(04/03/2010)
CAIM
José Saramago
Caminho, Alfragide, 2009,
181 pp.
Não percamos muito tempo nem adjectivos com a apresentação de José Saramago, a sua trajectória biográfica é suficientemente publicada e pública. Nasceu ribatejano, tornou-se lisboeta sem nunca abandonar a sua proveniência e, 71 anos depois do seu nascimento, a sua inscrição identitária alargou-se a Espanha. Mais tarde, o cruzamento entre a sua pátria e mátria pariu nele uma jangada de pedra e com ela foi navegando pelo mundo...
Com estudos ao nível do secundário (liceal e técnico), abandonou a escola precocemente por motivos económicos e iniciou a escola da vida como serralheiro mecânico. Daí em diante passou por muitas outras profissões (desenhador, funcionário da saúde e da providência social, tradutor, editor e jornalista), até que a partir de 1976 passou a viver da sua criação literária, actividade através da qual obteve o Prémio Nobel da Literatura (1998). A sua obra conta com cerca de 35 livros, repartidos pelo romance, teatro, contos, poesia, crónicas e memórias.
O meu encontro com a criação literária de José Saramago calhou a meio da desregrada adolescência, quando descobri lá por casa, entre algum lixo do Círculo de Leitores, o então polémico O Envagelho Segundo Jesus Cristo. Entusiasmado, seguiram-se outros livros, dos quais destaco A Jangada de Pedra, Ensaio sobre a Cegueira e porque não também Os Poemas Possíveis.
Debrucemo-nos então sobre o livro que me trouxe novamente à companhia de Saramago: Caim. Talvez pela polémica em torno das declarações do escritor e pelos prontos contra-argumentos que suscitou [e que funcionaram como publicidade gratuita], decidi voltar a partilhar as noites de alguns dias com este autor.
Depois de lido, a conclusão é que Caim prometia mais do que aquilo que revelou. O estilo e o ritmo de Saramago está presente e a história está bem arquitectada, porém, parece-me que escasseia algum do fulgor de outros livros e que as personagens estão pouco receptivas a uma interacção com o leitor, afigurando-se psicológica e emotivamente (quase) impenetráveis, fechadas em si e na própria história.
No que se refere à substância do livro, é de referir que as estórias que fazem a história deste livro são conhecidas há muitas gerações, sendo que a grande inovação é a perspectiva com que estas são narradas. Ao longo da narrativa, o personagem principal, Caim, intercala entre vários presentes, os quais correspondem a diferentes episódios/cenários bíblicos: Torre de Babel; Sodoma e Gomorra; Jericó; Monte Sinai; o dia em que Deus parou o Sol; e Arca de Noé, entre outros.
Contudo, ao contrário da narrativa bíblica, neste livro, Saramago torna Caim uma espécie de testemunha das atrocidades de Deus. O leitor assiste através do olhar peregrino de Caim a um conjunto de acções que revelam a má fé (expressão curiosa para falar do Senhor) e a personalidade egocêntrica e vilã desse Deus.
Em Caim Saramago não pretende matar Deus, essa é uma tarefa iniciada por alguns filósofos e deve permanecer nesse âmbito. Aqui, Saramago mais não faz do que malhar como um boxeur muito superior ao seu adversário, um virtuoso que se diverte a humilhar e a massacrar um adversário cheio de limitações técnicas e até falta de jeito para a actividade que insiste em prosseguir.
Aos meus olhos de leitor, parece-me nítido o prazer com que José Saramago procurou os adjectivos mais indicados para insultar Deus. Quando não recorre à simplicidade da adjectivação, esforça-se para traçar acontecimentos que colocam Deus a jeito de revelar a sua própria percepção de Deus e que compelem o leitor chegar aos adjectivos que pretende sem nunca os enunciar, por exemplo: incompetente; negligente; ausente; arrogante; traiçoeiro; rancoroso; cruel; invejoso; ciumento; injusto; vingativo; mau; mentiroso; louco e insensível. No entanto, não se inibe de lhe chamar com todas as letras “filho da puta” (p. 82).
Além da adjectivação, Saramago também coloca todos os nomes com letra pequena, incluindo o do Senhor que é despromovido a simples senhor. Do que me recordo de ler nos seus outros livros, tal despromoção nunca esteve presente, nem mesmo n’ O Envagelho Segundo Jesus Cristo.
Pontualmente, o boxeur Saramago, nos intervalos dos rounds em que se confronta com Deus, também demonstra o seu desprezo pelo Staff que compõe a equipa de Deus, agredindo e insultando-os, em particular, os Judeus (“falam demasiado” (p. 105); “à mínima derrota os judeus perdem a vontade de lutar” (p. 118)).
Em jeito de crítica negativa, considero que grande parte das notas do autor são despropositadas e, em alguns momentos, quebram a dinâmica da obra. Mais grave, em vez de complementares, o contraste entre a narrativa e as notas, parecem criar dois livros distintos num só, sendo que o que corresponde às notas do autor tem muito menos qualidade do que aquele que é desenvolvido pelo narrador.
Como positivo, destaco o facto de que Saramago mantém uma qualidade que me parece transversal na sua criação literária, isto é, a capacidade de provocar erecções... quer nas suas personagens como nos leitores. No que diz respeito aos leitores, reservo-as a cada um deles. No que se refere às dos personagens, recordo as sublimes erecções com que presenteia Abel e o próprio velho Abrão.
Por outro lado, ao contrário de outros, não considero que Caim se resuma a um manifesto contra Deus. Saramago vai bem mais longe, pois, a partir da caricatura de Deus, crítica e traça o que tem sido a história da humanidade e, ao mesmo tempo, faz um retrato do Homem actual. Caim não testemunha só as atrocidades de Deus, também assiste à barbaridade entre os seres humanos: violência, assassínios, corrupção, traições...
Assim, ao que José Saramago escreve (“A historia dos homens é a história dos seus desentendimentos com deus, nem ele nos entende a nós, nem nós o entendemos a ele” (p. 91)), acrescento: a historia dos homens também é a história dos desentendimentos entre si, continuamos sem nos entender.
Cada instante de ausência abotoa silêncio, carência e insónias... Nesses momentos este será o Espaço onde a ausência será traduzida em fragmentos de palavras (Letra), a Palavra em Texto e este em interlúdios que preenchem os vácuos que pontuam a grande composição que é a vida.
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quinta-feira, 23 de setembro de 2010
sexta-feira, 8 de janeiro de 2010
Uma espécie de recensão crítica
Memória de um Inconformista – Crónicas
Gonzalo Torrente Ballester
[Tradução e notas de António Gonçalves]
Âmbar, Porto, 2006,
467 pp.
Gonzalo Torrente Ballester (1910-1999) é considerado um dos principais intelectuais espanhóis do século XX, cuja obra conta com cerca de meia centena de livros repartidos pelo romance, teatro, ensaio e jornalismo. Qualificado e premiado como um dos melhores escritores espanhóis - o “senhor das palavras”, também foi jornalista e, tal como a certa altura se intitulou, sobretudo, “um excelente professor”.
O seu inconformismo e espírito crítico face aos acontecimentos do seu tempo, nomeadamente, em relação ao regime político, tornaram-no alvo da censura oficial do aparelho franquista em todos estes ofícios. Em 1962, por exemplo, esta postura custou-lhe não só a indiferença da crítica para com a publicação da última parte da sua trilogia Os Prazeres e as Sombras, mas também perdeu o seu lugar de professor na Escola de Guerra Naval e o seu espaço na imprensa e rádio. Somente dois anos depois conseguiu o reingresso no ensino e recuperar o seu espaço na imprensa escrita, altura em que inaugurou a sua presença no jornal Faro de Vigo numa coluna intitulada “A modo”.
Em 1997, César António Molina compilou em Memória de um Inconformista grande parte dos artigos aí publicados, entre Julho de 1964 e o início de 1967, e cuja tradução chegou em 2006 ao mercado português. Esta obra, para além de nos oferecer a oportunidade de (re)visitar o estilo e as ideias de Ballester, tem o mérito de nos fazer recuar até aos anos 60 e de permitir conhecer, recordar e reflectir sobre os temas, as polémicas e os protagonistas que em muito contribuíram para a realidade que vivemos actualmente.
Nestes artigos, sem uma dimensão nem periodicidade regular e pautados por um estilo errante entre a literatura e o comentário jornalístico, o seu autor debruça-se sobre as mais diversas temáticas: sociais; políticas; religiosas; culturais; e etc.. Atento à realidade e aos acontecimentos do seu tempo escreve, sempre sem pudor e sem medo do juízo apaixonado ou do erro pessoal, sobre todos os assuntos, quer os que estuda e conhece, como aqueles em que se sente mais inseguro.
A única regularidade transversal aos diversos artigos é o estilo e os valores que defende. Em cada artigo Ballester revela-se mais do que um homem à frente do seu tempo, ele demonstra ser alguém profundamente comprometido com todas as circunstâncias do época em que viveu. Talvez consciente disto, numa crónica alusiva ao seu primeiro ano como cronista do Faro de Vigo, interroga-se: “Não posso deixar de me assustar e de perguntar a mim próprio se em tanta prosa haverá algo de válido, ou de autêntico, ou de permanente (…)”.
Volvidos 40 anos, o leitor poderá responder seguramente que sim. Não obstante algumas conclusões que se revelaram falhadas e o facto das personagens e os contornos dos assuntos serem presentemente outros, a sua prosa, a atitude e os valores que defendeu mantêm uma surpreendente actualidade. Hoje, como antes, é necessário manter o inconformismo e o espírito crítico construtivista típico em Ballester perante a permanência dos mesmos problemas de sempre: guerras; subsistência de regimes não-democráticos; discriminação e segregação racial e sexual; a falta de renovação da Igreja e dos seus eclesiásticos; a desvalorização da cultura e do ensino; o alargamento da sociedade de consumo; os erros da politica externa dos EUA; o desrespeito pelas diferenças; e a urgência de convivência pacifica.
O seu inconformismo crítico face a estes e outros problemas resultou em numerosas cartas ao director do jornal e em várias contestações públicas. No entanto, sempre se revelou um espírito livre e obstinado, e várias vezes o sublinhou cintando o verso de Quevedo “Não me calo...”.
A publicação desta obra é a prova de que ainda não se calou.
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