Pergunte ao parente se tudo valeu a pena só pra ter um celular da ora. |
A classe estava repleta de
estudantes de Ciências Sociais. Debatíamos catástrofes advindas da colonização
no continente africano. Eis que um colega diverge do senso comum ao garantir
que, preto no branco, a troca de dialetos primitivos pelo idioma europeu favoreceria os povos subjugados por conta do acesso de seus descendentes ao “mundo civilizado”. Em sua percepção, a escravização e o possível genocídio
de algumas das populações afligidas deveriam ser interpretados como um mero dano
colateral.
Ficamos boquiabertos, ou mesmo
indignados. E o mal-estar aumentava à medida que ele sacava argumentos como “é
a verdade que ninguém quer ouvir”, ou “vocês gostariam de estar falando Tupi
até hoje?”, e um punhado de disparates para defender seu modelo de inclusão
sócio-cultural colonial. Este bem-intencionado rapaz estudava Sociologia e era
o único dentre seus sequazes das Sociais a admirar ex-presidente FHC (nosso
sociólogo mulatinho) e a defender ardorosamente o liberalista Adam Smith. Não
demorou e o debate transfigurou-se em acalorada discussão, a professora pôs fim
à aula, e Ferdinando – este era seu nome – permaneceu surdo em sua cadeira,
ignorando a razão alheia com expressões de tédio e sono.
Angustiado com a exposição das
ideias desse ser de outro mundo, refleti sobre o porquê desse sujeito propagar
seus equívocos em tom desafiador sem ao menos se dar ao trabalho de perguntar a
quem sofre na pele as conseqüências da escravidão, sua opinião. Muito aluno poderia
dizer-lhe com autoridade moral, empírica e histórica, o que acha do tataravô ter
sido obrigado a cruzar o Atlântico em meio a bosta, doença e morte para (malgrado
uma chibatada no lombo, uma marca de ferro quente na cara e um murro no
estômago para não perder o costume) aprender a língua de Camões em Pindorama
(posteriormente Brazil – Terra do Pato Amarelo), e, de quebra, ganhar um deus
punitivo para adorar, um Cristo photoshopado de olhos azuis para reverenciar e
uma religião cheia de culpa para se espiritualizar adequadamente. Se fosse
mulher, a sorte não era tão grande, já que a benesse do aprendizado lexical seria
inexoravelmente acompanhada de estupros e todo tipo de perversão sexual.
Bem diferente daquilo que um
dia sonhamos quando lutamos pelas Diretas, ou quando acabou a ditadura, ou,
ainda ontem, quando pensávamos haver elegido um governo democrático,
progressista e popular, o pensamento raso, reacionário, e individualista, típico
de extremismos de direita, não estava em vias de desaparecer nesse nascedouro
da Era de Aquarius, senão o contrário: as almas sebosas e os espíritos do Medioevo estavam apenas adormecidos no
breu dos esgotos, enrustidos pelos bons auspícios que a atmosfera progressista
da Novíssima República produzia. Mas hoje mostram sua cara, amparados pelo
mau-caratismo em voga, através de faces muitas vezes familiares, como aquela
tia querida de toda uma vida, o professor gente boa, o primo de Minas ou um
amigo de infância; estão todos aí nas redes sociais defendendo pena de morte
‘pra bandido’ e longa vida a fetos sem qualquer garantia de uma sobrevivência
orgânica ou social - sempre em nome do Senhor. Então você percebe que os Ferdinandos
são muitos, e em número cada vez maior no prédio, na rua, na sala de aula... Festa
estranha com gente esquisita.
Paira no ar o cheiro da
podridão. Uma nova e vergonhosa ditadura se avizinha, daquelas que nos farão
olhar pra baixo, envergonhados pela capacidade que nossos irmãos
latino-americanos demonstram em reagir, lutar e resistir, enquanto nós não. Há
também cheiro de delinqüência, de ignorância e de superficialismo nos
arredores. De preconceito, de difamação e de fanatismo na vizinhança. É forte o
cheiro de polícia, de escuta ilegal, de porões, tortura. Instalado, o Mal ora
viceja.
Essa celeuma acadêmica ocorreu
antes da conexão total que se experimenta atualmente. Foi num tempo em que para
entrar no Orkut (!?) você tinha de ser convidado por um amigo bacana,
aristocraticamente falando. Passados mais de dez anos, o advento de engenhocas
futuristas desenvolvidas nesse período (smartphones) e de plataformas com poder
catalisador suficiente para aglutinar bilhões de adeptos (Facebook e Twitter) revelou
que nosso amigo imperialista da universidade não fora o único ET a perder o
rumo de seu planeta. Ler comentários ou “opiniões” nas páginas da internet, nos
dias atuais, é comprovar inequivocamente o fracasso do modelo evolutivo que
experienciamos como seres humanos... (e o sucesso das teorias ferdinandianas).
Basta uma simples análise desses
comentários, bem como da constante reinterpretação da realidade perpetrada
pelos haters, no mundo digital, para chegarmos
à infame conclusão que Ferdinando deve estar rindo muito da cara de todos os
que o consideravam um retardado quando, claramente, estava à frente de seu
tempo.
Créditos de imagem: joão sassi