente dos capitalistas que os trabalhadores. É verdade que a classe média é em grande parte quem define sua tarefa. Além disso, detectou-se nela um considerável produto excedente, e sua conseqüência: a degradação social.

“A informação estatística segura — afirma uma pessoa tão distante do marxismo como o já citado Mr. Hommer S. Cummings — demonstra que muitas unidades industriais desapareceram completamente — e que o que ocorre é uma eliminação progressiva dos pequenos homens de negócios como fator na vida norte-americana”.


Mas, segundo a objeção de Sombart, “a concentração geral, com o desaparecimento da classe de artesãos e lavradores”, ainda não se deu. Como todo teórico, Marx começou por isolar as tendências fundamentais em sua forma pura; de outra forma, teria sido totalmente impossível compreender o destino da sociedade capitalista. O próprio Marx era, no entanto, perfeitamente capaz de examinar o fenômeno da vida à luz da análise concreta, como um produto da concatenação de diversos fatores históricos. As leis de Newton certamente não foram invalidadas pelo fato de que a velocidade na queda dos corpos varia sob condições diferentes ou de que as órbitas dos planetas estejam sujeitas a perturbações. Para compreender a chamada “tenacidade” das classes médias é bom lembrar que as duas tendências, a ruína das classes médias e a transformação dessas classes arruinadas em proletários, não se dão ao mesmo tempo nem na mesma extensão. Da crescente preponderância da máquina sobre a força de trabalho segue-se que, quanto mais longe vai o processo de ruína das classes médias, tanto mais para trás deixa o processo de sua proletarização; na realidade, em determinada ocasião, o último pode cessar inteiramente e inclusive retroceder.

Da mesma forma que a ação das leis fisiológicas produz resultados diferentes num organismo em crescimento e noutro em declínio, assim também as leis da economia marxista agem de modo diferente num capitalismo em desenvolvimento e num capitalismo em desagregação. Esta diferença fica evidente com especial clareza nas relações mútuas entre a cidade e o campo. A população rural dos Estados Unidos, que cresce comparativamente numa velocidade menor que o total da população, continuou crescendo em números absolutos até 1910, data em que chegou a mais de 32 milhões. Durante os vinte anos seguintes, apesar do rápido aumento da população total do campo, baixou para 30,4 milhões, quer dizer, em 1,6 milhão. Mas, em 1935, elevou-se novamente para 32,8 milhões, com um aumento de 2,4 milhões em comparação com 1930. Esta reviravolta, surpreendente à primeira vista, não refuta minimamente a tendência da população urbana a crescer às custas da população rural, nem a tendência das classes médias a ser atomizadas, enquanto que ao mesmo tempo demonstra, da maneira mais categórica, a desintegração do sistema capitalista em seu conjunto. O aumento da população rural durante o período de crise aguda de 1930-1935 se explica simplesmente pelo fato de que pouco menos de dois milhões de povoadores urbanos ou, para sermos mais exatos, dois milhões de desempregados famintos, se transferiram para o campo, para terras abandonadas pelos lavradores ou para sítios de seus parentes e amigos, com o objetivo de empregar sua força de trabalho, rejeitada pela sociedade, na economia natural produtiva e poder levar uma existência de meia fome ao invés de morrer completamente de fome.

Donde se deduz que não se trata de uma questão de estabilidade dos lavradores, artesãos e comerciantes, senão do abjeto desespero de sua situação. Longe de se constituir numa garantia para o futuro, a classe média é uma desafortunada e trágica relíquia do passado. Incapaz de suprimí-la por completo, o capitalismo deu um jeito de reduzí-la ao maior grau de degradação e miséria. Ao lavrador é negada não só a renda que lhe é devida por seu lote de terreno e o lucro do capital que investiu nele, como também uma boa porção de seu salário. Da mesma forma, a pobre gente que mora na cidade se debate no reduzido espaço que se lhe concede entre a vida econômica e a morte. A classe média só não se proletariza porque se depaupera. A este respeito é tão difícil encontrar um argumento contra Marx quanto a favor do capitalismo.


d) A Crise Industrial

O final do século passado e o início do presente caracterizaram-se por esse progresso enganoso devido ao capitalismo, tanto que as crises cíclicas pareciam não ser mais que “moléstias” acidentais. Durante os anos de otimismo capitalista quase universal, os críticos de Marx asseguravam-nos que o desenvolvimento nacional e internacional dos trusts, sindicatos e cartéis introduzia no mercado uma organização bem planejada e pressagiava o triunfo final sobre a crise.

Segundo Sombart, as crises já tinham sido “abolidas” antes da guerra pelo mecanismo do próprio capitalismo, de tal modo que “o problema da crise nos deixa hoje virtualmente indiferentes”. Pois bem, apenas dez anos mais tarde, essas palavras soavam a zombaria, enquanto que o prognóstico de Marx nos aparece hoje em dia com toda a dimensão de sua trâgica força lógica.

É de se notar que a imprensa capitalista, que pretende negar em parte a existência dos monopólios, parta da afirmação desses mesmos monopólios para negar em parte a anarquia capitalista. Se sessenta famílias dirigem a vida econômica dos Estados Unidos, The New York Times observa ironicamente: “Isto demonstraria que o capitalismo estadunidense, longe de ser anârquico e sem planejamento algum, encontra-se organizado com grande precisão”. Este argumento erra o alvo. O capitalismo foi incapaz de desenvolver uma só de suas tendências até o fim. Assim como a concentração da riqueza não suprime a classe média, o monopólio também não suprime a concorrência, pois somente a prostra e destroça. Nem o “plano” de cada uma das sessenta famílias nem as diversas variantes desses planos estão minimamente interessados na coordenação dos diferentes setores da economia, mas antes no aumento dos lucros e de sua camarilha monopolista às custas de outras camarilhas e às custas de toda a nação. No limite, o entrecruzamento de semelhantes planos não faz mais que aprofundar a anarquia na economia nacional.

A crise de 1929 se deu nos Estados Unidos um ano depois de Sombart haver declarado a completa indiferença de sua “ciência” com respeito ao problema da crise. No auge de uma prosperidade sem precedentes, a economia dos Estados Unidos foi lançada ao abismo de uma prostração monstruosa. Ninguém poderia ter imaginado, na época de Marx, convulsões de tal magnitude! A renda nacional dos Estados Unidos tinha se elevado pela primeira vez em 1920 para 69 bilhões de dólares tão somente para cair, no ano seguinte, para 5O bilhões de dólares, quer dizer, uma queda de 27%. Como conseqüência da prosperidade dos poucos anos seguintes, a renda nacional elevou-se de novo, em 1929, a seu ponto máximo de 81 bilhões de dólares, baixando, em 1932, para 40 bilhões de dólares, quer dizer, para menos da metade. Durante os nove anos de 1930 a 1938, perderam-se aproximadamente 43 milhões de anos de trabalho humano e 133 bilhões de dólares da renda nacional, levando em conta as normas de trabalho e as rendas de 1929, época em que havia somente dois milhões de desempregados. Se tudo isso não é anarquia, qual será o significado desta palavra?


e) A Teoria do Colapso

Entre a época da morte de Marx e o início da Guerra Mundial, as inteligências e os corações dos intelectuais da classe média e dos burocratas dos sindicatos estiveram quase que totalmente dominados pelas façanhas logradas pelo capitalismo. A idéia do progresso gradual (evolução) parecia ter-se consolidado para sempre, enquanto que a idéia da revolução era considerada como uma mera relíquia da barbârie. O prognóstico de Marx era contrastado com o prognóstico qualitativamente contrário sobre uma distribuição melhor equilibrada da fortuna nacional com a suavização das contradições de classe e com a reforma gradual da sociedade capitalista. Jean Jaures, o mais bem dotado dos social-democratas dessa época clâssica, esperava ajustar gradualmente a democracia política à satisfação das necessidades sociais. Nisso reside a essência do reformismo. Que resultou dele?

A vida do capitalismo monopolista de nossa época é uma cadeia de crises. Cada crise dessas é uma catâstrofe. A necessidade de salvar-se destas catâstrofes parciais por meio de barreiras alfandegârias, da inflação, do aumento dos gastos do governo e das dívidas prepara o terreno para outras crises mais profundas e mais extensas. A luta para conseguir mercados, matérias-primas e colônias toma inevitâveis as catâstrofes militares. E tudo isso prepara as catâstrofes revolucionârias. Certamente não é fâcil concordar com Sombart que o capitalismo atuante se faz cada vez mais “tranqüilo, sossegado e razoâvel”. Seria mais correto dizer que ele estâ perdendo seus últimos vestígios de razão. Seja como for, não hâ dúvida de que a “teoria do colapso” triunfou sobre a teoria do desenvolvimento pacífico.


A Decadência do Capitalismo

Por mais custoso que tenha sido o domínio do mercado para a sociedade, até determinada etapa, aproximadamente até a Guerra Mundial, a humanidade cresceu, se desenvolveu e se enriqueceu através das crises parciais e gerais. A propriedade privada dos meios de produção continuou sendo, nessa época, um fator relativamente progressista. Mas, agora, o domínio cego da lei do valor se nega a prestar mais serviços. O progresso humano se deteve num beco sem saída.

Apesar dos últimos triunfos do pensamento técnico, as forças produtivas naturais já não aumentam. O sintoma mais claro da decadência é o estancamento mundial da indústria da construção, como conseqüência da paralisação de novos investimentos nos setores básicos da economia. Os capitalistas já não são simplesmente capazes de acreditar no futuro de seu próprio sistema. As construções estimuladas pelo governo significam um aumento dos impostos e a contração da renda nacional “sem travas”, uma vez que a principal parte das novas construções do governo é destinada diretamente a objetivos bélicos.

O marasmo adquiriu um caráter particularmente degradante na esfera mais antiga da atividade humana, na mais estreitamente relacionada com as necessidades vitais do homem: a agricultura. Não satisfeitos com os obstáculos que a propriedade privada, na sua forma mais reacionária, a dos pequenos proprietários, cria para o desenvolvimento da agricultura, os governos capitalistas se vêem obrigados, com freqüência, a limitar artificialmente a produção com a ajuda de medidas legislativas e administrativas que teriam assustado os artesãos dos grêmios na época de sua decadência. A história se lembrará de que os governos dos países capitalistas mais poderosos ofereceram prêmios aos agricultores para que reduzissem suas plantações, quer dizer, para diminuir artificialmente a renda nacional já em baixa. Os resultados são evidentes por si próprios: apesar das grandiosas possibilidades de produção, asseguradas pela experiência e pela ciência, a economia agrária não sai de uma crise putrescente, enquanto que o número de famintos, a maioria predominante da humanidade, continua rescendo mais rapidamente que a população de nosso planeta. Os conservadores consideram que se trata de uma boa política para defender a ordem social, que desceu a uma loucura tão destrutiva, e condenam a luta do socialismo contra semelhante loucura como uma utopia destrutiva.


O Fascismo e New Deal

Existem hoje no mundo dois sistemas que rivalizam para salvar o capital historicamente condenado à morte: o Fascismo e o New Deal (Novo Pacto). O fascismo baseia seu programa na demolição das organizações operârias, na destruição das reformas sociais e no completo aniquilamento dos direitos democrâticos, com o objetivo de impedir o ressurgimento da luta de classes do proletariado. O Estado fascista legaliza oficialmente a degradação dos trabalhadores e a depauperação das classes médias em nome da “nação” e da “raça”, nomes presunçosos para designar o capitalismo em decadência.

A política do New Deal, que tenta salvar a democracia imperialista por meio de presentes para os trabalhadores e para a aristocracia rural, só é acessível em sua grande amplitude às nações verdadeiramente ricas, e nesse sentido é uma política norte-americana por excelência. O governo estadunidense tentou obter uma parte dos gastos dessa política dos bolsos dos monopolistas, exortando-os a aumentarem os salârios, a diminuir a jornada de trabalho, a aumentar o poder de compra da população e a ampliar a produção. Léon Blum tentou inutilmente trasladar esse sermão para a França. O capitalista francês, assim como o estadunidense, não produz por produzir, e sim para obter lucros. Estâ sempre disposto a limitar a produção, e até a destruir os produtos manufaturados, se em conseqüência disso aumentar sua parte na fortuna nacional.

O programa do New Deal mostra sua maior inconsistência no fato de que, enquanto predica sermões aos magnatas do capital sobre as vantagens da abundância sobre a escassez, o governo concede prêmios para reduzir a produção. É possível uma confusão maior? O governo refuta seus críticos com este desafio: podem fazer melhor? Tudo isso significa que na base do capitalismo já não existe nenhuma esperança.

Desde 1933, quer dizer, no curso dos últimos seis anos, o governo federal, os diversos estados e as municipalidades dos Estados Unidos entregaram aos desempregados cerca de 15 milhões de dólares como ajuda, quantia totalmente insuficiente por si mesma e que só representa uma pequena parte da perda de salários, mas, ao mesmo tempo, levando-se em conta a renda nacional em decadência, uma quantia colossal. Em 1938, que foi um ano de relativa reação econômica, a dívida nacional dos Estados Unidos aumentou em dois bilhões de dólares, e como já chegava a 38 bilhões de dólares, chegou a ser superior em 12 bilhões de dólares à maior dívida do final da guerra. Em 1939 passou muito rapidamente dos 40 bilhões de dólares. Que significa isso? A dívida nacional crescente é, obviamente, uma carga para a posteridade. Mas o próprio New Deal só era possível graças à tremenda riqueza acumulada pelas gerações passadas. Só uma nação muito rica pode levar a cabo uma política econômica tão extravagante. Mas nem mesmo essa nação pode continuar vivendo indefinidamente às custas das gerações anteriores. A política do New Deal, com seus êxitos fictícios e seu aumento real da dívida nacional, tem que culminar necessariamente numa feroz reação capitalista e numa explosão devastadora do capitalismo. Em outras palavras, caminha pelas mesmas vias da política do fascismo.


Anomalia ou Norma?

O secretário do interior dos Estados Unidos, Mr. Harold L. Ickes, considera “uma das mais estranhas anomalias de toda a história” que os Estados Unidos, democráticos na forma, sejam autocráticos na substância: “A América, terra da maioria, foi dirigida, pelo menos até 1933, pelos monopólios, que por sua vez são dirigidos por um pequeno número de acionistas”. A diagnose era correta, salvo pela insinuação de que, com a vinda de Roosevelt, cessou ou se debilitou o governo do monopólio. No entanto, o que Ickes chama “uma das mais estranhas anomalias da história” é na realidade a norma inquestionável do capitalismo. A dominação do fraco pelo forte, de muitos por poucos, dos trabalhadores pelos exploradores é uma lei básica da democracia burguesa. O que diferencia os Estados Unidos dos outros países é simplesmente o maior alcance e a maior perversidade das contradições de seu capitalismo. A carência de um passado feudal, a riqueza de recursos naturais, um povo enérgico e empreendedor, todos os pré-requisitos que anunciavam um desenvolvimento ininterrupto da democracia, trouxeram como conseqüência uma concentração fantástica da riqueza.

Com a promessa de empreender a luta contra os monopólios ate triunfar sobre eles, Ickes volta-se temerariamente para Thomas Jefferson, Andrew Jackson, Abraham Lincoln, Theodore Roosevelt e Woodrow Wilson, como predecessores de Franklin D. Roosevelt. “Praticamente todas as nossas maiores figuras históricas — disse em 30 de dezembro de 1937 — são famosas por sua luta persistente e alentada para impedir a super-concentração da riqueza e do poder em poucas mãos”. Mas de suas próprias palavras se deduz que o fruto dessa “luta persistente e alentada” é o domínio completo da democracia pela plutocracia.

Por alguma razão inexplicável, Ickes pensa que a vitória está assegurada na atualidade, contanto que o povo compreenda que a luta não é “entre o New Deal e a média dos homens de negócio cultos, mas entre o New Deal e os Bourbons das sessenta famílias que têm mantido o resto dos homens de negócios dos Estados Unidos sob o terror de seu domínio”. Este orador autorizado não nos explica como se arranjaram os “Bourbon” para subjugar todos os homens de negócio cultos, apesar da democracia e dos esforços das “maiores figuras históricas”. Os Rockefeller, os Morgan, os Mellon, os Vanderbilt, os Guggenheim, os Ford e companhia não invadiram os Estados Unidos de fora, como Cortés invadiu o México; nasceram organicamente do povo, ou mais precisamente da classe dos “industriais e homens de negócios cultos” e se transformaram, de acordo com o prognóstico de Marx, no apogeu natural do capitalismo. Se uma democracia jovem e forte no apogeu de sua vitalidade foi incapaz de conter a concentração da riqueza quando o processo se encontrava ainda em seu início, é impossível acreditar, por um minuto que seja, que uma democracia decadente seja capaz de debilitar os antagonismos de classe que chegaram a seu limite máximo. De qualquer modo, a experiência do New Deal não dá margem a semelhante otimismo. Ao refutar as acusações do grande comércio contra o governo, Robert H. Jackson, alto personagem dos círculos da administração, demonstrou com números que durante o governo de Roosevelt os lucros dos magnatas do capital atingiram alturas com as quais eles mesmos tinham deixado de sonhar durante o último período da presidência de Hoover, do que se deduz, em todo caso, que a luta de Roosevelt contra os monopólios não foi coroada com um êxito maior que a de todos os seus predecessores.


Trazer de Volta o Passado

Não se pode deixar de concordar com o professor Lewis W. Douglas, o primeiro diretor de Orçamentos da administração Roosevelt, quando condena o governo por “atacar o monopólio num campo enquanto fomenta o monopólio em muitos outros”. No entanto, não poderia ser de outro modo, dada a natureza da coisa. Segundo Marx, o governo é o comitê executivo da classe governante. Hoje, os monopolistas constituem a seção mais poderosa da classe governante. Nenhum governo tem condição de lutar contra o monopólio em geral, quer dizer, contra a classe em nome de quem governa. Enquanto ataca uma fase do monopólio, se vê obrigado a buscar aliado em outras fases do monopólio. Unido aos bancos e à indústria leve pode desferir golpes contra os trusts da indústria pesada, os quais, entre parênteses, não deixam, por isso, de auferir lucros fantásticos.

Lewis Douglas não contrapõe a ciência ao charlatanismo oficial, mas simplesmente a outro tipo de charlatanismo. Vê a fonte do monopólio não no capitalismo mas no protecionismo e, em função disso, descobre a salvação da sociedade não na abolição da propriedade privada dos meios de produção, mas no rebaixamento dos direitos alfandegários. “A menos que se restaure a liberdade dos mercados — prediz — é duvidoso que a liberdade de todas as instituições — empresas, discursos, educação, religião — possa sobreviver”. Em outras palavras, sem o restabelecimento da liberdade do comércio internacional, a democracia, em qualquer parte e qualquer extensão que tenha sobrevivido, deve ceder a uma ditadura revolucionária ou fascista. Mas a liberdade do comércio internacional é inconcebível sem a liberdade do comércio interno, quer dizer, sem a concorrência. E a liberdade da concorrência é inconcebível sob o domínio do monopólio. Desgraçadamente, Mr. Douglas, assim como Mr. Ickes, assim como Mr. Jackson, assim como Mr. Cummings, e assim como o próprio Roosevelt, não se deu ao trabalho de iniciar-nos em suas medidas contra o capitalismo monopolista e, conseqüentemente, contra uma revolução ou um regime totalitário.

A liberdade de comércio, assim como a liberdade de concorrência, assim como a prosperidade da classe média, pertencem ao passado irrevogável. Trazer de volta o passado é agora a única prescrição dos reformadores democráticos do capitalismo: trazer de volta mais “liberdade” para os industriais e homens de negócios, pequenos e médios, mudar a seu favor o sistema de crédito e de moeda, liberar o mercado do domínio dos trusts, eliminar os especuladores profissionais da Bolsa, restaurar a liberdade do comércio internacional, e assim por diante ad infinitum. Os reformadores sonham inclusive em limitar o uso das máquinas e decretar a proscrição da técnica, que perturba o equilíbrio social e causa muitas preocupações.


Os Cientistas e o Marxismo

Falando em defesa da ciência em 7 de dezembro de 1937, o doutor Robert A. Millikan, um dos principais físicos dos Estados Unidos, observou:

“As estatísticas dos Estados Unidos demonstram que a porcentagem da população vantajosamente empregada aumentou constantemente durante os últimos cinqüenta anos, em que a ciência tem sido aplicada mais rapidamente”.

Esta defesa do capitalismo sob a aparência de defender a ciência não é exatamente feliz. Justamente durante a última metade do século é quando se “rompeu o elo dos tempos” e se alterou agudamente a relação entre a economia e a técnica. O período a que se refere Millikan inclui o início do declínio capitalista, assim como o auge da prosperidade capitalista. Ocultar o início desse declínio, que atinge o mundo inteiro, é proceder como um apologista do capitalismo. Rechaçando o socialismo de uma forma improvisada com a ajuda de argumentos que não seriam dignos nem do próprio Henry Ford, o doutor Millikan nos diz que nenhum sistema de distribuição pode satisfazer as necessidades do homem sem aumentar a esfera da produção. Sem dúvida! Mas é uma pena que o famoso físico não explique aos milhões de estadunidenses desempregados como haverão de participar no aumento da fortuna nacional. A prédica abstrata sobre a virtude salvadora da iniciativa individual e a alta produtividade do trabalho não poderá certamente proporcionar emprego aos desempregados, não cobrirá o déficit do orçamento, não tirará os negócios da nação do beco sem saída.

O que diferencia Marx é a universalidade de seu gênio, sua capacidade para compreender os fenômenos e os processos dos diversos campos em relação inerente. Sem ser um especialista em ciências naturais, foi um dos primeiros a reconhecer a importância das grandes descobertas nesse terreno: por exemplo, a teoria darwinista. Marx tinha certeza dessa preeminência não tanto em virtude de seu intelecto, mas em virtude de seu método. Os cientistas de mentalidade burguesa podem pensar que se acham acima do socialismo: no entanto, o caso de Robert Millikan é apenas um dos muitos que confirmam que, na esfera da sociologia, continuam existindo charlatães incorrigíveis.


As Possibilidades de Produção e a Propriedade Privada

Em sua mensagem ao Congresso no início de 1937, o presidente Roosevelt manifestou seu desejo de aumentar as rendas nacionais para 91 bilhões de dólares, sem indicar, no entanto, como. Por si mesmo, esse programa era excessivamente modesto. Em 1929, quando havia aproximadamente dois milhões de desempregados, a renda nacional chegou a 81 bilhões de dólares. Para pôr em movimento as atuais forças produtivas, não bastaria realizar o programa de Roosevelt, mas ele teria que ser consideravelmente superado. As máquinas, as matérias-primas, os trabalhadores, tudo é aproveitável, isso sem falar da necessidade que a população tem dos produtos. Se apesar disso o plano é irrealizável — e ele é irrealizável — a única razão é o conflito irreconciliável que se desenvolveu entre a propriedade capitalista e a necessidade da sociedade de aumentar a produção. O famoso Exame Nacional da Capacidade Produtiva Potencial, patrocinado pelo governo, chegou à conclusão de que o custo da produção e dos serviços utilizados em 1929 chegava a quase 94 bilhões de dólares, calculados sobre a base de preços no varejo. Não obstante, se fossem utilizadas todas as verdadeiras possibilidades produtivas, essa cifra ter-se-ia elevado para 135 bilhões de dólares, quer dizer, teria correspondido a 4.370 dólares anuais para cada família, o suficiente para assegurar uma vida decente e confortável. O Exame Nacional baseia-se na atual organização produtora dos Estados Unidos tal como chegou a ser em conseqüência da história anárquica do capitalismo. Se os próprios instrumentos de trabalho fossem reequipados com base em um plano socialista unificado, os cálculos sobre a produção poderiam ser consideravelmente superados e poder-se-ia assegurar a todo o povo um nível de vida alto e adequado, baseado numa jornada de trabalho extremamente curta.

Conseqüentemente, para salvar a sociedade não é necessário deter o desenvolvimento da técnica, fechar as fábricas, conceder prêmios aos agricultores para que sabotem a agricultura, depauperar um terço dos trabalhadores nem convocar os maníacos para fazerem as vezes de ditadores. Nenhuma destas medidas, que constituem um horrível engodo para os interesses da sociedade, é necessária. O que é indispensável e urgente é separar os meios de produção de seus atuais proprietários parasitas e organizar a sociedade de acordo com um plano racional. Então será realmente possível, pela primeira vez, curar a sociedade de seus males. Todos que sejam capazes de trabalhar devem achar um emprego. A jornada de trabalho deve diminuir gradualmente. As necessidades de todos os membros da sociedade devem ter assegurada uma satisfação crescente. As palavras “pobreza”, “críse”, “exploração”. devem ser tiradas de circulação. A humanidade poderá cruzar finalmente o umbral da verdadeira humanidade.


A Inevitabilidade do Socialismo

“Ao mesmo tempo que diminui constantemente o número dos magnatas do capital — diz Marx — crescem a massa da miséria, a opressão, a escravidão, a degradação, a exploração; mas com isso cresce também ‘a revolta da classe trabalhadora, classe que sempre aumenta em número, disciplinada, unida, organizada pelo próprio mecanismo do processo da produção capitalista /.../ A centralização dos meios de produção ea socialização do trabalho atingem finalmente um ponto em que se tornam incompatíveis com seu invólucro capitalista. Este invólucro se faz em pedaços. Soa a hora fatal da propriedade privada capitalista. Os expropriadores são expropriados”.

Esta é a revolução socialista. Para Marx, o problema de reconstituira sociedade não surge de nenhuma prescrição motivada por suas predileções pessoais; é uma conseqüência — como uma necessidade histórica rigorosa — do potente amadurecimento das forças produtivas por um lado; da ulterior impossibilidade de fomentar essas forças à mercê da lei do valor, por outro lado.

As elucubrações de certos intelectuais, que prescindem da teoria de Marx, sobre o socialismo não ser inevitável mas unicamente possível, são desprovidas de qualquer conteúdo. Evidentemente, Marx não quis dizer que o socialismo viria sem a vontade e a ação do homem: tal idéia é simplesmente absurda. Marx previu que a socialização dos meios de produção seria a única solução para o colapso econômico — colapso este que temos diante de nossos olhos — no qual deve culminar, inevitavelmente, o desenvolvimento do capitalismo. As forças produtivas precisam de um novo organizador e um novo amo, e dado que a existência determina a consciência, Marx não teve dúvida de que a classe trabalhadora, à custa de erros e derrotas, chegaria a compreender a verdadeira situação e, mais cedo ou mais tarde, tiraria as conclusões práticas necessárias.

Que a socialização dos meios de produção criados pelos capitalistas representa uma tremenda vantagem econômica, pode se demonstrar hoje em dia não só teoricamente mas também com a experiência da União dos Sovietes, apesar das limitações desta experiência. É verdade que os reacionários capitalistas, não sem artificio, utilizam o regime de Stalin como um espantalho contra as idéias socialistas. Na realidade, Marx nunca disse que o socialismo pudesse ser alcançado num só pais e, além disso, num país atrasado. As contínuas privações das massas na União Soviética, a onipotência da casta privilegiada que se ergueu sobre a nação e sua miséria e, finalmente, a desenfreada lei do porrete dos burocratas, não são conseqüência do método econômico socialista, mas do isolamento e do atraso da Rússia Soviética cercada pelos países capitalistas. O admiravel é que, nessas circunstâncias excepcionalmente desfavoráveis, a economia planificada tenha conseguido demonstrar suas insuperáveis vantagens.

Todos os salvadores do capitalismo, tanto os democratas quanto os fascistas, pretendem limitar, ou pelo menos dissimular, o poder dos magnatas do capital para impedir “a expropriação dos expropriadores”. Todos eles reconhecem, e muitos deles admitem abertamente, que o fracasso de suas tentativas reformistas deve levar inevitavelmente à revolução socialista. Todos eles encontraram uma maneira de não deixar evidente que seus métodos para salvar o capitalismo não passam de charlatanismo reacionário e inútil. O prognóstico de Marx sobre a inevitabilidade do socialismo confirma-se assim plenamente diante de uma prova negativa.


A Inevitabilidade da Revolução Socialista

O programa da “Tecnocracia”, que floresceu no período da grande crise de 1929-1932, fundou se na premissa correta de que a economia deve ser racionalizada unicamente por meio da união da técnica, conjugada à ciência, e do governo a serviço da sociedade. Tal união é possível sempre que a técnica e o governo se libertem da escravidão da propriedade privada, e aqui que começa a grande tarefa revolucionária. Para libertar a técnica do imbróglio dos interesses privados e pôr o governo a serviço da sociedade é preciso “expropriar os expropriadores”, só uma classe poderosa, interessada em sua própria libertação e oposta aos expropriadores monopolistas é capaz de realizar essa tarefa. Somente unida a um governo proletário a classe qualificada dos técnicos poderá construir uma economia verdadeiramente científica e verdadeiramente nacional, quer dizer, uma economia socialista.

É claro que seria melhor alcançar esse objetivo de forma pacífica, gradual e democrática. Mas a ordem social que sobreviveu a si mesma não cede nunca seu lugar sem resistência a seu sucessor. Se, no seu tempo, a democracia jovem e forte demonstrou ser incapaz de impedir que a plutocracia se apoderasse da riqueza e do poder, é possível esperar que uma democracia senil e devastada se mostre capaz de transformar uma ordem social baseada no domínio desenfreado de sessenta famílias? A teoria e a história ensinam que uma sucessão de regimes sociais pressupõe a forma mais alta da luta de classes, quer dizer, a revolução. Nem mesmo a escravidão pôde ser abolida nos Estados Unidos sem uma guerra civil. “A força é a parteira de toda sociedade velha prenhe de uma nova”. Ninguém foi capaz até agora de refutar esse dogma básico de Marx na sociologia da sociedade de classes. Somente urna revolução socialista pode abrir caminho para o socialismo.


O Marxismo nos Estados Unidos


A república norte-americana foi mais longe que outros países na esfera da técnica e da organização da produção. Não só os estadunidenses, mas a humanidade inteira contribuiu para isso. No entanto, as diversas fases do processo social numa e mesma nação têm ritmos diferentes que dependem de condições históricas especiais. Enquanto os Estados Unidos gozam de uma tremenda superioridade tecnológica, seu pensamento econômico se encontra extremamente atrasado tanto à direita como à esquerda. John L. Lewis tem quase as mesmas opiniões que Franklin D. Roosevelt. Se levarmos em conta a natureza de sua missão, a função social de Lewis é incomparavelmente mais conservadora, para não dizer reacionária, que a de Roosevelt. Em certos círculos estadunidenses existe uma tendência a repudiar esta ou aquela teoria radical sem o menor indício de crítica científica, com a simples afirmação de que é “antiamericana”. Mas onde se pode encontrar o critério diferenciador? O cristianismo foi importado pelos Estados Unidos juntamente com os logaritmos, a poesia de Shakespeare, as noções de direitos humanos e do cidadão e outros produtos não menos importantes do pensamento humano. O marxismo se encontra hoje na mesma categoria.

O secretário da Agricultura estadunidense, Henry A. Wallace, imputou ao autor destas linhas “...uma estreiteza dogmática asperamente antiamericana” e contrapôs ao dogmatismo russo o espírito oportunista de Jefferson, que sabia como se ajeitar com seus opositores. Ao que parece, nunca ocorreu a Mr. Wallace que uma política de compromissos não é uma função de algum espírito nacional imaterial, e sim um produto das condições materiais. Uma nação que se fez rica rapidamente tem reservas suficientes para conciliar as classes e os partidos hostis. Quando, por outro lado, se agudizam as contradições sociais, desaparece o terreno para os compromissos. A América só estava livre de “estreiteza dogmática” porque tinha uma pletora de áreas virgens, fontes de riqueza natural inesgotáveis e, de acordo com o que se pode ver, oportunidades ilimitadas para enriquecer. A verdade é que, apesar dessas condições, o espírito de compromisso não prevaleceu na Guerra Civil quando soou a hora para ele. De qualquer modo, as condições materiais que constituem a base do “americanismo” estão hoje em dia cada vez mais relegadas ao passado. Daqui deriva a crise profunda da ideologia americana tradicional.

O pensamento empírico, limitado à solução das tarefas imediatas de tempo em tempo, parecia bastante adequado tanto nos círculos operários como nos burgueses, enquanto a lei do valor de Marx era o pensamento de todos. Mas hoje em dia essa lei produz efeitos opostos. Ao invés de impulsionar a economia, socava seus fundamentos. O pensamento eclético conciliatório, que mantém uma atitude desfavorável ou desdenhosa com respeito ao marxismo como um “dogma”, e seu apogeu filosófico, o pragmatismo, mostra-se completamente inadequado, cada vez mais insubstancial, reacionário e completamente ridículo.

Ao contrário, são as idéias tradicionais do “americanismo” que perderam sua vitalidade e se converteram num “dogma petrificado”, sem dar lugar a outra coisa senão a erros e confusões.

Ao mesmo tempo, a doutrina econômica de Marx adquiriu uma viabilidade peculiar, especialmente no que diz respeito aos Estados Unidos, embora O Capital se apóie num material internacional, preponderantemente inglês em seus fundamentos teóricos, numa análise do capitalismo puro, do capitalismo em geral, do capitalismo como tal. Indubitavelmente, o capitalismo que se desenvolveu nas terras virgens já históricas da América é o que mais se aproxima desse tipo ideal de capitalismo.

A não ser pela presença de Wallace, a América se desenvolveu economicamente não de acordo com os princípios de Jefferson, e sim de acordo com as leis de Marx. Ao se reconhecer isso se ofende tão pouco o amor-próprio nacional tanto como ao reconhecer que a América gira em torno do sol segundo as leis de Copérnico. O Capital oferece uma diagnose exata da doença e um prognóstico insubstituível. Neste sentido, a teoria de Marx está muito mais impregnada do novo “americanismo” que as idéias de Hoover e Roosevelt, de Green e de Lewis.

É verdade que existe uma literatura original muito difundida nos Estados Unidos, consagrada à crise da economia americana. Quando esses economistas conscienciosos oferecem uma descrição objetiva das tendências destrutivas do capitalismo estadunidense, suas pesquisas, prescindindo das suas premissas teóricas, parecem ilustrações diretas da teoria de Marx. No entanto, a tradição conservadora fica evidente quando esses autores se empenham obstinadamente em não tirar conclusões precisas, limitando-se a tristes predições ou a vulgaridades tão edificantes como “o país deve compreender”, “a opinião pública deve considerar seriamente” etc. Esses livros assemelham-se a uma faca sem gume.

É certo que no passado houve marxistas nos Estados Unidos, mas era um estranho tipo de marxistas, ou melhor, três tipos estranhos de marxistas. Em primeiro lugar, encontrava-se a casta de emigrados europeus, que fizeram tudo o que puderam, mas não encontraram resposta; em segundo lugar, os grupos de estadunidenses isolados, como os Leonistas, que no curso dos acontecimentos e em conseqüência de seus próprios erros, converteram-se em seitas; em terceiro lugar, os aficcionados atraídos pela Revolução de Outubro e que simpatizavam com o marxismo como uma teoria exótica que tinha muito pouco a ver com os Estados Unidos. Seu tempo jâ passou. Agora, amanhece a nova época de um movimento de classe independente a cargo do proletariado e ao mesmo tempo de um marxismo verdadeiro. Nisso também, os Estados Unidos, em pouco tempo, alcançarão a Europa e a deixarão para trás. A técnica progressista e a estrutura social progressista preparam o caminho na esfera doutrinária.

Os melhores teóricos do marxismo aparecerão em solo americano. Marx será o mentor dos trabalhadores estadunidenses avançados. Para eles esta exposição abreviada do primeiro volume constituirá apenas o primeiro passo para o Marx completo.


O Modelo Ideal do Capitalismo

Na época em que foi publicado o primeiro volume de O Capital, a dominação mundial da burguesia britânica ainda não tinha rival. As leis abstratas da mercadoria e da economia encontraram, naturalmente, sua completa encarnação — quer dizer, a menor dependência das influências do passado — no país em que o capitalismo tinha atingido seu maior desenvolvimento. Ao basear sua análise principalmente na Inglaterra, Marx tinha em vista não somente a Inglaterra, mas todo o mundo capitalista. Usou a Inglaterra de sua época como o melhor modelo contemporâneo do capitalismo.

Agora só restou a lembrança da hegemonia britânica. As vantagens da primogenitura capitalista transformaram-se em desvantagens. A estrutura técnica e econômica da Inglaterra desgastou-se. O país continua dependendo, em sua posição mundial, mais do Império colonial, herança do passado, do que de um potencial econômico ativo. Isto explica incidentalmente a caridade cristã de Chamberlain com respeito ao gangsterismo internacional dos fascistas, que tanto surpreendeu o mundo inteiro. A burguesia inglesa não pode deixar de reconhecer que sua decadência econômica se tomou totalmente incompatível com sua posição no mundo e que uma nova guerra ameaça derrubar o Império Britânico. Similar é, na sua essência, a base econômica do “pacifismo” francês.

A Alemanha, pelo contrário, utilizou, na sua rápida ascensão capitalista, as vantagens do atraso histórico, armando-se a si mesma com a técnica mais completa da Europa. Tendo uma base nacional estreita e recursos naturais insuficientes, o capitalismo dinâmico da Alemanha, surgido da necessidade, transformou-se no fator mais explosivo do chamado equilíbrio das potências mundiais. A ideologia epilética de Hitler nada mais é que uma imagem refletida da epilepsia do capitalismo alemão.

Além das numerosas e inestimáveis vantagens de caráter histórico, o desenvolvimento dos Estados Unidos gozou da preeminência de um território imensamente grande e de uma riqueza natural incomparavelmente maior que os da Alemanha. Tendo suplantado consideravelmente a Grã-Bretanha, a república norte-americana chegou a ser, no início deste século, a praça forte da burguesia mundial. Todas as potencialidades do capitalismo encontraram nesse país sua mais alta expressão. Em nenhum lugar do nosso planeta a burguesia pôde realizar empreendimentos superiores aos da República do Dólar, que se transformou, no século XX, no modelo mais perfeito do capitalismo. Pelas mesmas razões que levaram Marx a basear sua exposição nas estatísticas inglesas, nos informes parlamentares ingleses, nos registros diplomáticos ingleses etc, nós recorremos, em nossa modesta introdução, à experiência econômica e política dos Estados Unidos. É desnecessário dizer que não seria difícil citar fatos e cifras análogos, tomando-os da vida de qualquer outro país capitalista. Mas isso não acrescentaria nada de essencial. As conclusões continuariam sendo as mesmas e os exemplos seriam apenas menos surpreendentes.

A política econômica da Frente Popular na França era, como assinalou perspicazmente um de seus financiadores, uma adaptação do New Deal “para liliputianos”. É perfeitamente evidente que numa anâlise teórica é muito mais conveniente tratar com grandezas ciclópicas do que com grandezas liliputianas. A própria imensidão do experimento de Roosevelt nos demonstra que só um milagre pode salvar o sistema capitalista mundial. Mas acontece que o desenvolvimento da produção capitalista acabou com a produção de milagres. Abundam os encantamentos e as deprecações, mas não se produzem os milagres. No entanto, é evidente que, se se pudesse produzir o milagre do rejuvenescimento do capitalismo, esse milagre só poderia se produzir nos Estados Unidos. Mas esse rejuvenescimento não se realizou. O que os cíclopes não podem conseguir, menos ainda o podem conseguir os liliputianos. Assentar os fundamentos desta simples conclusão é o objetivo de nossa excursão pelo campo da economia norte-americana.


As Metrópoles e as Colônias

“O país mais desenvolvido industrialmente — escreveu Marx no prefâcio da primeira edição de seu Capital — não faz mais que mostrar em si ao de menor desenvolvimento a imagem de seu próprio futuro”.

Este pensamento não pode ser entendido literalmente em hipótese alguma. O crescimento das forças produtivas e o aprofundamento das inconsistências sociais são indubitavelmente o lote que corresponde a todos os países que tomaram o caminho da evolução burguesa.

No entanto, a desproporção nos “tempos” e medidas, que sempre se dá na evolução da humanidade, não somente se faz especialmente aguda sob o capitalismo, como também dá origem à completa interdependência da subordinação, da exploração e da opressão entre os países de tipo econômico diferente.

Somente uma minoria de países realizou completamente essa evolução sistemâtica e lógica da mão-de-obra, passando pela manufatura doméstica, até a fâbrica, que Marx submeteu a uma análise tão detalhada. O capital comercial, industrial e financeiro invadiu de fora os países atrasados, destruindo, em parte, as formas primitivas da economia nativa e, em parte, sujeitando-os ao sistema industrial e bancário do Oeste. Sob o açoite do imperialismo, as colônias e semicolônias se viram obrigadas a prescindir das etapas intermediârias, apoiando-se ao mesmo tempo artificialmente num nível ou no outro. O desenvolvimento da Índia não duplicou o desenvolvimento da Inglaterra; não foi para ela senão um suplemento. No entanto, para poder compreender o tipo combinado de desenvolvimento dos países atrasados e dependentes como a Índia é preciso esquecer o esquema clássico de Marx, derivado do desenvolvimento da Inglaterra. A teoria operária do valor guia igualmente os cálculos dos especuladores da City de Londres e as transações monetárias nos rincões mais remotos de Haidebarad, com a diferença que no último caso adquire formas mais simples e menos astutas.

A desproporção no desenvolvimento trouxe consigo tremendos lucros para os países avançados que, embora em graus diversos, continuaram se desenvolvendo às custas dos atrasados, explorando-os, transformando-os em colônias ou, pelo menos, tornando impossível para eles figurar entre a aristocracia capitalista. As fortunas da Espanha, da Holanda, da Inglaterra, da França foram obtidas, não somente com o trabalho excedente de seu proletariado, não somente destroçando sua pequena burguesia, mas também com a pilhagem sistemática de suas possessões de ultramar. A exploração de classes foi complementada e sua potencialidade aumentada com a exploração das nações.

A burguesia das metrópoles se viu em situação de assegurar uma posição privilegiada para seu próprio proletariado, especialmente para as camadas superiores, mediante o pagamento com lucros excedentes obtidos nas colônias. Sem isso, teria sido completamente impossível qualquer tipo de regime democrático estável. Em sua manifestação mais desenvolvida a democracia burguesa foi, e continua sendo, uma forma de governo unicamente acessível às nações mais aristocráticas e mais exploradoras. A antiga democracia baseava se na escravidão; a democracia imperialista baseia-se na exploração. das colônias.

Os Estados Unidos, que na forma quase não têm colônias, são, no entanto, a nação mais privilegiada da história. Os ativos imigrantes chegados da Europa tomaram posse de um continente excessivamente rico, exterminaram a população nativa, ficaram com a melhor parte do México e embolsaram a parte do leão da riqueza mundial. Os depósitos de gordura que acumularam então continua lhes sendo útil ainda na época da decadência, pois lhes serve para azeitar as engrenagens e as rodas da democracia.

Tanto a recente experiência histórica quanto a análise teórica testemunham que a velocidade do desenvolvimento de uma democracia e sua estabilidade estão na proporção inversa da tensão das contradições de classe. Nos países capitalistas menos privilegiados (Rússia, por um lado, Alemanha, Itália etc., por outro) incapazes de engendrar uma aristocracia do trabalho numerosa e estável, a democracia nunca se desenvolveu em toda sua extensão e sucumbiu à ditadura com relativa facilidade. Não obstante, a contínua paralisia progressiva do capitalismo prepara a própria sorte das democracias privilegiadas e mais ricas. A única diferença está na data. A incofitida deterioração nas condições de vida dos trabalhadores torna cada vez menos possível para a burguesia conceder às massas o direito de participar na vida política, mesmo dentro do limitado quadro do parlamentarismo burguês. Qualquer outra explicação do processo manifesto do desalojamento da democracia pelo fascismo é uma falsificação idealista das coisas tais como elas são, quer seja engano ou auto-engano.

Enquanto destrói a democracia nas velhas metrópoles do capital, o imperialismo impede ao mesmo tempo a ascensão da democracia nos países atrasados. O fato de que na nova época nem uma única das colônias ou semicolônias tenha realizado uma revolução democrática — principalmente no campo das relações agrárias — deve-se inteiramente ao imperialismo, que se converteu no principal obstáculo para o progresso econômico e político. Espoliando a riqueza natural dos países atrasados e restringindo deliberadamente seu desenvolvimento industrial independente, os magnatas monopolistas e seus governos concedem simultaneamente seu apoio financeiro, político e militar aos grupos semifeudais mais reacionários e parasitas de exploradores nativos. A barbárie agrária artificialmente conservada é, hoje em dia, a praga mais sinistra da economia mundial contemporânea. A luta dos povos coloniais por sua libertação, passando por cima das etapas intermediárias, transforma-se na necessidade da luta contra o imperialismo e, desse modo, está em consonância com a luta do proletariado nas metrópoles. Os levantes e as guerras coloniais, por sua vez, fazem tremer, mais que nunca, as bases fundamentais do mundo capitalista e tornam menos possível que nunca o milagre de sua regeneração.


A Economia Mundial Planificada

O capitalismo tem o duplo mérito histórico de ter elevado a técnica a um alto nível e de ter ligado todas as partes do mundo com os laços econômicos. Desse modo, forneceu os pré-requisitos materiais para a utilização sistemática de todos os recursos de nosso planeta. No entanto, o capitalismo não tem condição de cumprir essa tarefa urgente. O núcleo de sua expansão continua sendo os estados nacionais circunscritos com suas aduanas e seus exércitos. Não obstante, as forças produtivas superaram faz tempo os limites do estado nacional, transformando conseqüentemente o que era antes um fator histórico progressista numa restrição insuportável. As guerras imperialistas não são mais que explosões das forças produtoras contra os limites estatais, que se tornaram limitados demais para elas. O programa da chamada autarquia não tem nada que ver com a marcha à ré de uma economia auto-suficiente e circunscrita. Significa apenas que a base nacional se prepara para uma nova guerra.

Depois de assinado o tratado de Versailles acreditou-se, de forma geral, que se tinha dividido bem o globo terrestre. Mas os acontecimentos mais recentes serviram para lembrar-nos que nosso planeta continua contendo terras que ainda não foram exploradas ou, pelo menos, suficientemente exploradas. A luta pelas colônias continua sendo uma parte da política do capitalismo imperialista. Por mais que o mundo seja dividido, o processo nunca termina, mas coloca uma e outra vez na ordem do dia a questão da nova divisão do mundo, de acordo com as novas relações entre as forças imperialistas. Tal é, hoje em dia, a verdadeira razão dos rearmamentos, das convulsões diplomáticas e da guerra.

Todas as tentativas de apresentar a guerra atual como um choque entre as idéias de democracia e de fascismo pertencem ao reino do charlatanismo e da estupidez. As formas políticas mudam; mas subsistem os apetites capitalistas. Se de cada lado do Canal da Mancha se estabelecesse amanhã um regime fascista — e mal poderia alguém atrever-se a negar essa possibilidade —, os ditadores de Paris e Londres seriam tão incapazes de renunciar a suas possessões coloniais como Mussolini e Hitler de renunciar a suas reivindicações a esse respeito. A luta furiosa e desesperada por uma nova divisão do mundo é uma conseqüência irresistivel da crise mortal do sistema capitalista.

As reformas parciais e os remendos de nada servirão. A evolução histórica chegou a uma de suas etapas decisivas, na qual somente a intervenção direta das massas é capaz de varrer os obstáculos reacionários e de assentar as bases de um novo regime. A abolição da propriedade privada dos meios de produção é o principal pré-requisito para a economia planificada, quer dizer, para a introdução da razão na esfera das relações humanas, primeiro numa escala nacional e, finalmente, numa escala mundial. Uma vez iniciada, a revolução socialista se estenderá de país em país com uma força imensamente maior daquela com que se estende hoje em dia o fascismo. Com o exemplo e a ajuda das nações adiantadas, as nações atrasadas também serão arrastadas pela corrente do socialismo. Cairão as barreiras alfandegárias completamente carcomidas. As contradições que despedaçam a Europa e o mundo inteiro encontrarão sua solução natural e pacífica no marco dos Estados Unidos Socialistas da Europa, assim como de outras partes do mundo. A humanidade libertada chegará a seu mais alto cume.


Notas:

[1] NdA - O resumo do primeiro volume de O Capital — base de todos os sistemas econômicos de Marx — foi feito por Otto Rühle com uma compreensão profunda da sua tarefa. A primeira coisa que ele eliminou foiram os exemplos antiquados, as anotações de escritos que hoje têm um interesse puramente histórico, as polêmicas com escritores já esquecidos e, finalmente, numerosos documentos que, apesar de sua importância para a compreensão de uma determinada época, não cabem numa exposição concisa que tem objetivos mais teóricos que históricos. Ao mesmo tempo, o Sr. Rühle fez todo o possível para conservar a continuidade no desenvolvimento da análise cientiífica. As deduções lógicas e as transições dialética do pensamento não foram infringidadas em nenhum ponto. Por tudo isso, esse extrato merece uma leitura cuidadosa.

[2] NdA - “A concorrência com uma influência controladora — queixa-se o primeiro fiscal geral dos Estados Unidos, M. Hommer S. Cummings — é gradualmente substituída e, em muitos lugares, só subsiste como uma pálida lembrança das condições existentes.

[3] NdA - Uma comissão do Senado dos Estados Unidos comprovou, em fevereiro de 1937 que, nos vinte anos anteriores, as decisões de uma dúzia de grandes corporações tinham servido de contrapeso às diretivas da maior parte da indústria estadunidense. O número de vogais das juntas diretivas dessas corporações é quase o mesmo número de membros do Gabinete do presidente dos Estados Unidos, o setor executivo do governo republicano. Mas essas voais das juntas diretivas são imensamente mais poderesos que os membros do Gabinete.

[4] NdA - O escritor estadunidense Ferdinand Lundberg, que sua eqüidade didática é um economista conservador, escreveu um livro que produziu comoção: “Os Estados Unidos são, hoje, propriedade e domínio de uma hierarquia de sessenta famílias mais ricas apoiadas por não mais que que noventa famílias de irquesa menor”. A isso poderia-se acrescentar uma terceira ala de talvez ouras 350 famílias com renda superior a cem mil dólares por ano. A posição predominante corresponde não só o mercado, mas também os postos chave do governo. Elas são o verdadeiro governo, “o governo do dinheiro, numa democracia do dólar”.