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terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Economia Social e Solidária

A crise instalada tem trazido à discussão a necessidade de abordagens inovadoras para a economia. A preocupação central de alguns desses ensaios  vai no sentido de evitar ou diminuir os inconvenientes do granel a que se convencionou chamar economia de mercado, e nesse aspecto merecem-me incondicional adesão.

Um dos discursos que tem vindo a fazer caminho, apela para a responsabilidade social e para a solidariedade das empresas. Diz que as empresas devem ultrapassar o primado da remuneração do capital investido e incorporar na sua postura preocupações de carácter social relativas ao bem-estar dos seus colaboradores e de solidariedade para com as comunidades em que se integram. Fala-se então de Economia Social e Solidária. Mas há neste discurso alguns aspectos sobre os quais julgo que vale a pena reflectir.

O primeiro é  a ênfase na distribuição, na necessidade de reflectir socialmente os resultados da actividade empresarial. Tudo indica que quando se diz “resultados” se pretende dizer “produto”. O pressuposto é, supõe-se, que se considera insuficiente a distribuição feito pelos salários e pelo Estado, nomeadamente pela via da tributação dos lucros das empresas e pela consequente prestação de serviços públicos. Então, além do eventual reforço da remuneração do trabalho e em lugar de um maior peso da carga fiscal, e por conseguinte do papel redistributivo do Estado, preconizam-se também esforços acrescidos de intervenção social directa das empresas.

A ideia é simpática. Remete para uma maior peso  da sociedade civil e das economias regionalizadas e de pequena escala na governação. Nada a opor, tudo a favor. Mas há uma questão: é que subentende-se garantido o sucesso das empresas.

Na verdade os discursos a que tenho tido acesso são omissos no que respeita à solidariedade com o insucesso das empresas ou com a  possibilidade de repartição de prejuízos, e não mencionam o que quer que seja no que se refere  à questão de reflectir socialmente os riscos associados à iniciativa empresarial.

No subtexto dessa dupla omissão pode-se ser levado a intuir um certo género de preconceito, fundado no pressuposto de que todos os empresários são capitalistas e, por conseguinte, o risco é algo inerente à sua actividade. Bem, talvez não seja descabida a hipótese de que a maioria dos empresários não sejam capitalistas. Aqueles que estão vocacionados para exercer duradouramente actividade a nível local e regional, menos o serão. E para estes, talvez faça sentido questionar se será legitimo esperar-se deles níveis de suplementares de solidariedade social, quando em contrapartida não se vê que haja quem se chegue à frente para discutir a partilha dos riscos e prejuízos que, quando ocorrem, os empresário assumem a titulo exclusivamente particular.

O segundo aspecto que gostava de abordar é a aragem de "novidade" dos discursos sobre economia social e solidária. A linguagem inovadora pode levar a esquecer ou  a não reparar que há muito as ideias que incorpora estão instituídas e em lugar de relevo no nosso sistema politico-económico. Ou seja, talvez não fosse necessário pedir às empresas que se comportem como misericórdias, uma vez que as soluções institucionais para enquadrar o ideário da economia social e solidária já foram inventadas e existem.

O direito à constituição de associações e de cooperativas, que são por excelência entidades onde se plasma na integra o ideário da economia social e solidária, há décadas que está consagrado na Constituição da República e regulamentado na Lei. E em rigor não se pode dizer que as associações e cooperativas não tenham  expressão  no tecido económico e social português. Outra questão é  perceber que razões têm obstado a que o movimento associativo e cooperativo não se tenham reflectido de forma mais evidente na equidade e na solidariedade social que se desejam.

O hábito instalado de questionar e responsabilizar os Governos pelos insucessos da sociedade fará sentido neste domínio ? Talvez não faça. É possível que as pessoas não se associem na procura de vantagens colectivas estruturais, mas de benesses individuais. É possivel que apenas  condições  de absoluta necessidade sejam capazes de promover a cooperação. Esta hipótese  talvez encontrasse suporte em estudos de caso da relação temporal que associados e cooperantes têm com as suas  organizações mutualistas em Portugal.

A desresponsabilização ostensiva  de sócios e cooperantes pela   gestão mutualista, remete tem remetido essas  organizações  para modelos de gestão profissional. A partir dai são empresas como as outras, frequentemente dotadas com estruturas profissionais mais empenhadas em manter a porta aberta em nome da preservação do posto de trabalho dos quadros , que na procura do bem comum. Talvez não fosse dificil de verificar a  facilidade que o cooperante típico da adega ou da caixa agrícola,  vende a alma à concorrência por um cêntimo de alcavala no revenue da uva ou dos juros. Para a cooperativa ( a quem os cooperantes se referem sempre na terceira pessoa - "eles" ! ) fica a uva com míldio que o mercado não quer e os empréstimos de risco que a banca comercial recusa.

Os resultados da banalização desta atitude terão tido papel decisivo na reduzida notoriedade e contributo do mutualismo no tecido sócio-económico português, ao ponto de quase se esquecer que existe e procurar-se reinventá-lo? Não faço ideia. Mas uma coisa é certa: o neoliberalismo capitalista não é obrigatório. Por isso me atrevo a sugerir que talvez fosse pertinente reflectir sobre o seu sucesso a par da dificuldade cultural que temos revelado para agir colectiva e duradouramente em abordagens da economia que privilegiem  objectivos sociais.

terça-feira, 16 de novembro de 2010

A Propósito do Azeite

A generalidade das ideias que têm sido propostas para ultrapassar o que tem vindo a ser diagnosticado como ‘estado anémico’ da economia nacional, referem habitualmente a necessidade de obter ganhos na produtividade, de melhorar a competitividade, de desenvolver o potencial de crescimento da economia e por aí, espera-se, fomentar o emprego. Quando se fala destas questões, isso é feito como se fossem obvias para todos as origens dos problemas que se pretende resolver. Ora a discussão especifica mostra que não é bem assim. O debate politico-económico bloqueia na descrição dos factos macroeconómicos, e revela claras insuficiências no entendimento critico das dinâmicas sociais que as politicas concretas induzem a níveis mais desagregados.

Concretizo.

Há dias foi inaugurada em Ferreira do Alentejo (FA) uma unidade industrial que é descrita como um dos maiores e mais modernos lagares de azeite do mundo. Uma capacidade instalada para processar mais de 900 t de azeitona por dia produzindo qualquer coisa como 200 mil litros de azeite, são números impressionantes. Para se ter uma ideia do que isto significa repare-se que junto à Estação do Crato está em funcionamento um lagar convencional, que era modelar há 25 anos, mas que processa numa campanha o que este de Ferreira poderia processar num dia. E, dado importante, enquanto o lagar do Crato dá trabalho permanente a uma dezena de empregados e temporário (durante a campanha ) a outros tantos, ao de Ferreira do Alentejo bastam quinze pessoas para operar a unidade !

Portanto, por comparação, os ganhos de produtividade são inquestionáveis e, por arrasto, a competitividade do produto final só pode beneficiar por isso. Mas e o emprego ?

Por si só a desproporção observada nas necessidades de mão de obra bastaria para fazer soar algumas campainhas de alarme quanto ao real impacto da produtividade e da competitividade da industria, neste tempo das novas tecnologias, na resolução de problemas estruturais de excedentes de mão de obra. Mas o caso é que os efeitos das novas tecnologias no emprego na fileira do azeite, não se limitam ao sub sector da transformação.

Os 10.000 ha de novos olivais intensivos que irão alimentar o lagar de Ferreira, também estão naturalmente desenhados para maximizar a produtividade e a competitividade. Quer isto dizer que só no que à apanha diz respeito, um operador e a respectiva máquina de nova geração colhem num dia o que uma equipa de 12 pessoas colhe numa semana num sistema de mecanização convencional ( vibradores, aspiradores, crivos mecânicos, toldos…) que há 25 anos representava o topo de gama.

A comparação poderia prosseguir para montante ou para jusante porque tem inúmeras ramificações. Deixo apenas uma para exemplificar. O método de controlo de infestantes nestes olivais intensivos já não são as ovelhas , mas os herbicidas aplicados mecanicamente pelo mesmo operador que antes andou a fazer a colheita, e que é o mesmo que controla a fitossanidade e a fertirrigação. Não havendo ovelhas, além dos pastores, também tenderão a desaparecer os tosquiadores, os “roupeiros” ( fabricam o queijo ), os veterinários e por aí adiante.

Então não se mudava nada ? A questão não é essa. A mudança é inevitável. O que não é inevitável é que seja liderada pelo modelo económico vigente como se fosse uma entidade com vida própria impossível de controlar.

Enquanto nos anos sessenta e setenta do século passado a industria e depois os serviços foram autenticas ‘esponjas’ para absorver o excedente de mão-de-obra que a mecanização gerou na agricultura, a automação e a informatização que entretanto se desenvolveram estão também elas a gerar excedentes de empregos. Só que agora afectam todos os sectores de actividade e desapareceram as antigas almofadas de amortecimento.

A demografia tem tempos lentos de resposta à mudança. Esse tempos têm sido claramente ultrapassados pela velocidade que a modernidade conseguiu instalar nos métodos de produção e nos modelos convencionados de organização da economia. No caso português, ainda que o potencial de crescimento da economia possa não ter ainda sido atingido, é possível que os reajustamentos nos desequilíbrios entre disponibilidades e necessidades de mão de obra já não possam ser feitos apenas pela (re) qualificação dos trabalhadores. A tendência do paradigma económico vigente tem sido consistente: cada vez precisa de menos gente para funcionar.

No limite, este desacerto entre a economia e a demografia, não se exprime apenas no desemprego e nos custos sociais directos que acarreta, nem se resolve apenas com mais crescimento capaz de gerar receitas bastantes para assegurar á população que não encontre colocação no mercado de trabalho subsídios que lhes permitam fruir de níveis de vida aceitáveis. Esse desacerto tem outros custos que aparentemente têm sido insuficientemente ponderados. Entre eles os custos culturais de longo prazo associados às rupturas que se têm produzido com saberes consolidados nas soluções tradicionais de ocupação e aproveitamento do território. Está  por demonstrar se, a prazo, o somatório desses custos não irá ultrapassar os ganhos de competitividade e produtividade que actualmente se procuram.

Ou seja, confirmando-se o que já se sabia, isto é, que os modelos económicos liberais entregam à volatilidade emocional dos mercados a regulação dos desacertos entre a dinâmica da população e a gestão dos recursos, talvez fosse sendo tempo de trazer á discussão ideias inovadoras para dar corpo a um paradigma e a um modelo de governança que, tendo as pessoas como prioridade, fosse capaz de gerir com o mínimo de rupturas a velocidade a que se processa a mudança.

A aposta na manutenção e na melhoria das condições de operação dos lagares e olivais existentes, seguramente que não iria maximizar as possibilidades que as novas tecnologias implementadas em FA trouxeram ao sector do azeite. Mas muito provavelmente desempenhariam melhor o papel de gerir de forma optimizada o processo de mudança das regiões olivícolas em que se inserem.





quinta-feira, 11 de novembro de 2010

O Desenvolvimento Humano segundo a ONU

Desde 1990 que o principal instrumento de divulgação da actividade do PNUD passou a ser o seu Relatório . Nele, além das bases filosóficas que norteiam a Instituição e das estratégias a que recorre para as implementar, o PNUD tenta aferir a evolução do estado do mundo através de um índice que cunhou com a designação de IDH ( índice de desenvolvimento humano ).

Inicialmente este índice foi construído com três indicadores centrais :
.longevidade (da esperança média de vida infere o estado da saúde );
.conhecimento ( aferido pela taxa de alfabetização para refectir a capacidade de cada um potenciar o seu governo);
.padrão de vida (estimado pelo PIB per capita, para dar conta da produtividade e do poder de compra )

Resultava da natureza destes indicadores que os países com maiores IDH eram naturalmente os ricos cujos cidadãos chegassem alfabetizados a velhos.

O reconhecimento de que esta trindade era claramente insuficiente para exprimir as fundações filosóficas do paradigma do PNUD, que remete também para a equidade, sustentabilidade e autonomia, levou a progressivas alterações das suas bases de cálculo. O Rendimento Bruto per capita substituiu o PiB per capita, o conhecimento passou a incluir a escolarização, e foram introduzidos outros factores de correcção, nomeadamente para a equidade e para a sustentabilidade.

Contudo, ainda assim, o IHD continua a ser melhor nas favelas do Rio de Janeiro que nas aldeias do Alto Xingu! E como a correcção da sustentabilidade se calcula com base em indicadores tão improváveis como as emissões de carbono, a percentagem de áreas protegidas e a poupança, Cabo Verde tem visto o seu IDH cavalgar posições a reboque de algo tão pouco sustentável como são as remessas dos seus emigrantes. Pela mesma lógica, não será por ter na exportação de recursos não renováveis ( petróleo ) a sua principal fonte de receita, que a Noruega verá em risco a sua liderança mundial do ranking IDH.

Por conseguinte, o que o Relatório publicado pelo PNUD faz, é produzir uma imagem do mundo a partir de um perspectiva ideológica standardizada pelo paradigma ocidental que adoptou. Pode-se discutir até à exaustão a objectividade dos critérios ou as boas intenções subjacentes, trabalhar na melhoria de indicadores ou dos instrumentos de medida. Mas nada disso retira à agenda do PNUD a sua propensão universalista, arrefece o ideário missionário de muitos dos seus mentores, ou dilui o carácter corporativo em que se tem enquistado.

Apesar disso, seria de esperar algum pudor na facilidade com que, apoiado nos crescimentos do IDH, O PNUD decreta o que significa melhoria de qualidade de vida, bem estar social ou felicidade. Assumir que o conhecimento que importa tem na escolaridade a sua fonte de eleição, pressupor que a boa economia é a do consumo, acreditar que a saúde como conceito holístico se exprime na longevidade, além de ideológico é profundamente redutor.

Não viria daqui mal de maior ao mundo se no limite este género de concepções não tivesse qualquer possibilidade de contaminar as decisões politicas. Ora como essa possibilidade existe, não será de estranhar que um destes dias alguém se lembre de transferir para as favelas do Rio de Janeiro os povos do Alto Xingu , com o argumento de os  subir no ranking IDH. Infelizmente a história mostra que mesmo as narrativas absurdas, quando incansavelmente repetidas, tendem de algum modo a materializar-se.


segunda-feira, 8 de novembro de 2010

O Mundo Está Melhor ?

Este texto do Público tem que se lhe diga. O Jornal tem em tão boa conta a autoridade da ONU que nem sequer se dá ao incómodo de ensaiar uma virgula de critica ao seu conteúdo. Já sabia que as várias corporações sediadas na ONU estão em sintonia e fazem lobby umas pelas outras. Mas é interessante verificar que até na dita periferia contam com zelosos colaboradores . Se o PNUD diz que o mundo está melhor, por que iria um jornal português tentar perceber por que o afirma? Se o PNUD garante que a única coisa capaz de pôr em causa o sentido desse melhoramento são as “alterações climáticas”, por que haveria o mesmo jornal de nos elucidar sobre os fundamentos de tão avalizada sentença? A verdade é que nem sequer nas academias se perde muito tempo a questionar a bondade destas “verdades”, mas não é disso que quero falar agora.

O meu tópico é outro. Eu gostava imenso, confesso, que o relatório do PNUD e as respectivas conclusões de que o mundo “melhorou”, fosse efectiva e não deixasse margem para dúvidas. Mas deixa. E deixa por duas razões.

Em primeiro lugar porque, por muito boas que tenham sido as capacidades de comunicação de Amartya Sen, o conceito de desenvolvimento humano que propôs e a ONU adoptou tem inúmeras fragilidades. Em segundo lugar porque as politicas com que a ONU tem tentado implementá-lo e os critérios com que procura medi-lo ( Indice de Desenvolvimento Humano - IDH ), só têm contribuído para acentuar essas fragilidades.

A principal fragilidade do conceito de desenvolvimento humano, é a sua carga ideológica. Sen pensou o desenvolvimento humano como uma versão melhorada de um paradigma concreto – o paradigma ocidental. Por isso não diverge da ortodoxia progressista e não questiona a ordem instalada como base aceitável para pensar o futuro.

Nesse quadro cartesiano, não admira que Sen tenha dado à produtividade um papel central . É nesse pressuposto que ele propõe o reforço das capacidades do individuo. No entanto as capacidades a que se refere não podem ser vistas em abstracto. A capacitação em concreto perde sentido fora do paradigma que a produz. Ora Sen não assume em abstracto que pessoas mais capacitadas têm melhor acesso a oportunidades de realização. A ideia de entitlement como motor do desenvolvimento, deriva directamente da observação que nos processos vigentes sob égide no paradigma ocidental, as qualificações têm feito  a diferença no acesso às novas oportunidades geradas pela industrialização e terciarização da economia e na mudança que o mundo tem tido.  Mas reflectindo assim, Sen deixa subentender o mundo como uma espécie de feira de oportunidades inesgotáveis e pre-determinadas,   onde basta o domínio dessas capacidades para aceder às oportunidades  que correspondem às expectativas de cada um.
No entanto, as oportunidades não são infinitas. Elas são limitadas, nomeadamente  pelas necessidades sociais e pelos recursos disponíveis. Não serve para muito ser-se profundamente capacitado em agricultura se não se tiver terra para cultivar. Além disso há a questão da conflitualidade entre as expectativas dos indivíduos e as necessidades inerentes ao funcionamento da sociedade. Uma sociedade não é mero somatórios de indivíduos que coexistem num espaço como ilhas  sem relação. Ela cria necessidades próprias que implicam em maior ou menor grau sistemas de divisão do trabalho. Ora não há espaço para todas as expectativas nem todos os desempenhos são igualmente atractivos.

A Europa já vive esse desfasamento entre capacidades, oportunidades e desempenhos. É natural que um licenciado em ensino de biologia que já não cabe no mercado de trabalho tenha relutância em  aceitar  oportunidades por preeencher  na agricultura ou na construção civil, tradicionalmente menos atractivas. Mas a deriva que conduziu a esta estranha coexistência de desempregados de luxo sem utilidade no mercado de trabalho e a importação de mão de obra não qualificada para preeencher as necessidades básicas de funcionamento dos lideres do mundo dito desenvolvido, não aparece reflectida nos critérios de desenvolvimento humano.

Para a ONU, no entanto, as teses de Sen tiveram o mérito de gerar consensos fáceis. Como principio, o reforço das capacidades dos indivíduos não merece discordância. E o PNUD precisava de um paradigma consensual que servisse simultaneamente de justificação para quem lhe financia os projectos e para quem deles beneficia.

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

A banalização da asneira



O disparate cansa! A asneira tem vindo a transformar a discussão da generalidade das questões económicas e financeiras, numa canseira medonha. Pela parte que me toca, esse cansaço até não tem muito a ver com o habitual burburinho popular, quase sempre reflexo e impressionista . O que particularmente me incomoda é a produção sistemática dos discursos estupidificantes que lhe dão azo. É que essa produção é promovida por quem tem obrigação de fazer muito melhor.

A ideia peregrina em circulação segundo a qual a despesa do Estado é toda ela um desperdício de impostos e um contributo liquido para o deficit das contas publicas, é uma delas. Esta tese deixa implícito que a moral é necessária às performances do capitalismo. Ora isto é pueril. O capitalismo não tem nada a ver com moral, as empresas não são misericórdias, e os seus resultados não têm qualquer relação com a ética das decisões económicas.

A acumulação capitalista que todos reivindicamos para aceder ao paradigma de qualidade de vida que incorporamos, alimenta-se da circulação do capital e é perfeitamente alheia à natureza ou à utilidade material, social ou moral, do que se transacciona para o efeito. Haja mercado que a lógica intrínseca ao sistema trata do resto. Para a “prosperidade capitalista ” , é perfeitamente irrelevante se os meios financeiros que se geram resultam de despesas de investimento efectuadas na educação, na saúde, num bordel, na produção de minas anti-pessoal, ou no trafico de órgãos. Mas parece que ainda há quem não tenha percebido isso. Ou percebeu e faz de conta que não percebeu, por razões que não me interessam nem me merecem o mínimo respeito. Certo é que quando se criticam as jantaradas dos tipos das finanças, ou da malta da câmara de Oeiras, baralha-se tudo: deontologia do serviço público, economia capitalista, contabilidade pública e parvoíce qb.

Do ponto de vista do capitalismo liberal, uma jantarada de qualquer repartição paga pelo orçamento, é apenas a economia à mesa a alimentar-se para produzir mais prosperidade capitalista. Isto é, dinheiro de impostos a pagar salários a cozinheiros e empregados de mesa, géneros a grossistas, retalhistas e produtores, rendas a proprietários, a fomentar o consumo, o mercado, a gerar receita para os empresários, juros para os bancos, a contribuir para o crescimento e para a cobrança de impostos para pagar mais jantaradas, ou auto-estradas ou cartazes de campanhas presidenciais, ou outra cena qualquer. Na verdade, para a boa performance económica e contabilista deste modelo em que vivemos, dá mais resultado gastar dinheiro com jantaradas de leitão na Mealhada, do que pagar tratamentos para a leucemia em Chicago a uma criança com essa doença, ou financiar bolsas de estudo para doutoramento em economia em Harvard. Chocante? Pois é, mas é assim mesmo. Os tratamentos médicos e as bolsas de estudo no exterior são importações, aumentam o deficit; as jantaradas de leitão são consumo interno de produto interno, contribuem para o crescimento desta economia. É para evitar esses absurdos que se diz que a economia deve estar ao serviço da politica, e não o contrário, como vem sucedendo. Mas não é com exemplos descontextualizados e discursos estupidificantes que isso se explica.

terça-feira, 21 de setembro de 2010

Decroissance ( II )


Os limites do crescimento e a refundação das bases do capitalismo já ocuparam tanta gente e sobre o tema já se escreveu tanta coisa, que sempre que encaro o assunto não consigo evitar a sensação de perda de tempo. Há dinâmicas que parecem ter vida própria, e já dei por mim a questionar-me se nesses casos não faríamos melhor se nos chegássemos para o lado para as deixar fazer o seu caminho.

Quem já meteu ombros à recuperação de antigas casas de família, percebe melhor do que estou a falar. Os edifícios antigos têm características concretas de construção que não se podem contornar. Qualquer renovação com vista a um uso diferente do original tem de obedecer de algum modo a essa matriz. Posso mudar portas, janelas, soalhos, telhas, rebocos. Mas não posso tirar paredes de travamento e fazer daquilo um open-space.

Passa-se algo do género quando se preconiza que a sociedade capitalista deveria abandonar o imperativo do crescimento económico. Não é que não seja possível pensar uma sociedade que não inscreva no seu projecto económico o crescimento continuo do PIB, possível, é. Mas não como remodelação do edifício capitalista, cuja estrutura não foi desenhada para suportar esse tipo de arranjo.

Seria pois de esperar que quem pretende abandonar os condicionalismos do capitalismo, fundasse ao lado obra nova, isto é, que fosse dando corpo a um novo paradigma. Mas não. Então, de tempos a tempos , acontece o que é normal nos edifícios antigos. Aparece alguém para retocar os estuques e pintar de fresco paredes velhas. Eventualmente aproveita e muda também a decoração, mas é tudo.

Foi o que aconteceu quando há cerca de vinte anitos uma dona de casa norueguesa, daquelas matriarcas capazes de qualquer coisa para manter a harmonia no lar , tirou da caçarola uma ideia peregrina de contornos imprecisos que teve na sua vacuidade ideológica o principal atractivo e por isso se tornou rapidamente consensual. Chamou-lhe "desenvolvimento sustentável". Um género de sopa da pedra, sabe-se que leva pedra, que não é a pedra quem lhe dá substancia, mas é tudo o que se sabe e para muita gente é quanto basta. Percebe-se. A sustentabilidade é o sonho ideal de todos os narcisos, pois ajuda-os na crença de que a juventude e a beleza eternas são possíveis. Como de narcisos todos temos qualquer coisa e como o capitalismo de parvo não tem nada, desde então que passou a servir-nos sustentabilidade a todas as refeições e lucrado com isso. A coisa chegou a pontos de até as famigeradas rotundas serem consideradas “sustentáveis”. Naturalmente os menos narcisos fartaram-se de tanta sustentabilidade e têm procurado variar a ementa discursiva.

Uma das variantes mais recentes baptizou-se de decroissance. É uma corrente anti produtivista e anti consumista que de novo só tem o nome. Preconiza consumir menos, produzir menos, reproduzir menos. Quer dizer, sugere que se retirem as paredes interiores do edifício em que vivemos, mas não explica como segurar o telhado. Ora a sociedade capitalista implode se lhe tiram o ai Jesus do consuminho, conforme tem sido evidente nos últimos tempos. E como o pessoal já percebeu isso, reage muito mal ás lógicas de decroissance. Dos ricos, que não querem deixar de o ser, aos pobres, que não entendem por que terão de continuar pobres, passando pelos remediados, que, finalmente, estavam quase, quase, a ser ricos, o decroissance constitui uma das raras matérias que conta com a oposição unânime de quase toda a gente. Portanto, não admira que até ver não haja quem faça a mínima ideia de como ir por diante com semelhante propósito.

Tim Jackson tentou desatar essa nozada. Retomou a ideia de sustentabilidade para tentar demonstrar que ela se pode realizar sem crescimento económico, mas a ideia sai mal misturada, tipo azeite e água. Nada de original até aqui. Já outros o tinham tentado. A originalidade do TJ é que tenta marcar os golos em falta metendo a bola pelo lado de trás da baliza, tentando demonstrar que é possível conjugar crescimentos zero ou negativos com prosperidade . Mas aí, a meu ver, espalhou-se !

A verdade é que o discurso de TJ é redondo, e o livro lê-se bastante bem. Em termos de conteúdos, é uma espécie de salada mista de Relatório Meadows com Convivencialidade. Falta-lhe é qualquer coisa que ligue aquilo, qualquer coisa como uma teoria convincente apoiada numa alternativa clara ao conceito clássico de “prosperidade”, e este um dos seus pontos mais fracos.

Para fazer vingar a sua tese, TJ recorre à etimologia da palavra, e recorda que prosperidade quer dizer de acordo com a expectativa. Assim é. Mas as expectativas de prosperidade globalizadas e em uso estão plasmadas nos modelos de bem-estar dos ocidentais de sucesso. Ignorar isso torna qualquer reflexão politica mero exercício académico, e TJ cai nessa esparrela. A ideia que se tem da prosperidade não é a que TJ gostava que fosse, é a que é, e só num cenário de prosperidade generalizada tal qual é entendida, é que as sociedades poderiam eventualmente estar disponíveis para aceitar discutir cenários de crescimento zero. As próprias sociedades de referência são elas próprias um terreno fértil em fragilidades estruturais que TJ faz de conta que ignora, como a dependência energética. Talvez tivesse sido por isso que TJ evita qualquer proposta de transição no sentido do crescimento zero para as instituições e para os sistemas que funcionam dentro da lógica do capitalismo vigente. Na verdade, mesmo desprezando prováveis alterações nos custos da energia, ninguém sabe como fazer a transição das modernas economias de bem-estar fundadas no crescimento económico e na energia barata para essa impossibilidade prática de conciliar uma economia próspera com um crescimento zero, ou negativo.

Essa critica necessária às teorias económicas vigentes, fica pelo acessório no trabalho de TJ. Ele não se detém sobre o detalhe de que as teorias que suportam as politicas de crescimento económico foram desenvolvidas sob pressupostos artificias. Esses pressupostos estavam perfeitamente claros na mente de muitos dos seus autores, mas são têm-se revelado perfeitamente nebulosos para a generalidade dos economistas. São poucos os que reconhecem que as teorias de crescimento económico funcionam apenas porque os modelos matemáticos em que se apoiam são verdadeiros. Nas academias a ortodoxia impera e são ainda menos os que se aventuram a desbravar a noção de que os bens cuja produção, transacção e consumo se estuda, não são abstracções matemáticas. Os modelos de Walras e respectivos sucedâneos, aplicam-se a bens monetarizáveis, comercializáveis e reproduzíveis, quer dizer, a abstracções, pois os combustíveis fósseis, solos, metais, nutrientes, necessários para os reproduzir, não são eles mesmos reproduzíveis, não são renováveis. Walras percebia isso. Quem lhe usa os modelos acha que não precisa de perceber isso, e portanto atreveu-se na aventura da globalização sem ter antes percebido que a economia no fundo produziu teorias e modelos para um mundo físico ideal que não existe. Os economistas deixaram-se aprisionar nessa ficção de que as economias são desmaterializáveis. Depois, renderam-se ao presente, e mostram-se incapazes de se libertar das grilhetas da instrumentalização que inventaram para o descrever. TJ não foge à regra. Neste livro agora publicado terá feito o que pôde, mas sabe a pouco.



quarta-feira, 8 de setembro de 2010

Decroissance


- Bom dia , Maria da luz !
- Alucinas ?! Achas que vou ter um bom dia sabendo o camarada Arnaldo Matos nos calabouços do COPCON ?!
- Mas não tinha sido libertado ontem ?...
- Mas foi preso outra vez por esses lacaios revisionistas a soldo do imperialismo soviético!
E lá seguia, brusca, azul, desenvolta, guerreira, linda. Uma tentação. Mas, com o espírito assoberbado por uma militância compulsiva na ala mais radical do MRPP, chegar à fala com ela era o cabo dos trabalhos.
- Maria da Luz, queres ir beber um cafézinho ?
- Esse hábito burguês que ignora a exploração do proletariado campesino pobre pelos grandes interesses do capitalismo agrário ianque ? Nem pensar !
- Não, Maria da Luz…este é do Nabeiro…vem de Espanha….de contrabando
…- Mas nem assim! E era uma pena. Ela bem tentava disfarçar a generosidade com que a natureza a tinha prendado. Usava uns trapos que eram o que de mais parecido devia haver com a indumentária dos guardas vermelhos. Mas perante aquela fluidez no andar nem a provecta idade do Mao ficaria indiferente. Acho que não houve adolescente daquele liceu a quem a Maria da Luz não tivesse povoado pelo menos uma insónia. Só que, a cores e ao vivo, népia, não havia registo do esboço de um sorriso que fosse, quanto mais do resto. Delicada como porcelana, Maria da Luz tinha pior feitio que o muro de Berlim e a muralha da China juntos, era duplamente intransponível. De modo que já me tinha conformado a alinhar no batalhão dos desistentes. Até que naquela manhã de Abril tudo mudou, como se fosse uma perestroika antecipada .

O “trinta cabelinhos” tinha pedido para depois da Páscoa um ensaio crítico sobre qualquer coisa. Como o tema era livre eu resolvi escolher a crítica à escola. Não foi uma escolha tão criativa quanto possam estar a pensar, confesso. Na verdade o que sucedeu é que fui procurar a nova edição do Asterix à Casa Inglesa, ali ao Largo do Dique, e junto à caixa estava aquele livrinho em francês que me chamou a atenção: “ Une societé sans ecole”. Dei uma vista rápida, estava cheio de ideias giras, achei óptimo, tipo papa feita, de modo que comprei, li em diagonal, traduzi, adaptei, resumi, e quando chegou a minha vez subi ao palanque e proclamei:

"A escola parece estar destinada a ser a igreja universal de nossa cultura em decadência."

Habitualmente alheada lá nos refundos da sala daquele mundo burguês que a enfastiava de morte, a Maria da Luz levantou os olhos. E á medida que eu prossegui debitando Illich ela começou a sorrir. Como era motivador aquele sorriso! De modo que redobrei na convicção, embora admirado por ainda haver prosa de pendor revolucionária desconhecida da Maria da Luz, que dominava de cima a baixo toda a retórica marxista-leninista, e respectivos anexos. Só mais tarde vim a saber que ela não lia estrangeiro. Ora Illich não estava traduzido. Sorte a minha. Não convenci o “trinta” com o plágio, mas a Maria da Luz foi sentar-se ao meu lado logo ao segundo tempo, na aula de biologia, dando inicio a um intimidade que durou tanto quanto o permitiu a obra publicada do austríaco, ou seja, até ao fim do ano lectivo.

Durante esse período, garanto que o Illich foi a única coisa que estudei. Tudo o resto, desde a matemática ao inglês, reproduzi de ouvido. Sobrecarregada pelos imperativos revolucionários, que não lhe deixavam tempo para mais nada, a Maria da Luz tinha acumulado um apetite voraz, e os meus desassete anitos só conseguiam dar conta do recado graças aos extensos intervalos que as discussões sobre o pensamento do Illich proporcionavam. Desde então criei uma dupla gratidão para toda a vida. Ao austríaco, por me ter facultado a senha de acesso a um jardim espectacular que de outra forma nunca teria visitado, e à dona do jardim, graças a quem li o Illich com um fervor que nunca mais dediquei a nenhum autor.

Como tudo na vida tem consequências, também esta experiencia deixou mazelas. Fiquei com enorme dificuldade em ler ou ouvir determinado tipo de criticas ao capitalista liberal e respectivas variantes sem perder a compostura, desmancho-me a rir. É que, dos ecologistas aos verdes, dos sustentáveis aos decrescentes, há quatro décadas que todos se atarefam em seguir-me as pisadas quando preparei a tal apresentação para filosofia: plagiam descaradamente o Iliich. No entanto duvido que o Tim Jackson, por exemplo, o tenha feito para merecer um sorriso da Maria da Luz, embora na verdade eu nunca mais tenha sabido dela. Depois das férias, quando voltei da campanha da cavala, ainda lhe telefonei. Eu ia mudar de poiso, ela possivelmente também e, sabia-se lá ?, podia ser que houvesse interesse na manutenção de certas pontes.
- Olá Maria da Luz !
- Olá. Diz .
- Olha, queres ir comer um sorvete à Praia da Rocha ?
- És parvo ? Sabes em que condições trabalham os operários das multinacionais que monopolizam a industria burguesa de lacticínios ? –
Abalroado, ainda manobrei de emergência na tentativa de mudar de bordo rapidamente.
- Olha, sabes, estive a ler uns textos interessantes ?
- De quem ?
- Henri Lefebvre…
- Já conheço. Não tem interesse. Adeus !
– E desligou ! Até hoje. Espero que ainda ande em busca de autores revolucionários desconhecidos capazes de lhe soltar aquele sorriso fantástico. Antes isso que ter descambado no ultra liberalismo do Durão ou no ressabiamento persecutório do Pacheco, ou da Morgado. Quanto ao Ivan Illich, encontrei-o por mero acaso uns anos depois, quem diria ! Ele dava uma conferência na velha Penn e eu andava perto de Filadélfia. Foi quando, 1988 ? Talvez, não interessa. O Possinger conhecia-o, soube do programa, convidou-me e lá fomos. No final apresentou-nos e eu aproveitei para agradecer-lhe - « Thank you ! ». O Illich correspondeu com um sorriso, deve ter ficado a pensar que tinha a ver com a palestra, mas estava enganado. O Jackson não sei se o conheceu pessoalmente, mas que diabo, bem que lhe podia ter-lhe deixado um " thank you" póstumo na nota de abertura desta pseudo-novidade que dá pelo titulo de "Prosperity without growth", pois lá por dentro o livro tresanda a razões para isso. E lá iremos.

domingo, 11 de julho de 2010

Oportunidades e oportunismos.

Ainda há muito boa gente que vive convencida que basta ter boa voz para fazer uma carreira musical de grande sucesso. Mas não é bem assim. A celebridade não tem só a ver com vontade ou talento. Pode também ter a ver o acaso, é verdade. Para se chegar á fama è preciso estar no lugar certo na hora certa, embora não convenha estar de qualquer maneira.

Há muito tempo que o marketing percebeu isso e inventou as máquinas de propaganda e as fábricas de celebridades. A ideia é que nem tudo tem que ser apenas fruto do acaso. Portanto, não admira que até o mais banal dos bardos saiba que precisa tanto de uma imagem como da voz para garantir uma audiência. São coisinhas como, por exemplo, nunca tirar os óculos de sol. Isso pode bastar para celebrizar um cantor que por acaso até nem sabe cantar. Não fosse isso e talvez o Abrunhosa se dedicasse à construção civil. Ou seja, as fábricas de celebridade tratam de expor no mercado das oportunidades as imagens que produzem. Só então se entregam ao acaso. As probabilidades fazem o resto e inevitavelmente algumas pegam.

Este preâmbulo de lugares comuns surgiu-me na ressaca da indisposição que me tem andado a provocar a forma como alguns personagens do mainstream do economês liberal e neo-liberal tradicionais, se têm aproveitado da crise do sistema capitalista vigente para se promoverem à condição de celebridades dissidentes . Roubini, por exemplo,tem feito tudo para se por a jeito para ser celebrado como o grande vidente que antecipou em dois anos a actual crise. Bem, conheço muita gente anónima que o fez, mas não eram assessores do FMI nem recorreram a nenhum tipo de marketing para promover essas supostas façanhas de adivinhação, e por isso é como se nem existissem. Mas não é bem isto que me traz aqui.

O que me traz aqui é que a grande “descoberta” atribuída a Roubini é a ideia de que,a prazo, a auto-regulação é uma ficção e a regra é a crise. Mas esta ideia é pelo menos tão velha quanto a ecologia. Encontra-se por todo o lado na obra de Adams, logo no primeiro quarto do século XX, por exemplo. Só que, como teoria, é pouco simpática. E as teorias de sucesso precisam de ser simpáticas. As teorias bonitas e harmoniosas são mais atraentes. No limite até podem não ser melhores nem piores que outras, mas são simpáticas, que é como quem diz, têm boa imagem, e por conseguinte vendem muito melhor os documentários da National Geografic. Não é por acaso que a maioria da malta do movimento ambientalista já ouviu falar do Aldo Leopoldo mas não faz puta ideia de quem seja o Adams. De facto ele nunca pensou numa montanha com o romantismo larilas da abordagem do Leopoldo.

Portanto, o que fazia falta para tornar comestível uma boa ideia antiga e antipática, era um bom trabalho de imagem. E para isso nada melhor que a boleia da credibilidade granjeada pela façanha do adivinho mais celebre do momento, que assim até se torna duplamente célebre, uma vez que passa por pai da dita . Não se estranhe pois se nos próximos tempos se assistir à redescoberta das teses anexas que desde há muito tempo têm sido pregadas no deserto por alguns eremitas que têm tentando perceber o mundo na óptica do que é contingente, conflitual, incomparável. Seria uma variante interessante, sem dúvida, e uma excelente oportunidade para abastecer o depauperado arsenal de opções de governo . Não sei é se serão desenvolvidas de acordo com os seus corolários naturais. Tenho fundados receios que não, e que bons princípios de reflexão para desenvolver estratégias de governança de base regional, degenerem em más receitas generalistas e azedem em dois tempos ao serviço das necessidades de marketing pessoal das sumidades que as recuperaram. É que, como bem notou Horkheimer, quando a propaganda faz da opinião pública mero instrumento ao serviço da notoriedade, mais a opinião pública se assume como um substituto da razão. Pior que uma má ideia, só mesmo uma ideia consensual.

domingo, 10 de maio de 2009

Contra-Fogos

Os bombeiros profissionais, particularmente os especializados em fogos em contexto florestal, conhecem a técnica de combater o fogo com o próprio fogo. Os que já tiveram a possibilidade de a pôr em prática, também sabem que, fora de uma faixa muito estreita de condições ideais, em vez de contribuir para combater o incêndio, o contra-fogo pode aumentar-lhe a dimensão e torná-lo incontrolável. Por isso raramente o usam. Os economistas, no entanto, parece navegarem muito ao largo deste tipo de sensibilidade e poderá ser por isso que os tenho visto insistir em combater a crise instalada no sistema capitalista usando o mesmo fenómeno que o originou : o consumo. Sim, escrevo “ o consumo” e não o “sub-prime”, porque na realidade o sub-prime nada mais foi que a tentativa desesperada de contrariar os impactos na economia da crise de consumo que se instalara na construção. No entanto, a reflexão que tem predominado continua a ser linear: se há problemas associados à retracção da procura, a injecção de liquidez no sistema deveria permitir a retoma do crescimento do consumo. Como se vê não funcionou no caso do sub-prime e como se continua a ver também não funciona na economia real apesar dos milhões atirados para o poço sem fundo das expectativas goradas. Eventualmente, o que poderá estar aqui em questão é a dificuldade de prescindir da crença fortemente enraizada de que o consumo é coisa dotada de possibilidade de crescimento ilimitada. Não é . Para que o crescimento constante do consumo fosse uma possibilidade real, seriam necessárias pelo menos duas condições: em primeiro lugar que a capacidade de consumir fosse de facto inesgotável; em segundo lugar, que as economias tivessem um potencial ilimitado de responder a essa apetência.

Estas questões não são novas. Há décadas que os limites do crescimento vêm sendo debatidos por grupos claramente marginais em relação à ortodoxia reinante. Mas as reflexões criticas que têm sido produzidas sobre esta questão confrontam as grandes crenças fundadoras do capitalismo e por isso não são benvindas na maioria das academias. Na verdade, como qualquer crença que se preze, também estas têm uma natureza ideológica com fundações culturais profundas que não é fácil mudar. Em boa parte isso poderá dever-se à insegurança associada aos sentimentos de orfandade que ocorrem quando não existem crenças alternativas suficientemente credibilizadas. Mas isso não deveria bastar para desencadear o auto-bloqueio que se verifica até nas inteligências mais argutas, levando-as a recorrer a automatismos defensivos onde se socorrem de argumentos de autoridade e se refugiam sob edifícios de explicações que de tão repetidos acabam por conduzir a maioria a adoptá-los acriticamente como se de uma realidade de substituição se tratasse. Porque na outra realidade, na do dia-a-dia, há um limite para a quantidade de casas, de carros, ou de outra coisa qualquer , que cada um de nós consegue consumir. A partir de um determinado momento, naturalmente variável de acordo com o contexto e o tipo de produto em causa, a dinâmica da oferta e da procura deixa de auto-regular os fenómenos económicos. Isso acontece quando entram em jogo outras variáveis, como o espaço ou as associadas ao bem-estar das pessoas. Para quem vive ou trabalha numa cidade congestionada, por exemplo, ter carro pode deixar de ser um acessório de conforto para passar a ser um problema e um desconforto, seja pela demora nos circuitos seja pela dificuldade de estacionamento. Por isso não admira que a opção de não ter carro esteja a ser claramente assumida por vastas faixas da população apesar de terem capacidade financeira para o adquirir. O caso é que este género de atitude vem gorar as expectativas de crescimento de uma economia que fez do sector automóvel um dos pilares da sua “prosperidade”. O mesmo se poderia dizer em relação à construção como em relação ao turismo.

Os instrumentos clássicos de gestão do capitalismo têm conseguido dar a volta a estas limitações recorrendo ao marketing para criar “novas necessidades” e ao efeito da “novidade”. A receita é conhecida e chama-se “fabricar novos sonhos”. Depois, apela-se ao “empreendedorismo” para que seja capaz de manter e fomentar essa dinâmica de reestiling permanente e que se apoia numa atitude que assume por irrelevante a utilidade do que se produz desde que se venda. Por isso se “criam” e promovem “novos destinos” turísticos, casas com vistas “exclusivas”, carros com tv no lado de trás do banco do condutor. Mas aqui entra a segunda questão: a capacidade dos recursos para manter uma resposta sempre em crescendo a este género de dinâmica, e há um que já é incontornável: a necessidade de energia para a manter. Ora a energia, como já se vai percebendo, não é um recurso ilimitado . Não só não é recurso ilimitado como é dela que depende o acesso à generalidade dos outros recursos, ilimitados ou não, que continuam a fazer parte do cardápio do quotidiano das nossas “necessidades”. No entanto, como vai sendo óbvio, este género de questões continua a passar à margem da discussão económica. Em seu lugar organizam-se “sessões de fogo-de-artificio” em redor de temas como as taxas de juro, os off-shores ou a regulação bancária. Coisas excelentes para distrair a malta mas que não resolvem nada de substancial, ou seja, de paradigma. Possivelmente isso sucede porque, como dizia há dias Lula da Silva no seu jeito muito peculiar, “…os pós-doutorados das grandes capitais do capitalismo mundial, ( os tais brancos de olhos azuis a quem já se tinha referido noutra ocasião…) que sabem tudo quando a crise é na Bolívia, na Argentina ou no Brasil, não foram capazes de prever nem se mostram capazes de resolver a crise que se instalou nos seus quintais, e com isso revelam aquilo que já se sabia: que afinal não sabem nada!”

terça-feira, 14 de outubro de 2008

Nem sei como lhe chame...

A história e a importância da ideia de progresso não são consensuais. Há quem lhes atribua mero significado ideológico e inclusive o sentido da palavra não está isento de disputas, havendo mesmo quem considere que o seu conceito entre os clássicos não poderia rever-se no sentido moderno da expressão. Este, lido à la Kant, dá do progresso a ideia de movimento unificado de toda a humanidade para uma sociedade baseada na justiça e na liberdade do individuo. Uma espécie de céu na terra com fortes indícios de nostalgia religiosa, género de imagem espelhada de um cristianismo revisitado para secularizar a ideia do paraíso através de algumas premissas que Beker tipificava assim: um optimismo inato acerca da condição e do destino da humanidade; a recusa de sentido caótico na história; a crença na posteridade; o conhecimento como força motriz da sociedade; a perfeição como destino.

Há quem defenda que as sequelas da revolução francesa terão produzido algum efeito “moderador” sobre todo este optimismo. Pessoalmente confesso que nunca percebi muito bem onde. Mas independentemente disso parece que se manteve a centralidade atribuída ao conhecimento na capacidade humana de compreensão e projecção de si mesma, pelo que não admira que a ciência e a razão se tenham estabelecido como pilares de uma utopia global positivista para o futuro.

Assim concebida, como crescente sofisticação do conhecimento e melhoria da vida, e reconhecida como força motora do ocidente, a ideia de progresso desaguou positivista na modernidade . Mas este positivismo teve uma particularidade de origem: um carácter marcadamente materialista, que nos colocou a olhar para o progresso como um estádio de prosperidade material de indução cientifica e capitalista. Com tal ênfase que o crescimento continuado dessa prosperidade passou a ser tido por imperativo de progresso. Para isso sofisticou-se a complexidade mas negligenciaram-se os impactos culturais, sociais ou ambientais das iniciativas em seu nome empreendidas. Na verdade a ciência não produziu uma moral e a modernidade não resolveu a conflitualidade entre o interesse colectivo e o interesse individual. Os jogos de palavras com que a pós-modernidade nos tem brindado, poderão ajudar a iludir esta questão, mas não a resolve-la. De facto, a partir do momento em que mundo passou a representar-se a si mesmo como se não houvesse constrangimentos à prossecução dos sonhos, fossem eles quais fossem, originou-se também um alargamento da ideia de progresso que, sem nunca prescindir da abundância como paradigma, abandonou a solidez das estruturas típicas do pragmatismo vitoriano para incorporar de forma algo ambivalente noções de contingência nos termos das quais tudo é possível, bem como o seu contrário. A perenidade como valor deixou de ser considerada e a propensão para o pensamento global especializado conduziu a níveis de abstracção cujas fragilidades só se vislumbram quando, como agora, aqueles que eram unanimemente reconhecidos como os “pilares dourados” do progresso ocidental cederam fragorosamente.

Por conta deste acidente há gente melhor que eu que antecipa o fim da modernidade e o advento de uma nova era. Não necessariamente de novas concepções de progresso, note-se, mas de um género de correcção de rota norteado por um melhor entendimento global dos fenómenos , entendimento esse que reivindicamos como sinónimo de uma melhoria significativa da nossa capacidade cientifica de percepção das realidades complexas e por conseguinte também de controlo do seu devir. Simplificando, há quem defenda que nada existe de errado com o paradigma, mas apenas com o funcionamento do sistema que o serve.

Ora aqui hesito. Hesito porque retenho da história a propensão para transformar bons princípios em processos de resultados duvidosos.

Quando Morin sugeriu que a acção politica poderia ser melhorada pela compreensão global da realidade a que respeita, supôs seguramente que seria possível retirar benefícios práticos de melhores níveis de entendimento sistémico do funcionamento das estruturas com as quais interagimos. Mas, como sobressai da tentativa de abordagem macroscópica de Rosnay, a nossa necessidade de estabelecer padrões de comportamento para compreender o funcionamento das coisas não se dá bem com o aumento continuado do número de varáveis que as influenciam. Daí que a tentativa de apreensão de mecanismos de elevada complexidade tenda a apresentar como reverso uma espécie de paralisia operacional. Curiosamente isso acontece com igual facilidade quando derivamos para a especialização e com isso perdemos perspectiva, como quando a tentamos recuperar recorrendo a noções globais construídas por adição sucessiva de abstracções redutoras. É o caso de conceitos como humanidade, clima, história, economia, ambiente, entidades ás quais o progresso conferiu um significado global mas que não se conseguem descrever segundo os processos de narrativa convencionais.

No caso da economia, por exemplo, embora seja possível representar e descrever a totalidade dos sistemas lineares de produção e troca que acontecem no interior de um espaço num determinado tempo, bem como os comportamentos que os acompanharam, não há nenhuma matriz capaz de integrar a infinitude de acontecimentos materiais e emocionais que ocorreram nas sua múltiplas interacções concretas e menos ainda de as prever. Esta impossibilidade e o desejo de facilitar e potenciar os resultados associados aos processos de troca, conduziu o progresso económico ( e outros com ele ) no sentido da homogeneização de procedimentos. Em consequência reduziu-se a diversidade de práticas e abandonaram-se estratégia pragmáticas fundadas sobre o principio da precaução ( constituição de reservas ) por troca com a crença nas virtudes da especialização e da interdependência Mas esta interdependência é lida em chave equivoca. Equivoca porque existe uma diferença significativa entre a realidade que ela representa e a imagem de complementaridade que pretende transmitir. Em economia a complementaridade tem sentido e funciona quando existe um nível de autonomia significativo. Isto é, entre a minha actividade de agricultor e a do meu vizinho pescador existe toda a complementaridade do mundo porque trocamos peixe por batata e ambos ficamos satisfeitos com a diversificação do menu. Mas a verdade é que se nos zangassemos eu sobreviva bem só com batata e ele só com peixe. Seria uma dieta monótona mas viável. Ora outro tanto deixa de acontecer se eu e o meu vizinho decidirmos dedicar-nos em exclusivo ao turismo. Por troca com os nossos serviços os turistas que nos visitam trazem-nos os excedentes de peixes e de batatas que produzem. Mas a verdade é que se o ano for mau na terra deles e não conseguirem produzir excedentes, em vez de virem de férias ficam em casa, e eu e o meu vizinho ficamos de barriga vazia. Ora isto acontece porque os bens que aqui se trocam não são equivalentes e a complementaridade só funciona nessa condição. Fora dela o que chamamos de interdependência pode na prática significar dependência e vulnerabilidade.

No momento em que alinhavo estas linhas leio a noticia da corrida aos supermercados num dos países que se encontra no top-ten dos mais ricos do mundo – a Islândia. Ou seja, o progresso, este progresso, positivista, cientifico, racional, não foi capaz de resolver as questões do aprovisionamento e das trocas da energia que são fundadoras do funcionamento das sociedades e camuflou essa insuficiência instituindo subsistemas, como o financeiro, cuja visibilidade e aparência complexa iludem a natureza transitória e supérflua da prosperidade que se tem por adquirida. Como está à vista, a prosperidade adquirida funda-se afinal na mera troca de expectativas. Ora como resultado de uma dinâmica que se reivindica herdeira da ciência e da razão, teremos que convir que é pouco. Tão pouco que legitima a dúvida de saber se será insuficiência do processo ou se, afinal, o problema está mesmo no paradigma. E que a ideia de progresso como sistema cartesiano que pretende combinar prosperidade, justiça e liberdade para todos em todo o lado seja afinal uma equação impossível.

quinta-feira, 9 de outubro de 2008

Como um balão furado

Há nas proliferas explicações para a dita crise do sistema financeiro alguns aspectos que tendem a ser escamoteados num exercício de negacionismo revelador. No topo desta lista coloco a natureza do próprio sistema económico. Assumi-lo como centro da discussão implicaria reduzir as questões financeiras à magnifica simplicidade dos seus fundamentos económicos. Ora isso iria deixar desarmados e sem emprego todos os “magos da finança” . De facto são eles que, não encontrando outra forma de justificar a existência senão complicando o que é simples para desse modo se substituírem a uma realidade óbvia, se instalaram como mediadores para uma ficção cuja suposta complexidade foi arquitectada como instrumento de controlo e de exercício do poder.

Contrariamente ao que se pretende fazer crer, a economia não tem nada de complicado. Ela resume-se ao modo como nós particulares e nós sociedades gerimos os recursos que são necessários à nossa subsistência. É verdade que a partir de um momento qualquer cuja localização no tempo ou no espaço é irrelevante para esta arenga, decidimos que subsistir era pouco. Vai daí que estabeleceu-se o progresso como desígnio que se auto-define em critérios de bem-estar que na prática se têm traduzido principalmente em ter mais de tudo: mais casas, mais carros, mais estradas, mais roupa, mais alimentos, e, claro, mais dinheiro como símbolo da capacidade de conseguir mais de tudo isso. Neste processo ideológico, em que o new-deal foi um importante marco, o valor simbólico do dinheiro desligou-se da realidade adquirida para passar a exprimir a realidade expectável.

Assim, ao contrário do que era uso no tempo da economia dos nossos avós, em que só se faziam as despesas depois de obtidas as receitas, a modernidade faz as despesas na expectativa de receitas que ainda não aconteceram. Desta forma, em lugar de se centrar na troca de bens ou dos seus equivalentes simbólicos, a economia resvalou para a troca de expectativas. Esta mudança de atitude permitiu uma coisa muito interessante, sem dúvida, que é a possibilidade de usufruir já daquilo que em condições normais só se poderia adquirir daqui a não sei quanto tempo. Uma vez institucionalizado este novo principio de funcionamento, logo proliferaram as entidades especializadas na gestão de expectativas - os bancos. Mas enquanto os tradicionais emprestavam um chouriço a troco da garantia de um porco inteiro, os modernos avançam logo com o porco na crença de que com tanta gente a retribuir-lhes chouriços o risco associado à probabilidade de que uma quantia significativa de devedores falhe o seu tributo é bastante aceitável face ao enorme atractivo que constitui no curto prazo a disponibilidade de enormes fluxos monetárias para a prática especulativa. Deste modo o sistema bancário assegurou a mutação da economia real nas suas variantes de ficção, ou seja, transformou a nossa capacidade real de produzir e com produção gerar riqueza utilizável, na atraente ilusão de que a temos assegurada ainda antes de ter sido produzida.

Para que a gestão desta delicada ilusão se mantenha sem sobressaltos de maior, existe uma dupla premissa essencial: a de que a roda das expectativas não só não pare de girar como a de que enquanto gira não pare de crescer. Ou seja, um sistema que tem no consumo o seu motor, no crédito o respectivo combustível e na abundância ilimitada e universal o paradigma de referência, precisa de acreditar na possibilidade de crescimento ilimitado da riqueza com uma atitude de fé dogmática, pois sem ele nada disto funcionaria.

No entanto a abundância tem limites. Eu sei que é difícil de encaixar mas é assim mesmo. Esses limites são estabelecidos por recursos materiais concretos, pela capacidade tecnológica de os processar e pelo número de utentes potenciais. Além disso a gestão desses recursos obedece a leis tão universais como as da termodinâmica ou a dos rendimentos decrescentes. Esta em particular reza que existe um momento a partir do qual o acréscimo de resultados que se obtêm de um processo se torna inversamente proporcional à quantidade de recursos que nele se investe. Ou seja, numa parcela de terreno de dimensões definidas, há um momento a partir do qual por unidade de trabalho a mais que nele invista num determinado cultivo, já obtenho menos de uma unidade de produto. Chama-se a isto rentabilidade marginal negativa e é uma característica dos sistemas produtivos que só não é mais evidente porque os fluxos económicos tendem a ser medidos em moeda. Quer dizer, exprimem-se através da artificialidade de padrões monetários que não são realmente comparáveis entre si, em lugar de se contabilizarem numa unidade de medida facilmente padronizável como seria a energia, por exemplo.

De facto, qualquer pessoa em bom estado de saúde mental recusaria sempre a troca directa de um pão de quilo por um de meio quilo, pois seria sempre um óbvio mau negócio.Porquê ? Porque existe nessa troca uma óbvia desproporção dos respectivos valores energéticos. No entanto é frequente que a mesma pessoa não hesite em pagar pelo pão de meio quilo mais do que pagaria pelo de quilo, bastando para isso que o primeiro seja promovido como “pão de marca”. Ou seja, a economia descolou dos sistemas de troca em contexto de satisfação de necessidades bem padronizadas para se estabelecer em redor de critérios de equivalência que incorporam factores subjectivos cujo gestão foi entregue ao “deus mercado”. Desta “sofisticação” do homo economicus não adviria mal de maior ao mundo se esta dinâmica não se tivesse globalizado a reboque do recurso ao efémero, ou melhor dizendo, do abuso de um fabuloso recurso energético que ajudou a criar uma ilusão complementar de riqueza e instalou um modelo social que além de artificial é insustentável porque há muito que funciona assente em actividades de rentabilidade marginal negativa. Por isso a prosperidade desta economia tal como a conhecemos é um balão cheio de gás. Concretamente, um balão cheio do CO2 resultante da queima de combustíveis fósseis. De consistente ela não tem mais substância que a matéria de que é feito o balão. É isso que se vê quando ele se esvazia ao mínimo percalço deixando a nu a extraordinária mistificação da suposta solidez do sistema, que afinal se resume a expectativas a flutuar no que ainda sobra de um antigo lago de petróleo.
Link para um texto de quem também não gosta de complicar o que é simples.