Resistindo na boca da noite um gosto de sol |
Fazer quarenta anos não é nada de muito extraordinário, a não
ser que sua mulher o presenteie com um filho; aí, sim: você estica a boca até o
limite que o sorriso pode alcançar e se sente como uma criança que ganha o
melhor brinquedo que a vida poderia te dar.
Ele retribui com sete noites do cão, sem deixar que os pais
descansem, durmam ou pestanejem, embora nem a tortura da vigília forçada os faça
esmorecer. Nem as quatro fraldas de totô trocadas num espaço de 1hs59’34’’, em
meio à interminável madrugada de choros e mamadas, os impede de, a todo tempo,
dizer “que lindo é o nosso filho!”.
Ele tem a cara daquele cara que a gente já conhecia desde há
tempos, mas não sabia. Ele se parece com a gente em alma – ou no dedão do pé! –
e tem uma cumplicidade embutida que já vem de fábrica, turbinada. O cheiro
(ahhhhhhhhhhhhhhhh, o cheiro...), a gente quer roubar todo! Aspirar cala
milímetro cúbico daquele cheirinho leitoso de amor que ele exala pela boquinha,
ou aquela porçãozinha de ar inocente que lhe sai às ventas, tão de batatinha
como as do papai. Acariciar os pezinhos, bochechar as costinhas e dar beijinhos
de esquimó. Massagear todo aquele corpinho enquanto olha para ele e pensa em
como ele vai ser feliz... Ah, se vai!
A atenção vem acompanhada de um berço morninho e de palavras
sempre afetuosas de carinho. Até o choro encanta. Chora bonito, gostoso; tem
saúde, pulmão! Mas ao perder a noção do tempo encarando-o, pensamos no futuro
dele. Não que nos preocupe a crise financeira mundial. E amor, a bem dizer, não
lhe falta. Leite escorre e farta. O que preocupa é a humanidade; nossos tempos;
o pensamento menor.
Meu filho veio ao mundo num momento conturbado em termos
civilizatórios, tanto quanto aquele em que eu nasci, porém potencialmente mais
violento, traumático, invasivo, sectário. Preocupa esse mundo que nos espiona o
telefone e a correspondência, e que nos soca a cara enaltecendo novos heróis de
esportes que em nada se parecem com aqueles que idolatrávamos.
Preocupa o número de vizinhos raivosos, pessoas irascíveis e
amiguinhos de colégio intolerantes. Preocupa esse mundo de pouca consciência
histórica e política, mas de muita atração por vampiros, zumbis, músculos, depilação
e ostentação. Preocupa o mundo da aparência, do selfie, egoísta, vazio; da não-ideologia e da perda de valores - sem
falar do Flamengo que há quase quatro décadas não ganha a Libertadores.
Preocupa a indústria travestir de “novos tempos” tudo aquilo
que lhe seja pertinente quando o assunto são os novos hábitos de consumo.
Preocupa o tecnicismo, o imediatismo, a certeza irrefletida do fascismo.
Preocupa esta nova maneira de dialogar, não dialogando, cinicamente. Preocupa o
aparelho eletrônico que nos conecta e nos aliena, que nos deprime e nos supre a
carência, ainda que virtualmente. Preocupa o fim do namoro no sofá, no portão,
de pegar na mão. Preocupa o fim do romantismo.
Ao mesmo tempo, tenho a sensação de ver brotando “musguitos en
las piedras”, cheios de energia renovadora, aqui e acolá, como se um exército
anárquico, colorido e transformador estivesse em processo de gestação, o qual
meu filho certamente fará questão de integrar. E chego à conclusão de que tenho o papel de quem deve preparar um ser humano para fazer desta, uma sociedade afetivamente viável. Lamento por não oferecer a ele a realidade com a qual
sonhei, embora ele represente para mim a certeza de que a vida apenas tenha se
iniciado, e que ainda tenho todo o tempo do mundo para ver esse sonho
realizado.
Seja bem-vindo, meu filho, afinal, este planeta é lindo! Os seres
humanos é que são meio bobos...
foto: marcya reis