«And some people say that it's just rock 'n' roll. Oh but it gets you right down to your soul» NICK CAVE
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domingo, março 04, 2018

Eternidade: chama-me pelo teu nome e chamar-te-ei pelo meu

Elio, em frente à lareira, digere a tristeza funda, silenciosa, serena, agridoce, que é ao mesmo tempo sentir-se a Morrer (perda) e sentir-se mais Vivo (êxtase) do que nunca

Consta que Sufjan Stevens, singer/songwriter indie pop que compôs temas centrais da banda sonora de Call Me By Your Name, já andava há muito tempo a trabalhar em “Mistery of Love”, mas ainda não tinha encontrado forma de a terminar até a ligar ao filme. Um tema que faz referência a pássaros e a Hephaestion, a amante de Alexandre, o Grande. Valeu ao cantor uma nomeação para os Óscares 2018 e irá actuar na cerimónia.

«I wasn't really trying to get too literal with the film," diz ele. "I wanted the songs to stand on their own — partly because I hadn't seen the film, and didn't really know what the vibe was going to be. So I just did what I do, which is just write, you know, the typical forlorn love song that's based on these concepts from the film like first love, summer love, transcendence, but also deep sensations, deep feelings, sorrow — just that relationship between passion and confusion."

Este convite para entregar-se, ao que Luca Guadagnino chamou de «melancolia das coisas perdidas», estende-se a qualquer pessoa com um caso de amor no passado que valha a pena recordar, como nota o artigo no The Guardian que explica por que esta longa metragem deve ganhar o Óscar de melhor filme.

Ora, foi precisamente esse efeito "melancólico" que teve em mim (o nome do protagonista acrescentou ainda um efeito espelho: [n]Elio), além da beleza e sensualidade do filme, que é muito sensitivo, emotivo, com rara sensibilidade e vulnerabilidade. Percebo agora porque senti que tinha de ver este filme (independente da orientação sexual ser diversa: é uma história universal de amor). Percebi que ainda acredito. Eu já sabia, mas o filme fez-me voltar a confirmar quanta sorte tive em me apaixonar, e amar, como aconteceu num dado momento. Já nessa idade tinha a consciência da raridade de algo assim. Se calhar irrepetível.

Há muita gente que nunca vive esse sentimento de paixão a toda a largura do espectro da frequência emocional. O importante não era o "para sempre", sabia de antemão que não seria. O essencial era Viver o Momento, era Viver algo Raro e Único. Nem hesitei. Larguei tudo. Segui apenas o coração. Eu sabia que poderia ser uma oportunidade de uma vida. Um dez em dez. E até hoje a vida continua a confirmá-lo.

O autor de "Mystery of Love" referiu ainda: "Part of the reason why it was really difficult for me to finish it, lyrically and compositionally, until I had engaged with this project was because it's all about a kind of universal first love," disse. "And also knowing the finite nature of things, that nothing's forever. That's what's so amazing about this film, it's such a fully immersive engagement with a fleeting experience. It's a once in a lifetime event, and that's what first love is for most of us. It's unparalleled."

Por tudo isto, ao ver Call Me By Your Name senti o que um dos protagonistas estava a sentir quando da ausência ou partida do outro. É uma dor dilacerante, parece que mata. Ele olha a lareira na cena final, eu olhava o mar de Setembro e as primeiras chuvas, que me impediam de estar com o meu amor. Essa dor e essa tristeza não é estar chateado nem revoltado. Muito menos com o nosso amor. É uma tristeza funda, silenciosa, serena, agridoce. É sentir-se Vivo, é sentir êxtase. E pode isso alguma vez ser triste?

Não quis mal a essa tristeza feliz, pelo muito que me tinha sido dado e não queria mal à felicidade que senti. Nunca matei esse amor, essa alegria. O romance do filme, como o meu, foi no Verão. Foi esse contexto, e o impacto do primeiro grande amor, que inspirou, como se viu, Sufjan Stevens na composição do tema “Mistery of Love”. Sol e água como elementos centrais. Fui um filho da mãe com sorte, mas também soube responder à chamada, de corpo e alma (entrega incondicional). Só assim se transcende e eternizamos o momento.

Penso que tem muito a ver com as sensibilidades que se encontram. A vibração, a frequência, a entrega, a admiração. O amor é livre e selvagem. Gera-se ou não se gera a intensidade do sentimento. Há fogo ou não há fogo para alimentar o sentimento.

O pai do protagonista diz-lhe: "We rip out so much of ourselves to be cured of things faster than we should that we go bankrupt by the age of thirty and have less to offer each time we start with someone new. But to feel nothing so as not to feel anything — what a waste!"

É isto: a maioria perde-se na desilusão e deixa de investir, de arriscar, de entregar-se, de ir ao encontro do outro, com medo da rejeição, com medo de sofrer, com medo de morrer de amor, mas em troca ficam com uma mão cheia de nada: nada sentem. Há quem defenda que precisamos de morrer de amor para percebermos o que queremos da outra pessoa e o que temos para lhe dar. Faz parte da viagem existencial.

«Todos fugimos do amor [romântico]. Quando nos cruzamos com alguém que acende muitas luzes — e que sentimos que, de alguma forma, pode ser o nosso amor —, o nosso impulso não é correr atrás dela, mas sim fugir, como se as pessoas com quem sonhamos só existissem no nosso desejo e não fossem palpáveis, não tivessem um rosto e não fossem como nós.»

No filme Call Me By Your Name conta-se a seguinte história: «Farris is a young man fond of a princess. She is also fond of him. Although she does not seem to be fully aware of it and against friendship which flourish between them, or perhaps because of this strong friendship, the young knight finds himself very much unable to speak. Because he is totally incapable of addressing his love until one day the princess asked frankly: is it better to speak or die?»

Felizmente, mantenho em mim o meu ser do Primeiro Grande Amor: a mesma liberdade, a mesma sensibilidade, mas muito mais auto-conhecimento. Espero que maior capacidade amar. E que esteja disposto a falar, para não morrer e poder morrer de amor.

O pai do protagonista diz ainda: "How you live your life is your business, just remember, our hearts and our bodies are given to us only once. And before you know it, your heart is worn out, and, as for your body, there comes a point when no one looks at it, much less wants to come near it. Right now, there's sorrow, pain. Don't kill it and with it the joy you've felt."

É a melancolia (valor, felicidade?) das coisas perdidas (ou serão eternas?) e das coisas que são finitas (ou serão infinitas?). E se calhar é assim mesmo que tem de ser. É assim que tudo faz sentido. Ser efémero não significa ser menos ou ter menor valor. Na peça Salome, Oscar Wilde escreve: "The mystery of love is greater than the mystery of death."

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"Visions of Gideon" e "Futile Devices", outros temas de Sufjan Stevens em Call Me By Your Name.

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"Mystery of Love" builds from Sufjan Stevens fingerpicking an acoustic guitar up an octave to the uncredited mandolin acrobatics of Chris Thile — "the greatest living mandolin player on the planet," according to Stevens — then adding piano and shimmering synth as well as some female backup singers, in a constant motion of hopeful and dreamlike ascent.

terça-feira, fevereiro 27, 2018

Essa outra coisa é que é linda

Prazeres, Calheta, 31.12.2017

«Um texto pode ser lido em dois níveis diferentes: o nível da história, acessível a qualquer um, e o nível filosófico. Esta duplicidade explica o funcionamento de O Nome da Rosa, a tal ponto que foi feito um filme que assenta apenas no primeiro nível»—Umberto Eco (Expresso 20.2.2016).

É esse nível denominado de filosófico que permite aceder a outra dimensão, a outra profundidade, a outra riqueza do texto e da vida. Que tem algo para desocultar, descodificar, que nos dá a contemplar algo mais, mais especial e subtil, que constitui uma ponte para a aventura do pensamento, isto é, para uma vastidão de liberdade e estímulo para a mente.

Pessoalmente, um texto tem de me provocar e catapultar para o filosófico e o poético. Tem de ter o poder de me enriquecer e transformar e não apenas me entreter (prazer estético). Tem de me conceder horizontes. Tem de me transportar além do imediato e fazer transcender a mesmice quotidiana. Tem de possibilitar transcender-me. Como escreveu Pessoa, «Tudo o que sonho ou passo,/ O que me falha ou finda,/ É como que um terraço/ Sobre outra coisa ainda./ Essa coisa é que é linda.»

Essa outra coisa, mais além, é que é linda. Isto sem menosprezar o valor do entretenimento e do interesse ao «nível da história» (enredo), que também sei reconhecer e valorizar. Contudo, o que a história possibilita e como é contada faz (toda) a diferença.

sábado, fevereiro 24, 2018

Ouviu-os todos?


«Mas há por aí muita gente estúpida que quando entra no meu apartamento exclama: "Oh, tantos livros! Leu-os todos?".»

Umberto Eco
Expresso 20.2.2016

terça-feira, fevereiro 06, 2018

«A nossa casinha» por Fernando Ribeiro

O Rock está aí por mais que lhe tentem passar um atestado de óbito, nota Fernando Ribeiro (Moonspell) a respeito da homenagem dos Metallica ao roqueiro Zé Pedro (Xutos) entoando "A Minha Casinha" (photo copyright Rita Carmo/Blitz)

Já perdi a conta às vezes que o meu gosto e a minha improvável “profissão” de roqueiro (ou Metaleiro, como quiserem) foi posta em causa ou diminuída.

Semanalmente, os jornais, sites e publicações de música nacionais passam um atestado de óbito ao Rock.

Quando ele não morre, desaparece das suas publicações ou leva um carimbo diferente: de nicho de mercado, ler como uma coisa ultrapassada, para gente “fatela” e “burra” que não consegue aceitar nem compreender a ascensão da "Afro Lisboa", ou dos novos poetas eléctricos, ou do novo rock das caves e garagens lisboetas de gente desafinada, feia e sem talento.

Quando a maior banda de Metal do Mundo homenageia o melhor Rocker de sempre de Portugal, só temos de celebrar esse gesto e rendermo-nos à evidência de que o Rock, afinal, é uma família, sentada à mesa, a comer com as mãos, a beber da garrafa e a abanar a cabeça.

Que nojo, pensarão os editores de Lisboa, os cronistas de todo o peido que a Madonna dá (e com quem) e se o vai samplar no seu próximo disco. E enquanto continua esta evidente sobranceria, o nosso Rock vai desbaratando teorias de losers e wannabes das pistas de dança do Lux, com números e emoções indesmentíveis.

Porque o que custa a esta gente da música domesticada, é a nossa capacidade para sermos ingénuos o suficiente para pensarmos que o que os Metallica fizeram foi simplesmente lindo [no dia 1 de Fevereiro de 2018, no Altice Arena].

De chorar a pensar que a banda que ouvíamos entre as quatro paredes do nosso quarto pequeno dos subúrbios com os nossos dez amigos lá dentro, teve um gesto do caraças e mostrou toda a sua humanidade, calando todos quanto só já discutiam a especulação dos preços e a morte de um estilo que encheu, outra vez, a arena de todas as negociações.

O cinismo e o snobismo têm, de facto dominado a imprensa alternativa em Portugal. O pouco espaço nos jornais é usado para realçar coisas que no meu tempo nem se deixariam entrar em estúdio.

As colunas de intelectuais e musicólogos são, na sua maioria, um exercício onanista, desligado de qualquer tentativa de passar conhecimento, sugerir, melhorar a vida musical dos seus leitores.

Em bom Português eles odeiam que as pessoas ouçam música e que sintam emoções através de bandas que vendem milhões e que eles humilham nas suas crónicas pagas.

Porque acotovelarmo-nos num concerto de Metallica não é o mesmo que ir a um festival e encher o pescoço de passes laminados dados pelos sponsors.

Ir a um concerto dos Metallica é ir também ver o que passa, reencontrar amigos, dizer mal da banda, porque não, há muita gente que foi, que já nem ouve Metallica desde o fim dos anos 80.

No entanto, esteve lá, e esse estar lá é algo muito próprio do Rock, e que, ao contrário do que se escreve por aí, é a sua força, a força da presença. Da noção da importância de ter lá estado.

Em Lisboa, quando se fez a homenagem ao Zé Pedro (que bem a merece porque não olhou o Metal de lado e bem nos cruzámos em muitos dos concertos dos californianos), escreveu-se um momento que nunca se esquecerá: História. Ponto final, metal up your ass! Eu não estive lá. Continuo na estrada, hoje na Alemanha, a viver em pleno da coisa morta do Rock.

À distância, tenho vergonha do que se escreve sobre o Rock em Portugal. Apetece-me dizer coisas más, impublicáveis. Mas o Rock é magnânimo e perdoa a ignorância porque é a única música que não tem vergonha de ser o que é e os fãs sabem disso.

E enquanto a Madonna entretem os saloios de Lisboa até se fartar de Lx e se pirar; enquanto o kizomba invade as rádios e se prepara, a preço de ouro, a desforra Eurovision em Lisboa; no mundo real os Metallica encheram o Pavilhão, tocaram Xutos, nós por cá, bem obrigado,

Europa com salas esgotadas, dezenas de bandas de Metal a fazerem o mesmo, por todo o mundo.

O mundo: a nossa casinha.
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Fernando Ribeiro, músico e líder dos Moonspell, no Jornal de Leiria (5.2.2018)

quinta-feira, outubro 13, 2016

No way is the way of freedom

David Bosc
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“No way is the way of freedom. People, when they are free, go through all paths” -  David Bosc, escritor francês, sobre Gustave Courbet, em La Claire Fontaine, um retrato do pintor.

terça-feira, setembro 27, 2016

Histórias que mudam vidas

Arturo Pérez-Reverte
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«O que eu quero é que me contem histórias interessantes, que me façam reflectir, pensar, sonhar, que mudem a minha vida. Se, quando terminar a leitura de um livro, a minha vida não tiver mudado para melhor, ou é um mau livro, ou eu sou um mau leitor. Um livro que não muda o olhar do leitor é uma merda de livro. E o mundo está cheio de merdas de livros que não mudam nada. São apenas fruto da vaidade onanista de autores que não têm nada para dizer.» «Mas quando um filho da puta que não fez mais nada do que beber copos num bar se atreve a escrever 500 páginas sobre a sua interessante personalidade, vá apanhar no cu!» (Público 16.9.2016: "Escrevo romances em legítima defesa")

Livro que vale mesmo a pena muda-nos a vida. Esta entrevista a Arturo Pérez-Reverte, que fala sem rodeios nem tretas politicamente correctas, pode também ter mudado algo na minha vida...

terça-feira, setembro 13, 2016

Narrativa para dar sentido à vida

Nick Cave como protagonista do filme One More Time With Feeling
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Andrew Dominik, o realizador de One More Time With Feeling com Nick Cave como protagonista, refere uma importante função da arte e da ficção:

«I think the function of narrative, or the function of fiction is to make sense of things that are incomprehensible. I think that the instinct behind all art, I mean, we live in a chaotic situation and we ascribe meaning to it just like telling ourselves a story. What's going on in both the film [One More Time With Feeling] and the record [Skeleton Tree] is that narrative has been abandoned, in favor of a direct collision of images and words, which is what poetry is. I'm not sure that the film really has a narrative. It's supposed to be an experience» (Noisey 13.9.2016).

Ao fim ao cabo, uma biblioteca, uma galeria, uma sala de concertos, uma igreja, um comício, uma causa, um livro, uma canção, um poema, entre outros espaços de vida, partilham uma função primordial: oferta de uma narrativa com significado, que faça sentido e seja compreensível. Torna-se num auxílio para encontrarmos o sentido da existência, o contraponto luminoso com o absurdo e o sofrimento existenciais, e nos sentirmos em paz e equilíbrio.

domingo, junho 05, 2016

«Não é Habermas quem quer»


 «Um dos efeitos perversos da cultura da Internet é a desvalorização do saber, do conhecimento, do estudo», afirma José Pacheco Pereira em artigo no jornal Público de 4 de Junho de 2016.

«Sim o mundo mudou, mas ninguém tem obrigação de aturar este ruído das “redes sociais” dos comentários, do “todos temos direito a falar, mesmo que não tenhamos nada para dizer”: “é a minha opinião pessoal sobre Kant, embora nunca o tenha lido e, se me criticam, berro que é censura e elitismo e nostalgia do mundo em que só os “sábios” (dito com desprezo) podiam falar…”.»

«Eu costumava chumbar os alunos de filosofia que, para esconder infantilmente a sua ignorância, diziam que também tinham uma “opinião pessoal” sobre Kant. Ai tem? Mas que sorte, é que eu não tenho e a esmagadora maioria das pessoas letradas do mundo também não tem, incluindo 99% dos professores de filosofia e a maioria absoluta dos especialistas em Kant, pela simples razão que ter uma “opinião pessoal”, que não seja uma repetição, ou seja, que seja “pessoal”, exige muito estudo, muito conhecimento de Kant, e muita criatividade filosófica. Se não é do domínio do génio filosófico, fica perto. Não é Habermas quem quer.»

quinta-feira, maio 26, 2016

O mais importante na vida é ser-se criador / The most important thing in life is to create

António Botto, num quadro cuja autoria se atribui a João Abel Manta (à esquerda) e num retrato de Almada Negreiros (à direita)

Em 9 de Novembro de 1942, António Botto foi demitido do seu emprego na função pública (escriturário de primeira-classe do Arquivo Geral de Identificação) nomeadamente por criar: «fazer versos e recitá-los durante as horas regulamentares do funcionamento da repartição, prejudicando assim não só o rendimento dos serviços mas a sua própria disciplina interna.»


O mais importante na vida

É ser-se criador – criar beleza.


Para isso,

É necessário pressenti-la

Aonde os nossos olhos não a virem.


Eu creio que sonhar o impossível

É como que ouvir a voz de alguma coisa

Que pede existência e que nos chama de longe.


Sim, o mais importante na vida

É ser-se criador.


E para o impossível

Só devemos caminhar de olhos fechados

Como a fé e como o amor.

António Botto

António Botto no Martinho d'Arcada, acompanhado dos escritores Fernando Pessoa, Raul Leal e Augusto Ferreira Gomes


The most important thing in life

Is to create – to create beauty.


To do that

We must foresee it

Where our eyes cannot really see it.


I think that dreaming the impossible

Is like hearing the faint voice

Of something that wants to live

And calls to us from afar.


Yes, the most important thing in life

Is to create.


And we must move

Towards the impossible

With shut eyes, like faith or love.

(tradução: Fernando Pessoa)

segunda-feira, setembro 14, 2015

Arte como modo de viver


«Eu não faço da poesia profissão, infelizmente. Infelizmente, porque isso era o que eu gostava de fazer, quer no aspecto profissional, quer no aspecto de entendimento da vida, da relação com a vida. Mas a vida é o que todos nós sabemos, com muitos obstáculos, com muitas crises sucessivas. E portanto é muito difícil.»

Nuno Higino
(Texto em A Página / fotografia: Augusto Baptista em Correio do Porto)

segunda-feira, outubro 13, 2014

Quando o alheamento é uma bênção

Rodrigo Leão em entrevista à Atual, revista do semanário Expresso, de 4 de Outubro de 2014

Compreendo muito bem Rodrigo Leão, que teve uma mãe santa, que o mandou ler livros, ouvir música e ver cinema, e uma vida (meio familiar e o sucesso alcançado nos Madredeus) que lhe facilitou a independência (alheamento) face à política*.

O Ser Humano está acima da política. Os criadores podem criar sem a política e apesar dela. «O sol doira» e a pessoa vive sem política e apesar dela. Certas condições, como a vontade pessoal, ajudam que isso seja possível.

E que se lixem os slogans e as frases feitas que pressionam para a participação política ou cívica, para os colectivismos e comunitarismos autoritários, como se, para se ser homem ou mulher com dimensão social e cidadã, e se realizar como ser humano e ser social, a participação política ou cívico-política, no espaço público, fosse um imperativo ou um dictato.

Cada qual deve viver como se sente realizado (Livre), mesmo que «alheado» e «distante» (Independente) do que se passa à volta. E deve defender essa condição de Ser Livre. Ninguém deve ser obrigado a habitar ou a participar em espaços politizados.

A Vida é breve (tempus fugit) e é preciso ler os livros, ouvir os discos e ver os filmes que são importantes ler, ouvir e ver. É preciso comunicar com os amigos. E tudo isto com tranquilidade e o menor ruído externo. É isso que nos salva de uma vida estupidificante. Como alguém disse, a Cultura é a «única eternidade terrena».

No caso de Rodrigo Leão, a criação musical é o seu centro. Sem perder Tempo (Vida) com o acessório.

O alheamento pode ser uma bênção. O alheamento da política só não interessa à própria política, que procura arrebanhar num sentido ou noutro, braço de muitos interesses individualistas pouco ao (real) serviço do bem comum.

Não vejo televisão há mais de um ano. Ganhei qualidade de vida, resultado que me entusiasma para outros passos libertadores. Há coisas de que é bom sentir-se «sempre distante», como observa Rodrigo Leão.

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*Contudo, o distanciamento político não é total por parte do músico, já que as declarações aqui patentes foram feitas a propósito do espectáculo comemorativo de um acontecimento político, os 40 anos do 25 de Abril, agora editado em disco. 

Nota: de Rodrigo Leão possuo apenas a banda sonora "Portugal, um Retrato Social", talvez pela sua música não ter uma identidade mais vincada, que se deixa ficar muito pelo gosto mainstream.

domingo, agosto 17, 2014

Estado da Amizade

«Et tu, Brute?» (E tu também, Brutus?), exclamou o imperador Júlio César ao seu amigo Marcus Brutus, no momento em que foi apunhalado e assassinado por um grupo de senadores (imagem da pintura Morte di Cesare de Vincenzo Camuccini)

O valor da Amizade também está em crise? O que têm as redes sociais, a crise económica e social ou Alberto João Jardim a ver com isso? É um tema de interesse humano, que merece análise e reflexão num tempo de relativismo dos valores e do que é essencial.

1.
Comecemos por pensar sobre a Amizade. Não com as comuns definições de dicionário, mas pelo que de mais profundo e subtil nos diz sobre a Amizade uma personagem no famoso romance As velas ardem até ao fim de Sándor Márai, entre as páginas 102 e 104 (Publicações Dom Quixote 19ª edição: 2009).

«Não há processo emocional mais triste e mais desesperado que quando uma amizade entre dois homens arrefece. Porque entre um homem e uma mulher tudo tem determinadas condições, como o regateio no mercado. Mas o sentido mais profundo da amizade entre homens é precisamente o altruísmo, o facto de não querermos o sacrifício do outro, nem ternura, não querermos nada, apenas manter o acordo duma aliança silenciosa.»

«Éramos amigos, não companheiros, compadres, ou camaradas. Éramos amigos e não há nada na vida que possa compensar uma amizade. Nem mesmo uma paixão devoradora pode oferecer tanto prazer como uma amizade silenciosa e discreta proporciona àqueles que são tocados pela sua força.»

«Porque a amizade não é um estado de espírito ideal. A amizade é uma lei humana rigorosa. Na antiguidade era a lei do mais forte, nela se baseavam os sistemas jurídicos das grandes civilizações. Para além das paixões e do egoísmo vivia essa lei, a lei da amizade, nos corações humanos.»

Explica ainda a razão de a amizade ser «mais poderosa que a paixão»: «a amizade não podia levar à desilusão, porque não queria nada do outro, podia-se matar o amigo, mas a amizade que se formou na infância entre duas pessoas, talvez nem a morte a pudesse matar: a sua recordação continua a viver na consciência das pessoas, como a recordação dum acto heróico silencioso.» Um acto heróico «como qualquer atitude humana que é desinteressada.»

2.
As redes sociais apresentam vantagens. Além de permitir exercitar a partilha, a escrita e o pensamento, é um meio de contacto, de encontro e de comunicação entre as pessoas, embora haja o risco de também «ampliar solidões», como referiu o poeta madeirense José Tolentino Mendonça (Estante - Abril de 2014). Acrescenta que é também um «lugar de muito desencontro, de muita desconfiança.»

Até que ponto se firma a Amizade na superficialidade dominante e confundindo-se virtualidade com realidade? Por alguma razão o Facebook, por exemplo, criou mecanismos para distinguir entre «amigos» e «conhecidos»: não é possível ao ser humano dar atenção a tanto amigo, mesmo virtual. «Os meus amigos reais já se queixam tanto da minha falta de tempo. [Aderir ao Facebook] seria só criar mais amigos insatisfeitos, e mais culpabilidade», referiu ainda José Tolentino Mendonça na já mencionada entrevista, que é ainda citada no parágrafo seguinte.

A Amizade exige profundidade, dedicação, perenidade, desinteresse, no sentido que vimos, e o tal «silêncio» ou recato. Ora, as redes sociais primam pela superficialidade e pela virtualidade («também é um mundo de muita ilusão e fabricação»), pela venda de uma imagem irreal trabalhada pelos próprios («onde é o mais o que as pessoas desejam ser do que aquilo que são»), pelo alarde e ruído, pelo interesse e competição em vender a tal imagem, nomeadamente na exibição de uma grande colecção de amigos, e por uma qualidade efémera: num click se faz ou desfaz uma "amizade".

Os políticos, por exemplo, motivados pela questão da popularidade e interesse eleitoral, gostam de ter muitos amigos e têm aderido muito às virtualidades das redes sociais. Veja-se que até o líder da Santa Sé, seja por via do Twitter, mais personalizado, mas também Facebook, Youtube, Flickr, tira partido desses meios face às vantagens comunicacionais, isto é, de propaganda, na venda das ideias do Vaticano ao serviço da difusão da fé cristã.

Há amigos que, movidos pelo interesse, conduzem à desilusão e ao desgosto. Mesmo amigos concretos, fora das redes sociais, podem revelar-se virtuais e aplicar umas facadas nas costas. A frase «Et tu, Brute?" remete a uma famosa história no século I A.C., em que o imperador romano Júlio César foi vítima de uma conspiração de senadores para tirá-lo do cargo. Entre os algozes estava o amigo Marcus Brutus. O assassinato consumou-se através de punhaladas.

Um simples guia para raparigas adolescentes (Violetta: a Amizade - 2014 Disney Interprises/Goody S.A.), depois de definir a amizade como um dos «sentimentos mais belos e únicos do mundo», começa por dizer as qualidades de uma verdadeira amiga: «nunca te trairá» surge logo em primeiro lugar. E explica: «podem zangar-se, não estar de acordo sobre algo, talvez perderem-se de vista por algum tempo, mas nunca, em tempo algum, uma verdadeira amiga trairia a tua confiança. Ela sabe o que é mesmo importante para ti e não fará nada que te possa magoar.» No final do livro, umas das dez regras ou mandamentos da amizade é, precisamente, esta: «uma amiga de verdade nunca trairá a tua confiança.»

Saliente-se que, no contexto da actual crise económica e social, na Região e no País, amizades verdadeiras e bem reais se têm revelado através de actos nobres. Com solidariedade e sem lugar a punhaladas nas costas, isto é, traição. E são actos discretos, que não necessitam de publicitação e alarde, precisamente devido à natureza desinteressada, altruísta e silenciosa da Amizade.

Como referiu Celeste Rodrigues, irmã de Amália, «as perdas — única coisa [que dói]. Não as amorosas [amor romântico]. Essas são a coisa natural da vida. Ninguém é de ninguém. Só há uma coisa que não morre: a amizade» (Público 7 de Setembro de 2014).

3.
É do domínio público as célebres «facadas nas costas» alegadas pelo actual presidente do Governo Regional e líder do maior partido político da Região, Alberto João Jardim. Aqui não interessa opinar sobre o político ou a política, mas tão somente observar a parte humana, que é o essencial neste post sobre o estado da Amizade.

Como afirmou o próprio protagonista, «há uma coisa que é muito sagrada, por mais humilde que seja o seu titular, que é a [A]mizade» (JM de 21 de Janeiro de 2014).

«Um dos meus me meter a faca nas costas?», referiu Alberto João Jardim em entrevista na RTP-Madeira (1 de Julho de 2014), que repetidamente tem falado no assunto, precisamente porque constitui uma desilusão e desgosto devido à deslealdade, abandono, ataque e amarfanhamento na praça pública de que se diz vítima. As «facadas nas costas» podem ferir de morte uma pessoa, porque custa muito a aceitar tal tipo de rejeição.

Na citada entrevista, disse ainda: «eu aceito também ser agredido pelo meu adversário. É a regra do jogo. Agora, um dos meus me meter a faca nas costas? Isso é extremamente doloroso. Não entra nos meus esquemas mentais. Um tipo está do meu lado e, de repente, mete uma faca nas costas. Desde 2012 tem sido uma coisa horrorosa.»

Em 17 Fevereiro de 2014, no JM, denunciava mesmo uma alegada tentativa de assassinato político: «estamos a assistir a parricídio. Tal sucede, quando gente cega pela ambição política, ou pelo oportunismo de tactear como vai salvar o futuro, ou por sobrevivência que não olha a meios, ou ainda pela falta de personalidade em querer enfileirar na moda do «politicamente correcto», cada um, de um momento para outro, trai laços, compromissos, projectos comuns, amizades de antes, só para seu egoísmo e avidez de poder.»

“O tiranete sairá jogado e espezinhado sem dó nem piedade”, previa, face aos eventos no seio do PSD-M, Avelino da Conceição, deputado do PS na ALM, citado no Diário de 23 de Janeiro de 2014. O pior momento do líder e a conjuntura desfavorável é altura para enterrar ainda mais quem já não tem a frescura física de outros tempos.

Perante o desgosto da alegada deslealdade, e vendo as coisas mal paradas, apela ao Povo Madeirense para ajuizar sobre essa traição de que é alvo. «Como se o Povo aceitasse a falta de carácter que o parricídio político revela!», escreveu no JM de 17 de Fevereiro do corrente ano. «Como se o Povo se fosse fiar em traidores e mentirosos, conspiradores quotidianos para se darem ares e pouco sabendo fazer da vida». E antes no JM de 22 de Janeiro: «É bom que a população da Madeira e do Porto Santo não caia numa triste figura de não perceber o que se anda a urdir contra si própria.»

Explica que «ser traído politicamente, levar uma faca nas costas políticas é inadmissível», referiu Alberto João Jardim no JM de 13 de Julho de 2014. «Mostra o carácter das pessoas que o fazem», acrescentou. E exemplificou, no JM de 21 de Julho de 2014: «nas últimas eleições autárquicas, vários [companheiros de partido] do campo derrotado nas eleições internas do PSD em 2012, traíram e, ressabiados, mandaram votar na Oposição - vejam o carácter!... - como ficou provado nos lógicos e legítimos processos que levaram a expulsões.»

Sobre o "cuspir no prato", escreveu-se no JM de 21 de Janeiro do corrente ano: «Indivíduos que sempre estiveram ao meu lado e secundaram todas as minhas decisões ao longo de mais de trinta e cinco anos, agora, só para satisfazerem as suas ambições ou continuarem a servir aqueles a quem se dobram, de um momento para outro passaram a me atacar em público, esquecendo dezenas de anos de solidariedade activa, esquecendo a amizade que sempre lhes dediquei, só para cativarem os apoios dos inimigos do PSD. Isto é falta de carácter!»

Na mesma edição lia-se um apelo, desta vez especificamente para os madeirenses que militam no partido: «E os Militantes sinceros do PSD, os que são autonomistas e sociais-democratas, estão a ver o que se passa, e tenho a certeza de que, na hora própria, darão a resposta adequada a tal tipo de gente».

No Diário de 1 de Março de 2014, o jornalista Miguel Silva diz que «alguns dos que fizeram toda a viagem do ‘jardinismo’ querem saltar do navio como se não fosse nada com eles, como se não estivessem comprometidos.» Escreveu ainda que, «ao ritmo que já vai a tentativa de distanciamento, ainda vamos chegar a uma fase em que a maioria que viveu politicamente à custa ou à sombra do presidente do PSD-M e do Governo, o vai renegar por completo».

Apesar de tudo, o protagonista político prometeu: «não me deixarei intimidar mesmo pelos que, aduladores de muitos anos, agora metem facas nas costas, indiferentes à injustiça»(JM de 21 de Janeiro de 2014).

4. Termino este texto sobre o estado da Amizade com uma passagem do tema Desabafo de Um Qualquer Angolano, de Nástio Mosquito, que em poucas palavras diz o que é essencial ao ser humano, como ser social: «Que se orgulhem de mim, que se lembrem de mim, que se juntem a mim - Amizade».

[Texto actualizado em 8.9.2014]

sábado, março 29, 2014

«Falar de coisas concretas não adianta nada»

«É fundamental o tempo não produtivo, o tempo da cultura», defende o escritor Gonçalo M. Tavares

Ainda no âmbito da edição do Festival Literário da Madeira 2014, Gonçalo M. Tavares terminou a sua conversa, a respeito do seu livro Atlas do corpo e da imaginação, dizendo que é preciso «perceber as essências nestes tempos mais violentos, economicamente».

E, por vezes, o «essencial está na periferia», referindo que o «imaginário tem a ver com o desviar do olhar para o que está à volta e além do que é mais óbvio e dominante», seja numa imagem ou num texto. Significa «ver outra coisa que não nos é mostrado» ou transmitido.

Para o escritor, «ler é mais ver imagens à volta da frase do que ler a própria frase.» Por isso, o «bom leitor é aquele que não fica só na frase que lê». Bem como uma «imagem também tem outras imagens à volta.»

Ao longo da conversa, Gonçalo M. Tavares foi comentando uma série de imagens que integram o Atlas do corpo e da imaginação, tendo sublinhado que se «deve parar nas imagens», saber «pensá-las e digeri-las». E «não dizer sempre formidable às imagens que passam à nossa frente».

No seu entender, «falar de coisas concretas não adianta nada», querendo dizer que os «artistas devem ter entrada na actualidade de um forma diferente, para acrescentar algo», de modo a não entrar em cima do imediato.

Define como «fundamental o tempo que não é produtivo, o tempo da cultura», apesar de ler ser um «luxo existencial», que não existe para quem as necessidades básicas, de sobrevivência, satisfeitas (embora mesmo em tempos de prosperidade, o consumo de cultura no País não tenha sido, proporcionalmente, muito diferente). Sustenta que a «pobreza não tem tempo» e «não pode esperar». Exemplificou com o assalto ou «transferência massiva de macieiras» desde 2008, em que as pessoas, para acudir situações urgentes, não vendem apenas as maçãs, mas também as próprias macieiras, que lhes asseguraria o futuro.

Ora, «ler não dá algo de imediato», acrescentando que «cultura é o contrário de informação», isto é, «cultura são informações digeridas ao longo do tempo». Em tempos de crise «desvaloriza-se certas actividades que não dão fruto de imediato». Por isso, «ler é associado a uma actividade inútil».

Falou da importância do «decidir sobre o que pensar», para não se deixar levar no ruído da actualidade, que muitas vezes não traduz a realidade, mas que ocupa as conversas e o pensamento das pessoas, com a tendência a uniformizar tanto as conversas como o pensamento. Com toda a gente a falar e a pensar os mesmos temas e assuntos.

Por fim, uma nota sobre a importância das «referências», que são um ponto fixo, que são feitas para períodos de crise, com o efeito de «tranquilizar» as pessoas. Daí defender que «não se devem mudar em tempo de crise.» Apelidou isso de «absurdo». As leis, «a voz colectiva» que «dura no tempo» («só me muda quando é melhor ou aparece algo totalmente novo» - as «ditaduras vivem de mudanças repentinas de lei»), são um importante referencial («impõem um conjunto de relações entre as pessoas»), notando que a Europa tem as leis com que mais se identifica.

No entanto, estão a acontecer mudanças para leis menos humanistas, com o económico a se sobrepor à política, o que «é perigoso». Tal como quando o militar se sobrepõe à política. As leis nem sempre são éticas e boas, já que são frases escritas por pessoas, sendo importante «saber quem as escreve».

Alertou ainda para o facto de se dizer "isto é o mal" é «começar a fazer pontaria», mas que o «mal é mais um questão "do quê" e não "do quem".»

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A propósito:
«Cultura permite que as pessoas aumentem a lucidez»
Arte não se submete a nada nem a ninguém
Portugueses não olham para a cultura como bem essencial 

terça-feira, março 25, 2014

Cultura, a «única eternidade terrena»

"A única eternidade terrena é a cultura." — Adriano Moreira na Visão #1098 de 20.3.2014
nota:
na mesma entrevista, pouco depois da frase citada, afirma o seguinte: «A sobrevivência é o único inferno que tem de se viver».

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A propósito:
Portugueses não olham para a cultura como bem essencial 
«Cultura permite que as pessoas aumentem a lucidez»

domingo, março 23, 2014

Arte não se submete a nada nem a ninguém

«A arte é aquela que não se submete a nenhum regime, nem ao revolucionário» (Raquel Varela) e «funciona melhor como contrapoder» (Jorge Sousa Braga): é «território do pensamento» e este tem «poder revolucionário» (Eduardo Agualusa)

Embora no entender de Ricardo Araújo Pereira, a frase de Bernardo Soares «todos os revolucionários são estúpidos», retirada do Livro do Desassossego, seja «mais uma posição estética do que ideológica», não deixou de resumir a questão desta forma: «o curso do mundo é uma onda de tsunami e pensar condicioná-lo é estúpido.» E concluiu que o mundo é para ser contemplado.» Isto numa conversa cruzada integrada no Festival Literário da Madeira 2014, com moderação de Paulo Cafôfo, presidente da autarquia do Funchal, no dia 22 de Março, no Teatro Municipal Baltazar Dias.

Antes disso, a historiadora Raquel Varela, começou por reconhecer que «alguns são» estúpidos, mas que os revolucionários se distinguem por «não se enganarem a si próprios». Os revolucionários são os que «dirigem» as revoluções. Estas, que são «inevitáveis e ocasionadas dentro de regimes déspotas», são feitas pelo povo (ao subscrevê-las, ao lhes dar carne, diria eu...). E deu conta de vários exemplos ao fazer um périplo pelas revoluções do século XX.

O humorista citado referiu que «às vezes desistir é mais ajuizado do que interferir», já que «aleija menos e provoca menos desilusões». Sobre o poder do humor, disse que «há coisas que não consigo combater», dando conta dos limites revolucionários da comédia e «reconhecendo a impotência». Apesar disso, o humor «torna a derrota mais doce ou menos amarga». É um «prazer e transgressão na cara do medo». Remataria assim: «trabalho com o meu ponto de vista, a minha perspectiva e sou livre para falar sobre o que entender. O meu trabalho é fazer rir as pessoas da maneira que eu quiser».

O poeta portuense Jorge Sousa Braga arrancou com um verso de Vladimir Maiakóvski, «a canoa do amor quebrou-se contra o quotidiano», e colocou a questão num outro plano, ao dizer que são importantes as «pequenas revoluções interiores no quotidiano.»

José Eduardo Agualusa considera que «não há mais nada de subversivo do que o riso», mas Ricardo Araújo Pereira opina que «este não tem tanto poder.» É uma espécie de «arma dos fracos porque não têm acesso às outras armas que matam mesmo.» Para o humorista, a «comédia não tem poder real», embora «aborreça um bocadinho». E ilustrou com uma metáfora: «usar a comédia para derrubar um regime é usar a doçaria conventual para ir à lua.» Tem influência mas não sabe até onde.

Jorge Sousa Braga diria que arte «funciona melhor como contrapoder.» «A arte é aquela que não se submete a nenhum regime, nem ao revolucionário», defendeu Raquel Varela. Sendo a arte «território do pensamento», como colocou José Eduardo Agualusa, esse pensamento tem «poder revolucionário».

O escritor angolano afirmou que a revolução de 1974 começou com a «poesia e um movimento cultural». Raquel Varela encontra na miséria ou na guerra razões objectivas que funcionam como detonador das revoluções, mas que não sabemos quais as razões subjectivas, a ver com a dimensão humana, com os limites, a humilhação, a injustiça, entre outros factores.

Ricardo Araújo Pereira considera «estúpida» a violência, sendo o humor uma forma de «provocar convulsão física sem tocar» nas pessoas. E até pode ser «agressão sem tocar» fisicamente, como o caso do escárnio. Daí considerar que o «humor partilha a mesma estrutura do mal», mas que é o «último reduto da liberdade e da resistência.» Raquel Varela deu a nota que a «violência não faz parte da revolução e acontece mais por parte da contra-revolução.»

A historiadora deu ainda conta que as «pessoas acreditam na natureza humana», mas «eu não». E explicou: «não vale a pena idealizar as pessoas», até porque «a maioria das pessoas entrou no 25 de Abril [de 1974] com a mesma coragem com que tinha medo antes», durante a ditadura. O povo, o colectivo, as massas são a necessária presença para confirmação das revoluções pensadas por uma elite, acrescentaria eu. E rematou com um «nós não somos», porque há uma diferença entre ser e estar.

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A propósito:
Arte é independência

quarta-feira, março 19, 2014

«Cultura permite que as pessoas aumentem a lucidez»

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À revista Mais do Diário de Notícias da Madeira (16 de Março de 2014), o enorme escritor português Miguel M. Tavares, falou sobre cultura e literatura.

Nem só de pão vive o homem: «Quando uma pessoa lê um livro, vê uma peça de teatro ou um filme, não é recompensado monetariamente. Mas com o tempo, a cultura que vai adquirindo, os livros que lê, etc, vai ter consequências também ao nível económico, e mais importante até do que isso, terá influência na formação humana da pessoa, será melhor pessoa, se relacionar melhor com os outros...»

Daí que o escritor afirme que «a Cultura é que permite que as pessoas aumentem a lucidez», embora consciente que «se uma pessoa não tiver as necessidades básicas satisfeitas, falar de livros é quase um luxo.» Nem o próprio Miguel M. Tavares teria tempo e disponibilidade para escrever/criar se estivesse a pensar na prestação do frigorífico por pagar.

E disse mais sobre o papel da cultura: «Ou nós achamos que a cultura é uma coisa apenas para satisfazer alguns durante algum tempo, ou achamos que a cultura é algo que fica, que faz parte do património de um país. E eu acho que a cultura deve ser vista como isto, como qualquer coisa que, quer na Arte, quer na Literatura, vai dando algo às pessoas. É isso que vai acrescentando uma qualidade ao clima, ao tempo, ao temperamento das pessoas, etc. Portanto se um país parar de produzir cultura vai apenas depender das coisas naturais, do charme natural... Acho que o nosso país tem um charme natural, tem condições muito bonitas, mas acho que temos de acrescentar alguma coisa, acho que é o nosso dever...»

A respeito da literatura afirmou: «Gosto da ideia que a literatura faz pensar.» No meu entender, literatura "a sério"é aquela que, por ser substantiva (isto sem qualquer elitismo, pretensiosismo e apenas fundamentado na realidade factual, passe o pleonasmo). Dito de outro modo é aquela literatura que fica a ecoar dentro de nós, que nos transforma, que nos faz estremecer, que aborda os temas essenciais no que toca à natureza humana e à vida, que nos enriquece e desafia a crescer mentalmente. Numa palavra, que nos abre a mente e a alma.

O escritor acrescentou a respeito do seu conceito de literatura: «É evidente que eu gosto de contar histórias. O Senhor Valery é uma história, o Jerusalém, o Viagem à Índia são histórias. Eu não tenho nada contra as histórias e tenho muito prazer em contar uma história. Mas acho que uma história em literatura não pode ser contada da mesma maneira como é numa telenovela, senão há alguma coisa que está mal. A literatura é outra coisa, é uma história que nos mexe de uma forma um pouco diferente de uma história de televisão, e eu acredito nisso...»

E disse ainda a tal respeito: «Eu não gosto da literatura como passatempo. Acho que a literatura deve dar prazer e dá muito prazer, mas é um prazer que não é o mesmo de ver uma telenovela. Não pode ser a mesma coisa, não é uma história que quando acaba, nós desligamos a televisão e pronto, não pensamos mais sobre isso. Acho que a literatura conta histórias que, espero quando os leitores fecham o livro, ainda fique ali qualquer coisa para pensar, que a história não termine com o fecho do livro. Até, às vezes há algo de importante que começa depois de terminarmos o livro.»

domingo, março 16, 2014

Conflitos internos do ser humano

Emir Baigazin
O cineasta cazeque estreou-se com Uroki garmonii (Lições de harmonia), um filme de que aborda a velha questão da sobrevivência da espécie humana, que expõe a própria natureza do ser humano.

Procurou «filmar a violência sem cultivar a violência», referiu em entrevista à revista Actual (Expresso), de 8 de Março de 2014. No sentido de o espectador se «sentir livre quando o filme acaba».

Depois de dizer «não me quero subjugar a um tema» e  no «cinema odeio os temas», diz o essencial: «O que me interessa são os conflitos internos do ser humano para lá de qualquer espaço, geografia ou situação: a sua natureza de predador, a sua capacidade de amar. Ou de matar."

Aprecio este ângulo de abordagem da Arte, no que tem de universal, de humano, de real e, inclusive, de estudo sobre a natureza humana, incluindo os mencionados conflitos ou inquietações internas.

A violência, no referido filme, é sugerida, já que o cineasta defende que «expressar a violência ou contemplar a violência no cinema é um perigo tremendo. Um centímetro a mais, um exagero a mais, é o grotesco que nos bate à porta. Quando o grotesco entra, tudo está perdido. O filme está condenado. Não há salvação que lhe valha.»

Refere que o cinema «se expressa para além da moral e da política», o que torna a Arte universal e intemporal. «O bem e o mal são como o dia e a noite, estão sempre aqui, para todos nós. Resta-nos tentar evoluir perante aquele facto.» É esta a esperança: evolução da humanidade.

Lições de harmonia não é um filme sobre a escola ou a adolescência, embora se passe na escola e o protagonista seja um adolescente. «Quis filmar o sistema escolar como o reflexo de um modelo que prevalece na sociedade. Um sistema de violência que faz parte da natureza humana. O que me interessa não é a guerra que estala entre aqueles dois rapazes mas sim a guerra interior do protagonista.» Afirma ainda que, na «escola, desde cedo, o que nos ensinam? A ser predadores.»

Sobre a adolescência diz que é um «período da vida obsessivo e, por isso, violento. Acho que nesta idade de formação da personalidade impomo-nos obstáculos e metas, nem sempre os melhores, e, dizem os psicólogos, isto leva-nos frequentemente a um estado de insatisfação que pode gerar depressão. Insisti muito nisto, filmando a vida na escola, a necessidade de ter boas notas, de ser o primeiro.» Ser o primeiro é muito diferente de cada qual dar o seu melhor, independentemente se esse melhor dar significa ou não ser o melhor. É preciso realismo, para não gerar obsessões e insatisfações.

E sublinha que não há ironia na palavra «harmonia» do título. Bem pelo contrário, o título é para «ser levado à letra», embora se trate, como escreveu o crítico Francisco Ferreira, de uma história de violência implacável sob o signo do darwinismo social (selecção natural e permanente luta pela sobrevivência).

quarta-feira, fevereiro 26, 2014

«Arte é independência»

Moonspell em concerto no Funchal, em Dezembro de 2013
«Arte é independência!», reafirma, e muito bem, Fernando Ribeiro, vocalista dos Moonspell. Isto a propósito da «polémica» e «vitimização» decorrente da «decisão pessoal» e «livre» de Fernando Tordo em Fevereiro de 2014. Mais aqui.

quinta-feira, fevereiro 06, 2014

Respeito pelos Criadores

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Os CRIADORES estão no topo da pirâmide social - pelo menos para mim.

Apesar de reparos e particularidades (ver em baixo), valorize-se e não se roube o trabalho de criação, em especial os artistas independentes e alternativos, com pequenos nichos de mercado, até para terem os meios para continuar a criar.

E com isso nos dar a possibilidade, além do prazer estético e distração, de transcendermos o quotidiano comezinho e estupedificante casa-trabalho-casa. Embora a sobrevivência (pão) seja a base de tudo, ao ser humano não basta sobreviver - precisa de novos horizontes e de crescer continuamente.

Reparos:
A propósito da imagem, alguém disse, e muito bem, "this is a shit comparison because if i drank as much coffee as i listen to songs i wouldn't buy coffee either". Sabemos ainda que artistas mainstream (de massas) milionários já ganham mais do que suficiente e têm vidas de luxo - podem melhor com a pirataria, que apenas os impede de exagerar no luxo, já que continuam a ter todos os meios para criar.

Por outro lado, o live streaming e o download oferecidos e permitidos pelo próprio artista, como forma de divulgação, é algo positivo também para o consumidor, já que constitui um meio para conhecer um produto cultural, parcialmente ou na totalidade, antes de, porventura, o decidir comprar.

quarta-feira, fevereiro 05, 2014

Time to cut the crap

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De uma forma mais explícita e determinada, decidi privilegiar os temas mais substantivos e a reflexão, em vez de opinar sobre assuntos que depressa são esquecidos e cuja opinião vale tanto ou menos do que uma qualquer outra opinião.

Viver e estar menos no imediato. Menos informação (mediatismo e imediatismo), mais cultura (digestão prolongada ao longo do tempo).

Isto é decidir sobre o que pensar. Há um pensamento budista que refere que a felicidade depende do que se pensa e não do que se é ou do que se tem.

Até porque andar na espuma (ruído exterior) dos dias, a comentar a actualidade socio-política, não altera nada. Ninguém, sozinho, condiciona ou muda o curso do mundo. Pensar o oposto é um estupidez. O mundo é para ser contemplado - nenhum indivíduo pode mudar o seu curso, por mais que custe a alguns aceitar essa impotência. O que é diferente de resignação ou conformismo.

Além desse facto, «a nossa vida está sempre submersa em muito lixo sensorial e informativo, de estímulos», como afirmou José Mário Branco, no programa Bairro Alto, na RTP2. É precisamente esse lixo (tóxico para o pensamento) que é bom evitar e criar campo livre e aberto.

Como se não bastasse, a actualidade é muitas vezes uma ficção, que nos é imposta. E não gosto que me imponham os temas sobre os quais devo pensar, a não ser o que é imposto pela realidade em si e não a realidade manipulada consoante as agendas e interesses.

A espuma (o geral) fica, pois, para a espuma do pensamento, sem perder mais tempo e energia, sem me distrair com a formalidade e votando mais atenção ao significado (ao particular) mais profundo das coisas.

(Excepção para a divulgação de alguns temas locais marcantes, há muito acompanhados, sobretudo para registo ou arquivo histórico.)

Interessa-me e move-me outros temas mais perenes, nutritivos e situados no substrato vital, aquilo que é essencial e mais profundo para o Ser Humano e para a Vida, como as áreas da criação e da cultura. É este o critério. Não só para maior retorno ou ganho pessoal, mas também porque «os dedos devem tocar só no que é espesso, no que é fundamental; o urgente tem de coincidir com o essencial» (Gonçalo M. Tavares in Jerusalém, p8, Ed. Caminho - 2013).

Para citar o título do álbum dos The Clash, it's time to cut the crap.