«And some people say that it's just rock 'n' roll. Oh but it gets you right down to your soul» NICK CAVE
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domingo, janeiro 27, 2019

Da inveja e da Gratidão

Gratidão é o oposto da inveja. Esta é uma «admiração transtornada» em que o invejoso julga o outro a «salvo da fadiga de viver, da sua turbulência e da sua dor», o que suscita uma «ânsia irreversível de destruição do outro», da alegria do outro.

Sendo a inveja um sentimento cada um será livre de o sentir. No entanto, não é um questão de liberdade do próprio, face ao carácter destrutivo da inveja para o outro (choca com a liberdade deste). «O problema é quando a inveja se operacionaliza», como referiu Alberto Vieira, historiador madeirense.

Luís Peixoto (Notícias Magazine 8.5.2016) defende que a «inveja só chega ao invejado se este permitir, se estiver vulnerável, se não estiver preparado», mas pode não ser assim quando o sentimento se traduz em acções práticas deliberadas de bloqueio ou ruína do outro.

Por julgar o outro a salvo da fadiga de viver

Citado por José Tolentino Mendonça, no seu Elogio da Sede (2018), o filósofo Soren Kieakegaard explicava a inveja como uma «admiração transtornada». Significa que aquele que inveja «reveste o seu objeto de uma admiração que tem a ver pouco com a realidadeImagina que aquilo que o outro possui (inteligência, sucesso, beleza, bens, o que seja) lhe confere uma espécie de omnipotência, o coloca a salvo da fadiga de viver, da sua turbulência e da sua dor, coisas inteiramente falsas.» E aqui o escritor madeirense tocou no cerne da motivação do sentimento da inveja e do invejoso. Que, afinal, se baseia num equívoco («ele é que está bem»; «ele está como quer», ouve-se dizer).

Fernando Pessoa disse-o, poética e filosoficamente, nuns versos de 2 de Julho de 1931: «Ser feliz é ser aquele./E aquele não é feliz,/Porque pensa dentro dele/E não dentro do que eu quis.» Um poema magistralmente cantado/interpretado por Camané no álbum Sempre de Mim, no tema «Ser Aquele».

Tolentino Mendonça explica que a «desproporcionada felicidade que sonhamos que há nos outros obsidia-nos e essa admiração adoecida é experimentada como uma perda pessoal e uma injustiça, numa modalidade tão avassaladora que suscita uma ânsia irreversível de destruição, de cancelamento do outro.»

Invejoso quer eliminar a alegria que supõe no outro

Assim, a «inveja é um sentimento disruptivo em relação a outra pessoa que possui algo de desejável— e o impulso do invejoso é eliminar ou estragar o que pensa ser a fonte daquela alegria. O outro deixa de ser um parceiro e torna-se um rival. Deixa de ser uma existência autónoma e diferenciada para andar, na maior parte dos casos sem saber, enredado nos dramas, ficções e combates fantasmagóricos do eu. Deixa de constituir a possibilidade criativa de um encontro, para viver capturado num ressentimento que alaga tudo de mesquinhez e sombra.» E acrescentaria: de violência.

O madeirense José Tolentino Mendonça escreveu que «não é, por acaso, que a psicologia falará, por exemplo, da inveja como dimensão muito presente no desejo humano onde se acolhem os nossos fantasmas de medo e destruição mais arcaicos.» «Perante o objeto real ou imaginário do desejo nós desatamos a gritar,«é meu, é meu».

E explica que o «desejo invejoso não experimenta satisfação em si mesmo, na sua existência, naquilo que é. Extrai, antes, a sua força em impedir o outro, num jogo de rivalidade destrutiva que não olha a meios

Obsessão em prejudicar e destruir o outro

O mesmo autor cita a psicanalista Melanie Klein, que faz recuar o «objeto primário de toda a inveja ao seio nutridor materno» («ainda não falava, e já olhava pálido e com rosto amargurado para o irmãozinho de leite» — Santo Agostinho em Confissões VII) e conta uma história ilustrativa:

«Era uma vez um homem que vivia a invejar o vizinho. Certo dia foi visitado por uma fada, que lhe ofereceu a extraordinária possibilidade de realizar naquele momento um desejo, por maior que fosse, mas com uma condição: "Poderás pedir o que quiseres, desde que o teu vizinho receba o mesmo a dobrar." O invejoso respondeu, então: "O meu desejo é que me arranques imediatamente um dos olhos." A obsessão de ver o outro prejudicado prevaleceu sobre qualquer vontade na ordem do bem, mesmo em relação a si próprio.» E comenta Tolentino Mendonça: «Estranho sentimento, a inveja. E, contudo, tão infiltrado nas relações humanas, tão abrasivo da vida interior, tão capaz de fazer em cacos ambientes».

Sociedade fechada é mais permeável à inveja

Para o filósofo José Gil, a inveja, que tem imensas estratégias, não é uma relação puramente psicológica, é mais do que isso: trata-se de um sistema que tem autonomia e vive em meios fechados, que cria entraves àqueles que têm ideias, iniciativas e empreendimentos. Admite que «não é uma característica portuguesa, antes um dos sentimentos mais espalhados pelo mundo. Simplesmente acontece que em Portugal a inveja tem uma força tal porque nós somos uma sociedade fechada. E quando as sociedades se fecham, tudo se concentra, tudo se paralisa, tudo se adensa e não respira. Uma universidade é um antro de inveja em qualquer parte do mundo, seja nos Estados Unidos, em França ou na Inglaterra. Mas vimos cá para fora e respiramos ar puro. Em Portugal não, sai-se cá para dentro e não para fora.»

A inveja é inerente à condição humana, mas em meios mais pequenos e sociedades mais fechadas (quem está mais próximo é passível de maior proximidade e de fazer mais sombra) poderá, quem sabe, assumir uma presença mais intensa.

Invejidade é o termo popular para inveja

Segundo Alberto Arthur Sarmento, a invejidade significa a «inveja mal reprimida, encapotada, que moe e ginga, repiza e muito gira, a lançar mão de todos os meios para se alastrar, procurando anular a sombra que a escurece e molesta, húmida e fria, infiltrante, deprimindo o que é alheio, a roçar-se a esquina, para realização dos seus fins. É a inveja dinâmica, sem sentido, nem direcção, impando uma coragem embexigada pela vacina do medo.» Será uma cobiça refinada e destrutiva, que limita o progresso e o convívio social.

Numa conferência no Teatro Baltazar Dias, em 6.11.2018, o historiador Alberto Vieira referiu a «cultura popular» que valoriza a questão da inveja, tendo processos e mecanismos para a sua «cura». Explicou que a inveja parte sempre da existência e proximidade do outro («a prática de forte contacto, convívio, relação, que perdura no tempo, potencia a inveja»). Contudo, não tem dúvida que o mundo de invejosos é de «intolerância e violência.» Porque a inveja é um sentimento «destrutivo, negativo». Considerada um «pecado», que a religião, por exemplo, condena e combate.

Inveja não é ciúme, porque ela é destrutiva: implica a destruição do outro e a perda para esse outro. Assim, «alguém que se esforça por ter como o outro» não constitui inveja, porque é algo construtivo, embora partindo de uma comparação com o outro. Comparar-se com os outros, dizem os manuais do bem-estar, é uma atitude a evitar pelos sentimentos negativos passíveis de serem gerados, como o sentir-se aquém ou ressentido. Neste contexto, para nós, é mais no sentido ver o outro como um referencial positivo, numa admiração sadia, benévola. A inveja é uma admiração doente, «transtornada».

Poio: a especificidade madeirense

Em termos da especificidade madeirense, Alberto Vieira identifica a «poiozação do quotidiano» como a «expressão mínima da inveja.» Uma outra forma da sua expressão. Poiozação a ver com o «poio», relativo à posse, à propriedade, fruto da divisão da terra. É uma propriedade diminuta («nesga de terra»), mas que «significa muito» para a família. Para o madeirense, o «poio é tudo». Daí gerar «muitas situações de atrito e conflito».

O poio «marcou muito a história dos madeirenses», como «fonte fundamental de sustento», e marcou a noção de «espaço e território», nomeadamente a dificuldade em «partilhar» esse espaço com os outros. Mais do que a inveja universal, tal marcou a «maneira de ser madeirense». O que não contribui tanto para uma «visão mais ampla» como para o «desenvolvimento do próprio espaço». Porque o poio, além de territorial ou físico, é um «espaço mental». E marcou a mentalidade madeirense.

Sobre a inveja e o poio no Arquipélago da Madeira ver ainda os seguintes artigos do historiador citado: Invejidade e O verso e o reverso da imagem da ilha e do madeirense (Cadernos de divulgação do CEHA; Projeto “Memória-Nona Ilha”/DRC/SRETC, N.º 01, 2016).

Gratidão, o antídoto para a inveja

Quem é grato, quem expressa gratidão interiormente, quem vive a «experiência da gratificação que o outro constitui torna-se então», essa experiência, «uma escola de generosidade: passamos a ser capazes de compartilhar com os outros o nosso dom», salienta José Tolentino Mendonça, no livro já citado. Enquanto a «inveja é uma reivindicação estéril e infeliz», a «gratidão constrói e reconstrói o mundo, dentro e fora de nós.»

Por isso, defende que o «contrário da inveja é a gratidão e esta está intimamente ligada à confiança no bem que se desenvolve nos outros, no bem que o outro é sem si mesmo (independente de mim) e no bem que eu recebo dele.»

E acrescenta: «Cada um traz em si um quinhão de falhas de amor e a questão é como as reconhece, integra e transfigura. A própria criança tem de aprender a ver a mãe não apenas como fonte de alimento para seu uso exclusivo e a controlar a sua voracidade. Quando a boa relação se estabelece, predomina o desejo de preservar em vez de destruir. A não sei quantas braças de profundidade situa-se uma dor nunca reparada, mas que condiciona toda a superfície. Identificar e cuidar dessa dor é a condição para sermos nós próprios e podermos entender também a dor que os outros transportam, tocando a nossa e a sua verdade. O momento de aceitação de si, com lacunas e vulnerabilidades, é uma etapa crítica, dilacerante até, mas abre-nos à transformação e à fecundidade

domingo, dezembro 16, 2018

Capazes de matar a própria morte

El Petó de la Mort (O Beijo da Morte), por Jaume Barba ou Joan Fontbernal, 1930, que se encontra num bairro de Barcelona
«Éramos capazes de matar a própria morte», dizia-me pouco um camarada de tropa, erguendo os braços com veemência. Isto é, capazes de derrotar o absurdo existencial. O que é ir à Lua ou a Marte comparado com isso?

photo: SantiMB

sábado, setembro 08, 2018

Nós da contradição

Horizonte na Calheta, Verão de 2018

Já sentiram Felicidade, Paz, Contentamento (por tudo o que já é e pelo que se perspectiva no horizonte) e, ao mesmo tempo, uma doce Nostalgia de algo que poderia ter sido (ou Melancolia das coisas perdidas)?

Se eu tivesse dúvidas quanto à minha profunda portuguesidade, tal sentimento contraditório dissipá-las-ia.

Afinal, «os nós da contradição / são os mistérios do Fado», como canta Paulo Bragança no EP "Cativo" (2018). 

quinta-feira, junho 14, 2018

Dentro


“Se queres ver o Mundo inteiro à tua altura
Tens de olhar para fora sem esquecer que dentro é que é o teu lugar”

Jorge Palma
«Terra dos Sonhos»

photo origin

sexta-feira, junho 08, 2018

Imunodeficiência face aos prazeres da música

David Scott Holloway (photo origin)

«Como se pode ter uma relação, seja de que tipo for, com alguém assim, que não gosta de música?»

Anthony Bourdain
Expresso, Dezembro de 2010


terça-feira, março 27, 2018

Colheita

Calheta 2018


Colhe
todo o oiro do dia
na haste mais alta
da melancolia.

[Eugénio de Andrade]

domingo, março 04, 2018

Eternidade: chama-me pelo teu nome e chamar-te-ei pelo meu

Elio, em frente à lareira, digere a tristeza funda, silenciosa, serena, agridoce, que é ao mesmo tempo sentir-se a Morrer (perda) e sentir-se mais Vivo (êxtase) do que nunca

Consta que Sufjan Stevens, singer/songwriter indie pop que compôs temas centrais da banda sonora de Call Me By Your Name, já andava há muito tempo a trabalhar em “Mistery of Love”, mas ainda não tinha encontrado forma de a terminar até a ligar ao filme. Um tema que faz referência a pássaros e a Hephaestion, a amante de Alexandre, o Grande. Valeu ao cantor uma nomeação para os Óscares 2018 e irá actuar na cerimónia.

«I wasn't really trying to get too literal with the film," diz ele. "I wanted the songs to stand on their own — partly because I hadn't seen the film, and didn't really know what the vibe was going to be. So I just did what I do, which is just write, you know, the typical forlorn love song that's based on these concepts from the film like first love, summer love, transcendence, but also deep sensations, deep feelings, sorrow — just that relationship between passion and confusion."

Este convite para entregar-se, ao que Luca Guadagnino chamou de «melancolia das coisas perdidas», estende-se a qualquer pessoa com um caso de amor no passado que valha a pena recordar, como nota o artigo no The Guardian que explica por que esta longa metragem deve ganhar o Óscar de melhor filme.

Ora, foi precisamente esse efeito "melancólico" que teve em mim (o nome do protagonista acrescentou ainda um efeito espelho: [n]Elio), além da beleza e sensualidade do filme, que é muito sensitivo, emotivo, com rara sensibilidade e vulnerabilidade. Percebo agora porque senti que tinha de ver este filme (independente da orientação sexual ser diversa: é uma história universal de amor). Percebi que ainda acredito. Eu já sabia, mas o filme fez-me voltar a confirmar quanta sorte tive em me apaixonar, e amar, como aconteceu num dado momento. Já nessa idade tinha a consciência da raridade de algo assim. Se calhar irrepetível.

Há muita gente que nunca vive esse sentimento de paixão a toda a largura do espectro da frequência emocional. O importante não era o "para sempre", sabia de antemão que não seria. O essencial era Viver o Momento, era Viver algo Raro e Único. Nem hesitei. Larguei tudo. Segui apenas o coração. Eu sabia que poderia ser uma oportunidade de uma vida. Um dez em dez. E até hoje a vida continua a confirmá-lo.

O autor de "Mystery of Love" referiu ainda: "Part of the reason why it was really difficult for me to finish it, lyrically and compositionally, until I had engaged with this project was because it's all about a kind of universal first love," disse. "And also knowing the finite nature of things, that nothing's forever. That's what's so amazing about this film, it's such a fully immersive engagement with a fleeting experience. It's a once in a lifetime event, and that's what first love is for most of us. It's unparalleled."

Por tudo isto, ao ver Call Me By Your Name senti o que um dos protagonistas estava a sentir quando da ausência ou partida do outro. É uma dor dilacerante, parece que mata. Ele olha a lareira na cena final, eu olhava o mar de Setembro e as primeiras chuvas, que me impediam de estar com o meu amor. Essa dor e essa tristeza não é estar chateado nem revoltado. Muito menos com o nosso amor. É uma tristeza funda, silenciosa, serena, agridoce. É sentir-se Vivo, é sentir êxtase. E pode isso alguma vez ser triste?

Não quis mal a essa tristeza feliz, pelo muito que me tinha sido dado e não queria mal à felicidade que senti. Nunca matei esse amor, essa alegria. O romance do filme, como o meu, foi no Verão. Foi esse contexto, e o impacto do primeiro grande amor, que inspirou, como se viu, Sufjan Stevens na composição do tema “Mistery of Love”. Sol e água como elementos centrais. Fui um filho da mãe com sorte, mas também soube responder à chamada, de corpo e alma (entrega incondicional). Só assim se transcende e eternizamos o momento.

Penso que tem muito a ver com as sensibilidades que se encontram. A vibração, a frequência, a entrega, a admiração. O amor é livre e selvagem. Gera-se ou não se gera a intensidade do sentimento. Há fogo ou não há fogo para alimentar o sentimento.

O pai do protagonista diz-lhe: "We rip out so much of ourselves to be cured of things faster than we should that we go bankrupt by the age of thirty and have less to offer each time we start with someone new. But to feel nothing so as not to feel anything — what a waste!"

É isto: a maioria perde-se na desilusão e deixa de investir, de arriscar, de entregar-se, de ir ao encontro do outro, com medo da rejeição, com medo de sofrer, com medo de morrer de amor, mas em troca ficam com uma mão cheia de nada: nada sentem. Há quem defenda que precisamos de morrer de amor para percebermos o que queremos da outra pessoa e o que temos para lhe dar. Faz parte da viagem existencial.

«Todos fugimos do amor [romântico]. Quando nos cruzamos com alguém que acende muitas luzes — e que sentimos que, de alguma forma, pode ser o nosso amor —, o nosso impulso não é correr atrás dela, mas sim fugir, como se as pessoas com quem sonhamos só existissem no nosso desejo e não fossem palpáveis, não tivessem um rosto e não fossem como nós.»

No filme Call Me By Your Name conta-se a seguinte história: «Farris is a young man fond of a princess. She is also fond of him. Although she does not seem to be fully aware of it and against friendship which flourish between them, or perhaps because of this strong friendship, the young knight finds himself very much unable to speak. Because he is totally incapable of addressing his love until one day the princess asked frankly: is it better to speak or die?»

Felizmente, mantenho em mim o meu ser do Primeiro Grande Amor: a mesma liberdade, a mesma sensibilidade, mas muito mais auto-conhecimento. Espero que maior capacidade amar. E que esteja disposto a falar, para não morrer e poder morrer de amor.

O pai do protagonista diz ainda: "How you live your life is your business, just remember, our hearts and our bodies are given to us only once. And before you know it, your heart is worn out, and, as for your body, there comes a point when no one looks at it, much less wants to come near it. Right now, there's sorrow, pain. Don't kill it and with it the joy you've felt."

É a melancolia (valor, felicidade?) das coisas perdidas (ou serão eternas?) e das coisas que são finitas (ou serão infinitas?). E se calhar é assim mesmo que tem de ser. É assim que tudo faz sentido. Ser efémero não significa ser menos ou ter menor valor. Na peça Salome, Oscar Wilde escreve: "The mystery of love is greater than the mystery of death."

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"Visions of Gideon" e "Futile Devices", outros temas de Sufjan Stevens em Call Me By Your Name.

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"Mystery of Love" builds from Sufjan Stevens fingerpicking an acoustic guitar up an octave to the uncredited mandolin acrobatics of Chris Thile — "the greatest living mandolin player on the planet," according to Stevens — then adding piano and shimmering synth as well as some female backup singers, in a constant motion of hopeful and dreamlike ascent.

terça-feira, fevereiro 27, 2018

Essa outra coisa é que é linda

Prazeres, Calheta, 31.12.2017

«Um texto pode ser lido em dois níveis diferentes: o nível da história, acessível a qualquer um, e o nível filosófico. Esta duplicidade explica o funcionamento de O Nome da Rosa, a tal ponto que foi feito um filme que assenta apenas no primeiro nível»—Umberto Eco (Expresso 20.2.2016).

É esse nível denominado de filosófico que permite aceder a outra dimensão, a outra profundidade, a outra riqueza do texto e da vida. Que tem algo para desocultar, descodificar, que nos dá a contemplar algo mais, mais especial e subtil, que constitui uma ponte para a aventura do pensamento, isto é, para uma vastidão de liberdade e estímulo para a mente.

Pessoalmente, um texto tem de me provocar e catapultar para o filosófico e o poético. Tem de ter o poder de me enriquecer e transformar e não apenas me entreter (prazer estético). Tem de me conceder horizontes. Tem de me transportar além do imediato e fazer transcender a mesmice quotidiana. Tem de possibilitar transcender-me. Como escreveu Pessoa, «Tudo o que sonho ou passo,/ O que me falha ou finda,/ É como que um terraço/ Sobre outra coisa ainda./ Essa coisa é que é linda.»

Essa outra coisa, mais além, é que é linda. Isto sem menosprezar o valor do entretenimento e do interesse ao «nível da história» (enredo), que também sei reconhecer e valorizar. Contudo, o que a história possibilita e como é contada faz (toda) a diferença.

sábado, dezembro 30, 2017

Silêncio

A sustentável leveza do Silêncio (Setembro 2013)

Quanto sentimos necessidade dele, e não o tememos, procuramo-lo e abraçamo-lo.

«Aquilo a que chamamos silêncio só se torna real e efectivo através de um processo de despojamento interior, e de nenhuma outra maneira», refere José Tolentino Mendonça na crónica Quem Quer Ouvir O Silêncio De B Fachada?* E diz mais adiante: «o silêncio não é simplesmente exterior. É preciso ter "silêncio no coração".»

«O silêncio que procuro é o silêncio interior», diz Erling Kagge no livro Silêncio Na Era Do Ruído (Quetzal, 2017). É esse silêncio que é mais «interessante» e que «cada um de nós tem de criar». Tem a ver com estar em paz consigo mesmo. «Quanto mais silencioso ficava, mais ouvia» a natureza, salienta aquele explorador norueguês.

Ele não encara o silêncio como uma «renúncia ou algo espiritual, [mas] como um recurso prático para viver uma vida mais rica», isto é, «como uma maneira mais profunda de sentir a vida do que nos limitarmos a ligar a televisão para ver o noticiário, uma vez mais.» Para ele, o silêncio tem a ver com a «redescoberta, por meio da pausa, das coisas que nos dão alegria

Tal como a redução da velocidade, em que se vive, e o parar dependem de um «abrandamento interno», fazer silêncio é também um processo (de «despojamento») interno. «Tem a ver com tirar, subtrair algo», escreve Erling Kagge. Exige «escutar-se a si próprio, perfurando camadas de distracção e automatismo», e outras formas de ruído.

Mas, como aquele intelectual insular adverte, «esta audição a nós próprios não se faz sem coragem [pode haver medo de estar perante si próprio e conhecer o seu coração, a sua essência, confrontar-se com os seus sentimentos e pensamentos] e sem esvaziamento [libertar-se de hábitos velhos que levam sempre aos mesmos sítios].»

Kagge, por outro lado, nota a importância de um "enchimento": «encher o silêncio com a minha própria pessoa.» Ficar, tranquilamente, consigo próprio, em lugar de «procurar, incessantemente, novos objectivos que atraiam a nossa atenção para fora e longe de nós.» Uma fuga de nós mesmos, na qual se evita até pensar: por ser uma «realidade tão brutal», optamos por «pensar e sentir outra coisa qualquer», nem que seja através de uma dependência. Parar e fazer silêncio são encontros (brutais) connosco.

O silêncio, a interioridade e a lentidão são desvalorizados numa sociedade dominada pelo ruído, pela extroversão, pela velocidade (e sobreocupação). «É mais difícil valorizar o silêncio do que o ruído», defende o autor norueguês. São valores como o silêncio, a lentidão e as capacidades de espanto e de contemplação (sem finalidade), que permitem viver com profundidade e atenção plena ao pormenor, sem cair na habituação do olhar e do sentir, e valorizar/apreciar a muita Beleza, Prazer e Alegria quotidianos, disponíveis e gratuitos, por vezes mínimos e subtis.

Em vez de «permanecer imóvel e desligar-me do mundo durante um instante», refere Kagge, uma pessoa tende a ocupar-se com algo, ainda por cima com tanto apelo à distracção, evitando o silêncio interior («here we are now, entertain us», diz o icónico tema dos Nirvana). O silêncio que permite «sentir, em vez de pensar demais», «cada momento [ser] suficientemente amplo» e «não viver através de outras pessoas ou de outras coisas».

Para Erling Kagge, «falar é precisamente aquilo que o silêncio deve fazer». E «devemos falar com ele, de modo a aproveitarmos o seu potencial.» Citando o poeta Jon Fosse: «talvez seja assim, não só porque o silêncio acompanha a admiração, mas também porque tem uma espécie de majestade, sim, como um oceano, ou uma interminável extensão de neve. E quem não fica admirado com essa majestade, teme-a. E essa é, muito provavelmente, a razão pela qual muitos temem o silêncio (e é por isso que há música em qualquer lugar, por toda a parte).»

De que nos serve o silêncio, a interioridade e a lentidão se não nos permite viver melhor, ser de um modo mais pleno e consciente (encontrar-se) e «fazer uma experiência mais autêntica de si»* (crescer e mudar)? A vida não pode resumir-se a estar ocupado e a ser eficiente.

O articulista madeirense, na crónica O Que É Compreender*, fala da «partilha do silêncio. Como é que percebemos que duas pessoas se acompanham? Pela forma como conversam? Certamente. Mas talvez ainda mais pela forma como acolhem o silêncio uma da outra. Entre conhecidos o silêncio é um embaraço, sentimos imediatamente a necessidade de fazer conversa. Mas quando nos acompanhamos, o silêncio é uma compreensão que une.»

A este respeito, o autor de Silêncio Na Era Do Ruído nota o seguinte: «na minha experiência, a verdadeira intimidade só se atinge quando ficamos em silêncio. Numa relação amorosa, sem a ternura que se segue à paz e à quietude, é difícil sentir as subtilezas e chegar a uma compreensão mútua. A tagarelice e outros ruídos podem tornar-se autênticos mecanismos de defesa para ajudar a evitar a verdade.» E remata: «se o/a nosso/a companheiro/a não nos compreende quando estamos em silêncio, não será ainda mais difícil que nos compreenda quando falamos?»

Virginia Woolf diz o essencial sobre o silêncio, em The Waves: “How much better is silence; the coffee cup, the table. How much better to sit by myself like the solitary sea-bird that opens its wings on the stake. Let me sit here for ever with bare things, this coffee cup, this knife, this fork, things in themselves, myself being myself.”

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Conexões:
Science says Silence is much more important to our brains than we think
Parar para viver melhor
Arte da lentidão, por José Tolentino Mendonça
Desligar do facebook
Prazer de uma liberdade
A minha alma gémea sou eu próprio

* in Crónicas De José Tolentino Mendonça: Que Coisa São As Nuvens (Expresso Impresa Publishing 2015, pp16-17, 26 e 32).

sexta-feira, dezembro 29, 2017

Arte da lentidão, por José Tolentino Mendonça

24.12.2017

Talvez precisemos voltar a essa arte tão humana que é a lentidão. Os nossos estilos de vida parecem irremediavelmente contaminados por uma pressão que não dominamos; não há tempo a perder; queremos alcançar as metas o mais rapidamente que formos capazes; os processos desgastam-nos, as perguntas atrasam-nos, os sentimentos são um puro desperdício: dizem-nos que temos de valorizar resultados, apenas resultados. À conta disso, os ritmos de atividade tornam-se impiedosamente inaturais.

Cada projeto que nos propõem é sempre mais absorvente e tem a ambição de sobrepor-se a tudo. Os horários avançam impondo um recuo da esfera privada. E mesmo estando aí é necessário permanecer contactável e disponível a qualquer momento. Passamos a viver num open space sem paredes nem margens, sem dias diferentes dos outros, sem rituais reconfiguradores, num contínuo obsidiante, controlado ao minuto. Damos por nós ofegantes, fazendo por fazer, atropelados por agendas e jornadas sucessivas em que nos fazem sentir que já amanhecemos atrasados.

Deveríamos, contudo, refletir sobre o que perdemos, sobre o que vai ficando para trás, submerso ou em surdina, sobre o que deixamos de saber quando permitimos que a aceleração nos condicione deste modo. Com razão, num magnífico texto intitulado “A lentidão”, Milan Kundera escreve: «Quando as coisas acontecem depressa demais, ninguém pode ter certeza de nada, de coisa nenhuma, nem de si mesmo.» E explica, em seguida, que o grau de lentidão é diretamente proporcional à intensidade da memória, enquanto o grau de velocidade é diretamente proporcional à do esquecimento. Quer dizer: até a impressão de domínio das várias frentes, até esta empolgante sensação de omnipotência que a pressa nos dá é fictícia. A pressa condena-nos ao esquecimento.

Passamos pelas coisas sem as habitar, falamos com os outros sem os ouvir, juntamos informação que nunca chegamos a aprofundar. Tudo transita num galope ruidoso, veemente e efémero. Na verdade, a velocidade com que vivemos impede-nos de viver.

Uma alternativa será resgatar a nossa relação com o tempo. Por tentativas, por pequenos passos. Ora isso não acontece sem um abrandamento interno. Precisamente porque a pressão de decidir é enorme, necessitamos de uma lentidão que nos proteja das precipitações mecânicas, dos gestos cegamente compulsivos, das palavras repetidas e banais. Precisamente porque nos temos de desdobrar e multiplicar, necessitamos de reaprender o aqui e o agora da presença, de reaprender o inteiro, o intacto, o concentrado, o atento e o uno.

Lembro-me de uma história engraçada que ouvi contar à pintora Lourdes de Castro. Quando em certos dias o telefone tocava repetidamente, e os prazos apertavam e tudo, de repente, pedia uma velocidade maior do que aquela que é sensato dar, ela e o Manuel Zimbro, seu marido, começavam a andar teatralmente em câmara lenta pelo espaço da casa. E divergindo dessa forma com a aceleração, riam-se, ganhavam tempo e distanciamento crítico, buscavam outros modos, voltavam a sentir-se próximos, refaziam-se.

Mesmo se a lentidão perdeu o estatuto nas nossas sociedades modernas e ocidentais, ela continua a ser um antídoto contra a rasura normalizadora. A lentidão ensaia uma fuga ao quadriculado; ousa transcender o meramente funcional e utilitário; escolhe mais vezes conviver com a vida silenciosa; anota os pequenos tráficos de sentido, as trocas de sabor e as suas fascinantes minúcias, o manuseamento diversificado e tão íntimo que pode ter luz.

José Tolentino Mendonça in Expresso, 25.5.2013
e in Crónicas de José Tolentino Mendonça: Que Coisa São As Nuvens (Expresso Impresa Publishing 2015, pp27-28)

Conexões:
Parar para viver melhor
Silêncio
Desligar do facebook

segunda-feira, dezembro 25, 2017

«A arte é única coisa que me mantém totalmente são e estável»

Paulo Furtado, The Legendary Tigerman, fotografado por Tiago Miranda (Expresso Online 24.12.2017)

«[O mais importante na minha vida é] o trabalho e a criatividade. Sou muito romântico e acredito no amor, acho que é uma parte fundamental da vida. Mas, na realidade, a única coisa que me mantém totalmente são e estável mentalmente é a arte, e como tal não posso dizer que seja outra coisa. Nos piores momentos, nos piores dias, o que me traz ao de cima é a minha arte. É fazer uma canção, escrever um poema, fazer uma fotografia... Há uma pulsão qualquer para esse tipo de comunicação com o mundo. Talvez tenha a ver com o puto solitário que ficava em casa a desenhar oito horas por dia em vez de sair para brincar.»

«As fases mais difíceis estão sempre associadas a rupturas emocionais. Quando se desiste de relações, há outras coisas que se perdem. Há que reconstruir tudo outra vez.»

«Tudo o que faço tem por base a crença no amor, na amizade, na arte.»

Conexões:
«Ainda bem que não me enquadro»
«A revelação do amor é uma revelação de carência»

«Ainda bem que não me enquadro»

Paulo Furtado, The Legendary Tigerman, fotografado por Tiago Miranda (Expresso Online 24.12.2017)

«Antes olhava sempre para esta coisa de ser um inadaptado como uma grande seca. Agora já não sinto necessidade de me enquadrar. Pelo contrário, ainda bem que não me enquadro, ainda bem que consigo fazer as coisas como eu quero.»

«Não era fácil, para mim, relacionar-me com as pessoas, começar uma conversa. Não é por acaso que sou durante 15 anos one-man band. É óbvio que isso me remete para a infância, para o miúdo que brinca sozinho e que consegue estar fechado durante sete horas numa sala de ensaio a mecanizar gestos, a fazer a coisa menos interessante do mundo. [...] Fui percebendo, paralelamente à maluqueira da adolescência, que a forma que tinha de comunicar passava pela escrita, pelo desenho, pela arte... [...] A arte [permitiu] enquadrar-me no mundo».

«Sempre me senti desenquadrado. Creio que houve momentos em que não me enquadrava muito bem em nenhum lugar.»

«Com o tempo, fui aprendendo a esconder a timidez, a ser maluco, extrovertido... [...] Comecei por me relacionar, por ter um grupo de amigos, por sentir que pertencia a um lugar. Nunca pensei nisto antes, mas agora percebo que foi a parte extrovertida da minha personalidade que me permitiu pertencer a algo».

«Sempre fui o miúdo mais tímido e isolado do mundo. De um momento para o outro, saio dessa timidez e passo a ser o miúdo mais popular e mais maluco.»

«[H]á uma parte de mim que tem um certo pavor da dependência».

«[S]e tivesse feito outra coisa qualquer totalmente sozinho, ia mesmo ser um gajo solitário e triste, fechado num ateliê. Precisava de enfrentar a minha solidão e forçar-me a contrariá-la. Senti que a música podia ajudar-me a ser de outra maneira, a não ser uma pessoa tão isolada, tão fechada em si mesma... [...] A música foi a única forma que encontrei de não me tornar o gajo mais solitário do mundo. [...] Apesar desta dor toda, do palco e da tragédia do artista tímido, eu sabia que era aquilo que queria fazer.»

«[O] puto solitário que ficava em casa a desenhar oito horas por dia em vez de sair para brincar.»

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É independente quem não tem medo da solidão
«Sozinho um homem ganha espessura»
Solidão radical é inerente à natureza humana
Prazer de uma liberdade

domingo, dezembro 24, 2017

«A revelação do amor é uma revelação de carência»



«Precisar é sempre o momento supremo. Assim como a mais arriscada alegria entre um homem e uma mulher vem quando a grandeza de precisar é tanta que se sente em agonia e espanto: sem ti eu não poderia viver. A revelação do amor é uma revelação de carência». «E solidão é não precisar. Não precisar deixa um homem muito só, todo só. Ah, precisar não isola a pessoa». «Ah, meu amor, não tenhas medo da carência: ela é o nosso destino maior. O amor é tão mais fatal do que eu havia pensado, o amor é tão inerente quanto a própria carência, e nós somos garantidos por uma necessidade que se renovará continuamente. O amor já está, está sempre. Falta apenas o golpe da graça—que se chama paixão.»

A Paixão Segundo G.H., Clarice Lispector, 1964, Relógio D' Água 2013, pp120-133

Quem sabe se influenciado pelas modernas teorias do desenvolvimento pessoal, eu convenci-me de que gostar de alguém por carência (diferente de necessidade) seria ilusório e até destrutivo, para uma relação, por o amor confundir-se com o colmatar de uma carência intrínseca, que nada tem a ver com o sentimento pela pessoa amada: esta torna-se, mera e utilitarmente, saciadora da carência do outro. 

Clarice Lispector contraria-me. No seu entender, não precisar, não ser carente, isola e deixa uma pessoa «toda só». Não precisar auto-sustentabiliza e autonomiza o ser humano. O amor cria dependência.

quarta-feira, dezembro 20, 2017

Prazer de uma liberdade

Nuvens acesas, à beira de casa

Quando o prazer da própria companhia (e encontro com o universo cá de dentro) é muito gratificante (viciante), há o perigo de a solidão se tornar «o caminho»e não ser apenas o «ponto de partida e de chegada» impostos pela condição humana, como referiu Manuel Pita, aka Sejkko (Diário 3.2.2017).

Contudo, interessa diferenciar solidão (sofrimento por ausência de companhia desejada e dificuldade em estar bem consigo próprio) de solitude (a pessoa não procura companhia de forma urgente, embora não a evite, já que se trata de um recolhimento voluntário, em paz consigo própria: boa companhia para si mesma).

Os conceitos de autonomia e auto-sustentabilidade, muito em voga, devem aplicar-se também à vida do ser humano. Ser o mais auto-sustentável possível é ser autor da sua vida, é desenvolver todo o seu potencial, é obter as suas respostas, desenvolver a sua sabedoria, é criar ordem e equilíbrio na sua própria vida.

O prazer dessa liberdade é ilustrada, com palavras, por Virginia Woolf, em The Waves: “How much better is silence; the coffee cup, the table. How much better to sit by myself like the solitary sea-bird that opens its wings on the stake. Let me sit here for ever with bare things, this coffee cup, this knife, this fork, things in themselves, myself being myself.”

Há que ter uma atitude crítica face à formatação para o convívio e o gregarismo como razões da existência humana e o caminho para a felicidade.

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A minha alma gémea sou eu próprio

Desligar do facebook

Silencioso entardecer de hoje, à porta de casa

Há alguns anos libertei-me da televisão, agora liberto-me de outro ruído alienante, usurpador de tempo e atenção, inimigo do silêncio, que veio ampliar a superficialidade (a espuma dos dias—“casos do dia”) neste mundo. Seja na actualidade informativa, seja na rede social, as questões realmente importantes são, deliberadamente, evitadas.

A maioria das pessoas limita-se, domesticada, a seguir modelos, padrões, escolhas e comportamentos que lhes são impingidos, desde o berço ao caixão. A liberdade afirma-se em actos. Opto pela realidade, que é nutritiva e vale a pena, e resisto a ser amestrado pela tecnologia. Opto por não estar sempre disponível, nem atarefado ou a esbanjar tempo, e viro costas ao alvoroço da tal espuma dos dias. Opto por mais espaço.

É preciso subtrair, retirar o excesso, ir ao osso. Não fugir de si próprio, não viver através de outras pessoas ou outras coisas.

Citando Emily Dickinson, «THE BRAIN is wider than the sky». Portanto, o Cérebro é, incomensuravelmente, mais vasto do que o facebook…

É preciso «parar, para que, de repente, um tempo lento [e amplo], e ao ritmo de si próprio, se desenvolva», como referiu o filósofo José Gil. Quero ainda mais tempo para o que realmente importa e é essencial ao meu bem-estar, crescimento e viver pleno. A «velocidade com que vivemos impede-nos de viver», refere José Tolentino Mendonça, sendo preciso um «abrandamento interno».

Prefiro cultivar a capacidade de espanto a olhar as nuvens :-). «Como são belas… como são belas… como são belas…», afirma Otelo, no filme “Que Coisa São as Nuvens” de Pasolini. Iago responde: «Ah, arrepiante maravilhosa beleza do criado!»

[a quem eu importo e quem importa, encontra-me: neliodesousa@gmail.com / http://olhodefogo.blogspot.pt]

ACTUALIZAÇÃO (2.9.2018):
Passados alguns meses de retiro, um regresso noutras condições, num ligar mais desligado, sem interferir com o meu Tempo e Espaço pessoais: 

Sem beliscar o meu Tempo (lento) e outras coisas basilares, como o contacto directo (não virtual) com os Amigos ou a abertura de espírito (é preciso fintar os algoritmos), nem ser arrastado pela espuma dos dias, retomarei a partilha, embora de forma esparsa. Utilizar o Messenger do Facebook sem publicar na Página (interagir) como que me fazia sentir um voyeur... :).
Uma ideia, uma emoção, uma fotografia, um vídeo musical, um evento artístico. Ao fim ao cabo, uma câmara de eco do blogue Olho de Fogo.
Também pelos Amigos nascidos ou mantidos pelo contacto presencial, alguns dos quais interajo via Messenger (virtualmente, mas como complemento do presencial), uma forma ágil de comunicação, sem dúvida—essa Comunicação e essa Troca fazem parte do Essencial, nas antípodas da tal espuma dos dias. O que vale, realmente, é estar com as pessoas em modo directo, ao vivo. Sem isso, o virtual é mesmo virtual, e não será complementar para a qualidade da amizade/relacionamento, da atenção e proximidade entre as pessoas.

Conexões:
Parar para viver melhor
A arte da lentidão, por José Tolentino Mendonça
Silêncio

Liberdade

Vistas de casa

L i b e r d a d e. Quem está, verdadeiramente, disposto a pagar o preço—solidão, por vezes—para a abraçar e usufruir desse valor supremo?

«Toda a gente diz que quer liberdade. É mentira. A liberdade traz muita confusão à cabeça. Melhores são as rotinas que nos livram da maçada de ter que tomar decisões sobre o que fazer com a liberdade. Quem tem rotinas não precisa de tomar decisões. A vida já está decidida. O cavaleiro nem precisa de puxar a rédea: o cavalo sabe o caminho a seguir»
—Rubem Alves—1933-2014—Se eu pudesse viver a minha vida novamente..., Edições ASA, 2005.

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Conexões:
Silêncio
A minha alma gémea sou eu próprio

A minha alma gémea sou eu próprio

Francelho à porta de casa

A l m a  G é m e a. Tanta gente à procura dela, sem perceber que cada pessoa é (ou deveria ser) a sua melhor companhia. Num mundo sob a ditadura da extroversão, do ruído, da carência (desamor) e da dependência, somos empurrados para procurar (consumir) fora o que já se tem cá dentro.

A minha alma gémea sou eu mesmo. Conheço-me e sinto-me como não é possível a outrem me sentir e conhecer. Sou autor e actor privilegiado no palco de mim próprio. Aí reside a Fonte, a Harmonia, o Silêncio.

sábado, dezembro 16, 2017

Parar para viver melhor

Ilustração: Mário Henriques

«Hoje, eu sei que umas das condições, para viver mesmo, viver um bocadinho melhor, é parar. É parar. Parar uma velocidade que nos empurra constantemente. Parar mesmo. É preciso parar. Para saber escutar, saber ler, ver, sentir, pensar, tocar. Parar não é repousar, porque nunca se repousa. Parar para que, de repente, um tempo lento, e ao ritmo de si próprio, se desenvolva.» «Fazer com que uma distância objectiva se possa dilatar imenso.» «Parar para olhar a envolvência—um gesto fundamental para o pensamento.»
—José Gil, filósofo: 8.12.2017A Beleza das Pequenas Coisas/Expresso

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Arte da lentidão, por José Tolentino Mendonça
Silêncio

quarta-feira, abril 05, 2017

«Be drunk, always»

 picture by Frantisek Kupka

"You must be drunk, always. That is everything: the only question. Not to feel the horrible burden of Time that crushes your shoulders and bends you earthward, you must be drunk without respite. But drunk on what? On wine, on poetry, on virtue—take your pick. But be drunk. And if it should chance, on the steps of a palace, in the green weeds of a ditch, in the dreary solitude of your bedroom, you awake, your drunkenness grown less or gone, ask of the wind, of the wave, a star, bird, clock, anything fleeing, any that moan, that roll along, that sing, that speak, ask what hour it is; and the wind, wave, star, bird, clock, will reply, “The hour to be drunk! Not to be Time’s racked slaves, be drunk; be drunk without respite. On wine, on poetry, on virtue—take your pick."

Charles Baudelaire, “Be Drunk” from “Paris Spleen”

«Eu sinto demais»


— Você racionaliza demais.
— Não, não amigo. Eu sinto demais. Para você chegar a tal ponto de racionalidade é porque você já conseguiu extirpar todo o sentimento possível às custas de doses cavalares de angústia.

Passagem do filme Borrasca de Francisco Garcia, em que dois amigos conversam sobre a vida à beira de uma garrafa de Jack Daniel's.

A arte, além do efeito estético do Belo, tem esta capacidade de desocultar a significação emocional profunda subjacente à realidade e abordar/compreender as questões inerentes à natureza e condição humanas.

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