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segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Novas Oportunidades

O Henrique Santos sugeriu-me a leitura do seu livro, “ Do tempo e da Paisagem – Manual para leitura de paisagens”. Já encomendei. A ideia é ajudar-me na dificil compreensão de problemáticas e conceitos que obviamente não domino. Estão em causa ideias de património, cultura, paisagem, conservação. E está visto que tirei mau proveito das lições e leituras de O Ribeiro, G R Telles, M Feio , C Carvalho, G Guerreiro. De resto, suponho que para os critérios em uso estes gajos já estejam ultrapassados. E eu também, naturalmente. Um dos aspectos em que melhor se revela esse meu desfasamento face à realidade corrente, é no mau hábito de detestar a mania de usar as mesmas palavras para exprimir coisas diferentes. Há conceitos que se revelam insuficientes, errados, inadequados, e por isso têm de ser alterados. É assim, as coisas mudam. Mas herdei daqueles fulanos que referi a ideia de que até esses só têm a ganhar com palavras novas, para melhor se distinguirem do eventual disparate. Dessa forma, diziam eles, evitavam-se diálogos de surdos, como este que ( aqui...caixa de comentários ) eu e o HPS protagonizamos.

Foram ainda aqueles "dinossauros", maioritariamente extintos, quem me chamou a atenção para o que consideravam dois erros comuns no que diz respeito á forma como nos referimos ao património. O primeiro é pensar que património é sobre natureza ou sobre edifícios, quando é sobre as pessoas e o que elas investem em si, na terra ou nos tijolos. O segundo, é pensar que património é sobre o passado quando é sobre o futuro, sobre o que ficará depois de nós desaparecermos.Dai derivava a distinção que me explicaram entre conservação e preservação. Disseram-me que a preservação visava impedir que as coisas acontecessem , e que a conservação ( coisa ainda mais antiga que a Reforma dos Graco ) tinha a ver com a gestão da mudança no sentido de permitir continuar a colher.


São noções deste tipo que me têm condicionado a reflexão. Por isso, quando ouço falar em politicas de conservação, só me faz sentido pensar nas couves no contexto das estratégias que permitam às pessoas continuar a colhe-las. Quando ouço falar em património, só me ocorre pensar naquilo que as pessoas têm produzido ( cultura - e tanto me faz se são Biblias, sinfonias ou lagares de azeite ) ao longo dos processos que empreenderam para se viabilizarem nos territórios que colonizaram. Estou convencido que Levi-Strauss, mesmo morto, ainda deve ficar de cabelos em pé de cada vez que se fala nesse contra-senso que se plasma na expressão de “património natural”. A melhoria das interacções das sociedades com o território, no sentido de fortalecer as dinâmicas de perenidade, não carece em nada que a natureza deixe de ser conceptualizada como sempre foi pela ecologia humana: como meio e recurso. Dizia-o o H Odum, outro dinossauro extinto, e eu, dinossauro desactualizado mas não extinto, até ver não encontrei abordagem que me fizesse melhor sentido.


Claro que tudo isto está prestes a mudar com a iminente chegada a esta casa da obra de HPS. Já abri na estante espaço para ela. Vai ficar entre o G. Hoyois e o Dolfuss, ao lado deixo o Zonneveld . Assim, se quiserem podem organizar-se para umas partidas de poker. Entretanto, na obvia falta de cv relevante ou de obra publicada capaz de recomendar a quem quer que seja, coisa facilmente constatadas pelo HPS ( e que qualquer aprendiz de mestre das nouvelle ciências de avant-garde como essa coisa extraordinária que dá pelo nome de biologia da conservação que me lesse estes dislates, corroboraria sem hesitações …. ) tudo o que me resta é procurar consolo nos escritos de velhos colegas de tarimba que pelos vistos, tal como eu, tb perceberam tudo mal. A d’Abreu e T Correia, por exemplo, produziram recentemente na UE por encomenda da DGOTDU, um trabalho que intitulam de “Identificação e caracterização de unidades de paisagem em Portugal”, em que definiam a paisagem nos seguintes termos: “ A paisagem é na generalidade do território europeu, uma paisagem cultural, expressão dos diversos recursos ( e condicionalismos, acrescento eu… ) naturais existentes mas tb d acção humana sobre esses recursos. A paisagem natural é aquela onde a articulação dos factores ao longo do tempo não foi afectada pela acção humana, o que é raro na Europa. De forma directa ou indirecta existe em todas as paisagens europeias algum impacte de acção humana."

O livro do HPS decerto será capaz de desmontar esta tese e evidenciar sem margem para dúvidas que as AP’s portuguesas são, não só paisagens naturais, como património natural, e que, por conseguinte, faz todo o sentido que a prioridade de conservação nesses territórios deva ir no sentido da biodiversidade, tarefa que cabe ao ICNB segundo os critérios do ICNB, e bitola pela qual se deverá medir a sua eficácia, goste-se ou não.

Com toda a legitimidade, o HPS acha que a melhor forma de promover as interacções conservacionistas que reclama para as agora designadas AP, é através da centralização da decisão politica a implementar. Talvez seja. Mas não deixa de ser uma situação irónica. Durante séculos, houve pessoas maioritariamente analfabetas que, à margem da civilização, à margem da ciência, das academias e dos seus lentes, desenvolveram estratégias de conservação que deram origem a paisagens tão ricas e a formas de habitar tão interessantes que, chegadas ao nosso tempo, toda a gente, arquitectos paisagistas incluídos, acham por bem valorizar. Mas ao mesmo tempo que lhes reconhecem o mérito, declaram os criadores dessas paisagens incompetentes para continuar a fazer o que sempre fizeram – conservá-las! Estranho ? Talvez não seja. Não o será seguramente se, além do mais, se estiver também a confundir conservação com preservação. Mas só o poderei afirmar depois de concluídas as leituras que agora tão gentilmente me recomendam. Embora dinossauro sem obra publicada que me atreava a recomendar, continuo aberto a novas oportunidades.

domingo, 19 de setembro de 2010

Uma Pocilga no Rossio




“… o post não é sobre quem está mal mude-se, é sobre as pessoas que querendo desenvolver uma actividade económica num sítio onde legalmente não podem (por exemplo, instalar uma pocilga no Rossio), usam esse facto para tentar obter vantagens em vez de fazer uma de duas opções: ou adaptar a sua actividade económica ao enquadramento legal existente; ou mudar para onde seja possível o desenvolvimento do que querem fazer da vida.”

Henrique Pereira dos Santos






O uso do argumento da “legalidade” para justificar um qualquer status quo, é uma das mais estafadas falácias de autoridade. A “legalidade” não é necessariamente boa, não é imutável, nem preexiste desde os princípios dos tempos. A legalidade é simplesmente a tentativa de circunstância de adaptar as regras ao tempo em nome de duma ideia de bem comum.

Outra falácia, desta vez de falso dilema, é usar o argumento do bem comum como se se tratasse de um único caminho, oposto ao do mal comum. Tal como o mal também o bem tem vários caminhos possíveis . Mas nenhum deles corresponde a um conceito com uma objectividade intemporal inquestionável que abarque simultaneamente o bem de todos e de cada um. O bem comum é apenas a narrativa que num determinado contexto social e politico reúne o consenso com poder bastante para impor a sua visão das coisas.

Ainda assim o processo politico para alcançar o bem comum raramente é linear. Mesmo quando o objectivo de bem comum venha a ser plenamente alcançado, isso não quer dizer que todos tenham sido beneficiados de igual modo e que nunca existam vitimas de percurso.

Um dos pilares da nossa ordenação social é a propriedade privada. Não comento se é um pilar bom ou mau, constato que existe. Facto. O valor da propriedade, como a terra, é determinado por factores objectivos e subjectivos, ou seja, pelo valor de uso e eventualmente por mais qualquer coisa eventualmente fortuita, como a vista de mar . Mudanças nas regras de uso do território, implicam mudanças nos processos pré-existentes de valoração da propriedade e por conseguinte afectam inevitavelmente a vida dos terratenentes. Uma barragem que transforme terras de sequeiro em regadio vai valorizá-las duplamente - potencia a produtividade, a rentabilidade, e consequentemente aumenta o valor de mercado. Do mesmo modo, uma regra de ordenamento impeditiva da construção excepto onde ela já exista, valoriza o pré-edificado. E valoriza-o duplamente se a regra se impõe em relação a um território onde a apetência para a edificação já existia. Facto. Se o meu sonho é construir uma casa de férias com vista de mar, é absolutamente diferente adquirir para o efeito um lote de terreno com vista de mar mas integrado numa urbanização, ou um prédio misto isolado numa AP do litoral . Obvio que neste caso tenho a manutenção da vista razoavelmente garantida, enquanto no primeiro estou dependente das particularidades dos projectos circundantes. E, claro, tudo isto se reflecte nos preços.

Para constatar que as coisas funcionam assim, não é preciso um estudo académico. Basta uma consulta ao cardápio da REMAX. Não foi por acaso que o preço médio do ha de sequeiro em Ferreira do Alentejo saltou seis degraus logo que se começaram a construir os adutores ao Alqueva.Como também não é por acaso que a REMAX não promove prédios rústicos no Portinho da Arrábida ou na Costa Vicentina. Dou de barato que a transposição de correlações para casualidades nem sempre é tão fácil. Mas não sejamos ingénuos. Qualquer intervenção sobre o território em contexto de propriedade privada da terra, é tudo o que se queira menos neutra. Altera os equilíbrios anteriores, produz mudança, e nas margens do processo acorrem beneficiados e prejudicados concretos. Seja o traçado de uma estrada ou a localização de um aeroporto, um perímetro de rega ou uma AP, qualquer dessas intervenções sobre o território constituem mudanças com impactos sobre a situação anterior. Será inevitável. O que não é inevitável é que se remeta esse tipo de fenómenos para a categoria dos azares do destino, como seria cair-me um raio em cima.

Posto isto passemos à magna questão da pocilga no Rossio, tentando comparar o que é comparável.

A possibilidade de construir pocilgas no Rossio está fora de questão há muito. Por isso a ideia só poderia ocorrer a um ET ou ao equivalente terráqueo capaz de qualquer coisa para aparecer no telejornal das 20. Para as pessoas normais, o simples enunciado dessa possibilidade numa discussão séria resume-se ao que é: um fait-divers pouco imaginativo inserido numa tipica falácia de derrapagem.

De facto a hipótese colocada nada tem a ver com o caso do rústico a quem de um dia para o outro informam que vai deixar de poder criar porcos e de fazer mais uma série de coisas onde sempre o tinha feito. Bem, os tempos mudam e as regras mudam. Muitas vezes essas mudanças são decidas por todos menos por aqueles a quem vão afectar diariamente, mas tudo bem, deixemos isso para outra discussão. Para esta, o ponto é que o gajo é casmurro e teima em querer continuar a viver ali mesmo depois de lhe terem inviabilizado o modo de vida a que estava habituado. Sugerir a este tipo concreto que se adapte ou então que se mude, terá que ter uma ponderação diferente de idêntica sugestão feita ao verde-urbano em fuga ao stress citadino que resolveu mudar-se para o sitio já na vigência das novas regras mas que não gosta de algumas delas. Além disso, ainda em relação aos que já lá estavam, mesmo dando de barato a bondade da sugestão, importa perceber que nem todos os criadores de porcos a quem as novas regras vieram mudar a vida têm as mesmas condições para realizar a adaptação ou a mudança sugeridas. Deu-se a circunstância de que uns tantos tinham construído uma pocilgas de taipa em vez de simplesmente deixarem as porcas parirem a campo. Ora como quem proibiu a criação de porcos não proibiu a reconversão das ditas pocilgas em versões várias de romantismo rústico para veraneio urbano, houve ex-suinicultores a quem saiu literalmente a lotaria, enquanto os outros ficaram agarrados ao cajado. Ou seja, enquanto os primeiros se quiserem podem abrir uma pizzaria no Rossio e mudar de vida por cima, aos restantes que também se queiram mudar resta-lhes oferecerem-se para empregados de limpeza da dita, mudando de vida por baixo.

As áreas protegidas não integrarão regulamentação que em si mesma se possa considerar mais ou menos promotora de desigualdades que outra regulamentação qualquer sobre o uso do território. Dou isso de barato. Mas as AP’s não foram classificadas ao acaso. Elas estabeleceram-se em contextos geográficos concretos cuja mais valia paisagística já existia e foi reconhecida. Além disso aconteceram num contexto de prosperidade económica concreto, propenso à valorização e à aquisição das “ultimas jóias”. Ou seja, a “promoção da desigualdade” não terá sido uma intensão ou um processo especifico das AP’s, mas não deixa por isso de ter sido particularmente acentuado nas suas áreas de influência, dadas as circunstancias concretas em que elas evoluíram.

É a esta situação concreta que me referia na resposta em que disse que as pessoas não se adaptam ou mudam como querem, mas como podem. Nada mais que isso. Sugerir o contrário é apenas um dislate infeliz a que nenhum de nós está imune.

domingo, 5 de setembro de 2010

Há Pobres e pobres ...

O basófia do Almerindo era daquele tipo de pessoa que todos os dias tinha uma razão de queixa qualquer. Ou doía-lhe as costas, ou tinha uma vaca doente, que chovia, que fazia sol, enfim, qualquer coisa era uma boa razão para clamar, barafustar. Naquela tarde domingueira deu-lhe para embirrar com os ricos, que eram uns palhaços, uns filhos da tal senhora e de um senhor com dores de testa crónicas, e mais isto, e também aquilo, e que o mundo havia de ser sempre a mesma merda, com os ricos de um lado e os pobres do outro.

Chagado a este ponto, o velho Rocha resolveu cortar-lhe o monólogo com um pergunta atirada lá do seu poiso habitual na ponta do balcão do café do Zé David , onde costumava inteirar-se do estado do mundo.

- Atão tu na gostavas de ser rique ?
- Omessa, Mestre Rocha ! Quem é que na gostava de ser rique ? !
- Atão já tás a ver como tavas a dizer disparates?…
- Por mom de quê , Mestre Rocha?!
– O velho Rocha dignou-se desencostar-se do balcão, endireitou as espáduas, virou-se, e rematou daquela forma indefensável que deixava em pânico quem quer que fosse que estivesse à baliza:
- Tá bom de ver que o mundo na se divide nada entre riques e pobres, criatura ! O mundo divide-se entre os que já são riques e os que na são mas querem ser, come é o té case !

Lembrei-me deste episódio a propósito de um grupo de pessoas genuínas e bem intencionadas que partilha na blogosfera o sonho de acabar com a pobreza . É um sonho bonito, simpático, daqueles que geram adesões espontâneas de todos os genes altruístas por mais recessivos que sejam. Por isso a abordagem critica deste sonho é uma tarefa antipática. Tenho-a adiado por isso mesmo. Mas como a minha intenção não é destruir o sonho, apenas questionar a utopia, aqui vai o meu contributo.

Pode-se definir a pobreza sem definir a riqueza ?Talvez não ! Onde não há termo de comparação a pobreza, isto é, viver com pouco, é a condição normal. No entanto, como a distribuição histórica dos bens raramente tem sido equitativa, o estado “normal” das sociedades é que coexistam uns poucos que têm muito e uns muitos que têm pouco . Mas basta isso para tipificar a pobreza ? Talvez não baste. Pode-se viver bem com pouco e mal com muito. È mais saudável ser magro ou obeso ? A resposta basta para ilustrar o meu ponto, que é a dificuldade de estabelecer uma grelha quantitativa, generalista, que enquadre a pobreza. Percebe-se isso nas várias tentativas de sistematização, como a deste post. A modernidade de consumo e abundância sente-se na necessidade de redefinir as fronteiras da pobreza porque as expectativas mudaram. Ser pobre deixou de ser tipificado pela capacidade de resolver as necessidades básicas, já não basta dizer que é viver com pouco, tem de se dizer também o que se entende por pouco. Quando há uns tempos um governo qualquer resolveu aumentar o abono de família em não seis quantos cêntimos, não faltaram os beneficiários disponíveis para declarar aos telejornais que isso “nem para as fraldas” dava. Quer dizer, ser pobre já não é andar de cu ao léu ou de camisas remendadas, mas não ter orçamento para fraldas descartáveis, pois as outras, as que se lavavam todos os dias, são vistas como…não sei como, sei que já ninguém as usa, nem ricos nem pobres.

Portanto, procura-se actualizar e incluir novas dimensões no conceito de pobreza. Mas a tentativa comete o pecadilho das fraldas: define as necessidades de acordo com um paradigma cujas fronteiras descolaram da utilidade das coisas e remete para o Estado abstracto a responsabilidade que é de todos e de cada um - fazer pela vida.

A moderna luta contra a pobreza tem por objectivo a equidade universal na abundância. Ainda que relativa, é de distribuir a abundância que se trata. A adquirida e a por adquirir. Cá por casa, o próprio PCP não se inibe de incluir o crescimento do PIB no seu discurso. Percebeu que o que há não basta para satisfazer as suas reivindicações de mais de tudo para os do costume e alinha com os outros na necessidade, não só de melhorar a distribuição, mas também de aumentar a riqueza. Mas esta riqueza que se infere tem pés de barro. Ela avalia-se segundo critérios monetários transitórios e obtém-se com soluções intensivas de aprovisionamento energético cuja durabilidade não está assegurada. Ou seja, a abundância que consideramos possível mas mal distribuída, não é real nem está garantida.

Quem gosta de angariar aderentes aos seus discursos incorporando na retórica as possibilidades de redistribuição do património concentrado nas mãos dos ricos, tende a esquecer que essa solução já foi ensaiada e que se saiba raramente correu bem. Entre nós o ultimo ensaio aconteceu no pós-74, por exemplo. Quem esteve atento percebeu que o património dos ricos só vale o que se apregoa quando há outros ricos para o comprar, mas o pessoal já se esqueceu disso. Quer dizer, não se vai longe redistribuindo fortunas. Coisas como iates nem para ir à pesca servem. E para os trocar por patacos, pois ou sobram ricos que paguem o que se convencionou que aquilo vale ou então não vale nada porque não serve para nada. Não se trata de pactuar com a amoralidade na obtenção ou na concentração da riqueza. Mas de reflectir que os luxos que pontuam na avaliação das fortunas são sobretudo coisas assim, inutilidades que criam a ilusão de prosperidade onde ela não existe.

Por outro lado, aquilo a que se convencionou chamar melhoria geral das condições de vida, ou seja, o acréscimo significativo de facilidades que se têm registado nas ultimas décadas na obtenção de bens e serviços, não está ligado ao desenvolvimento de uma capacidade efectiva e duradoura de colheita e distribuição desses bens. Está sim ligado a soluções de aprovisionamento e uso de energia que não são racionais nem definitivas. E a paradigmas macroeconómicos que semeiam dependências disfarçadas sob roupagens surrealistas de interdependências globais.

Quer dizer, abordar a questão da pobreza pelo lado da distribuição, talvez seja curto. Curto porque dá como adquirido o que se julga disponível sem cuidar de perceber se essa disponibilidade é real ou aparente, duradoura ou transitória, necessária, supérflua ou, simplesmente, inútil. Esta estreiteza de vistas pode ter a ver com outro género de pobreza essa sim deveras complicada, que é a cultural. A memória de saber viver no território que suportou a civilização que herdamos, tem vindo a degradar-se . Os arautos da mundividência criticam o provincianismo. Mas os Almerindos da pós modernidade já não são apenas ignorantes que querem ser ricos, são ignorantes letrados, impressionistas da vida. Eles sabem papaguear os problemas da fome em África, mas não são capazes de cultivar uma batata no quintal lá de casa. Ou seja, tal como certos luxos, têm mero valor decorativo, não servem para mais nada . E isso é pior que a pobreza, é uma miséria, porque revela falta de sabedoria para dar bom uso ao que se tem, seja pouco ou seja muito.

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

Teoria dos Erros

Tranquilos ! Não se segue nenhum prato pesado sobre filosofia da matemática. O tempo vai quente e as refeições querem-se leves. Portanto, vamos a uma recensão de lugares comuns sob a égide do erro.

Em comentários ao post anterior falou-se da dificuldade em assumirmos os erros. E eu fiquei a matutar sobre o que é isso dos erros. Pode dar-se o caso de usarmos o conceito de erro de formas perfeitamente abusivas. São muitas as expressões que incorporamos nos nossos raciocínios e nos nossos discursos sem nos darmos ao incómodo de nos determos sobre o seu significado. Sobram as ideias que adquirimos automaticamente. Esse pragmatismo é necessário mas pode redundar em leituras simplistas das coisas, e o conceito de erro é daqueles que se presta a isso.

Raramente separamos a noção de erro de um absoluto omnisciente, como se houvesse uma clarividência transcendente para aceder a tudo o que não se conhece ou ainda não aconteceu. No entanto o erro define-se em relação a uma convenção ou a uma norma, que são coisas mais que terrenas, elas mesmas sujeitas a erro. Daí que seria prudente não separar a ideia de certo ou errado da nossa inteligência das coisas e das limitações que estão sempre associadas a esses processos. A nossa compreensão do mundo e de nós mesmos, é apenas a que é possível. E o erro, mais que uma consequência de uma compreensão imperfeita ou de uma prática incorrecta, é um ingrediente da vida.

Eventualmente, viver-se-ia melhor aprendendo a incorporar os erros nos nossos processos que procurando evitá-los. É que os erros que se cometem na vida não são do mesmo tipo de erro grosseiro que se pode cometer num procedimento químico sobejamente conhecido. Se as mulheres fossem água e os homens ácido sulfúrico, só cometia erros de diluição quem quisesse. O protocolo de diluição do ácido sulfúrico está bem estabelecido. Recomenda que se deve adicionar sempre o ácido à agua e lentamente. Inúmeras experiencias realizadas já demonstraram à saciedade que o contrário explode aquela merda toda nas trombas do criativo. Mas como as pessoas não têm as propriedades químicas e a previsibilidade do comportamento dos ácidos e das bases, é frequente que das respectivas misturas resultem reacções imprevistas. Talvez seja essa a chave para a compreensão da diversidade da vida. Mas temos o mau hábito de valorizar as experiencias bem sucedidas sem reflectir que por cada sucesso alcançado se cometeram carradas de erros. E esquecendo que para empreender pelo desconhecido é preciso algum atrevimento. O atrevimento é o motor da mudança. E o erro é inerente aos processos de quem se atreve.

Portanto, quem é que errou ? A Felismina, que ainda não percebeu qual o papel do sonho na vida? Errou a vida que tem o hábito de se apresentar como um sonho ? Ou errei eu, que já na altura tinha a mania de que o que não calamos é o que melhor nos define ? Errou a minha parceira de deambulações pelas estradas toscanas por só me ter dito que era casada muitos dias depois daquele primeiro abraço que nos demos numa ruela de Orino? Ou errei eu, que acho que não tenho nada a ver com isso ? Se tivesse sabido que ela era casada, que devia eu ter feito ? Fugia, para prevenir posteriores acusações de responsabilidade num processo de divórcio ? Ou pedia uma batina emprestada ao vigário de serviço e assumia-me como paladino do mandamento segundo o qual não posso cobiçar nem perlimpimpar a mulher do próximo, mesmo que ela obviamente me cobice e me queira perlimpimpar a mim e eu não tenha das mulheres o conceito de propriedade do próximo nem conheça o gajo de lado nenhum ?

Assumir os erros ? Sim, mas desde que não se atribua aos erros uma importância que não têm. Sobreavaliados, os erros fazem dos medos cobardias paralisantes, alimentando a crença insana de que a vida é um projecto que é possível executar com a perfeição dos santos. A procura da perfeição é legitima. Mas só me parece saudável se tivermos claro que é duma utopia que se trata. Quem não percebe isso faz da vida uma contrição permanente. Por mim, basta-me colher o que semeio e não fugir da merda que faço. Limpo a que posso, meto o resto na compostagem e é com isso que fertilizo a horta onde irão germinar com todas as imperfeições inevitáveis os dias que ainda estão para me acontecer. Mesmo sabendo que errei, só me arrependo do que não vivi. Quer dizer, prefiro os atrevidos, mesmo que revelem dificuldades em se assumir. Lamento é os idealistas que se deixam aprisionar pelo que “podia ter sido se….”. Esses, como a Felismina, fazem-me pena, pois disfarçam a falta de rasgo numa espécie de masoquismo penitente que é imagem de marca de todas as malfadadas “vitimas do destino”.

segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Bodes Expiatórios

Os antigos que habitam as serranias algarvias mantêm o hábito de informar que “foram ao Algarve” de cada vez que se deslocam ao litoral. Tomo-lhes a tradição de empréstimo para que se perceba que fui ao Algarve, sim senhor, teve de ser. É raro, no verão até pago para evitar a dose, mas aquela repartição não aceita procuradores, tem de ser o próprio, teve de ser.

Estava então eu no Algarve de senha na mão na expectativa de ser atendido, quando da ré por estibordo me chegou um inesperado interpelo:
- Rocha ?!
Virei a proa e liguei o histórico da base de dados fisionómicos. Como era cedo a ligação estava rápida, e aqueles olhos pretos como azeitonas ajudaram ao reconhecimento da colega de liceu que não via… desde que o acabei ! A minha base de dados, no entanto, tem um problema : não está etiquetada. Reconhecer caras é fácil: a legenda com o nome é que ainda está em arquivo de papel. Mas como já levo certa prática, normalmente consigo aguentar a conversa até chegar lá.
- Oláá !!! Estás boa ??
- Então não vês ? Estou velha ! Tu é que estás na mesma !!
Sempre que me dizem isto tenho de me conter. É que há uns anos sai-me com essa e lixei-me. Era um professor que já não via ia para mais de uma década, com quem ia partilhar a mesa de um seminário.
- Mas que gosto em vé-lo !! O professor está na mesma ! - Aí ele puxou-me à parte e confidenciou-me num registo sacanóide que lhe era muito próprio.
- Dizes isso porque não dormes todas as noites comigo
Ficava mal ter respondido o mesmo à Felismina. Isso , Felismina, descobri a etiqueta. Portanto contive-me e segui o guião da praxe, já com as legendas a funcionar.
- Então, Felismina. Que é feito de ti ?
- Olha, agora estou de férias…
- Mas estás cá de férias ou …
- Não, não, moro e trabalho cá, sou professora no nosso antigo liceu, professora de matemática…por tua culpa !
?!

Faço um resumo senão ficámos aqui o resto do mês.
Éramos finalistas e a Felismina queria ir para medicina. Medicina na altura já requeria médias altas e á Felismina ainda faltavam uns trocos para chegar à que precisava. Andava a negociar caso a caso esses arredondamentos e pelos vistos as coisas até não lhe estavam a correr mal. O professor de biologia é que pelos vistos destoou. Em lugar de lhe dar ou negar o bónus que ela pedia e calar-se, resolveu colocar o caso à consideração da turma, imagine-se ! Estávamos em 75 e instalava-se um hábito estranho de desresponsabilização colectiva a que alguns ainda chamam democracia. Ao tempo eu já tinha o mau hábito de dizer o que pensava. Não tinha a experiencia dos efeitos desse género de atitude que hoje tenho, mas o hábito já lá estava. De forma que não me inibi de dar o meu contributo para aquele pusilânime processo de decisão, alegando que se íamos ter notas a pedido talvez fosse preferível perguntar a cada um a nota que queria para si em lugar de perguntar a todos que nota é que devia ter a Felismina. A Josefina, por exemplo, tb precisava de um empurrão para entrar no magistério. Mas como era um inibido pãozinho sem sal nem graça, nem se atrevia a pensar em semelhantes negociações, portanto, para que ali não houvesse filhos de deuses menores…. Na turma ouviu-se um murmurinho de aprovação. Mais ninguém falou, o professor resolveu não dar à Felismina o bónus de 3 valores que ela pretendia, e ela hoje é uma frustrada professora de matemática…por minha culpa !!

De regresso ao meu eremitério, ocupei os quilómetros tentando recapitular que outras culpas do género posso ter por ai escramalhadas. E fiquei preocupado, confesso. Ponham-se no meu lugar e imaginem que daqui por uns anos eu reencontro num voo transatlântico a companheira de esperas de ligações pelas estradas toscanas, de quem vos falei no post anterior .
- Manoele !!
- Helloooo !!!
- E enquanto lhe procuro o nome no tal arquivo que se calhar nunca hei-de carregar, largo a pergunta de circunstância - How is life ??
- …Not so well !!... I’m divorced now…because of you !
- ?!

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

O Poder dos Mídia


A insónia instalou-se quando a exótica passageira do lado trocou a almofadinha da British Airways pelo meu ombro. Agora ajeita-se. No processo requisita-me também o braço direito e inunda-me de cheiros a ervas frescas. Conformo-me. Com o braço que sobra, envio um aceno de socorro à solicita assistente de bordo. Ela consegue-me some portuguese newspapers disponibilizados com um acent tão irish quanto o sorriso. São da semana passada mas que se lixe. Qualquer coisa é bem vinda para me distrair a noite do consistente ronronar morninho da sedosa desconhecida que já me dorme literalmente ao colo.

Há meses que não sei noticias da terra. Mas pelo que a mão esquerda vai folheando, pouca coisa mudou nesta ausência. Entre polvos de faces por descobrir e revisões constitucionais por acontecer, o essencial permanece. E o essencial são as incontornáveis prosas dos opinantes articulistas regimentais. Quais pilares do edifício luso, eles dão provas de resistência a qualquer alteração climática. São homens e mulheres que nunca têm dúvidas e que nunca se enganam, autênticos gauleses desta pós-modernidade, irredutíveis na forma como se batem contra qualquer arroto que a ética possa libertar.

Com uma criatividade mais assertiva que poção mágica, fazem noticia sobre o que não aconteceu… mas podia ter acontecido. Isto não é jornalismo, senhores, é arte ! E eu dou graças a tais artistas. Bem hajam! São eles quem me ajuda a fazer de conta que ignoro as deambulações das mãos da minha vizinha, que há dez minutos me percorrem sonolentas sem se aperceberem por onde andam, as malvadas. Exímio na arte de instrução, julgamento e condenação em processo sumaríssimo do mais pintado, o jornalista luso nada perdoa. O Sócrates é mentiroso, o Cruz pedófilo , o Lima assassino.
- Se foi o ultimo a vé-la com vida…
- Ah sim ? Por isso ?! Quer dizer que têm a certeza que foi o ultimo ?
- Bem, a autopsia não foi conclusiva…. Mas no Brasil encomendar um serviço é barato, portanto ?…
- Portanto ?! E por que não eu o mandante, pá ? Sabias que o meu sonho era engatar uma velha herdeira para o golpe do baú e depois despachá-la?

O formato tablóide que contaminou a comunicação, é como uma inundação de falta de carácter, que alastra com uma virulência superior a todas as gripes conhecidas e por inventar. Nenhum agente se revela tão bom vector da mediocridade como o mau jornalismo. Foi ele que consagrou o principio de que todos somos culpados de qualquer coisa até prova em contrário. E insinuar essa culpa primordial é o fim que justifica todos os meios. Indigno-me, agito-me, incomodo a minha vizinha e ela muda de posição. Sorte madrasta ! Chega-se ainda mais e no processo abre-se-lhe outro botão do camiseiro. Esta é daquelas para quem as copas da Triumph são um acessório inútil, e eu já não sei onde me meter. Pena não ter por aqui o contacto de um destes jornalistas que sabem tudo e têm solução para tudo. Mas por que raios não se acaba com políticos, economistas, magistrados ou juízes, se temos jornalistas mais sábios e capazes que qualquer deles ?? Tento concentrar-me nesta tese mas não há condições. Salva-me a voz do comandante a avisar a malta da iminência da descida para Roma. A vizinha acorda, lânguida, demorada nos sorrisos:
- Did I behave ?
- Believe me : you don’t want to know !

Ela olha-me, ainda demorada. Não sei se pondera a resposta se simplesmente a procura nos refundos do saco onde lhe desapareceu o braço, sem que o olhar se desvie . No espacinho entre a dúvida minha e a resposta dela, quem se desviou foram os meus olhos, teve de ser, pois reparo num identity press card que veio à tona, e onde aquele mesmo sorriso exótico pontuava lado a lado com uma sigla da BBC.
- But I do want to know.
E que lhe hei-de eu responder se ela é das que quer saber tudo, se me sorri com tudo, se até já sabe que perdemos o voo de ligação e que temos vinte longas horas para resolver pelo cafés di Roma ? Vinte ! Eram vinte e podiam ter sido longas, pois podiam, mas acabam por se passar tão depressa que falhamos completamente o voo seguinte, quer dizer, nem tentamos lá chegar, pois já era week-end, Roma estava caldissima, e ela achou que a Toscânia devia estar mais fresca, e agora fala-me de latadas verdes e de rosés de torpor, fala-me disso com sorrisos corados de frescura enquanto eu desatino com a falta da segunda na caixa marada deste restyling do Fiat Cinquecento da Destinia Car-Rental. Subimos para Orino, eu praguejo, ela ri, e quando se ri agita-se-lhe o decote onde as copas seriam ofensas, sobe-lhe a saia sobre as coxas para onde não posso olhar, atento às curvas, à segunda, ao ponteiro da temperatura a subir para o vermelho, espantado com a ideia absurda de ainda haver quem duvide do poder dos mídia.

sexta-feira, 12 de junho de 2009

O Provincianismo é Fodido !


Como já reparou quem tem tido pachorra para me ler as divagações, a forma como tendemos a estar no território sem o perceber é um tema em que reincido com frequência. Não o faço por predilecção, mas por decepção. De facto, o que me faz regressar a ele é apenas o profundo desgosto que me causa esta deriva de género que uso apelidar de “provincianismo invertido” e que considero um dos sérios revezes culturais do nosso tempo.

Digo revés no sentido de desastre, de perda de capacidade de entendimento do que nos rodeia e por isso de retrocesso na nossa capacidade de sonhar avanços com sentido para a nossa humanidadezinha. E digo provincianismo invertido por analogia à forma como o definiu Pessoa: “ O síndroma provinciano compreende, pelo menos, três sintomas flagrantes: o entusiasmo e admiração pelos grandes meios e pelas grandes cidades; o entusiasmo e admiração pelo progresso e pela modernidade; e, na esfera mental superior, a incapacidade de ironia.” Ora desta vez o entusiasmo, a admiração, o pasmo, de que falava Pessoa, viraram-se para o campo e para as suas supostas virtudes bucólicas, num movimento mimético de adesão inconsciente e feliz revelador da mais completa incapacidade de o entender.

Nem sempre me é fácil explicar isto. Na dificuldade valem-me os amigos, que são uma fonte inesgotável de inspiração motivadora. Hoje, inadvertidamente, coube a vez à Blonde, cuja odisseia de fim de semana, descrita com a magistralidade que lhe é peculiar, teve por resultado a produção quase automática desta crónica. Na verdade, seguir o percurso e a estadia da Blonde em terras do Alto Alentejo, foi para mim um revigorante exercício de espanto perante a sofisticação cultural a que chegou a nossa incapacidade de ver para além do olhar.

Claro que as generalizações valem o que valem. Mas quando é da Blonde que se fala o caso muda de figura porque esta Blonde que me inspira não é uma loura qualquer. È uma Mulher sensível, culta, cosmopolita. No entanto, estas qualidades que são fáceis de lhe reconhecer, não bastaram para que o seu sentido urbano de observação do território por onde transita se revelasse capaz de sintonizar uma “estação” para o interpretar para além do caricato dos acidentes de percurso. E é por isso que me atrevo a generalizar este estádio cultural, pois se para a Blonde as coisas são assim, como podem deixar de o ser para esta sociedade culturalmente, essencialmente, urbana ?

De facto a Blonde, a mesmíssima Blonde que vai a Gizé admirar-se com as pirâmides dos Faraós, transita a caminho de Alter por uma extraordinária ponte romana arquitectada e construída num tempo em que ninguém sonhava com as tonelagens que ainda iria ter suportar dois mil anos depois, e dela só nos deixa palavras de espanto para a largura da dita : “é estreita”, diz ! Nada refere sobre as soluções de arquitectura e de engenharia que ainda a tornam útil nem sobre a filosofia de vida que a construiu e em que a noção de património subjugava a transitoriedade da forma à perenidade da função. Nada diz sobre o carácter estruturante daquela ponte em relação ao conceito de território no tempo em que foi edificada e á forma como “moldou” até aos nossos dias a humanização da bacia hidrográfica do Sor e do Raia. Aliás, a Blonde achou mesmo que a ponte ficava no “meio de nenhures”. Ou seja, a Blonde assustou-se com a estreiteza da ponte de Vila Formosa e com a eventualidade de nela se cruzar com um TIR e, atenta a essa eventualidade, nem sequer repara se a Ribeira de Seda leva muita ou pouca água. Não compara o caudal com nada porque não tem termo de comparação, claro. Mas para além disso também não partilha connosco um único pensamento divagante em redor de eventuais preocupações de pecuaristas que a jusante ou a montante já possam andar a deitar contas à vida quanto à forma de dar de beber ao gado quando Agosto chegar, pois estas coisas não se “vêem” e portanto não se comentam. Mas o mau gosto da estátua ao Alter Real sim, vê-se e comenta-se, embora não se “veja” mais nada, como a ocupação urbanística a que foram votados os melhores solos de Alter, por sinal os terrenos do Ferragial d’el Rei ( “ferragial” não tem a ver com ferro mas com forragem; “Ferragial d’el Rei ” eram os terrenos reservados à produção dos ferrejos, i.é, de forragens verdes, para os cavalos da coudelaria que D José mandou instalar em Alter ), onde a tal rotunda está implantada entre blocos de apartamentos e um estádio de futebol. A Blonde clama contra a chuva de Junho porque lhe estraga o programa hortícola e não compaginava com a indumentária seleccionada, mas não tem uma linha para os milhares de toneladas de fenos já encordoados ou enfardados que com essas chuvadas se estragam a eito, daí não deriva para as inevitáveis dificuldades na manutenção dos merinos dos Zés quando os restolhos terminarem e se os apriscos tardarem, nem a preocupa as sequelas de míldios que vão tirar o sono aos viticultores nos dias que se vão seguir a estes incidentes climatéricos. Observa a Blonde que não há o Expresso nem o Sol nos quiosques de Alter ( haverá, mas de encomenda ),mas não repara que além disso também não há comércio tradicional na Vila e que nas prateleiras de frutas e legumes da mini-grande-superfície que os sufocou, apenas as cerejas e as laranjas são de Portugal, e estão lado a lado, em Alter-do-Chão, imagine-se, com peras da China, maçãs do Chile, kiwis neo-zelandeses , papaias cubanas, bananas do Equador, cebolas espanholas , alhos duplamente franceses e, the last but not the least, com carne de borrego autraliana posta cá a preços com os quais só por milagre o Zé poderá competir se quiser amortizar o custo do ovil que traz em obra.

Para o estereótipo de uma certa forma de ( não ) ver que aqui tipifico na leitura do texto da Blonde, a ruralidade é também a antítese do stress e o sinónimo “ferpeito” de “colidade” de vida. Claro!!! Quem é que no seu perfeito juízo pode ter uma crise depressiva por ver meses de trabalho e toneladas de feno a apodrecer com uma chuvada tardia ? Como é que se pode reagir perante uma infestação de carraças em quatrocentas vacas senão com uma calma olímpica ? Melhor ainda, como é que se pode perder a calma se, ao mesmo tempo que se tem de passar quatrocentas vacas à manga para serem inspeccionadas pelo INGA, o motor de rega do pivot resolve pifar e entre reparações que se atrasaram e calores que se adiantaram se perderam vinte hectares de milho já germinado ? O preço dos borregos ou dos vitelos caiu para metade no leilão de Portalegre e a receita não vai dar para as rações quanto mais para a reforma da letra que se vence na próxima semana, mas quem é que vai estar a pensar nisso quando acorda rodeado do chilreado de mil avezinhas ?

Esta leitura desfocada do real que tem por protagonista uma urbana erudita, não encontra contudo o seu oposto na “ruralidade” de Cabeço de Vide, esclareça-se. De facto também ela está imbuída do mesmo tipo de provincianismo invertido. Ele instalou-se quando a agricultura deixou de ser um modo de vida ou, se preferirem, uma filosofia do território, para se transformar em mera dinâmica de relações comerciais determinada pelo mercado e por um paradigma agro- industrial de indução externa. Desde que começou a produzir para o mercado, ao agricultor da modernidade do Alto Alentejo tanto se lhe dá se cultiva trigo para fazer pão, girassol para biodiesel ou linho para subsidio. O que lhe importa é a margem, e de preferência margem bastante para lhe permitir ir recuperar de tanta “calmaria” num resort de apartamentos em Armação de Pera. Poderá não ser o caso da Zana e do Zé, mas não é a chegada de duas andorinhas que traz de volta a Primavera. E isto basicamente só mostra que, com ou sem avezinhas ao acordar, andamos todos ao mesmo, quer dizer, a reboque de paradigmas que outros construíram e que nós, uns duma maneira, outros de outra, admiramos pasmados sem nos darmos ao cuidado de lhes entender a adequação ou o sentido. É isto que me leva a dizer que há coisas bem mais fodidas que o amor. E esta forma invertida de provincianismo é uma delas.

sábado, 16 de maio de 2009

O Diabo é o Aborrecimento !


A frase que dá o mote a esta faena é de Peter Brook, um encenador que odeia sentir-se aborrecido quando vai ao teatro. Tomo-a de empréstimo para fazer da vida em sociedade, tal como a vamos vivendo, uma leitura que pretende interpretar o aborrecimento que a inquina como força diabólica capaz de infernizar a vida quando na verdade é o paraíso que se procura.

Na defesa deste “caso” direi que me dá a sensação de transitarmos numa sociedade que se estrutura aborrecida em fuga ao aborrecimento. Acrescento que, bem no fundo, nos vejo como gente que julgando ter resolvido o básico se confronta, aborrecida, com vazios que tenta preencher num universo paralelo. Este universo paralelo poderia descreve-lo metaforicamente como um oceano de expectativas. Um oceano de expectativas que tem sido alimentado pela industria de sonhar em que desaguou a revolução industrial. Rodando em turnos contínuos, há décadas que as máquinas de marketing dos empórios da modernidade não param de, metodicamente, produzir sonhos. Uma prática de produção em série que decorre em duas linhas de montagem paralelas mas distintas. Numa, fabricam-se os modelos de sonho topo de gama, exclusivos, que depois se vendem nas lojas de marca e se usam como símbolo de status ; na outra, as respectiva variantes utilitárias, populares e democratizadas, made in China, vendidos aos sábados nas tendas da feira de Algés e usados como status de imitação. Do sonho como peça artesanal, nem rasto. A verdade é que até os sonhos se standarizaram e aderiram ao main-stream que passa. Por isso são cada vez menos os que ousam sonhar à margem da rapaziada que procura a felicidade nas profissões e carreiras de referência para o sonho do “sucesso”, nas lojas Cerrutti, nos destinos exóticos, nos carros topo de gama, nos apartamentos com vista para…Para onde mesmo ??

Mas deve haver algo no paradigma que o auto-consome. Porque na verdade não se nota que as pessoas sejam mais felizes. O que se nota, sim. é que andam profundamente aborrecidas por não conseguirem lidar com tanta expectativa. À chatice do emprego, onde as expectativas de ordenado ou de progressão andam sempre aquém do merecido, segue-se a chatice da família, onde putos a mais, avós a menos, contas a mais ou férias a menos, infernizam a vida no apartamento com vista para o que devia ser o paraíso, mas que já não é, porque entretanto alguém pariu aquele mamarracho mesmo em frente da panorâmica da sala-de-estar, que grande aborrecimento. Para fugir deste ciclo infernal organizam-se fins-de-semana em turismo rural, com os amigos e os filhos dos amigos, que chatice, pois entretanto os amigos tinham-se zangado com os avós dos netos e não houve onde os depositar.… Não bastando, chovia ! No campo também chove nos fins-de-semana, imagine-se ! E como choveu, não houve actividades. Que graça tem jogar paint-ball, fazer traking, bikling, canoing, para-pente ou para-dente à chuva ?…Faz-se então o quê, se nem revistas há para ler ou TV-Cabo para passar o tempo, mas apenas livros, só livros, que seeeca! Ir observar plantas, pássaros, vacas, ovelhas ? Bem, se ainda fosse qualquer coisa exótica, sei lá, zemas, pamas, lebras, fandas, ou algo do género...Então aproveita-se uma aberta e organiza-se uma excursão ao zoomarine, esse equipamento de educação ambiental onde sempre se podem ver coisas verdadeiramente exóticas e educativas, como leões marinhos a bater barbatanas e catatuas a andar de bicicleta. Na verdade o zoomarine é o tipo de coisa que personifica a diabólica capacidade do aborrecimento para gerar equipamentos anti-aborrecimento. Mas acabou por ser aborrecido porque havia imeeensa gente ! O mesmo aconteceu no restaurante que o Expresso recomendava, por sinal um italiano. Os restaurantes italianos ou japoneses ou chineses, são outra modalidade de anti-aborrecimento. Pode não se comer melhor que noutros mas isso não interessa porque a decoração é menos aborrecida. E era giro, de facto, tinha imeeenso artesanato marroquino, pena que tenha acabado por ser também aborrecido porque o serviço demorou imeeenso e não havia actividades para as crianças.

Portanto o aborrecimento inspira o diabo. Diabólico como é, o diabo inspira o anti-aborrecimento e põe meio mundo a congeminar maneira de viver à custa do aborrecimento da outra metade. Isto alternadamente, esclareça-se. E já não se trata apenas de decorar o jardim da vivenda com as águias do Benfica ou o portão do quintal com os leões do Sporting, e assim passar de forma menos aborrecida as tardes da merecida reforma de funcionário público jubilado, tentando ficar para a história como o Gaudi da Malveira. O anti-aborrecimento institucionalizou-se e é coisa séria mesmo, género parques temáticos pré-pagos onde se macaqueia menires e antas, onde se dorme em cabanas celtas e se toma o pequeno almoço em tendas de supostas feiras medievais. Eu conheço mesmo um gajo que se especializou e ganha a vida a fazer de pedinte medieval que sai de dentro de um pote nessas ocasiões. E tudo isto no que sobra de uma antiga quinta dentro de um parque natural, outra coisa que foi criada para tornar o contacto com a natureza menos aborrecido.

No entanto, passado o efeito da novidade, em que toda a gente, animados e animadores, alardeiam contentamentos postiços, o aborrecimento volta em força e ataca por igual os que já andavam aborrecidos, pois talvez seja essa a condição de quem acha genuinamente que nunca terá o bastante de nada e por isso quer tudo mesmo que não saiba exactamente o quê, mas também os outros, que se propunham anti-aborrecer, pois depressa concluem que não há pachorra! É que quem procura alternativas ao aborrecimento quer coisas de "colidade", sei lá… Por exemplo, onde já se viu uma cabana celta sem ar condicionado ou uma tenda medieva sem máquina expresso ?! Imaginam o possidónio ?

Ridículo ? Nada disso ! Civilizacional , apenas. Um ambiente cultural que funciona num limbo estranho sem perceber muito bem o que está em causa e que a barbárie espreita na outra página. Duvidam ? Entrem na internet e procurem contactar alguém na corte de Cleópatra ou algum patrício da Roma de César. Depois falamos. E desculpem se os aborreci.

quinta-feira, 4 de setembro de 2008

Os cães e as trelas

Eu não sei, Joshua, por que sofrem ao certo o Marques ou o Pinto quando lêem os jornais. Mas posso dizer-te por que sofro eu. O caso é que cresci entre pessoas que me fizeram olhar para o jornalismo como um pilar da res-pública, a um tempo meio de informação e de formação, cultor da pluralidade, do sentido critico, do espírito cívico que são essenciais à vivência e ao progresso em contexto democrático. Mas o jornalismo como nobre arte de cultivar cidadania, deu lugar a um exercício de mercantilismo sem alma, pátria, ética ou honra, e não consegues demonstrar-me, Joshua, que exista alternativa para esse espaço porque não há.

Grupos de pessoas podem efectivamente exercer o seu direito à recusa. Mas se não compram os jornais, nem vêm a tv, também não é na blogosfera que vão encontrar a alternativa para se posicionarem no Mundo se não estiverem munidas dos necessários filtros e descodificadores que, como sabes, não são fornecidos como equipamento de série, sendo precisamente essa uma das mais –valias esperadas do bom jornalismo: ajudar a entender o que não é imediato.

Na realidade, Joshua, os bloguistas não são amadores da informação, mas da opinião, e como tal limitam-se a replicar, quais ecos, as opiniões mediadas pelos profissionais da pinocada opinativa que tomaram de assalto o espaço que devia pertencer à informação.. Sem uma agenda autónoma e muitas vezes sem capacidade de construí-la sob um formato de divulgação que lhe potencie o acesso, não é raro que os blogues se publiquem num registo de narciso para outros narcisos, círculos concêntricos de afinidades ocasionais orbitados por alguns metabolismos reduzidos que têm por hábito fazer prova de vida neuronal papagueando no intervalo para o café o “pensamento do dia” produzido na véspera pela cabeça alheia de referência.. Por isso também não é raro que a blogosfera me faça sofrer como um cão quando a atravesso com a sensação de transitar em território de uivos marginais reservado a cães-sofredores, mas nem todos cães vadios e menos ainda vadios por opção.

É que, repara Joshua, nem todos os cães sofrem pela relação que têm, tiveram, ou sonham vir a ter com os donos. Há alguns, embora poucos, que sofrem apenas por verem tantos cães felizes por usar trela ou infelizes pela falta dela. Esses são os mastins, verdadeiros marginais do mundo canino, autênticos malteses, cães sem dono, e já rareiam porque não reconhecem alfas nem se adaptam ao oportunismo funcional das alcateias. Têm o hábito instintivo de defender rebanhos, é verdade, mas isso não quer dizer que convivam pacificamente com o espírito ovino nem com a obsessão controladora dos border-coolies regimentais que ao assobio dos média conduzem e mantêm o gado dentro dos cercados ideológicos que os grandes predadores concebem.

Ora não há mastim que se preze a quem não se erice o pélo quando entra nos redis escolares e se apercebe da forma como as trelas do aquecimento global, das energias alternativas, das agriculturas biológicas, do crescimento económico, da demografia, ou de qualquer outra magnifica mistificação mediática do nosso tempo, são colocadas em redor dos pescoços das criancinhas por diligentes professores que as bebem acriticamente da incompetência informativa e da má-fé catastrofista da National Geografic ou de outro empório mediático qualquer. Não há mastim que se digne que não sofra quando princípios que deviam ser sagrados, como a presunção da inocência até trânsito em julgado, são arrasados pela mesquinhez saloia dos opinadores descendentes dos públicos das fogueiras inquisitoriais com argumentos de lógica peregrina: “ se não foi julgado não se pode dizer que seja inocente” ! Formidável ! Tão criativo que na manhã seguinte até o meu barbeiro se questionava se não deveria ele próprio requerer um julgamento preventivo ! É que se o vizinho, com quem tem uma antiga desavença de partilhas, resolve um dia e por vingança pagar quinhentos euros ao prostituto da terra para jurar em tribunal que ele, barbeiro, lhe teria ido ao cu dias antes de atingir a maioridade, seria de toda a utilidade obter por antecipação uma sentença de inocência de pedofilia, não ??

Portanto Joshua, o que me faz sofrer que nem cão, é esta forma de se estar sob a permanente ditadura duma realidade construída por medida para servir de suporte publicitário. À semana das vacas loucas, segue-se a da gripe das aves, fica-se a saber essa "coisa" incontornável de que a gaivota encontrada morta na Praia de Leça afinal não estava contaminada (?!), e passa-se à semana da insegurança, ao trimestre da Maddie, às colagens de evidente má-fé que do nada originaram uma crise olímpica, quando não acontece nada afinal era o silêncio da líder da oposição que acontecia entre a expectativa de uma tempestade do século que nunca foi, e um nevão no Quénia motivado pelo mesmo aquecimento global que há seis meses era responsabilizado pela falta de neve no Quénia. Uma realidade construída que obedece a uma agenda que é alheia a critérios de rigor informativo, objectividade ou isenção, num clima circense que é imagem de marca deste momento civilizacional.

Tenho para mim, Joshua, que direitos e deveres são as duas faces da moeda da cidadania. Por isso são igualmente válidos para o professor e o policia, como para o médico ou o jornalista. Esses exercícios profissionais numa sociedade livre requerem formação especifica e uma cultura ética e mecanismos deontológicos de auto-regulação, pois as funções de grande abrangência têm uma responsabilidade social acrescida cuja ignorância não pode ser invocada após a opção por elas ter sido livremente assumida. Claro que se estiver doente eu posso preferir o médico A ao B. Posso até mudar o meu filho de escola porque não simpatizo com a professora. O que não posso é aceitar que haja médicos ou professores, policias ou jornalistas, que exercem sem qualidade, com incompetência ou má-fé, perante a passividade das respectivas entidades de controlo e antes de todas as da própria classe. Quando isso acontece perante a passividade geral e a coberto de lógicas corporativistas que fazem passar a ideia de que a qualidade do desempenho depende do conteúdo da gamela diária da ração, claro que sofro ! Que nem um cão. Mas, lá está, nem todos sofremos pelos mesmos motivos.

quinta-feira, 31 de janeiro de 2008

Demagogia em Revista


A demagogia é uma arte. Sim, uma arte. É uma arte porque a capacidade de apreender os elementos identitários da sensibilidade popular e sobre eles organizar um discurso que reduza as questões a que se refere aos seus menores denominadores comuns, não é para quem quer, mas para quem pode e para isso se preparou – o artista da palavra.

O exercício da demagogia na politica está tradicionalmente associado a objectivos escusos. É o que se diz e admito que seja assim. Mas tenho sérias dúvidas que o mesmo suceda na cidadania, onde se ouvem e se lêem excelentes demagogos francamente convictos da bondade das suas razões e portanto sem quaisquer razões escusas.

Só que estes são piores que os outros, e tentarei explicar porquê.

Enquanto o demagogo profissional ( chamemos-lhe assim, e existe em várias versões e especialidades, e não apenas na politica ) tem por fragilidade a própria falácia das suas intenções, que quando descobertas o desmascaram ,a versão demagógica do cidadão bem intencionado é genuína e por isso verosímil, o que a torna muito mais difícil de anular porque se suporta numa adesão emocional cimentada numa virtude insuspeita e sem mácula.

Como além de emocional é ingénuo ou preguiçoso, e por isso não se dá ao trabalho de estudar ou de compreender o outro lado da aparência das questões sobre as quais opina, o cidadão demagogo é um presa vulnerável e muito apetecida pelo demagogo profissional.

Os voluntarismos de vária ordem que se dedicam de alma e coração a causas várias ( e escuso-me aos exemplos para não ferir susceptibilidades sem necessidade ), são deste tipo de demagogias bons exemplos quando por essa via derivam para um discurso que remete para o Estado a responsabilidade por desordens cuja real origem está no foro privado ou por qualquer outra razão fora do controlo imediato do estado, como é por exemplo o caso do exercício da cidadania ou do exercício competente da função pública . O mesmo tipo de situação pode ocorrer em relação a um sem número de questões do quotidiano, quando cidadãos bem informados e com créditos na praça, opinam de forma apressada sobre estudos ou estatísticas cuja concepção e respectiva metodologia não conhecem.

Como estes discursos são facilmente sintonizáveis, isto é, suscitam uma adesão sem reservas da opinião pública na medida em que propõem a divisão do mundo em “dois” e a oposição entre “nós” ( vitima de qualquer coisa facilmente identificável ) a “eles” ( tirano abstracto ou personificado ) , rapidamente as demagogias profissionais lhes disponibilizam caixas de ressonância, dando-lhes por exemplo honras de prime-time no telejornal que controlam.

As derivas demagógicas correntes tendem para a fragmentação da opinião em questões menores de fait-divers. Mas mantêm sempre incólume a capacidade de num momento qualquer a demagogia clássica capitalizar o descontentamento difuso que assim se gera para o canalizar a favor dos seus desígnios. Em sistemas democráticos os actos eleitorais constituem o culminar natural destas tensões e ao mesmo tempo a oportunidade da sua catarse. Mas em certas situações dificilmente previsíveis, a demagogia tem levado o poder para a rua. Quando tal acontece, entra em funcionamento a outra face da mesma moeda demagógica: as subsequentes reivindicações de ordem que abrem caminho ao exercício autocrático do poder.

Tem sido deste tipo de parto que têm nascido alguns dos fascismos da história, mesmo que alguns deles apareçam vestidos de roupagens “democráticas”.

Os fascismos ( mesmo os de indução democrática, porque os houve e há ) têm por traço identitário o controlo autocrático do poder com o fito de defesa intransigente de valores insistentemente reivindicados, sejam do tipo corporativo ou outros que a sociedade facilmente consensualiza ( segurança,p.e. ), e historicamente decorrem com naturalidade de dinâmicas de permanente reivindicação de "mais estado" na esfera pública da cidadania, de onde acaba por derivar com igual naturalidade para situações indesejáveis de "mais estado" na própria esfera privada do individuo.

Dos antídotos ensaiados, parecem resultar os que conseguem reforçar e credibilizar as instituições do poder democrático através de uma cidadania participante, informada, activa e descomplexada em todos os níveis da sociedade e do exercício do poder. Naturalmente, esta via é mais trabalhosa que o exercicio da demagogia.

segunda-feira, 7 de janeiro de 2008

Entreguem-lhes a Taça !


Ao fenómeno a que alguns gostam de chamar Al-Caeda , eu prefiro chamar conflito civilizacional.Uma visita à História que não seja de mera cortesia, leva facilmente a essa preferência. Existem formas diferentes e antigas de estar no mundo cuja conflitualidade ancestral o colonialismo e depois o neo-colonialismo ocidentais agudizaram. E há vastas zonas de contacto em que feridas nunca saradas de tempos a tempos se exprimem nas reacções historicamente típicas dos que não têm os meios para a guerra formal, e a que se convencionou chamar terrorismo.

Sobre o terrorismo é bom recordar que se trata de uma designação genérica fabulosa. A história está repleta de heróis que ontem eram terroristas. Aparentemente a conversão depende apenas de quem vence a contenda.

E nesta contenda Ocidente –Islão que está em curso, teremos de ser honestos e reconhecer que o adversário leva considerável vantagem.

Senão, vejamos.

Durante os últimos anos eles conseguiram o que em décadas não tinha sido obtido por todos os terrorismos internos juntos, desde a ETA ao IRA, passando pelas Brigadas Vermelhas, e,claro, sem esquecer os terrorismos ditos de libertação das ex-colónias, a saber, a generalização de uma paranóia securitária, ou como se deveria dizer em bom e corrente português, o medo irracional e generalizado típico de todas as cobardias.

Câmaras de vigilância por tudo quanto é canto, escutas telefónicas, países onde só se entra descalço, transportes públicos cuja frequência deve estar prestes a requerer prévia palpação rectal, décadas de multiculturalismo despejadas pelo esgoto das séries americanas de referência, a fobia por barbudos morenos, a disponibilidade para denunciar o barbeiro da esquina que se exprime numa língua que não se entende, e, the last but not the least, o Paris-Dakar, esse ícone da infinita possibilidade do ocidental usar o mundo como e quando bem lhe apetecer, cancelado!

Basicamente recolhemos à torre de menagem em atitude defensiva, fomos postos em sentido e sitiados pelo nosso próprio pavor da morte mediática, completamente desfasados de uma realidade concreta onde se continua a morrer mais de acidentes rodoviários que de tudo o resto.

Perante este panorama, sou levado a concluir que os últimos genes guerreiros do ocidente devem ter-se extinto nos campos de batalha das duas últimas grandes guerras. Reproduziram-se os outros - os medrosos - que para travarem as suas guerras recrutam mercenários. Veja-se a composição da generalidade das forças de interposição da ONU. Veja-se a quantidade de mexicanos ou porto-riquenhos nos exércitos americanos, aliciados pelo bónus de, em caso de sobrevivência, adquirirem o direito de residentes-lava-vidros dos arranha-céus do american-dream.

Portanto, em nome do fair-play, proponha-se uma trégua, convoquem-se os capitães de equipa e o Bush que entregue a taça ao Laden! Esta, já ele ganhou! Vamos à próxima!

quinta-feira, 20 de dezembro de 2007

Papillon



O Senhor do laço era Juiz. E estava visivelmente agastado. Em directo para o telejornal responsabilizava um Director Geral pela falência do equipamento de som do seu Tribunal. Consequência deste inaceitável acidente: supostas gravações de depoimentos de arguidos, testemunhas e outros intervenientes em acções em curso no Tribunal da Boa Hora, afinal…não tinham ficado registadas !!! Logo de seguida, um distinto Causídico não se inibiu de exigir a “cabeça” do próprio Ministro da Justiça como única forma de dirimir esta inaceitável ocorrência. A peça terminava com o Ministro, him-self, a dar conta das diligências para substituir equipamentos eventualmente obsoletos em uso nos tribunais.

Pasmei ! Mas como estou muito habituado a pasmar sozinho, ocorre com frequência duvidar do meu entendimento das coisas. Por isso peço a colaboração dos leitores para ver se conclui bem.

Então vamos lá a ver se será assim: os funcionários dos tribunais responsáveis pelo registo das sessões, não testam nem têm que testar os equipamentos antes de os iniciar; esses testes de gravação, também não são feitos no fim dos depoimentos, como não são feitos no fim do dia, ou sequer da semana; os superiores hierárquicos desses funcionários, entre os quais os Senhores Doutores Juiz, não têm nada que se preocupar com essas ninharias; e efectivamente os únicos responsáveis por verificar o normal funcionamento dos equipamentos e eventualmente também a existência de corrente eléctrica nas tomadas, são, nada menos, que um Director Geral e o Ministro da Justiça..

Agora, sim, entendo porque funcionam mal os tribunais: é o Sr Ministro da Justiça que se dispensa indevidamente de comparecer pessoalmente à abertura e fecho das sessões para testar in loco se a merda dos gravadores gravam ou não !

È isto, não é ?
Não ?!
Desculpem lá …Quem o disse era um Sr Doutror Juiz!Falava na televisão, falava bem e até usava papillon e tudo !!

segunda-feira, 17 de dezembro de 2007

E depois, Senhor Doutor ?




- Portanto, agora, vamos fazer um cateterismo…
- Vamos fazer o quê, Sr Doutor ?!...
- Um cateterismo…um exame…
- Que serve para…
- Para verificar a extensão das lesões !
- Ahhh…e…e… depois, Sr Doutor ?
- Depois, ficamos a saber exactamente o que aconteceu…
- Sim, claro, mas e depois ?
- Bem…depois…-
e o cardiologista olha-me como se me pedisse ajuda, mas eu retribuo um olhar que corrobora a pergunta: “sim e depois ?
- Bem…de facto !
- Então nesse caso, se o Doutor não se importa, ficamos assim, não achas filho ?

Claro que acho. Parece-me que faz sentido. Sem depois, ou seja, sem nada a acrescentar ao prognóstico, para quê detalhar o diagnóstico ?!

De resto um breve olhar de relance pelas macas que se acumulavam pelo SO do Hospital bastava para perceber inúmeras situações sem “depois”, de volta das quais a medicina se atarefava a adiar um ponto final inevitável, trocando o conforto da morte pelo desconforto de dias sem dignidade nem sonho.

-
Repare …é que …o senhor fez um enfarte, é uma situação grave, uma situação de risco, e não posso dar-lhe alta nestas condições de prognóstico reservado…no mínimo terá que permanecer em meio hospitalar não vá ocorrer alguma recaída…
- Recaída, Sr Doutor ?! Então eu tenho 76 anos, dois AVC’s, diabetes, hipertensão, já vou no quarto enfarte, e acha-me com cara de quem está preocupado com uma “recaída”?!
-…
- Sabe o que lhe digo…falta-me tempo para o que ainda tenho a fazer…e o de que disponho, seja ele qual for, não é seguramente para o passar aqui consigo!! Ahaha… faça o favor de não me levar a mal por lhe ter dito isto, mas é a verdade….
-…
- Portanto, Sr Doutor, queira tomar as providências necessárias para que eu possa assumir as minhas responsabilidades…

Enquanto ele se veste e barafusta, olho em redor e confirmo o peso da inutilidade e a desumanidade de esforços e técnicas que levam a lugar nenhum.

-Juramento de Hipócrates em defesa da vida?! Está bem ! Mas é isto a vida?
E aponta com um gesto de cabeça para alguém no outro lado da enfermaria ligado a tudo quanto era máquina, obrigado a respirar, quando a única coisa que queria e que fazia sentido era …parar.
Mas...quem diz basta ?

De repente tornou-se inaceitável “morrer de velho”. Morre-se de pneumonia, enfarte, avc, colapso renal, Mas quando se tem mais que uma certa idade o que simplesmente acontece é que a probabilidade de falência dos sistemas que nos mantêm dentro da esperança média de vida, aumenta. A partir daí tudo pode desmoronar a pretexto de coisas ínfimas porque, simplesmente, ninguém é imortal. E em vez de se cultivar a morte como parte do processo de vida, em vez de se cultivar a vida como um exercício em que o bem-estar também importa, cultiva-se a imortalidade e aborda-se a doença como se ela fosse mera questão técnica. Não é !

- Bem, sabes o que me apetecia ?
- Um duche ?
- Não ! Um sargo grelhado !
- Oh, homem… vamos a ele !

Será que de repente a mortalidade se tornou inaceitável? E vamos esticar a corda até onde? Cateterismo? Sim, claro. Uns buracos nos pulsos e nas pernas, umas mangueiras pelos canos e um gajo à rasca , para quê ?! Para nada !Porque não há possibilidade de reparação de “canalizações” dentro de quadros clínicos de grande vulnerabilidade. Seria a mesma coisa que tentar retirar a ferrugem de dentro de canos galvanizados com muitos anos. Limpam-se e rompem-se. Remenda-se aqui, estraga-se ali. E entretanto os dias pasmados e as noites sem dormir porque é impossível à lucidez abstrair-se do sofrimento dos que ao lado gemem, choram, obrigados a sobreviver para lá de uma vida já vivida.

- Quer dizer: quando eu era do “contra” e a PIDE me prendeu, ninguém me torturou, e agora que sou da “ situação” é que além de me prenderem outra vez ainda me querem torturar?! Ahahah! Era só o que faltava !!!

O termo de responsabilidade foi assinado, a alta também, e saímos à procura do sargo grelhado.

-
Insonso para mim, se faz favor ! Ahah!…Quando voltas cá, filho ?
- Em meados de Dezembro…
- O ano passado não chegamos a ir aos sargos…
- O que não faltam são sargos…
- Podem faltar é os dias …
- Até parece que nunca fomos à pesca à noite !
- Ahahah! Sabes o que não faltam ? Parvos! Ahahah! Cateterismo? Recaída ? Já vale a pena ! O pessoal perdeu o juízo !
- Ahahah!
- Hum…este sargo está uma delicia ... pena que tenha de ser insonso… mas… oh Zeca! –
vira-se para o dono da Taberna da Maré, e dispara
- Ontem deram-me uma sopa que você devia ter visto… eu nunca tinha visto nada assim…nem na tropa !! Queres mais sal, filho ?

segunda-feira, 3 de dezembro de 2007

Rosas Brancas


Apesar de só ter a terceira classe completa, o meu avô era um homem de grande cultura. Graças a ele sobrevivo onde quer me que me deixem e sou sempre capaz de encontrar o caminho de regresso a casa. Desde os cogumelos e bagas silvestres comestíveis, à orientação pelas estrelas, do empate de um anzol à confecção de uma caldeirada, da sementeira de um alho ao capar de um porco, da técnica da enxada ao afiar de um gadanho, do gosto pela leitura ao gosto pelo xadrez, da previsão do tempo de amanhã ao valor do compromisso e da verdade, tudo isso foram conhecimentos essenciais que dele adquiri.

O meu avô tinha da sua vida a noção de elo de uma cadeia mais complexa, mas com um inquestionável corolário: nela competia-lhe passar um certo testemunho. Foi o que fez com a competência de que sou o resultado possível.

O meu avô era, aliás, um excelente pedagogo.

Quando eu tinha cinco anos entendeu que era tempo de me ensinar a nadar. Fomos de caleche até ao Carvoeiro, nós dois e o Tejo (os rafeiros lá de casa sempre se chamaram Tejo…era mais prático). Uma vez na praia percorremos a vereda até um pontão natural num extremo da pequena enseada, que distava cerca de uns 30 metros da rebentação. Lá chegados o meu avó atirou um pau à água e ordenou ao cão: Busca. O Tejo atirou-se ao mar e fez o que era suposto. O meu avô virou-se para mim e perguntou-me: Viste como o cão fez? Eu assenti e ele concluiu: Então faz igual e vai a nadar p’ra praia. E eu fui.

Teria eu os meus onze anos quando o meu avô me convidou para o acompanhar à Feira de Castro, onde se deslocava metodicamente de cinco em cinco anos para renovar o stock de bestas lá da casa. Tomamos o Comboio-Correio da meia-noite e vinte e, cumpridas as seis horas de tombos e apeadeiros inerentes aos 160 km do percurso, chegamos a Castro com o sol a levantar-se e a feira a animar. Pouco depois estava concluído o negócio de dois belíssimos muares, e nessa altura o meu avô estendeu-me duas notas de cinquenta escudos e informou-me do que se seguia no programa: Zé, tenho que ir a Beja e tu vais andando com os machos para casa. E eu fui.

Dois anos mais tarde, quando numa tarde de Novembro cirandávamos por entre as barracas da feira anual de Portimão, o meu avô deve ter reparado que quando as gaiatonas passavam por nós eu virava a cabeça com inusitada frequência. De modo que à tardinha encaminhou os passos para os lados da Estação, bateu à porta da Maria Guerreira, mandou chamar a patroa e instruiu apontando para mim: É p’ra desmamar. Assim foi. Depois, fomos jantar ao Nacional e ficamos jogando xadrez enquanto aguardávamos a carreira da EVA que nos levaria de regresso.

Apesar de ler poucos jornais (ainda que quisesse eles só chegavam à província embrulhando alguma encomenda de bacalhau do alto…) o meu avô era um homem bem informado e grande apreciador de boa literatura que o amigo de sempre, o professor Vieira, regente da disciplina de História no Liceu, lhe trazia periodicamente de empréstimo. Como ele já via mal ao perto, quando eu tinha os meus oito anos começou por me passar para as mãos As Pupilas do Senhor Reitor, para que lho lesse aos serões à luz do candeeiro a petróleo. De modo que aos dez anos lia-lhe Anna Karenina, Guerra e Paz, Doutor Jivago, e obras que tais, até se esgotar o stock da biblioteca do professor Vieira e os começar a requisitar na Biblioteca Itinerante da Gulbenkian que demandava a Vila nas primeiras quintas-feiras do mês.

Num magnífico fim de tarde de Agosto, estava eu e o meu avô no eirado enrolando e protegendo as esteiras de figos que secavam ao sol, quando apareceu em passeio um velho amigo que estava de férias na Vila, acompanhado por um senhor bem-posto e de fino trato, de nome Azevedo. No decurso da conversa deu-se o caso de o meu avô ter deixado sair que estava a proteger os figos porque nessa noite iria chover. A essa informação replicou o Senhor Azevedo, de forma educada mas convicta, que estava informado do boletim meteorológico e que não estava prevista chuva para toda a semana. E olhando para o céu limpo como cama feita de lavado, ninguém em seu perfeito juízo afiançaria a ocorrência. Mas às quatro da madrugada as torneiras dos céus abriram-se e choveu de escantilhão. Nessa manhã, ainda as ruas não tinham secado e já o senhor Azevedo as percorria demandando a Quinta para tentar perceber por que artes o meu avô soubera que iria chover quando ninguém o previra. O meu avô admirou-se tanto da questão que tenho a certeza que só se dignou respondeu por mera cortesia: Essa agora…então…vê-se e sente-se!
O veraneante, soube-o anos depois, era o Eng Anthyminio de Azevedo, conceituado meteorologista.

Nos últimos anos da sua longa vida o meu avô ficou um pouco “duro de ouvido”. Por isso, se por esses dias em que eu já frequentava as aulas de filosofia do “Trinta Cabelinhos” (desculpem mas nunca soube ao certo o nome do senhor) o questionasse sobre algo relacionado com Kant, é natural que ele me retorquisse no sentido de tentar perceber que queria eu que ele cantasse – o meu avô era um homem alegre e gostava de cantar.
Mas é natural que, se eu insistisse, falando mais alto e questionando-o sobre o que para ele era a “verdade”, o meu avô me olhasse com uma expressão de imenso desânimo antes de se levantar do poial invocando a urgência de ir dar de beber ao gado.

Porque o caso é que o meu avô tinha da verdade noções dificilmente rebatíveis. Ter fome depois de passar três dias sem comer era o exemplo de uma verdade inquestionável. Como o seria a dor na testa depois de uma tremenda cabeçada na porra da viga da porta da cavalariça, cuja altura mestre Amadeu calculara pela bitola errada, ou a dor de costas depois de uma jorna a alumiar vinha. Qualquer destas situações era de resto facilmente verificável, bastando para isso repetir as condições objectivas em que ocorriam.

A mentira também era fácil de definir. Por exemplo, se alguém lhe dissesse “ontem choveu em Benagil” e o meu avô lá tivesse passado o dia varejando alfarroba e regressado já depois da meia-noite e da carrada feita sem que uma pinga vinda do céu lhe tivesse refrescado a testa, retorquia de forma tão seca que nem um pelotão de cavalaria se atreveria a contradizê-lo: Isso é mentira!

Certezas relativas, o meu avó tinha muitas, mas absolutas tinha apenas uma.
- Qual, avô?
- Um dia destes, morro!
De resto, problemas existenciais como os da morte, ou da vida para além da morte, eram assuntos que ele tinha bem resolvidos.
- Avó, quando morremos para onde vamos?
- Para debaixo da terra!
- E depois?
- E depois ficamos feitos em estrume!
Até hoje não houve biólogo que me explicasse melhor esta questão!

Quando comecei com as aulas de biologia, é verdade que um dia partilhei com o meu avô as teorias em voga sobre o “caldo primitivo”. Algures a meio do meu discurso surgiu ao meu avô uma dúvida inadiável:
- Já regaste as cebolas?
Eu ainda não as tinha regado e fui tratar disso que o dia ia quente. Quarenta anos depois e embora já saiba o que é uma hipótese, uma teoria, ou como se infere de acordo com as regras do método cientifico, continuo sem saber como surgiu a vida.

O Padre Oliveira tinha algumas ideias sobre isso. E por vezes passava lá pela Quinta tentando levar ao redil aquela ovelha que nunca lhe aparecia no cercado da Igreja. Mas assim que a conversa deixasse de versar o problema da geada negra que acabara de dar cabo das favas em flor e começasse a descambar para o lado dos pecados da carne e respectiva expiação, o meu avô recorria logo a um argumento demolidor:
- O Senhor Padre já almoçou?
E a partir daí discutiam-se os segredos da arte da Gracinda na preparação do tacho da lebre com feijão branco.

Apesar de lá em casa não haver memória de ano em que tenha faltado o que comer, não se julgue que o meu avô era um pragmático destituído da mais elementar capacidade filosófica e de reflexão abstracta. Nada disso. Provo-o terminando com o relato de uma conversa de profundo recorte filosófico que lhe escutei certo fim de tarde no café do Zé David.

Já não sei porquê o assunto derivara para a cor das bestas. Farto de questão tão risível, o meu avô interveio na tentativa de lhe colocar um ponto final.
- Pois eu lá em casa tenho um macho cor-de-rosa!
Esta afirmação provocou previsivel silêncio tumular, pois apesar de incrédulos os presentes conheciam sobejamente as consequências de se duvidar da palavra de um Rocha. Assim, só um forasteiro teve a veleidade de aventar timidamente:
- Aí está uma coisa que eu nunca vi….
Excepcionalmente o meu avô condescendeu ser questionado, mas respondeu-lhe com inenarrável desdém:
- Tem visto pouco! ... Nunca viu rosas brancas?

domingo, 2 de dezembro de 2007

Direito à Memória


Fredo, nos testemunhos que nos deixou dos seus diálogos com Sócrates, refere a história que este lhe contou sobre a entrevista de Tot com um dos Faraós do Antigo Egipto. Tot era o Deus Egípcio inventor do jogo das damas, dos números, da geometria, da astronomia e da escrita, e fora convocado para que o Soberano pudesse colocar todas estas invenções ao serviço do seu povo. O Faraó terá discutido os méritos e os inconvenientes de cada uma das ofertas e, quando chegaram à escrita, Tot terá dito:
- “
Aqui temos um ramo do saber que lhes aperfeiçoará a memória. A minha descoberta é uma receita tanto para a memória como para a sabedoria.”
A isto o Soberano replicou:
-“Se os homens aprenderem a escrever, tal implantará o esquecimento nas suas almas; deixarão de exercitar a memória, pois passarão a depender do que está escrito, não mais chamando as coisas à memória de dentro de si mesmos, mas por intermédio de marcas externas. O que descobriste, não é uma receita para a memória, mas para a lembrança. E não é verdadeira sabedoria o que lhes ofereces, mas apenas a sua aparência, pois ao dizer-lhes muitas coisas sem lhes ensinar nada, farás que pareçam saber muito, quando na realidade nada saberão”.

Quando o Faraó distinguia, perante Tot, memória e lembrança, estava também a demarcar uma das premissas centrais da memória, que é a sua sedimentação cultural? Nunca se saberá ! Mas parece legítima a tese de que mais que um acervo de informação, para ele a memória era, devia ser, um repositório de saberes com sentido de devir, a um tempo reflexiva e crítica do que somos. O caso no entanto é outro, porque o acesso à memória e o seu controlo, desde sempre, foram também instrumentos de poder.

Agostinho da Silva ajuda-nos a percorrer os meandros históricos da construção da memória e a desvendar como o seu controlo tem sido ao longo dos tempos alvo de conflitos, integrados na luta mais vasta pelo poder. A apropriação da memória é uma das preocupações dos grupos e das forças que travam essa luta, tal como os esquecimentos e os silêncios da história são mecanismos da sua manipulação.

Três mil anos depois os faraós do nosso tempo, agora eleitos pelo voto popular, já não convocam Tot quando querem dar algo aos seus povos. Convocam hordas de supostos sábios que são os deuses possíveis num mundo céptico quanto às divindades, mas crédulo, demasiado crédulo, quanto aos méritos da ciência e da técnica. Convocam-nos e pagam-lhes, porque estes deuses não fazem nada de borla. Pagam-lhes principescamente a incumbência de construir memórias como quem transcreve epístolas e se possível, de as servir em imagens, cuja credibilidade acrescida advém de supostamente traduzirem a realidade.

Assim, em páginas repletas de caracteres só inteligíveis a iniciados, ou em pacotes de imagens que os intérpretes do regime fabricam para uso dos leigos, registam-se para a posteridade profecias de cataclismos bíblicos, como quem proclama verdades inconvenientes. Tal como as antigas, também as pragas destes nossos Egiptos são reversíveis ou mesmo evitáveis, mas não a troco de rezas ou oferendas para acalmar a ira divina. A solução passa agora por novos investimentos na técnica e na ciência. Na mesma ciência e na mesma técnica que, enchendo de resmas de símbolos as bibliotecas ou viajando no espaço à velocidade da luz, distraiu de tal forma os povos com tanto saber escrito que eles se esqueceram de questões tão elementares como não construir em leito de cheia.

Séculos de escrita com lembranças de saberes antigos para memórias futuras, que depois de servirem para pôr um homem na Lua, até são capazes de fazer nevar no Dubai, revelam-se assim incapazes de regrar questões aparentemente tão elementares como a gestão sustentável da água potável, a conservação dos solos ou o uso da energia.
A cada novo problema da técnica contrapõe-se mais técnica. Mas o que de facto está a acontecer é que se contrapõe ao desenvolvimento de uma sociedade a criação de um mundo mecânico! Nada há que a ciência e a técnica não resolvam ! Tudo descrito e explicado em caracteres, fórmulas, imagens, tudo devidamente Nobelizado. Será tudo possível ? Sim, eventualmente ! Mas… para quê ?

Como Montaigne já sabia, os “factos” são interpretações. E como sugere Lourenço, um “facto” que dura pode ser uma boa definição de “mito”. Toda a leitura do nosso passado como digno de memória, ou a prospectiva do nosso futuro, estão suspensos de “factos”. E como essa leitura é uma trama densa de textos, em que os “factos” se comentam, glosam, cantam, analisam e mais raramente se discutem, é nela que se funda o nosso mito civilizacional. Confuso, incerto, porventura infundado, mas não temos outro paradigma senão este em que o enriquecimento material permanente se nos apresenta como único motor de progresso. Perante a sua capacidade persuasora sacrifica-se tudo. Tal como em séculos passados se sacrificaram os Índios e os Negros, mesmo que para isso se tivesse recorrido à lógica Aristotélica, com maior facilidade se tem encontrado hoje forma de contornar os pruridos éticos aos impactos ambientais das actividades humanas. Mas agora estamos numa nova fase: aquela em que o conhecimento desses impactos se transforma, ele mesmo, em arma de conquista do poder e veículo de enriquecimento.

Seria a memória quem nos devia situar evitando-nos a deriva para um pragmatismo autista. Competiria à memória fundada na sabedoria secular, a compreensão de um sentido que não pode reduzir-se ao simplismo de uma permanente dinâmica de conquista. A adaptação aos condicionalismos naturais, a compreensão dos seus ciclos e dinâmicas, provou no passado ser mais sustentável que a recente tentativa insana de os condicionar. Mas é obvio que são os processos passíveis de enfrentar o inegociável numa envergadura faraónica, os que verdadeiramente interessam aos que se movimentam na órbita do poder, ainda que para isso tenham de controlar a memória, criando por antecipação as novas verdades do tempo, como novos “factos” para o mesmo mito.

É dessa obra que somos mercenários involuntários. Escrevemos, de facto ! Dizemos imenso, parecendo por isso sabermos muito. Mas a realidade é que não sabemos nada, e por isso o que se documenta não é uma receita para a memória, mas para a lembrança.

A memória, essa, perdemo-la !

sábado, 3 de novembro de 2007

A GALP e o Biodiesel


Ferreira de Oliveira, CEO da GALP, deu há algum tempo longa entrevista ao Expresso. Falou da empresa e dos seus projectos de futuro e, entre eles, da utilização dos chamado biodiesel.

Ficou-se a saber que o Governo Português pretende atingir em 2010 o objectivo de incorporar no consumo de diesel 10 % de combustíveis de origem vegetal. E é ainda o Presidente da Galp quem informa que, para atingir na mesma altura o objectivo Europeu, ou seja, 5,75 % de incorporação, necessitaríamos de qualquer coisa como 600 mil toneladas de biodiesel , ou seja, e ainda segundo as contas da Galp, uma área cultivada de 500 a 700 mil hectares.

Trocando estes números por medidas identificáveis, chega-se a algumas conclusões interessantes. Desde logo que, para conseguir incorporar no consumo nacional de diesel 5 % de óleos vegetais, Portugal precisaria de cultivar anualmente com oleaginosas algo mais que…todo o Algarve! Por conseguinte, para o objectivo nacional de 10 % de incorporação em 2010, toda a superfície agrícola útil existente a sul do Tejo não seria suficiente!

O potencial do biodiesel, para constituir uma alternativa credível ao diesel convencional, fica bem ilustrado nesta imagem: se o objectivo fosse o de suprir a 100% o consumo deste pequeno país periférico com apenas 10 milhões de habitantes que é Portugal, imagine-se toda a península Ibérica cultivada para o efeito e…não chegava !

Os assessores da Galp, do Governo, ou de UE, seguramente já fizeram estas contas e reportaram aos respectivos CEO’s que não há terras agrícolas que suportem sequer o objectivo dos 10 %. E não é só uma questão de área! É também a impossibilidade técnica de repetir ano após ano, na mesma parcela, uma cultura esgotante como é a das oleaginosas. Além disso, mesmo com fertilizações químicas consecutivas, não são todos os solos os que permitem as produtividades pressupostas para atingir o volume de produção pretendido.
No caso de Portugal e de todos os países do Sul da Europa onde impera o clima mediterrânico, acresce ainda que as poucas chuvas na época de cultivo das oleaginosas ( Primavera- Verão) colocam a questão da disponibilidade de água para viabilizar a cultura em extensões significativas.

Portanto, a pergunta impõe-se: onde andarão os terrenos capazes de realizar o “objectivo Europeu” ?

No que a Portugal diz respeito, a solução aparece logo a seguir, sob a forma de um acordo já firmado pela Galp com a Petrobrás para o cultivo de 700.000 ha no Brasil, estando ainda na calha projectos semelhantes para Angola e Moçambique ! Disso mesmo nos dá conta Ferreira de Oliveira.

Fica-se com a ideia de que nos referidos países a possibilidade de produzir culturas com potencialidade para serem utilizadas como bio-combustíveis é …ilimitada! Mas não é!
Passando ao lado de considerações sobre questões centrais de ordenamento e política agrícola de territórios e países que se debatem com problemas crónicos de auto-abastecimento alimentar, convirá recordar que a maioria dos solos do hemisfério sul, pela sua natureza geológica coadjuvada pelo clima, tendem para a “latrinização” quando submetidos às práticas típicas da agricultura industrial. Dito de forma simples, degradam-se rapidamente, pois quando perdem o coberto vegetal e são submetidos a trabalhos de mobilização e de adubação sistemática, tendem a formar à superfície uma camada impermeável à água, extremamente susceptível à erosão, e onde se concentram sais minerais tóxicos para a maioria das plantas – são as “latrites”, um género de certificado de inutilidade agrícola permanente!

Dir-me-ão que os CEO’s das petrolíferas não têm que se preocupar com estas minudências. Pois! Mas então quem tem ?

Quando se chega a este tipo de questões, a tentação de abordar o tema na perspectiva do neocolonialismo é incontornável.

De facto, a ideia de exportar as actividades que ao Ocidente não interessam e importar o que não temos ou não nos interessa produzir, não é nova e vem de longe. A solo ou em joint-venture com os interesses das nomenclaturas locais, desde há muito que o Ocidente aprendeu a produzir mais barato e com menos impactos directos nos países de além-mar, tudo aquilo que se constata ser caro ou perigoso demais para produzir nos nossos quintais. Com os resultados que se conhecem: delapidação consecutiva dos recursos desses territórios, impactos ambientais inenarráveis, acréscimo das dinâmicas de dependência, rotura social e perpetuação dos ciclos de pobreza.

O argumento habitual de que se está a “criar riqueza” e a “promover o emprego” nessas paragens, devia fazer corar de vergonha os ingénuos que ainda o utilizam. Todos sabemos quem fornece a tecnologia, de onde vêm os quadros dirigentes bem remunerados, e que o emprego local efectivamente criado ou é ridiculamente inexpressivo ou escandalosamente mal pago!

Com esta história do biodiesel, voltamos basicamente ao mesmo: maquinaria agrícola da Catterpillar americana ou da Volvo sueca, operada por meia dúzia de trabalhadores locais em empresas geridas por técnicos ocidentais, propõem-se produzir na América do Sul, ou em África, as sementes de oleaginosas que a Europa pretende transformar em óleo alimentar para … suprir 5,75 % do diesel que irá queimar em motores de combustão.

Na sua essência, a noção de “sustentabilidade” que anda por aí tão em voga, fica bem ilustrada por esta lógica, pois enquanto o critério para avaliar e valorizar os processos económicos, em lugar de ser determinado pelos seus fluxos energéticos, for resolvido unicamente pelos respectivos balanços contabilísticos, falar de sustentabilidade é uma inqualificável mistificação da realidade.

No caso vertente, a mistificação é tripla.
Desde logo porque se criou a ideia errada de que a queima de biocombustiveis não emite CO 2. Depois, porque a rentabilidade energética do processo produtivo do biodiesel (desde o cultivo das oleaginosas, passando pelo seu processamento industrial até ao circuito final de distribuição ) é reduzida, senão mesmo negativa. Por último, porque o protocolo técnico para a sua produção, tal como aparece gizada pelos interesses que a pretendem promover, pelos factores que envolve, pelas grandes áreas que implica e pelos consequentes impactos que suscita, e porque compete directamente com a produção alimentar, é dos melhores exemplos de insustentabilidade na prática agrícola.


Então, a produção industrial de biodiesel como suposta fonte "renovável de energia alternativa" é “sustentável” para quem ?! A única resposta que me ocorre, é que o possa ser para os accionistas da Galp…








sexta-feira, 2 de novembro de 2007

"Bombas Inteligentes"

Se tivesse vivido os telejornais nacionais das vinte do verão passado, Kafka decerto consideraria de amador o enredo do seu tão celebrado “Processo” .

O despudor e o entusiasmo com que, sob a batuta dos pivots, as mais variadas figuras da nossa praça se entregaram à arte da adivinhação e da conjectura para elaborar complicadíssimos cenários a propósito do desaparecimento de uma menina inglesa no Algarve, mereceria ficar registado como case-study se o fenómeno não fosse recorrente.

Esta capacidade dos média de efabular e com fábulas preencher tempo de antena e resmas de papel, facilmente deriva o direito e o dever de informar, em condicionamento objectivo da opinião pública. Ao fazê-lo, acaba também por condicionar o trabalho das polícias. Mas, o que é bem pior, condiciona também a própria justiça.

Todos os Deuses do Universo livrem o comum dos mortais de ser atropelado por este género de “ conjugação persecutória” ao melhor estilo das caças às bruxas de outros tempos. Veja-se os casos da mãe e do tio da infelizmente célebre Joana, que estão “à sombra” por conta de uma condenação por homicídio …sem corpo de delito!

Quando a investigação e a justiça se fazem na praça pública por exclusiva conveniência dos superiores interesses comerciais dos média, dando boleia a sedes de protagonismo de incontáveis candidatos a “ justiceiros”, há pessoas concretas cujas vidas são desfeitas com a mais completa à-vontade. Recorde-se o caso do Dr. Paulo Pedroso. Ou então tente-se imaginar que futuro estará reservado ao Sr. Carlos Cruz, se o Tribunal o der por inocente no julgamento do processo Casa Pia.

Sobre determinadas práticas de investigação e da justiça, desde a obtenção de confissões à chapada, à prática de prender para depois investigar, passando pela necessidade medular de transformar em show-off a mais prosaica apreensão de tremoços, já estava esclarecido.

Mas era aqui que contava com os média, para desmontar estas derivas e auxiliar à instauração de uma mentalidade de primado do direito. No entanto, o que sucede é que sou confrontado com situações que me obrigam a questionar-me sobre o conceito de ética subjacente à actividade dos profissionais da comunicação social. Fiquei mais esclarecido quando aqui há tempos li uma entrevista dada a um periódico por uma celebridade do pequeno ecrã, em que declarava sem papas na lingua que, " neste mundo ( da televisão…) quem tem ética não come”. Esclarecedor!

Quanto à tão proclamada independência dos jornalistas, conviremos que mesmo que ela consiga iludir a necessidade do cheque do fim do mês, não é capaz de lidar com outros cheques. Veja-se o que sucedeu com o Arquitecto Saraiva quando resolveu meter-se com o Dr. Ricardo Salgado: xeque – mate!

Portanto, o que se pede essencialmente a um “bom jornalista da actualidade”, é que seja um bom ficcionista, que trate as questões da ética como couves, e venda o melhor possível os superiores interesses das eufemísticas mais-valias dos que o empregam, ainda que para tanto tenha que revisitar Kafka. Quais “bombas inteligentes”, o que possa suceder em consequência da sua actividade, é remetido para a categoria de “danos colaterais”.

O caso é que, por outras vias, os fascismos faziam o mesmo !