Saudades da ditadura? Nós somos da Pátria a guarda, fieis soldados, por ela amados!... |
Em toda a sua história, o Brasil jamais ansiou tanto por uma
data como por aquele quinze de março; nem quando “conquistou” a Independência,
nem quando se tornou uma República, e muito menos quando venceu sua primeira
Copa do Mundo. Apesar de pontos de inflexão históricos, nenhum teve a
capacidade de mobilização criada pela expectativa da iminente redemocratização do
País, em 1985.
Detentor de uma barba desgrenhada com pêlos brancos à larga, bem
me lembro daquela longínqua manhã. O dia amanhecera fresco, e ainda muito cedo,
de roupão e calção de banho, além de muitos tremores de frio, seguia com meu
pai rumo ao Parque da Água Mineral, para uma natação matinal. Apesar do meu
temor pela temperatura relativamente baixa, havia algo no ar que fazia daquela
experiência algo mais solene que um mero mergulhar no frio profundo daquelas águas
cristalinas: dali a pouco, tomaria posse Tancredo Neves, o primeiro presidente
civil em 21 anos, sepultando um dos mais vergonhosos e autoritários períodos de
nossa história – o tempo das fardas lúgubres e de suas taciturnas figuras se
encerrava com aquela aguardada alvorada.
Embora eu fosse um pisquila que sequer alcançara os dez anos,
tinha razoável noção sobre a vida política do país, e escutava tudo o que meu
pai tinha a dizer, com grande expectativa. A luta pelas Diretas, poucos meses antes, despertara a população brasileira para
uma consciência cidadã coletiva, precipitando a experiência política também
entre os mais jovens. Havia mais de duas décadas, a pedagogia escolar
brasileira impunha às crianças a aceitação ao sistema, e nunca o
questionamento, por meio de disciplinas como Organização Social e Política do Brasil ou Educação Moral e Cívica. Ao
mesmo tempo, estudantes secundaristas e universitários eram presos, espancados
ou mortos.
Apesar da derrota da emenda Dante de Oliveira, ganhamos no
Colégio Eleitoral, poucos meses depois. E digo ganhamos porque o Brasil inteiro
se fazia presente naquele plenário quando Tancredo Neves alcançou a maioria de
votos, derrotando Paulo Maluf e a direita brasileira. O hino nacional, entoado
na sequência, era escutado ecoando dentro e fora do Congresso Nacional, a
plenos pulmões, árduas lágrimas e intensa comoção. Após ser instrumentalizado pela
ditadura como objeto de um ufanismo arbitrário, o hino vinha readquirindo seu
real significado desde os comícios do ano anterior. A sensação de pertencimento
e orgulho nacional atingia todas as classes e (quase) todos os partidos políticos,
pois, acima de tudo, havia a certeza de que o Brasil se humanizava com a
redemocratização.
Enquanto caminhávamos à beira daquela piscina natural cravada
no cerrado brasiliense, era possível sentir uma atmosfera renovadora permeando
todo o ambiente, em sintonia, vislumbrando os novos e bem-vindos tempos aos
quais se referia Cazuza; o dia, de fato, nascia feliz! As pessoas sorriam
quando se cumprimentavam; um sorriso diferente, mais leve e mais solto, que
vinha lá de dentro. Ninguém falava de lado, ninguém olhava pro chão.
Foi quando um colega de meu pai veio em nossa direção e deu a
impensável notícia: - Já ouviu o rádio? Parece que Tancredo foi internado às
pressas; periga não haver posse...
- Quê?!... - Meu pai
ficou incrédulo e, com expressão grave, típica de quem está maquinando uma
ideia, retrucou: - Isso só pode ser coisa dos milicos... Não querem largar o
osso de jeito nenhum! – Motivos para preocupação havia, e de sobra...
O martírio e as incertezas perduraram pelo resto do mês, indo
findar no dia dos mártires, a 21 de abril, quando a morte do ex-futuro
Presidente foi anunciada. O calvário serviu para unir ainda mais a nação, que
chorou como se, com Tancredo, morresse também nossa esperança de ver erigir a
verdadeira democracia brasileira. O luto era amplo, geral e irrestrito.
Passados trinta anos, também em um 15 de março, parcela da
população brasileira acordou imbuída de um sentimento que, dizem – e eu não
consigo entender o porquê – assemelha-se ao de então. Milhares de brasileiros
foram às ruas protestar contra o que consideram o pior panorama político já
enfrentado pelo Brasil, visando apear a “quadrilha comunista” que ocupa o “Poder”.
Para mostrar que a bagaça é real, vestiram a camisa da
seleção brasileira (Nike? CBF? Ricardo Teixeira?) e foram para a rua vociferar
contra o governo e o PT, mas também contra ateus, feministas, maconheiros, umbandistas,
nordestinos, abortistas, haribôs, cabeludos, Karl Marx (?) e até contra o
facínora corruptor de mentes juvenis, o professor e educador Paulo Freire (???).
Pediam o impeachment da Dilma, além
da volta da ditadura militar em cartazes escritos, vejam vocês, em inglês. Trocaram
o “Yankees, go home!” pelo “Miami, here we go!” Até a suástica estava entre os
emblemas ostentados pelo coro dos descontentes. E mandavam todo aquele que discordasse
para a “Cuba que o pariu!”. Tudo “em
família, pacificamente”, como frisavam os jornalistas da Globo News.
Havia gente jurando que o Lula é o anti-cristo; havia gente
pensando que o Aécio assumiria a Presidência, em caso de golpe; havia gente
contra o aborto e a favor da pena de morte (????); havia bonecos de petistas
sendo enforcados num viaduto; e também quem imaginasse que estava ali para
fazer história, mostrando que é brasileiro, com muito orgulho e muito amor. Mas
não havia hinos históricos que refletissem qualquer realidade social, qualquer
luta ou momento relevante da história brasileira.
O que havia, em contrapartida, era um grande vazio cidadão:
nenhuma periferia, nenhuma organização indígena, nenhum movimento social de
base, nada de representantes das classes artística, cultural ou intelectual
minimamente relevantes. As fotos, ao contrário, revelam pessoas majoritariamente
brancas, felizes, bem vestidas, tomando Heineken e Budweiser, enquanto cantam o
hino nacional como prova inequívoca de seu patriotismo e compromisso para com o
país; uma "gente direita”, “do bem” e, sobretudo, cristã. Vislumbrando a enxurrada de imagens produzidas pela mídia, nota-se que não há a menor diferença entre os manifestantes de hoje e aqueles brasileiros
que tiveram acesso aos estádios (desculpem, arenas) durante a última Copa da
FIFA, pois eram todos, majoritariamente, representantes de uma única (e ultrajada)
classe econômica.
Sair às ruas é, mais que um direito, um dever de todo e
qualquer cidadão que almeje mudanças. Mas ignorar a história e clamar por um
estado policial é o maior desrespeito que poderia haver contra a democracia e a
população brasileiras. Que me desculpem os castos e bem intencionados que
cerraram fileiras nos protestos, mas a essência da mensagem produzida pelos
eventos deste dia 15 é das mais elitistas e mesquinhas que se poderia obter. Se
o objetivo dos que protestam é aperfeiçoar o modelo democrático e exigir
respeito à Constituição, então mandaram muito mal, pois sectarismo não se
combate com sectarismo. A realidade, minha gente diferenciada, está bem além
daquilo que se pode ver pela tela de uma TV.