Quem não quer ser feliz? |
Escuto no rádio que, atualmente, para conectar-se à rede, “não
existe mais aquela coisa de ir ao quarto e ligar o computador que ficava sobre
a mesa”, sendo “praticamente impossível encontrar alguém que não carregue o seu
‘ismartifone’, no bolso”. Você, dedicado leitor, está carregando o seu?
Então, parabéns: você é um cidadão conectado, dito moderno!
Se há ainda seres primitivos que abram mão deste ente onipresente
da contemporaneidade, não importa; o que realmente me intriga é saber se a dinâmica
alucinante imposta pela tecnologia efetivamente nos une, além de nos conectar –
coisas bem diferentes, ainda que a publicidade nos convença alegremente do
contrário. Senão, vejamos...
No restaurante, olhamos à volta e percebemos que é quase impossível
encontrar quem não esteja futricando seu aparelhinho. Pode ser no bolso, com o
rabo do olho; apoiado no copo de suco; ou de modo explícito, como a mãe que, em
vez de conversar com a filha sobre o dia na escola, empenha atenção integral ao
seu telefone inteligente – manuseando-o de tal forma que a tela da engenhoca
acaba substituindo a cabeça da criança em seu campo de visão, obrigando esta a
almoçar olhando para a capa cor-de-rosa do mimo da mãe... Coisa bem triste de
se ver.
Atmosfera de exclusão semelhante encontra o sujeito que vai
buscar a caranga na oficina, e se depara com três mecânicos que, em vez de umas
palavras sobre futebol, sobre a desfaçatez dos políticos brasileiros, ou um
comentário libidinoso sobre a boazuda que passa, contemplam um vídeo pelo
celular, num volume alto, agudo e irritante. Sem troca de olhar, sem bom-dia,
nada. A experiência se resume à espera da conta, sem que nenhuma
individualidade se coloque de modo atraente, sedutor, interessante ou mesmo
digno, posto que indiferentes à presença alheia. O sujeito entra e sai sem ser
notado, sem oportunidade de enriquecer a vida dele ou a dos outros. O videozinho
viral, a putaria, a bizarrice, a fofoca, tudo estará sempre disponível,
enquanto que o momento... Já passou, é único. Foi-se.
O mundo real se revela cada vez menos interessante ao
indivíduo contemporâneo. Nos ônibus, nas academias, nas salas de espera ou nos encontros
religiosos, esqueça as cantadas de praxe, pois ninguém terá olhos para você,
preocupados que estarão em atualizar seus perfis.
Certa vez, em Sampa, numa cantina, desfrutava um desses
pratos que te fazem babar só de pensar, e me divertia com minha mulher,
celebrando o gastronômico instante ao tilintar de umas boas taças de vinho. De
momento, percebi que, mesmo em meio a uma atmosfera romântica e aconchegante,
havia casais entregues aos seus apetrechos eletro-digitais, divulgando a
felicidade rede afora, a todo instante, a noite toda, sem parar... Não
conversavam entre si; estavam muito ocupados para isso! Sem falar das crianças,
alvos primordiais, totalmente alheias a tudo o que fosse real, vidradas em
joguinhos irritantes, sempre em dolbysurround.
Crianças que não sabem observar a realidade: o porvir promete fortes emoções!
Em ambientes e momentos dos mais improváveis, vê-se toda a
gente aderindo sem contestação à sugestão do fabricante, plugadas full-time, como se a satisfação
existencial de cada um dependesse da reiterada aprovação de seus avatares on-line. Nessa toada, uma operadora promete
uma vida de constante diversão, “sem ter de se preocupar com mais
nada”!... E por acaso, nosso objetivo,
individualmente, é passar o maior tempo possível alienado, exibindo nosso ego, como
seres infantiloides eternamente presos à puberdade? Não lhes parece um conceito
muito tosco de civilização?
Adotamos paulatinamente a tecnologia como ponto de partida e
chegada das relações humanas. É como se um aparelho de última geração nos
tornasse, inexoravelmente, famosos, queridos, admirados, desejados, sexies, invejados,
comunicativos e, sobretudo, felizes (além de especialistas em fotos e vídeos de
aventuras radicais). Mesmo não fazendo o menor sentido, os cidadãos deste
século parecem acreditar nessa bazófia. Do contrário, por que alguém satisfeito
com sua vida perderia tanto tempo preocupado em saber o que estão pensando dela,
dando conta do que faz ou deixa de fazer, do que come, do que gosta e do que
odeia? Que tipo de sociedade aceita isso como um comportamento normal, que não uma
sociedade regida por aparências e carências agudas, atropelada pelo ritmo irreflexivo
da atualidade? Como aprofundar-se numa relação verdadeira, se estamos afogados no raso mar do superficialismo existencial?
Acredito que o ser humano precise de tempo para processar
sentimentos, contextos, situações e experiências que, de modo geral, delineiam
e alimentam sua existência. Valorizo uma carta há tempos esperada, um
artesanato dedicado e uma comida feita com afeto, mesmo que demorada. Não é
porque a fibra ótica torna tudo mais rápido que temos de obedecer às
necessidades da fibra ótica. Não faz sentido pautarmos nossas relações sociais
pela impessoalidade do ritmo de produção que só interessa ao mercado. Afinal, estar
atualizado significa comprar um aparelho novo a cada temporada. E viva o
esgotamento dos recursos naturais planetários!
Posso “ter o mundo em minhas mãos”, mas para que? Porque,
pensando bem, não quero estar eternamente plugado a nada; nem me comunicar do
espaço com a Terra; ser bisbilhotado, monitorado, espionado ou classificado; dar
satisfação de onde fui, com quem fui e do que fiz (nem para a minha mulher,
imagine para a CIA!); ter de baixar “aplicativos grátis” para me expressar em
programas de televisão, portais da internets e blogs do mundo inteiro; e, muito
menos, assistir “meu programa de TV predileto, a qualquer hora, em qualquer
lugar”. Enfim, não quero que um software
tome conta da minha vida, intrometendo-se em meu cotidiano, por meio de gemidos,
miados ou assovios, desviando e superficializando minha atenção, enquanto minha
mente poderia estar obtendo e processando conhecimentos verdadeiramente orgânicos.
Quanto mais rápido o gado é tocado, menos ele reflete sobre seu
destino, no matadouro. O que me lembra essa gente esbaforida que se atropela
por um simples computador, para concluir
que definitivamente meus pais não me educaram para este mundo; eles jamais imaginaram
que a vida fosse se tornar tão irracional.
foto&arte de joão sassi