![]() |
Se não fosse apresentado por Letícia como sendo seu marido,
poderia se desconfiar que Silvestre fosse apenas um dos funcionários daquela
aconchegante pousadinha à beira-mar.
Simplório, andava sempre de cabeça baixa, amuado, mesmo
passando a impressão de que haveria ali, dentro de seu peito, um passarinho cantador.
Como aqueles que costumava capturar nos arredores de Arapiraca, sua cidade-natal,
encravada no coração das Alagoas (cujo desenho no mapa, aliás, se parece mesmo com
um coração). Sangues-de-bi, papa-capins, galos de campina, extravagantes, rolinhas, craúnas, caboclinhos, manés-magros, canários-da-terra, azulões e sanhaços, mesmo engaiolados, cantavam músicas que lhe propiciavam
a sensação de uma liberdade que não encontrava em casa sob o pesado tacão do
pai, Seu Silvestre. É bem natural que, por conta daqueles anos, Silvestre, o
filho, carregasse agora um pouco de angústia no olhar, e certa tristeza, além
de duas gaiolas, ora vazias.
A mulher, paulista desgarrada, há muito fizera do sonho
sulista uma realidade; mudar-se do inferno citadino para uma praia do Nordeste,
com direito a pousada de frente para o mar. Trabalhava noite e dia, sempre com
um cigarro aceso entre os dedos e uma expressão indefinidamente preocupada.
Agia de sobressalto, quase assustada.
Conheceram-se em Maceió, quando ela chefiava um bom restaurante.
Puderam desfrutar da paixão ao sabor de lagostas e camarões. Silvestre
sentia-se bem na capital. Tinha casa, comida, roupa lavada e tempo para cuidar
de seus pintassilgos. E fazia Letícia muito feliz na cama. A química vinha
funcionando bem, até que o lado empresarial da relação – o dela, óbvio –
resolveu apostar no aconchego da tal pousadinha à beira-mar, numa pequena
comunidade de pescadores. Foi quando Silvestre deixou de ser namorado e passou
a ser pau mandado. A apresentação “meu marido” era meramente uma formalidade –
e a única distinção entre ele e os demais empregados do estabelecimento.
Foi nestas condições de desalento que Silvestre teve contato
com Faustino Dantas, um escritor desconhecido, já de idade, que acabara de se
hospedar para descansar e, quem sabe, buscar inspiração para escrever um bom
livro.
Logo que viu o velho instalar uma mesinha na varanda em
frente ao quarto, e sobre ela uma antiga máquina de escrever, Silvestre se tomou
de encantamento. Durante toda a infância sonhara aprender a ler e escrever para
poder ao menos “triscar” num modelo semelhante àquele, que havia em sua casa, comprado
de segunda mão por Seu Silvestre, quem, por ser também analfabeto, não sabia
usá-la e tampouco permitia aos filhos fazê-lo. Silvam, o irmão mais novo, um
dia se meteu a porreta e desrespeitou a norma; tomou uma sova tão impiedosa que
a dor do pequeno bateu fundo na alma de todos, que jamais ousaram repetir a
traquinagem. Para Seu Silvestre a máquina de escrever era um símbolo de
importância - um objeto para se ostentar -, e não uma máquina de escrever.
Também por isso, Silvestre se tornou, quando adulto, um semi-analfabeto, um quase-matuto.
É do tipo já crescido que nunca tinha ouvido falar em Machado de Assis... Até
conhecer Faustino.
Que, por sua vez, passava o dia a escrever, à exceção de
breves momentos em que se metia no quarto para fumar maconha – o que produzia grandes
barrufos de fumaça, basculante afora – para depois, mais arejado, voltar à
labuta. Silvestre aproveitava esses instantes para se aproximar e ouvir do “sábio”
suas idéias. Achava-as por demais interessantes.
O velho dizia sentir saudade do tempo em que era moço, quando
“o ritmo da vida era mais parecido com o ritmo da gente”. Silvestre, que da
infância só gostava do canto dos passarinhos, concordava com o escritor:
- Hoje a gente tudo
só sabe corrê, né, Seu Faustino? – no que prosseguia o pseudo-filósofo:
- Corre-se muito,
mas sem saber por que...
Dava-se um momento de silêncio, quando se podia perceber a
aflição na alma de Silvestre. Queria dizer algo, mas não sabia o que. E o
romancista voltava às teclas.
Mesmo curtos, os diálogos iam despertando alguma coisa
diferente em Silvestre. Um dia, apareceu e, inadvertidamente, pediu a Faustino
“um fininho”. Ao receber mais que isso das mãos do velho maconheiro, pediu-lhe
também que não contasse nada à Letícia: - “Ela não pode nem sonhar!”.
Por cinco dias, Silvestre desapareceu da vista dos hóspedes.
O próprio Faustino o vira apenas uma vez, certa noite, em meio à escuridão
mansa das pequenas vilas praianas. Parecia assustado, tendo apenas acenado com
a cabeça e sumido em meio ao sombreado dos coqueirais.
Na noite seguinte resolveu dar as caras.
Faustino escrevia quando Silvestre surgiu. Trazia um
semblante tenso, embora tentasse forjar um sorriso. Normalmente Faustino dava
atenção a ele quando não estava trabalhando; desta feita, porém, não é o que
ocorria. Mesmo assim, Silvestre permaneceu parado, aguardando a anuência do
escritor que, por fim, cessou o movimento das mãos e levantou a vista:
- O que se passa,
Silvestre? – perguntou.
Após morder um pouco o dedão da mão direita, respondeu:
- A maconha me deixa
anti-social.
- Ah... Por isso
estava sumido? Preferiu se enrustir...
- É... Foi isso. Mas,
na verdade, é porque eu não tô feliz.
- (...) Como assim?
- Casar e trabalhar
juntos... Não dá certo! E essa mulher não para de me dar ordem! Não consigo nem
ver o mar, diacho! Parece meu pai!...
De repente e
inesperadamente, Faustino era agora confidente de um homem que, aliviado por
encontrá-lo, dava conta de sua vida, de sua intimidade e de suas angústias a um
total desconhecido. Constrangido, o escritor olhava para um lado e para o
outro, a ver se alguém, especialmente Letícia, os poderia escutar, apesar do
chuá-chuá das ondas do mar. É que as águas marítimas são traiçoeiras: assim
como podem abafar o falar com o vento, podem levar longe nosso argumento. Interrompeu
as lamúrias do pobre capacho com um conselho:
- Sonhar o sonho de
sua companheira pode ser nobre, mas se tornará angustiante caso este não seja
também o seu sonho.
O olhar de Silvestre brilhou como a superfície de um açude
após o fim da estiagem, e seu semblante, enfim, tomou feições menos melancólicas.
Foi quando apareceu Tommy, um senhor americano hospedado no quarto ao lado, que
arranhava o português. Com as bochechas vermelhíssimas e completamente alheio
ao momento, disse que tinha uma ótima piada para contar ao escritor. Este, já
destituído de sua condição, não teve como deixar de atender ao pedido do
gringo.
Forçado a rir ao menos um pouquinho por conta da falta de graça
da piada, Faustino já se despedia de ambos quando Silvestre pediu para entrar
também no samba. E mandou outra que de tão ruim, não se podia sequer
compreender. Mas a poderosa gargalhada de Tommy forçava os envolvidos a repetir
o ritual de cumplicidade, dando risadas e se entreolhando, como quem diz “puxa,
essa foi demais!”.
Então, num ato de pura vilania, aparece Letícia, dando ordens
a Silvestre para que fosse fazer qualquer merda, menos estar ali, de desfrute
com os hóspedes.
Empolgado com a consciência de sua própria condição, e firme
no novo propósito de respeitar o próprio sonho, Silvestre comenta:
- Sim, já vou. Deixa
só eu contar essa piad...
- É agora.
- Já entendi, vou
já; é só contar...
- Tem que trabalhar,
rapaz! – exclamou ela, já chutando o balde, deixando o local.
Como é comum aos machos quando uma mulher dá faniquito,
ignoraram a situação e voltaram às gargalhadas. Mas Letícia não estava para
levar desaforos. Em menos de um minuto já estava de volta, cigarrinho nervoso à
mão:
- Silvestre!...
São horas assim que determinam se o homem vai ser homem ou
vai se conformar em ser eternamente um menino. Como quem abre uma gaiola para
libertar uma passarada, Silvestre se voltou para a mulher como se fosse ele o
“dono da terra”. E em tom próprio do coronelato da região, emendou,
ameaçadoramente:
- Não está vendo que
estou conversando com meus amigos, Letícia? Entendeu ou quer que eu lhe faça
entender?!
No dia seguinte, apenas os empregados trabalharam. Após
passarem o dia inteiro trancafiados, Silvestre e Letícia foram vistos, já com o
sol se pondo lá no fim do mar, numa bem servida mesa de mariscos e crustáceos,
com direito a taça de espumante, camisa desabotoada até o peito e um grande
sorriso no rosto...
Passarinho canta mais bonito quando canta fora da gaiola.
foto de marcya reis
2 comentários:
Como sempre adorei. Fica aquele limiar realidade e imaginação que é a sua cara.
O final é cinematográfico. Deu pra sentir a cena, os frutos do mar e a felicidade dos dois...
Eliana
Chega uma hora que o Sr. Chega, chega atrasado... mas ainda em tempo!!!
Postar um comentário