quarta-feira, 8 de setembro de 2010

Decroissance


- Bom dia , Maria da luz !
- Alucinas ?! Achas que vou ter um bom dia sabendo o camarada Arnaldo Matos nos calabouços do COPCON ?!
- Mas não tinha sido libertado ontem ?...
- Mas foi preso outra vez por esses lacaios revisionistas a soldo do imperialismo soviético!
E lá seguia, brusca, azul, desenvolta, guerreira, linda. Uma tentação. Mas, com o espírito assoberbado por uma militância compulsiva na ala mais radical do MRPP, chegar à fala com ela era o cabo dos trabalhos.
- Maria da Luz, queres ir beber um cafézinho ?
- Esse hábito burguês que ignora a exploração do proletariado campesino pobre pelos grandes interesses do capitalismo agrário ianque ? Nem pensar !
- Não, Maria da Luz…este é do Nabeiro…vem de Espanha….de contrabando
…- Mas nem assim! E era uma pena. Ela bem tentava disfarçar a generosidade com que a natureza a tinha prendado. Usava uns trapos que eram o que de mais parecido devia haver com a indumentária dos guardas vermelhos. Mas perante aquela fluidez no andar nem a provecta idade do Mao ficaria indiferente. Acho que não houve adolescente daquele liceu a quem a Maria da Luz não tivesse povoado pelo menos uma insónia. Só que, a cores e ao vivo, népia, não havia registo do esboço de um sorriso que fosse, quanto mais do resto. Delicada como porcelana, Maria da Luz tinha pior feitio que o muro de Berlim e a muralha da China juntos, era duplamente intransponível. De modo que já me tinha conformado a alinhar no batalhão dos desistentes. Até que naquela manhã de Abril tudo mudou, como se fosse uma perestroika antecipada .

O “trinta cabelinhos” tinha pedido para depois da Páscoa um ensaio crítico sobre qualquer coisa. Como o tema era livre eu resolvi escolher a crítica à escola. Não foi uma escolha tão criativa quanto possam estar a pensar, confesso. Na verdade o que sucedeu é que fui procurar a nova edição do Asterix à Casa Inglesa, ali ao Largo do Dique, e junto à caixa estava aquele livrinho em francês que me chamou a atenção: “ Une societé sans ecole”. Dei uma vista rápida, estava cheio de ideias giras, achei óptimo, tipo papa feita, de modo que comprei, li em diagonal, traduzi, adaptei, resumi, e quando chegou a minha vez subi ao palanque e proclamei:

"A escola parece estar destinada a ser a igreja universal de nossa cultura em decadência."

Habitualmente alheada lá nos refundos da sala daquele mundo burguês que a enfastiava de morte, a Maria da Luz levantou os olhos. E á medida que eu prossegui debitando Illich ela começou a sorrir. Como era motivador aquele sorriso! De modo que redobrei na convicção, embora admirado por ainda haver prosa de pendor revolucionária desconhecida da Maria da Luz, que dominava de cima a baixo toda a retórica marxista-leninista, e respectivos anexos. Só mais tarde vim a saber que ela não lia estrangeiro. Ora Illich não estava traduzido. Sorte a minha. Não convenci o “trinta” com o plágio, mas a Maria da Luz foi sentar-se ao meu lado logo ao segundo tempo, na aula de biologia, dando inicio a um intimidade que durou tanto quanto o permitiu a obra publicada do austríaco, ou seja, até ao fim do ano lectivo.

Durante esse período, garanto que o Illich foi a única coisa que estudei. Tudo o resto, desde a matemática ao inglês, reproduzi de ouvido. Sobrecarregada pelos imperativos revolucionários, que não lhe deixavam tempo para mais nada, a Maria da Luz tinha acumulado um apetite voraz, e os meus desassete anitos só conseguiam dar conta do recado graças aos extensos intervalos que as discussões sobre o pensamento do Illich proporcionavam. Desde então criei uma dupla gratidão para toda a vida. Ao austríaco, por me ter facultado a senha de acesso a um jardim espectacular que de outra forma nunca teria visitado, e à dona do jardim, graças a quem li o Illich com um fervor que nunca mais dediquei a nenhum autor.

Como tudo na vida tem consequências, também esta experiencia deixou mazelas. Fiquei com enorme dificuldade em ler ou ouvir determinado tipo de criticas ao capitalista liberal e respectivas variantes sem perder a compostura, desmancho-me a rir. É que, dos ecologistas aos verdes, dos sustentáveis aos decrescentes, há quatro décadas que todos se atarefam em seguir-me as pisadas quando preparei a tal apresentação para filosofia: plagiam descaradamente o Iliich. No entanto duvido que o Tim Jackson, por exemplo, o tenha feito para merecer um sorriso da Maria da Luz, embora na verdade eu nunca mais tenha sabido dela. Depois das férias, quando voltei da campanha da cavala, ainda lhe telefonei. Eu ia mudar de poiso, ela possivelmente também e, sabia-se lá ?, podia ser que houvesse interesse na manutenção de certas pontes.
- Olá Maria da Luz !
- Olá. Diz .
- Olha, queres ir comer um sorvete à Praia da Rocha ?
- És parvo ? Sabes em que condições trabalham os operários das multinacionais que monopolizam a industria burguesa de lacticínios ? –
Abalroado, ainda manobrei de emergência na tentativa de mudar de bordo rapidamente.
- Olha, sabes, estive a ler uns textos interessantes ?
- De quem ?
- Henri Lefebvre…
- Já conheço. Não tem interesse. Adeus !
– E desligou ! Até hoje. Espero que ainda ande em busca de autores revolucionários desconhecidos capazes de lhe soltar aquele sorriso fantástico. Antes isso que ter descambado no ultra liberalismo do Durão ou no ressabiamento persecutório do Pacheco, ou da Morgado. Quanto ao Ivan Illich, encontrei-o por mero acaso uns anos depois, quem diria ! Ele dava uma conferência na velha Penn e eu andava perto de Filadélfia. Foi quando, 1988 ? Talvez, não interessa. O Possinger conhecia-o, soube do programa, convidou-me e lá fomos. No final apresentou-nos e eu aproveitei para agradecer-lhe - « Thank you ! ». O Illich correspondeu com um sorriso, deve ter ficado a pensar que tinha a ver com a palestra, mas estava enganado. O Jackson não sei se o conheceu pessoalmente, mas que diabo, bem que lhe podia ter-lhe deixado um " thank you" póstumo na nota de abertura desta pseudo-novidade que dá pelo titulo de "Prosperity without growth", pois lá por dentro o livro tresanda a razões para isso. E lá iremos.

4 comentários:

Anónimo disse...

Não vou dizer invejar vivências aqui descritas. Invejo sim forma como são descritas.

Muito gosto em voltar a lé-lo!

Cumprimentos.

Trigo Pereira

antonio ganhão disse...

Ai. Isto faz-me lembrar... bem agora não interessa nada.

Um belíssimo naco de prosa!

Anónimo disse...

Acabei ontem de ler o livro. É de leitura agradável, mas não me parece que deixe muitas saidas. De qq forma obg pela dica :)

Florbela

Lino Camacho disse...

Viva, Manuel Rocha !

Boa surpresa constactar o seu regresso à escrita, ao seu melhor estilo.
Fico na expectativa dos próximos episódios.

LC