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segunda-feira, 31 de agosto de 2020

eu vou ficar nessa cidade

E o menino seguia na madrugada para a estação
puxado pelo laço dos dedos da tiavó

na linha reta da rua
                            iluminada pela lanterna
                            de seu pedro
                            (uma mão no foco
                             outra na cabeça com as malas)

no silêncio longo da calçada
                                        rimado com o galo
                                        de seu antônio
                                        (um animal que latia
                                        outro que miava nos muros)

no embarque no primeiro vagão
                                              sentado à janela
                                              de seu olhar
                                              (uma paisagem que sumia
                                              outra que chegava)

fortaleza seria logo ali
                            depois da bica do ipu
                            passando o arco de sobral
                            chegando nas bananeiras de caucaia

fortaleza seria logo além
                            da saudade do quintal de ibiapaba
                            da lembrança da cancela da fazenda
                            da memória da casa de oitão

fortaleza seria logo aquém
                            do meu pai que esperava
                            de minha mãe que guardava
                            do irmão que me olhava

a cidade grande faria o menino ficar espichado.
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Um fragmento do meu próximo livro, Trem da memória – um poema, quando o menino vai de vez do sertão para a capital.
prefácio Valdi Ferreira Lima
coordenação editorial Alan Mendonça
Editora Radiadora
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Um frame, granulado pela memória, do meu filme O último dia de sol, 1999.
foto Deise Jefinny

segunda-feira, 17 de agosto de 2020

consolo na praia - encontro e desencontro em agostos

O primeiro poema que li, ainda criança se alfabetizando, foi Mãos dadas, de Carlos Drummond de Andrade, publicado em O sentimento do mundo, de 1940. Desde então nunca mais larguei as mãos do poeta.

Quando publiquei meu primeiro livro, Roteiro dos pássaros, em 1981, coloquei versos de vários de seus poemas como epígrafes nos capítulos. Um ano depois, consegui o endereço de Drummond com o poeta amigo Marcio Catunda e enviei-lhe um exemplar.
Meses depois, em agosto de 1982, recebo um cartão-cartinha-cartografia afetiva, agradecendo-me o livro, elogiando meus poemas aprendizes, transcrevendo um verso que gostou, deixando-me em estado de pleno êxtase sereno. Outras trocas de correspondências, sempre sobre literatura, continuaram por um tempo. Da rua Conselheiro Lafaiete, em Copacabana, no Rio, para rua Barão de Aracati, na Praia de Iracema, em Fortaleza. E vice-versos em meu coração. Aquele que me inspirou e me guiou na poesia tornou-se meu missivista, e eu devotava-lhe todo o sentimento do mundo.
No começo de agosto de 1987 eu estava no Rio de Janeiro quando soube da morte de Maria Julieta, filha do poeta. Apegadíssimo a ela, a quem chamava de “meu melhor poema”, ao receber a notícia Drummond disse ao médico que o atendia: “Doutor, receite-me um infarto fulminante.”
Meu propósito de conhecê-lo pessoalmente, como estava se encaminhando naquela viagem, foi deixado de lado. O poeta em luto se recolhera, eu mais distante me guardei.
Na noite de 17 de agosto, colocando na mala uns exemplares de seus livros que levei para dedicatórias, ouço Cid Moreira anunciando a morte do poeta, vítima do que pediu ao médico na receita. Drummond foi ao encontro do "melhor poema" doze dias depois, aos 84 anos.
Restou-me, muito tempo passado, à falta de rima e solução, um encontro no banco do calçadão da praia, numa tarde também de agosto. Ficamos de mãos dadas. “O tempo é a minha matéria, o tempo presente", pareceu-me dizer, de costas para o mar, de frente para o mundo, vasto mundo.
Como ele escrevesse para mim num agosto em que nos encontramos em cartas, como eu pedisse a ele num agosto que não nos vimos em sua casa, ousei naquele dia uma colagem de versos de dois poemas, Consolo na praia e Poema da necessidade, que cabe neste agosto sombrio de 2020 em que sobrevivemos isolados em nossas casas.
Vamos, não chores.
À sombra do mundo errado
murmuraste um protesto tímido.
Mas virão outros.

É preciso viver com os homens,
é preciso não assassiná-los.

Algumas palavras duras,
em voz mansa, te golpearam.

Mas a vida não se perdeu.
Mas o coração continua.
É preciso salvar o país,
é preciso crer em Deus.

segunda-feira, 6 de janeiro de 2020

eu viajei de trem

Tudo foi tão de repente
diante dos meus olhos
que não houve tempo

para retornar ao corpo do menino
que brincava na calçada.


A memória viaja
- trem inútil -
e não traz as roupas
que se vestia nas tardes de domingo
e a estrada some
deixando o mundo
como um grande circo
na praça da estação.
(...)
Mas o menino sumiu:
foi embora como quem cresce
e silenciosamente
atravessou os trilhos noturnos
da ponte de ferro
sobre o rio poty
onde as águas são barrentas
e as lavadeiras tristes.

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- trecho inicial do meu próximo livro, ©Trem da memória - um poema
Textos de apresentação:
Mailson Furtado
Valdi Ferreira Lima
mais do que prefácios, duas viagens no trem, um em cada janela.

Editora Radiadora
Coordenação editorial: Alan Mendonça
Designer gráfico da capa: Enzo Venancio
Impressão e acabamento: Expressão Gráfica

foto ilustrativa desta postagem
Ailine Liefeld