Mostrando postagens com marcador inclusão sócio-cultural. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador inclusão sócio-cultural. Mostrar todas as postagens

quinta-feira, 11 de janeiro de 2018

Festa Estranha com Gente Esquisita

Pergunte ao parente se tudo valeu a pena só pra ter um celular da ora.


      A classe estava repleta de estudantes de Ciências Sociais. Debatíamos catástrofes advindas da colonização no continente africano. Eis que um colega diverge do senso comum ao garantir que, preto no branco, a troca de dialetos primitivos pelo idioma europeu favoreceria os povos subjugados por conta do acesso de seus descendentes ao “mundo civilizado”. Em sua percepção, a escravização e o possível genocídio de algumas das populações afligidas deveriam ser interpretados como um mero dano colateral.

      Ficamos boquiabertos, ou mesmo indignados. E o mal-estar aumentava à medida que ele sacava argumentos como “é a verdade que ninguém quer ouvir”, ou “vocês gostariam de estar falando Tupi até hoje?”, e um punhado de disparates para defender seu modelo de inclusão sócio-cultural colonial. Este bem-intencionado rapaz estudava Sociologia e era o único dentre seus sequazes das Sociais a admirar ex-presidente FHC (nosso sociólogo mulatinho) e a defender ardorosamente o liberalista Adam Smith. Não demorou e o debate transfigurou-se em acalorada discussão, a professora pôs fim à aula, e Ferdinando – este era seu nome – permaneceu surdo em sua cadeira, ignorando a razão alheia com expressões de tédio e sono.

      Angustiado com a exposição das ideias desse ser de outro mundo, refleti sobre o porquê desse sujeito propagar seus equívocos em tom desafiador sem ao menos se dar ao trabalho de perguntar a quem sofre na pele as conseqüências da escravidão, sua opinião. Muito aluno poderia dizer-lhe com autoridade moral, empírica e histórica, o que acha do tataravô ter sido obrigado a cruzar o Atlântico em meio a bosta, doença e morte para (malgrado uma chibatada no lombo, uma marca de ferro quente na cara e um murro no estômago para não perder o costume) aprender a língua de Camões em Pindorama (posteriormente Brazil – Terra do Pato Amarelo), e, de quebra, ganhar um deus punitivo para adorar, um Cristo photoshopado de olhos azuis para reverenciar e uma religião cheia de culpa para se espiritualizar adequadamente. Se fosse mulher, a sorte não era tão grande, já que a benesse do aprendizado lexical seria inexoravelmente acompanhada de estupros e todo tipo de perversão sexual.

      Bem diferente daquilo que um dia sonhamos quando lutamos pelas Diretas, ou quando acabou a ditadura, ou, ainda ontem, quando pensávamos haver elegido um governo democrático, progressista e popular, o pensamento raso, reacionário, e individualista, típico de extremismos de direita, não estava em vias de desaparecer nesse nascedouro da Era de Aquarius, senão o contrário: as almas sebosas e os espíritos do Medioevo estavam apenas adormecidos no breu dos esgotos, enrustidos pelos bons auspícios que a atmosfera progressista da Novíssima República produzia. Mas hoje mostram sua cara, amparados pelo mau-caratismo em voga, através de faces muitas vezes familiares, como aquela tia querida de toda uma vida, o professor gente boa, o primo de Minas ou um amigo de infância; estão todos aí nas redes sociais defendendo pena de morte ‘pra bandido’ e longa vida a fetos sem qualquer garantia de uma sobrevivência orgânica ou social - sempre em nome do Senhor. Então você percebe que os Ferdinandos são muitos, e em número cada vez maior no prédio, na rua, na sala de aula... Festa estranha com gente esquisita.

      Paira no ar o cheiro da podridão. Uma nova e vergonhosa ditadura se avizinha, daquelas que nos farão olhar pra baixo, envergonhados pela capacidade que nossos irmãos latino-americanos demonstram em reagir, lutar e resistir, enquanto nós não. Há também cheiro de delinqüência, de ignorância e de superficialismo nos arredores. De preconceito, de difamação e de fanatismo na vizinhança. É forte o cheiro de polícia, de escuta ilegal, de porões, tortura. Instalado, o Mal ora viceja.

      Essa celeuma acadêmica ocorreu antes da conexão total que se experimenta atualmente. Foi num tempo em que para entrar no Orkut (!?) você tinha de ser convidado por um amigo bacana, aristocraticamente falando. Passados mais de dez anos, o advento de engenhocas futuristas desenvolvidas nesse período (smartphones) e de plataformas com poder catalisador suficiente para aglutinar bilhões de adeptos (Facebook e Twitter) revelou que nosso amigo imperialista da universidade não fora o único ET a perder o rumo de seu planeta. Ler comentários ou “opiniões” nas páginas da internet, nos dias atuais, é comprovar inequivocamente o fracasso do modelo evolutivo que experienciamos como seres humanos... (e o sucesso das teorias ferdinandianas).

      Basta uma simples análise desses comentários, bem como da constante reinterpretação da realidade perpetrada pelos haters, no mundo digital, para chegarmos à infame conclusão que Ferdinando deve estar rindo muito da cara de todos os que o consideravam um retardado quando, claramente, estava à frente de seu tempo. 



Créditos de imagem: joão sassi