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sábado, 28 de fevereiro de 2015

Conectados e Desunidos

Quem não quer ser feliz?

Escuto no rádio que, atualmente, para conectar-se à rede, “não existe mais aquela coisa de ir ao quarto e ligar o computador que ficava sobre a mesa”, sendo “praticamente impossível encontrar alguém que não carregue o seu ‘ismartifone’, no bolso”. Você, dedicado leitor, está carregando o seu? Então, parabéns: você é um cidadão conectado, dito moderno!

Se há ainda seres primitivos que abram mão deste ente onipresente da contemporaneidade, não importa; o que realmente me intriga é saber se a dinâmica alucinante imposta pela tecnologia efetivamente nos une, além de nos conectar – coisas bem diferentes, ainda que a publicidade nos convença alegremente do contrário. Senão, vejamos...

No restaurante, olhamos à volta e percebemos que é quase impossível encontrar quem não esteja futricando seu aparelhinho. Pode ser no bolso, com o rabo do olho; apoiado no copo de suco; ou de modo explícito, como a mãe que, em vez de conversar com a filha sobre o dia na escola, empenha atenção integral ao seu telefone inteligente – manuseando-o de tal forma que a tela da engenhoca acaba substituindo a cabeça da criança em seu campo de visão, obrigando esta a almoçar olhando para a capa cor-de-rosa do mimo da mãe... Coisa bem triste de se ver.

Atmosfera de exclusão semelhante encontra o sujeito que vai buscar a caranga na oficina, e se depara com três mecânicos que, em vez de umas palavras sobre futebol, sobre a desfaçatez dos políticos brasileiros, ou um comentário libidinoso sobre a boazuda que passa, contemplam um vídeo pelo celular, num volume alto, agudo e irritante. Sem troca de olhar, sem bom-dia, nada. A experiência se resume à espera da conta, sem que nenhuma individualidade se coloque de modo atraente, sedutor, interessante ou mesmo digno, posto que indiferentes à presença alheia. O sujeito entra e sai sem ser notado, sem oportunidade de enriquecer a vida dele ou a dos outros. O videozinho viral, a putaria, a bizarrice, a fofoca, tudo estará sempre disponível, enquanto que o momento... Já passou, é único. Foi-se.

O mundo real se revela cada vez menos interessante ao indivíduo contemporâneo. Nos ônibus, nas academias, nas salas de espera ou nos encontros religiosos, esqueça as cantadas de praxe, pois ninguém terá olhos para você, preocupados que estarão em atualizar seus perfis.

Certa vez, em Sampa, numa cantina, desfrutava um desses pratos que te fazem babar só de pensar, e me divertia com minha mulher, celebrando o gastronômico instante ao tilintar de umas boas taças de vinho. De momento, percebi que, mesmo em meio a uma atmosfera romântica e aconchegante, havia casais entregues aos seus apetrechos eletro-digitais, divulgando a felicidade rede afora, a todo instante, a noite toda, sem parar... Não conversavam entre si; estavam muito ocupados para isso! Sem falar das crianças, alvos primordiais, totalmente alheias a tudo o que fosse real, vidradas em joguinhos irritantes, sempre em dolbysurround. Crianças que não sabem observar a realidade: o porvir promete fortes emoções!

Em ambientes e momentos dos mais improváveis, vê-se toda a gente aderindo sem contestação à sugestão do fabricante, plugadas full-time, como se a satisfação existencial de cada um dependesse da reiterada aprovação de seus avatares on-line. Nessa toada, uma operadora promete uma vida de constante diversão, “sem ter de se preocupar com mais nada”!...  E por acaso, nosso objetivo, individualmente, é passar o maior tempo possível alienado, exibindo nosso ego, como seres infantiloides eternamente presos à puberdade? Não lhes parece um conceito muito tosco de civilização?

Adotamos paulatinamente a tecnologia como ponto de partida e chegada das relações humanas. É como se um aparelho de última geração nos tornasse, inexoravelmente, famosos, queridos, admirados, desejados, sexies, invejados, comunicativos e, sobretudo, felizes (além de especialistas em fotos e vídeos de aventuras radicais). Mesmo não fazendo o menor sentido, os cidadãos deste século parecem acreditar nessa bazófia. Do contrário, por que alguém satisfeito com sua vida perderia tanto tempo preocupado em saber o que estão pensando dela, dando conta do que faz ou deixa de fazer, do que come, do que gosta e do que odeia? Que tipo de sociedade aceita isso como um comportamento normal, que não uma sociedade regida por aparências e carências agudas, atropelada pelo ritmo irreflexivo da atualidade? Como aprofundar-se numa relação verdadeira, se estamos afogados no raso mar do superficialismo existencial?

Acredito que o ser humano precise de tempo para processar sentimentos, contextos, situações e experiências que, de modo geral, delineiam e alimentam sua existência. Valorizo uma carta há tempos esperada, um artesanato dedicado e uma comida feita com afeto, mesmo que demorada. Não é porque a fibra ótica torna tudo mais rápido que temos de obedecer às necessidades da fibra ótica. Não faz sentido pautarmos nossas relações sociais pela impessoalidade do ritmo de produção que só interessa ao mercado. Afinal, estar atualizado significa comprar um aparelho novo a cada temporada. E viva o esgotamento dos recursos naturais planetários!

Posso “ter o mundo em minhas mãos”, mas para que? Porque, pensando bem, não quero estar eternamente plugado a nada; nem me comunicar do espaço com a Terra; ser bisbilhotado, monitorado, espionado ou classificado; dar satisfação de onde fui, com quem fui e do que fiz (nem para a minha mulher, imagine para a CIA!); ter de baixar “aplicativos grátis” para me expressar em programas de televisão, portais da internets e blogs do mundo inteiro; e, muito menos, assistir “meu programa de TV predileto, a qualquer hora, em qualquer lugar”. Enfim, não quero que um software tome conta da minha vida, intrometendo-se em meu cotidiano, por meio de gemidos, miados ou assovios, desviando e superficializando minha atenção, enquanto minha mente poderia estar obtendo e processando conhecimentos verdadeiramente orgânicos.

Quanto mais rápido o gado é tocado, menos ele reflete sobre seu destino, no matadouro. O que me lembra essa gente esbaforida que se atropela por  um simples computador, para concluir que definitivamente meus pais não me educaram para este mundo; eles jamais imaginaram que a vida fosse se tornar tão irracional.


foto&arte de joão sassi