Sendo a inveja um sentimento cada um será livre de o sentir. No entanto, não é um questão de liberdade do próprio, face ao carácter destrutivo da inveja para o outro (choca com a liberdade deste). «O problema é quando a inveja se operacionaliza», como referiu Alberto Vieira, historiador madeirense.
Luís Peixoto (Notícias Magazine 8.5.2016) defende que a «inveja só chega ao invejado se este permitir, se estiver vulnerável, se não estiver preparado», mas pode não ser assim quando o sentimento se traduz em acções práticas deliberadas de bloqueio ou ruína do outro.
Por julgar o outro a salvo da fadiga de viver
Citado por José Tolentino Mendonça, no seu Elogio da Sede (2018), o filósofo Soren Kieakegaard explicava a inveja como uma «admiração transtornada». Significa que aquele que inveja «reveste o seu objeto de uma admiração que tem a ver pouco com a realidade. Imagina que aquilo que o outro possui (inteligência, sucesso, beleza, bens, o que seja) lhe confere uma espécie de omnipotência, o coloca a salvo da fadiga de viver, da sua turbulência e da sua dor, coisas inteiramente falsas.» E aqui o escritor madeirense tocou no cerne da motivação do sentimento da inveja e do invejoso. Que, afinal, se baseia num equívoco («ele é que está bem»; «ele está como quer», ouve-se dizer).
Fernando Pessoa disse-o, poética e filosoficamente, nuns versos de 2 de Julho de 1931: «Ser feliz é ser aquele./E aquele não é feliz,/Porque pensa dentro dele/E não dentro do que eu quis.» Um poema magistralmente cantado/interpretado por Camané no álbum Sempre de Mim, no tema «Ser Aquele».
Tolentino Mendonça explica que a «desproporcionada felicidade que sonhamos que há nos outros obsidia-nos e essa admiração adoecida é experimentada como uma perda pessoal e uma injustiça, numa modalidade tão avassaladora que suscita uma ânsia irreversível de destruição, de cancelamento do outro.»
Invejoso quer eliminar a alegria que supõe no outro
Assim, a «inveja é um sentimento disruptivo em relação a outra pessoa que possui algo de desejável— e o impulso do invejoso é eliminar ou estragar o que pensa ser a fonte daquela alegria. O outro deixa de ser um parceiro e torna-se um rival. Deixa de ser uma existência autónoma e diferenciada para andar, na maior parte dos casos sem saber, enredado nos dramas, ficções e combates fantasmagóricos do eu. Deixa de constituir a possibilidade criativa de um encontro, para viver capturado num ressentimento que alaga tudo de mesquinhez e sombra.» E acrescentaria: de violência.
O madeirense José Tolentino Mendonça escreveu que «não é, por acaso, que a psicologia falará, por exemplo, da inveja como dimensão muito presente no desejo humano onde se acolhem os nossos fantasmas de medo e destruição mais arcaicos.» «Perante o objeto real ou imaginário do desejo nós desatamos a gritar,«é meu, é meu».
E explica que o «desejo invejoso não experimenta satisfação em si mesmo, na sua existência, naquilo que é. Extrai, antes, a sua força em impedir o outro, num jogo de rivalidade destrutiva que não olha a meios.»
Obsessão em prejudicar e destruir o outro
O mesmo autor cita a psicanalista Melanie Klein, que faz recuar o «objeto primário de toda a inveja ao seio nutridor materno» («ainda não falava, e já olhava pálido e com rosto amargurado para o irmãozinho de leite» — Santo Agostinho em Confissões VII) e conta uma história ilustrativa:
«Era uma vez um homem que vivia a invejar o vizinho. Certo dia foi visitado por uma fada, que lhe ofereceu a extraordinária possibilidade de realizar naquele momento um desejo, por maior que fosse, mas com uma condição: "Poderás pedir o que quiseres, desde que o teu vizinho receba o mesmo a dobrar." O invejoso respondeu, então: "O meu desejo é que me arranques imediatamente um dos olhos." A obsessão de ver o outro prejudicado prevaleceu sobre qualquer vontade na ordem do bem, mesmo em relação a si próprio.» E comenta Tolentino Mendonça: «Estranho sentimento, a inveja. E, contudo, tão infiltrado nas relações humanas, tão abrasivo da vida interior, tão capaz de fazer em cacos ambientes».
Sociedade fechada é mais permeável à inveja
Para o filósofo José Gil, a inveja, que tem imensas estratégias, não é uma relação puramente psicológica, é mais do que isso: trata-se de um sistema que tem autonomia e vive em meios fechados, que cria entraves àqueles que têm ideias, iniciativas e empreendimentos. Admite que «não é uma característica portuguesa, antes um dos sentimentos mais espalhados pelo mundo. Simplesmente acontece que em Portugal a inveja tem uma força tal porque nós somos uma sociedade fechada. E quando as sociedades se fecham, tudo se concentra, tudo se paralisa, tudo se adensa e não respira. Uma universidade é um antro de inveja em qualquer parte do mundo, seja nos Estados Unidos, em França ou na Inglaterra. Mas vimos cá para fora e respiramos ar puro. Em Portugal não, sai-se cá para dentro e não para fora.»
A inveja é inerente à condição humana, mas em meios mais pequenos e sociedades mais fechadas (quem está mais próximo é passível de maior proximidade e de fazer mais sombra) poderá, quem sabe, assumir uma presença mais intensa.
Invejidade é o termo popular para inveja
Segundo Alberto Arthur Sarmento, a invejidade significa a «inveja mal reprimida, encapotada, que moe e ginga, repiza e muito gira, a lançar mão de todos os meios para se alastrar, procurando anular a sombra que a escurece e molesta, húmida e fria, infiltrante, deprimindo o que é alheio, a roçar-se a esquina, para realização dos seus fins. É a inveja dinâmica, sem sentido, nem direcção, impando uma coragem embexigada pela vacina do medo.» Será uma cobiça refinada e destrutiva, que limita o progresso e o convívio social.
Numa conferência no Teatro Baltazar Dias, em 6.11.2018, o historiador Alberto Vieira referiu a «cultura popular» que valoriza a questão da inveja, tendo processos e mecanismos para a sua «cura». Explicou que a inveja parte sempre da existência e proximidade do outro («a prática de forte contacto, convívio, relação, que perdura no tempo, potencia a inveja»). Contudo, não tem dúvida que o mundo de invejosos é de «intolerância e violência.» Porque a inveja é um sentimento «destrutivo, negativo». Considerada um «pecado», que a religião, por exemplo, condena e combate.
Inveja não é ciúme, porque ela é destrutiva: implica a destruição do outro e a perda para esse outro. Assim, «alguém que se esforça por ter como o outro» não constitui inveja, porque é algo construtivo, embora partindo de uma comparação com o outro. Comparar-se com os outros, dizem os manuais do bem-estar, é uma atitude a evitar pelos sentimentos negativos passíveis de serem gerados, como o sentir-se aquém ou ressentido. Neste contexto, para nós, é mais no sentido ver o outro como um referencial positivo, numa admiração sadia, benévola. A inveja é uma admiração doente, «transtornada».
Poio: a especificidade madeirense
Em termos da especificidade madeirense, Alberto Vieira identifica a «poiozação do quotidiano» como a «expressão mínima da inveja.» Uma outra forma da sua expressão. Poiozação a ver com o «poio», relativo à posse, à propriedade, fruto da divisão da terra. É uma propriedade diminuta («nesga de terra»), mas que «significa muito» para a família. Para o madeirense, o «poio é tudo». Daí gerar «muitas situações de atrito e conflito».
O poio «marcou muito a história dos madeirenses», como «fonte fundamental de sustento», e marcou a noção de «espaço e território», nomeadamente a dificuldade em «partilhar» esse espaço com os outros. Mais do que a inveja universal, tal marcou a «maneira de ser madeirense». O que não contribui tanto para uma «visão mais ampla» como para o «desenvolvimento do próprio espaço». Porque o poio, além de territorial ou físico, é um «espaço mental». E marcou a mentalidade madeirense.
Sobre a inveja e o poio no Arquipélago da Madeira ver ainda os seguintes artigos do historiador citado: Invejidade e O verso e o reverso da imagem da ilha e do madeirense (Cadernos de divulgação do CEHA; Projeto “Memória-Nona Ilha”/DRC/SRETC, N.º 01, 2016).
Gratidão, o antídoto para a inveja
Quem é grato, quem expressa gratidão interiormente, quem vive a «experiência da gratificação que o outro constitui torna-se então», essa experiência, «uma escola de generosidade: passamos a ser capazes de compartilhar com os outros o nosso dom», salienta José Tolentino Mendonça, no livro já citado. Enquanto a «inveja é uma reivindicação estéril e infeliz», a «gratidão constrói e reconstrói o mundo, dentro e fora de nós.»
Por isso, defende que o «contrário da inveja é a gratidão e esta está intimamente ligada à confiança no bem que se desenvolve nos outros, no bem que o outro é sem si mesmo (independente de mim) e no bem que eu recebo dele.»
E acrescenta: «Cada um traz em si um quinhão de falhas de amor e a questão é como as reconhece, integra e transfigura. A própria criança tem de aprender a ver a mãe não apenas como fonte de alimento para seu uso exclusivo e a controlar a sua voracidade. Quando a boa relação se estabelece, predomina o desejo de preservar em vez de destruir. A não sei quantas braças de profundidade situa-se uma dor nunca reparada, mas que condiciona toda a superfície. Identificar e cuidar dessa dor é a condição para sermos nós próprios e podermos entender também a dor que os outros transportam, tocando a nossa e a sua verdade. O momento de aceitação de si, com lacunas e vulnerabilidades, é uma etapa crítica, dilacerante até, mas abre-nos à transformação e à fecundidade.»
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