sábado, 19 de setembro de 2015

Sei que Nada será como Antes


Resistindo na boca da noite um gosto de sol

Fazer quarenta anos não é nada de muito extraordinário, a não ser que sua mulher o presenteie com um filho; aí, sim: você estica a boca até o limite que o sorriso pode alcançar e se sente como uma criança que ganha o melhor brinquedo que a vida poderia te dar.

Ele retribui com sete noites do cão, sem deixar que os pais descansem, durmam ou pestanejem, embora nem a tortura da vigília forçada os faça esmorecer. Nem as quatro fraldas de totô trocadas num espaço de 1hs59’34’’, em meio à interminável madrugada de choros e mamadas, os impede de, a todo tempo, dizer “que lindo é o nosso filho!”.

Ele tem a cara daquele cara que a gente já conhecia desde há tempos, mas não sabia. Ele se parece com a gente em alma – ou no dedão do pé! – e tem uma cumplicidade embutida que já vem de fábrica, turbinada. O cheiro (ahhhhhhhhhhhhhhhh, o cheiro...), a gente quer roubar todo! Aspirar cala milímetro cúbico daquele cheirinho leitoso de amor que ele exala pela boquinha, ou aquela porçãozinha de ar inocente que lhe sai às ventas, tão de batatinha como as do papai. Acariciar os pezinhos, bochechar as costinhas e dar beijinhos de esquimó. Massagear todo aquele corpinho enquanto olha para ele e pensa em como ele vai ser feliz... Ah, se vai!

A atenção vem acompanhada de um berço morninho e de palavras sempre afetuosas de carinho. Até o choro encanta. Chora bonito, gostoso; tem saúde, pulmão! Mas ao perder a noção do tempo encarando-o, pensamos no futuro dele. Não que nos preocupe a crise financeira mundial. E amor, a bem dizer, não lhe falta. Leite escorre e farta. O que preocupa é a humanidade; nossos tempos; o pensamento menor.

Meu filho veio ao mundo num momento conturbado em termos civilizatórios, tanto quanto aquele em que eu nasci, porém potencialmente mais violento, traumático, invasivo, sectário. Preocupa esse mundo que nos espiona o telefone e a correspondência, e que nos soca a cara enaltecendo novos heróis de esportes que em nada se parecem com aqueles que idolatrávamos.

Preocupa o número de vizinhos raivosos, pessoas irascíveis e amiguinhos de colégio intolerantes. Preocupa esse mundo de pouca consciência histórica e política, mas de muita atração por vampiros, zumbis, músculos, depilação e ostentação. Preocupa o mundo da aparência, do selfie, egoísta, vazio; da não-ideologia e da perda de valores - sem falar do Flamengo que há quase quatro décadas não ganha a Libertadores.

Preocupa a indústria travestir de “novos tempos” tudo aquilo que lhe seja pertinente quando o assunto são os novos hábitos de consumo. Preocupa o tecnicismo, o imediatismo, a certeza irrefletida do fascismo. Preocupa esta nova maneira de dialogar, não dialogando, cinicamente. Preocupa o aparelho eletrônico que nos conecta e nos aliena, que nos deprime e nos supre a carência, ainda que virtualmente. Preocupa o fim do namoro no sofá, no portão, de pegar na mão. Preocupa o fim do romantismo.

Ao mesmo tempo, tenho a sensação de ver brotando “musguitos en las piedras”, cheios de energia renovadora, aqui e acolá, como se um exército anárquico, colorido e transformador estivesse em processo de gestação, o qual meu filho certamente fará questão de integrar. E chego à conclusão de que tenho o papel de quem deve preparar um ser humano para fazer desta, uma sociedade afetivamente viável. Lamento por não oferecer a ele a realidade com a qual sonhei, embora ele represente para mim a certeza de que a vida apenas tenha se iniciado, e que ainda tenho todo o tempo do mundo para ver esse sonho realizado.

Seja bem-vindo, meu filho, afinal, este planeta é lindo! Os seres humanos é que são meio bobos...

foto: marcya reis

domingo, 15 de março de 2015

SOS Militares

Saudades da ditadura? Nós somos da Pátria a guarda, fieis soldados, por ela amados!... 

                                                       
Em toda a sua história, o Brasil jamais ansiou tanto por uma data como por aquele quinze de março; nem quando “conquistou” a Independência, nem quando se tornou uma República, e muito menos quando venceu sua primeira Copa do Mundo. Apesar de pontos de inflexão históricos, nenhum teve a capacidade de mobilização criada pela expectativa da iminente redemocratização do País, em 1985.

Detentor de uma barba desgrenhada com pêlos brancos à larga, bem me lembro daquela longínqua manhã. O dia amanhecera fresco, e ainda muito cedo, de roupão e calção de banho, além de muitos tremores de frio, seguia com meu pai rumo ao Parque da Água Mineral, para uma natação matinal. Apesar do meu temor pela temperatura relativamente baixa, havia algo no ar que fazia daquela experiência algo mais solene que um mero mergulhar no frio profundo daquelas águas cristalinas: dali a pouco, tomaria posse Tancredo Neves, o primeiro presidente civil em 21 anos, sepultando um dos mais vergonhosos e autoritários períodos de nossa história – o tempo das fardas lúgubres e de suas taciturnas figuras se encerrava com aquela aguardada alvorada.

Embora eu fosse um pisquila que sequer alcançara os dez anos, tinha razoável noção sobre a vida política do país, e escutava tudo o que meu pai tinha a dizer, com grande expectativa. A luta pelas Diretas, poucos meses antes, despertara a população brasileira para uma consciência cidadã coletiva, precipitando a experiência política também entre os mais jovens. Havia mais de duas décadas, a pedagogia escolar brasileira impunha às crianças a aceitação ao sistema, e nunca o questionamento, por meio de disciplinas como Organização Social e Política do Brasil ou Educação Moral e Cívica. Ao mesmo tempo, estudantes secundaristas e universitários eram presos, espancados ou mortos.

Apesar da derrota da emenda Dante de Oliveira, ganhamos no Colégio Eleitoral, poucos meses depois. E digo ganhamos porque o Brasil inteiro se fazia presente naquele plenário quando Tancredo Neves alcançou a maioria de votos, derrotando Paulo Maluf e a direita brasileira. O hino nacional, entoado na sequência, era escutado ecoando dentro e fora do Congresso Nacional, a plenos pulmões, árduas lágrimas e intensa comoção. Após ser instrumentalizado pela ditadura como objeto de um ufanismo arbitrário, o hino vinha readquirindo seu real significado desde os comícios do ano anterior. A sensação de pertencimento e orgulho nacional atingia todas as classes e (quase) todos os partidos políticos, pois, acima de tudo, havia a certeza de que o Brasil se humanizava com a redemocratização.  

Enquanto caminhávamos à beira daquela piscina natural cravada no cerrado brasiliense, era possível sentir uma atmosfera renovadora permeando todo o ambiente, em sintonia, vislumbrando os novos e bem-vindos tempos aos quais se referia Cazuza; o dia, de fato, nascia feliz! As pessoas sorriam quando se cumprimentavam; um sorriso diferente, mais leve e mais solto, que vinha lá de dentro. Ninguém falava de lado, ninguém olhava pro chão.

Foi quando um colega de meu pai veio em nossa direção e deu a impensável notícia: - Já ouviu o rádio? Parece que Tancredo foi internado às pressas; periga não haver posse...

   - Quê?!... - Meu pai ficou incrédulo e, com expressão grave, típica de quem está maquinando uma ideia, retrucou: - Isso só pode ser coisa dos milicos... Não querem largar o osso de jeito nenhum! – Motivos para preocupação havia, e de sobra...

O martírio e as incertezas perduraram pelo resto do mês, indo findar no dia dos mártires, a 21 de abril, quando a morte do ex-futuro Presidente foi anunciada. O calvário serviu para unir ainda mais a nação, que chorou como se, com Tancredo, morresse também nossa esperança de ver erigir a verdadeira democracia brasileira. O luto era amplo, geral e irrestrito.

Passados trinta anos, também em um 15 de março, parcela da população brasileira acordou imbuída de um sentimento que, dizem – e eu não consigo entender o porquê – assemelha-se ao de então. Milhares de brasileiros foram às ruas protestar contra o que consideram o pior panorama político já enfrentado pelo Brasil, visando apear a “quadrilha comunista” que ocupa o “Poder”.

Para mostrar que a bagaça é real, vestiram a camisa da seleção brasileira (Nike? CBF? Ricardo Teixeira?) e foram para a rua vociferar contra o governo e o PT, mas também contra ateus, feministas, maconheiros, umbandistas, nordestinos, abortistas, haribôs, cabeludos, Karl Marx (?) e até contra o facínora corruptor de mentes juvenis, o professor e educador Paulo Freire (???). Pediam o impeachment da Dilma, além da volta da ditadura militar em cartazes escritos, vejam vocês, em inglês. Trocaram o “Yankees, go home!” pelo “Miami, here we go!” Até a suástica estava entre os emblemas ostentados pelo coro dos descontentes. E mandavam todo aquele que discordasse para a “Cuba que o pariu!”.  Tudo “em família, pacificamente”, como frisavam os jornalistas da Globo News.

Havia gente jurando que o Lula é o anti-cristo; havia gente pensando que o Aécio assumiria a Presidência, em caso de golpe; havia gente contra o aborto e a favor da pena de morte (????); havia bonecos de petistas sendo enforcados num viaduto; e também quem imaginasse que estava ali para fazer história, mostrando que é brasileiro, com muito orgulho e muito amor. Mas não havia hinos históricos que refletissem qualquer realidade social, qualquer luta ou momento relevante da história brasileira.

O que havia, em contrapartida, era um grande vazio cidadão: nenhuma periferia, nenhuma organização indígena, nenhum movimento social de base, nada de representantes das classes artística, cultural ou intelectual minimamente relevantes. As fotos, ao contrário, revelam pessoas majoritariamente brancas, felizes, bem vestidas, tomando Heineken e Budweiser, enquanto cantam o hino nacional como prova inequívoca de seu patriotismo e compromisso para com o país; uma "gente direita”, “do bem” e, sobretudo, cristã. Vislumbrando a enxurrada de imagens produzidas pela mídia, nota-se que não há a menor diferença entre os manifestantes de hoje e aqueles brasileiros que tiveram acesso aos estádios (desculpem, arenas) durante a última Copa da FIFA, pois eram todos, majoritariamente, representantes de uma única (e ultrajada) classe econômica.

Sair às ruas é, mais que um direito, um dever de todo e qualquer cidadão que almeje mudanças. Mas ignorar a história e clamar por um estado policial é o maior desrespeito que poderia haver contra a democracia e a população brasileiras. Que me desculpem os castos e bem intencionados que cerraram fileiras nos protestos, mas a essência da mensagem produzida pelos eventos deste dia 15 é das mais elitistas e mesquinhas que se poderia obter. Se o objetivo dos que protestam é aperfeiçoar o modelo democrático e exigir respeito à Constituição, então mandaram muito mal, pois sectarismo não se combate com sectarismo. A realidade, minha gente diferenciada, está bem além daquilo que se pode ver pela tela de uma TV.

sábado, 28 de fevereiro de 2015

Conectados e Desunidos

Quem não quer ser feliz?

Escuto no rádio que, atualmente, para conectar-se à rede, “não existe mais aquela coisa de ir ao quarto e ligar o computador que ficava sobre a mesa”, sendo “praticamente impossível encontrar alguém que não carregue o seu ‘ismartifone’, no bolso”. Você, dedicado leitor, está carregando o seu? Então, parabéns: você é um cidadão conectado, dito moderno!

Se há ainda seres primitivos que abram mão deste ente onipresente da contemporaneidade, não importa; o que realmente me intriga é saber se a dinâmica alucinante imposta pela tecnologia efetivamente nos une, além de nos conectar – coisas bem diferentes, ainda que a publicidade nos convença alegremente do contrário. Senão, vejamos...

No restaurante, olhamos à volta e percebemos que é quase impossível encontrar quem não esteja futricando seu aparelhinho. Pode ser no bolso, com o rabo do olho; apoiado no copo de suco; ou de modo explícito, como a mãe que, em vez de conversar com a filha sobre o dia na escola, empenha atenção integral ao seu telefone inteligente – manuseando-o de tal forma que a tela da engenhoca acaba substituindo a cabeça da criança em seu campo de visão, obrigando esta a almoçar olhando para a capa cor-de-rosa do mimo da mãe... Coisa bem triste de se ver.

Atmosfera de exclusão semelhante encontra o sujeito que vai buscar a caranga na oficina, e se depara com três mecânicos que, em vez de umas palavras sobre futebol, sobre a desfaçatez dos políticos brasileiros, ou um comentário libidinoso sobre a boazuda que passa, contemplam um vídeo pelo celular, num volume alto, agudo e irritante. Sem troca de olhar, sem bom-dia, nada. A experiência se resume à espera da conta, sem que nenhuma individualidade se coloque de modo atraente, sedutor, interessante ou mesmo digno, posto que indiferentes à presença alheia. O sujeito entra e sai sem ser notado, sem oportunidade de enriquecer a vida dele ou a dos outros. O videozinho viral, a putaria, a bizarrice, a fofoca, tudo estará sempre disponível, enquanto que o momento... Já passou, é único. Foi-se.

O mundo real se revela cada vez menos interessante ao indivíduo contemporâneo. Nos ônibus, nas academias, nas salas de espera ou nos encontros religiosos, esqueça as cantadas de praxe, pois ninguém terá olhos para você, preocupados que estarão em atualizar seus perfis.

Certa vez, em Sampa, numa cantina, desfrutava um desses pratos que te fazem babar só de pensar, e me divertia com minha mulher, celebrando o gastronômico instante ao tilintar de umas boas taças de vinho. De momento, percebi que, mesmo em meio a uma atmosfera romântica e aconchegante, havia casais entregues aos seus apetrechos eletro-digitais, divulgando a felicidade rede afora, a todo instante, a noite toda, sem parar... Não conversavam entre si; estavam muito ocupados para isso! Sem falar das crianças, alvos primordiais, totalmente alheias a tudo o que fosse real, vidradas em joguinhos irritantes, sempre em dolbysurround. Crianças que não sabem observar a realidade: o porvir promete fortes emoções!

Em ambientes e momentos dos mais improváveis, vê-se toda a gente aderindo sem contestação à sugestão do fabricante, plugadas full-time, como se a satisfação existencial de cada um dependesse da reiterada aprovação de seus avatares on-line. Nessa toada, uma operadora promete uma vida de constante diversão, “sem ter de se preocupar com mais nada”!...  E por acaso, nosso objetivo, individualmente, é passar o maior tempo possível alienado, exibindo nosso ego, como seres infantiloides eternamente presos à puberdade? Não lhes parece um conceito muito tosco de civilização?

Adotamos paulatinamente a tecnologia como ponto de partida e chegada das relações humanas. É como se um aparelho de última geração nos tornasse, inexoravelmente, famosos, queridos, admirados, desejados, sexies, invejados, comunicativos e, sobretudo, felizes (além de especialistas em fotos e vídeos de aventuras radicais). Mesmo não fazendo o menor sentido, os cidadãos deste século parecem acreditar nessa bazófia. Do contrário, por que alguém satisfeito com sua vida perderia tanto tempo preocupado em saber o que estão pensando dela, dando conta do que faz ou deixa de fazer, do que come, do que gosta e do que odeia? Que tipo de sociedade aceita isso como um comportamento normal, que não uma sociedade regida por aparências e carências agudas, atropelada pelo ritmo irreflexivo da atualidade? Como aprofundar-se numa relação verdadeira, se estamos afogados no raso mar do superficialismo existencial?

Acredito que o ser humano precise de tempo para processar sentimentos, contextos, situações e experiências que, de modo geral, delineiam e alimentam sua existência. Valorizo uma carta há tempos esperada, um artesanato dedicado e uma comida feita com afeto, mesmo que demorada. Não é porque a fibra ótica torna tudo mais rápido que temos de obedecer às necessidades da fibra ótica. Não faz sentido pautarmos nossas relações sociais pela impessoalidade do ritmo de produção que só interessa ao mercado. Afinal, estar atualizado significa comprar um aparelho novo a cada temporada. E viva o esgotamento dos recursos naturais planetários!

Posso “ter o mundo em minhas mãos”, mas para que? Porque, pensando bem, não quero estar eternamente plugado a nada; nem me comunicar do espaço com a Terra; ser bisbilhotado, monitorado, espionado ou classificado; dar satisfação de onde fui, com quem fui e do que fiz (nem para a minha mulher, imagine para a CIA!); ter de baixar “aplicativos grátis” para me expressar em programas de televisão, portais da internets e blogs do mundo inteiro; e, muito menos, assistir “meu programa de TV predileto, a qualquer hora, em qualquer lugar”. Enfim, não quero que um software tome conta da minha vida, intrometendo-se em meu cotidiano, por meio de gemidos, miados ou assovios, desviando e superficializando minha atenção, enquanto minha mente poderia estar obtendo e processando conhecimentos verdadeiramente orgânicos.

Quanto mais rápido o gado é tocado, menos ele reflete sobre seu destino, no matadouro. O que me lembra essa gente esbaforida que se atropela por  um simples computador, para concluir que definitivamente meus pais não me educaram para este mundo; eles jamais imaginaram que a vida fosse se tornar tão irracional.


foto&arte de joão sassi